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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Claudio Costa: PHILOSOPHICAL TEXTS - TEXTOS DE FILOSOFIA

                  THIS "BLOG" WAS IDEALIZED TO MAKE MY WORK IN PHILOSOPHY MORE ACCESSIBLE. IT CONTAINS MORE THAN 100 WRITINGS, THOUGH USUALLY IN DRAFT FORMS, IN ENGLISH AND/OR PORTUGUESE. THE PAPERS WITH INTEREST FOR THE RESEARCHER WERE MARKED WITH #.

ESSE "BLOG" FOI IDEALIZADO COMO UMA MANEIRA DE TORNAR MEU "FABULOSO" TRABALHO FILOSÓFICO FACILMENTE ACESSÍVEL A PESSOAS LEGITIMAMENTE INTERESSADAS EM FILOSOFIA. ELE CONTÉM MAIS DE 100 ESCRITOS, EM GERAL ESBOÇOS, MUITOS DELES EM PORTUGUÊS. ALGUNS SÃO DIDÁTICOS, OUTROS NÃO. OS TRABALHOS DE INTERESSE PARA PESQUISADORES FORAM MARCADOS COM #



FROM MY CURRICULUM

I was born in Vila Seropedica, near to Rio de Janeiro, Brazil, 1954. After an intellectually boring medicine undergraduate study, I gained my MS in philosophy at the IFCS (Rio de Janeiro) and a Ph.D. in philosophy at the University of Konstanz (Germany). Since 1992, I have worked as a researcher and professor at the UFRN (Natal), secluded in the beautiful Northeastern of Brazil, though always in contact with the international philosophical discussion through many grants taken at the universities of Konstanz, Munich, Berkeley, Oxford, Göteborg, and Ecóle Normale Supérieure (INS). Even if dealing with contemporary analytic philosophy, I am at odds with the lack of comprehensiveness of the present mainstream philosophy. I have social dyslexia (a light degree of autism), which explains not only my lack of sociability but also my obsessive interests and intellectual independence. The books I am not ashamed to have written are "The Philosophical Inquiry" (Lanham: UPA, 2002), which develops a thesis on the nature of philosophy, Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions" (Cambridge Scholars Publishing, 2014), and "Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy" (Cambridge Scholars Publishing, 2018). The book from 2014 is a selection of essays (some of them, in my view, really relevant), while the long book from 2018 can be read as a comprehensive analysis of a cluster of concepts regarding philosophical methodology, the concept of meaning, verificationism, and truth, as investigated by philosophers from Frege to Wittgenstein. The last published book, "How do Proper Names Really Work?" (De Gruyter 2023), aims to overthrow the old stalemate between the new and the old orthodoxy in the philosophy of language. This book should be a game-changer in the field insofar as not being silenced by the community of ideas.


SOME BOOKS (ALGUNS LIVROS):






 





















AS IDEIAS DE SPINOZA

  

 

 

VI

 

SPINOZA: NATURALISMO PANTEÍSTA

 

 

Baruch Spinoza (1632-1677) foi um filósofo extraordinariamente original e desafiador. Ele nasceu em Amsterdam, de uma família de judeus fugidos da inquisição na Península Ibérica, onde eles eram forçados a se converterem ou a irem embora. E caso se convertessem, mas se recusassem a comer toucinho, arriscavam-se a ser conduzidos à fogueira.

   Em Amsterdam Spinoza era considerado um aluno brilhante e uma esperança para a comunidade judaica, que desejava aproximar o judaísmo do cristianismo tolerante praticado na Holanda. Contudo, essas esperanças foram frustradas, pois ele cedo enviesou-se na defesa de ideias inaceitáveis, rejeitando a crença em um Deus pessoal criador do mundo e negando a existência de uma justiça divina após a morte, coisas que ele tinha como mitos vulgares propagados pelos profetas com o fito de apascentar o rebanho. As ideias ofensivas de Spinoza não ajudavam em nada a comunidade judaica a sobreviver em um dos poucos países que lhes havia dado guarida.

   Como não conseguiram por nenhum meio convencê-lo a se calar, decidiram excomungá-lo. A excomunhão significava que ninguém mais poderia respirar o mesmo ar putrefeito que Spinoza respirava, nem mesmo seus familiares. Daí se seguiu até mesmo uma tentativa frustrada de homicídio. Claro que esse anátema deve ter surtido um efeito profundo na pessoa de Spinoza, que na época tinha apenas 23 anos. Ele teve de fugir de Amsterdam, passando a morar em quartos alugados de casas de família, onde desenvolveu uma filosofia totalmente independente, que ainda hoje é capaz de soar como revolucionária.

   Spinoza foi um exemplo daquilo que Isaac Deutscher chamou de um “Judeu não judeu”.[1] De um lado fora excluído de sua comunidade, de outro, fora dela só era plenamente aceito por livres pensadores. Deutscher notou que essa condição era intelectualmente vantajosa. Os judeus, como um povo estudioso, podiam assimilar o conhecimento dos gentios, mas não se viam forçados a serem subservientes a esse conhecimento, o que lhes dava liberdade para fazerem livre uso da cultura de outros povos. E a vantagem foi maior no caso de judeus não-judeus como Spinoza e Marx, ou de pessoas como Einstein e Freud, o primeiro um spinozista no que concerne à religião, e o último, em suas próprias palavras, um judeu completamente ateu.

   Mas Spinoza não era propriamente um ateu. Ele via Deus como sendo o próprio universo, enquanto o Deus pessoal das religiões era para ele um produto antropomórfico da superstição. Como então classificar Spinoza: como um ébrio de Deus ou como um ateu em pele de cordeiro? A resposta depende do que estamos dispostos a admitir como sendo Deus.

   Se rejeitamos o irracionalismo e a superstição e nos contentamos com o sentimento de espiritualidade, de admiração diante da magnificência do universo descoberto pela ciência, se reverenciamos formas sublimes de arte religiosa, como as catedrais góticas ou as cantatas de Bach, a ideia spinozista de um Deus imanente se torna mais compreensível.

   Pessoalmente, Spinoza era tido como uma figura amigável, gentil e despretensiosa, que gostava de uma vida simples e frugal, não precisando de vida social, embora tivesse bons amigos e mantivesse correspondência com pessoas cultas e influentes. Ele ganhava seu sustento como um modesto polidor de lentes. Seus maiores gastos eram com livros. Não aceitou quando foi convidado para ser professor em Heidelberg, pois isso lhe comprometeria a liberdade intelectual. Morreu cedo, aos 45 anos, de tuberculose, talvez agravada pela aspiração de pó de vidro.

   Sua obra máxima, a Ética demonstrada à maneira dos geômetras (Ethica ordine geometrico demonstrata),[2] escrita sob a forma de demonstrações matemáticas, começa tematizando Deus como natureza, passando depois ao estudo da mente humana, do conhecimento, das paixões e de como libertar-se delas pelo caminho da bem-aventurança. É um livro repleto de insights que se fundem em um todo estranho e genial. Em profundidade, o livro reconta a própria trajetória biográfica de seu autor. Antes de morrer Spinoza trancou a obra em uma escrivaninha e deu a chave a um amigo, pedindo-lhe que após sua morte ela fosse entregue ao editor.

 

 

1

 

Metafísica. Para explicar a Ética devemos relembrar Descartes. Para ele havia três substâncias: a substância extensa (res extensa), dependente de Deus, que constituía o mundo físico, a substância pensante (res cogitans), a alma, finita e dependente de Deus, e, por fim, a substância pensante infinita e independente, que seria o próprio Deus.

   Spinoza encontrou uma contradição fundamental na distinção cartesiana entre três substâncias. Se a substância é, como queria Descartes, aquilo que é definido como a própria causa de si mesma (causa sui), existindo em completa independência de qualquer outra coisa, ela não pode ser substância como mundo extenso, pois essa substância é dependente de Deus para existir. E a substância também não pode ser a mente pensante humana finita, pois ela também é dependente de Deus para existir. Por conseguinte, só pode existir uma substância, que é o próprio Deus.

   Mais do que isso, a substância-Deus precisa ser uma única, pois em caso contrário ela precisaria limitar-se com outras do mesmo gênero e não seria mais independente nem propriamente infinita. Ora, mas que coisa é essa que é capaz de explicar sua existência sem precisar de nada mais para existir e que devido a sua infinitude não se limita com mais nada? A resposta de Spinoza só pode ser: tudo o que existe, ou seja, a natureza, o mundo, o cosmo como um todo, que ele coloca no lugar do Deus cartesiano. Afinal, se Deus fosse algo fora do mundo ele seria limitado pelo mundo, deixando, pois, de ser infinito.

   O Deus que é tudo o que existe, o Deus como natureza (Deus sive natura), é também causa de si mesmo (causa sui), pois não existe nada fora dele que possa causá-lo, razão pela qual sua essência implica em sua existência. Sendo tudo o que existe, a forma como Deus age causalmente no mundo deve ser muito diferente da maneira como atua o Deus das religiões. Deus não é causa transiente do mundo (causa externa), mas sua causa imanente (interna). Ou seja: tudo o que ele causalmente produz é interior a ele mesmo.

   Afora isso, tudo o que o Deus-substância-natureza produz em si mesmo dele se deriva necessariamente. Por isso, o que os homens chamam de livre-arbítrio é uma ilusão. Para Spinoza o livre arbítrio não existe, pois isso significaria um rompimento com o determinismo causal.[3] Existe, contudo, a liberdade no sentido compatível com o determinismo. Nesse sentido uma coisa é dita livre quando age segundo a sua própria natureza, não sendo determinada ou coagida por qualquer outra.[4]

   Por ser assim, o Deus de Spinoza, embora não podendo agir de outra forma, é totalmente livre. Afinal, ele age em conformidade com a sua própria natureza, sem nada que o constranja. Isso não significa que suas ações não sejam estritamente determinadas, uma vez que o determinismo nada mais tem a ver com a liberdade. Tudo o que acontece é determinado pela natureza absoluta da potência infinita de Deus. A impressão que temos de possuir livre arbítrio como superação do determinismo causal é resultado de nossa ignorância das causas.

   Mal comparando, a relação entre Deus e o mundo em Spinoza é como a relação que existe entre um corpo e suas células. Nós e os objetos ao nosso redor somos partes de Deus. Spinoza fez aqui uma distinção esclarecedora entre Deus como causa sui, que ele chama de natureza criadora (natura naturans), e deus como natureza criada (natura naturata), que é o que tem a ver com os efeitos, com os modos que se seguem necessariamente à natureza criadora.[5] Albert Einstein provavelmente parafrasearia a natura naturans como dizendo respeito às leis naturais últimas, subjacentes e ordenadoras do universo.

   Deus é, portanto, a substância única e também a natureza, o todo do universo. A essência de Deus são os seus atributos. Sendo Deus infinito ele deve ser constituído por um número infinito de atributos. Precisa ser assim, pois Deus é realidade, perfeição e riqueza suprema. Deus precisa possuir uma infinidade de atributos. Mas de todos os infinitos atributos de Deus nós só temos acesso a dois: a extensão e o pensamento. Esses dois atributos são aspectos de uma mesma coisa. Tudo a que podemos ter acesso só pode aparecer a nós ou sob o aspecto da extensão ou sob o aspecto do pensamento.

   Atributos contém modos. Esses modos são os acidentes ou afecções, que dependem tanto do atributo da extensão quanto do atributo do pensamento. Produzidos por Deus há, para Spinoza, modos infinitos imediatos e mediatos. Os modos infinitos imediatos do atributo de extensão e pensamento seriam respectivamente o movimento (motus) e o intelecto (intellectus absolute infinitus).[6] Quanto aos modos infinitos mediatos dos atributos de extensão e pensamento, eles seriam respectivamente a face extensa de todo o universo (facies totius universi) e, talvez, a ideia de Deus (idea Dei).

   Contudo, o que realmente importa são aqui os modos finitos. Eles são algo bem mais trivial. Eles são todos os objetos físicos, no caso de modos do atributo da extensão, e todas as entidades mentais, no caso de modos do atributo de pensamento. Tais modos finitos são dependentes dos modos infinitos, que são dependentes dos atributos, que são dependentes de Deus. Assim, coisas materiais como corpos humanos, pedras, átomos, planetas… são modos finitos do atributo de extensão. E ideias, pensamentos, desejos, sentimentos, imagens mentais, são modos finitos do atributo de pensamento.

   É fundamental saber que para cada modo do pensamento deve haver um modo de extensão estritamente paralelo a ele. Esse paralelismo deve ocorrer nos mais ínfimos detalhes, uma vez que é pelos atributos do pensamento e da extensão que temos acesso a um mesmo Deus. Extensão e pensamento são como que “modos de apresentação” de Deus ou da natureza para nós, o primeiro ao qual temos acesso interno, o segundo ao qual temos acesso externo. Mais do que isso, o pensamento espelha a extensão, de modo que a sucessão causal das ideias no atributo do pensamento deve ser correlata à sucessão causal dos eventos no atributo da extensão. Como ele escreveu: “A ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas.”[7]

   Esse ponto é importante porque nos sugere uma solução para o problema da relação mente-corpo, que parece bem mais aceitável do que o interacionismo entre substâncias pensante e extensa sugerido por Descartes. A solução de Spinoza é o que já foi chamado de uma teoria do duplo aspecto. “Mente e corpo são uma e a mesma coisa, a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora da extensão.[8] Em uma linguagem contemporânea, estados e eventos mentais são o mesmo que estados e eventos cerebrais, embora descritos sob perspectivas diferentes.

   Não obstante, há no paralelismo psicofísico proposto por Spinoza um problema óbvio, que não tem sido salientado graças à indulgência dos intérpretes. Se os modos dos diferentes atributos precisam ser paralelos, se eles precisam corresponder ponto a ponto, então o duplo aspecto que vale para entidades mentais também deve valer para quaisquer entidades físicas. Em um exemplo do próprio Spinoza: um círculo dado na natureza deve corresponder a um círculo mental,[9] o que deveria então também valer para objetos físicos como o Monte Everest ou Júpiter. O preço dessa concessão é uma espécie de pampsiquismo: tudo no universo é não só físico como também mental. É verdade que para ele quanto mais complexo for o corpo, maior será o elemento mental correspondente, o que dá primazia ao duplo aspecto no ser humano... Mesmo assim, trata-se de uma proposição demasiado implausível. O defeito seria facilmente sanado se Spinoza admitisse que a correspondência entre o modo do pensamento e o modo da extensão só pode existir onde existirem mentes, ou seja, em seres humanos e animais, mas isso seria incondizente com o seu sistema.

 

2

 

Epistemologia. Em sua Ética Spinoza distingue três gêneros de conhecimento, o primeiro deles inadequado e passivo e os dois últimos adequados e ativos.[10]

   O primeiro gênero é o do conhecimento da opinião (opinio) ou imaginação (imaginatio) Ele consiste nas ideias derivadas da sensação, sendo o mais inferior e adquirido passivamente pela mente. Esse é o conhecimento das coisas singulares, o conhecimento imediato dos objetos materiais, o conhecimento por “ter ouvido dizer” (testemunho) e da recordação de fatos. Esse conhecimento nada nos diz das relações causais entre as coisas.

   Ele não possui as marcas da clareza e distinção, que para Descartes eram próprias do conhecimento verdadeiro. É assim porque nós conhecemos as coisas do mundo empírico exteriormente, pouco ou nada sabendo de sua interconexão com a multiplicidade das causas. Por exemplo, uma jovem tem como modelo de homem uma fantasia que lhe tinha sido infundida na infância. Ela encontra o que lhe parece ser esse modelo e se casa com ele. Anos depois se arrepende e a separação lhe causa profunda dor. O sentimento do amor vem muitas vezes seguido de decepção e tristeza. Outro exemplo: eu assisto casualmente um vídeo em que uma pessoa vestida de preto tenta abrir a fechadura de uma porta com a ajuda de um arame. Faço um juízo: “Essa pessoa está tentando assaltar a casa”. Mas esse juízo é precário, pois por desconhecer as causas eu não poderia saber que é o próprio dono que havia perdido a chave de seu apartamento em uma festa de halloween. O conhecimento inadequado é passivo, relativo e limitado, produzindo alegrias incertas, que facilmente se transmudam em infelicidade e dor. Essa relação entre conhecimento inadequado e sofrimento e decepção será explorada na teoria da felicidade de Spinoza.

   O segundo gênero de conhecimento é o da razão (ratio). Ele é próprio do conhecimento científico, como o das matemáticas e da física. Ele inclui as noções comuns, que são verdades fundamentais, como axiomas matemáticos, leis físicas e o que delas decorre. Trata-se daquilo que satisfaz os critérios de verdade como “clareza e distinção” postulados por Descartes, como é também o caso de ideias de fundo empírico como as de extensão, movimento, corpo e também da ideia da ideia.

   O terceiro e mais alto gênero de conhecimento é o intuitivo (scientia intuitiva). Chegamos a ele pelo exercício do segundo gênero de conhecimento. Esse conhecimento vem de Deus, pois “procede da ideia adequada dos atributos divinos para a ideia adequada da essência das coisas”.[11] Quando isso acontece conhecemos as coisas sob a espécie da eternidade (sub specie aeternitatis). Nós saltamos os passos intermediários para a visão intelectual da essência das coisas sob a ideia adequada dos atributos divinos. Uma analogia pode ser feita com uma regra de três simples, como 1/2 = 3/x. Não precisamos calcular para saber que x = 6, pois sabemos isso de imediato. Spinoza via a sua própria filosofia como resultado do conhecimento intuitivo. Os dois últimos gêneros de conhecimento são necessariamente verdadeiros, pois refletem a ordem da natureza, onde tudo é necessário.

   A ideia de que algo possa ser contingente era para Spinoza mero produto da imaginação, resultando de nossa experiência do conhecimento inadequado para o qual falta o conhecimento das causas. A razão, porém, é capaz de um conhecimento adequado, particularmente o do terceiro gênero, pelo qual contemplamos a essência eterna e infinita de Deus. Nesse conhecimento consistia para ele a maior felicidade que nós humanos podemos conceber, a felicidade causada pelo amor intelectual de Deus (amor dei intelectualis).

 

3

 

Ética. Passemos agora à interessante psicologia moral de Spinoza. Para ele nós sofremos na medida em que temos ideias inadequadas das coisas, ideias advindas das paixões, que são afetos resultantes do conhecimento do corpo e causadas pelo mundo externo. Usando uma analogia pouco sutil: pelo conhecimento inadequado os seres humanos são como as células de um organismo que, circulando no sangue, só tem acesso às paredes dos vasos sanguíneos e a outras células que passam ao redor. Mas pelo conhecimento adequado somos como essas mesmas células que, tendo decifrado seu próprio DNA, se tornam capazes de conhecer o organismo humano da maneira pela qual ele realmente funciona. Spinoza acreditava que pelo segundo e terceiro gênero de conhecimento nos tornaríamos capazes de ter conhecimento das coisas naquilo que elas possuem de essencial. Isso tem consequências com relação às paixões, pois não seríamos mais enganados por elas, não sofrendo por causa disso.

   Passamos agora à questão volicional. Para Spinoza nós aspiramos à autopreservação e ao aumento de nossa potência e perfeição (conatus). Como para ele a mente é a ideia do corpo, o aumento da potência da mente também aumenta a do corpo. A alegria é a consciência de um aumento da potência ou perfeição, o contrário sendo a tristeza.[12]

   Spinoza define os afetos (emoções, paixões) como sendo apenas três: alegria (Letitia), tristeza (tristitia) e desejo (cupiditas). Todas as outras emoções se derivam dela. Vejamos alguns exemplos dentre as engenhosas definições de mais de setenta afetos:

 

O amor é a ideia da alegria acompanhada da consciência da ideia de uma causa externa.

O ódio é o sofrimento acompanhado da ideia de uma causa externa.

A admiração é a imaginação de alguma coisa à qual a mente se mantém fixada porque essa imaginação singular não tem qualquer ligação com as demais.

O desprezo é a imaginação de alguma coisa que toca tão pouco a mente que, diante da presença dessa coisa, ela é levada a imaginar mais aquilo que ela não tem do que aquilo que ela tem.

 

Spinoza também discorre de forma reprovadora sobre a própria ocorrência de certas paixões. A compaixão, escreve ele, é inútil, pois nos leva a sofrer junto ao próximo. O arrependimento do mal realizado é maléfico, pois só acrescenta sofrimento ao sofrimento. Tanto a humildade quanto a soberba são males, a primeira porque é sofrimento da própria impotência e a segunda porque depende de uma noção exagerada e errônea que a pessoa possui de si mesma.

   O ódio e o amor diminuem quando percebemos que a causa de nossa tristeza ou alegria não é livre, mas determinada por outras causas e ainda por outras e assim ao infinito. Ora, como o ódio não passa de tristeza, quando vemos que as causas imaginadas para o ódio se distribuem em uma infinidade de objetos, o ódio se dilui neles e se dissipa. Essa é a forma de racionalização spinoziana que nos lembra da conhecida máxima: “tudo compreender é tudo perdoar”, o que não significa, entenda-se, tudo aceitar e tudo esquecer.

   Tudo considerado, o que a razão exige é que cada um ame a si mesmo e busque aquilo que é útil em preservar e aumentar a potência do próprio ser, entendida como aperfeiçoamento. A melhor maneira de nos preservarmos e aperfeiçoarmos é pelo conhecimento adequado, que garantidamente aumenta a potência de nosso próprio ser. Nisso consiste a felicidade, pois o bem supremo para a mente é o conhecimento de Deus como natureza. Isso não é, em última análise, egoísmo pois quanto mais o homem conhece, mais ele possibilita que os outros seres humanos, na medida em que também são dotados de razão, usufruam desse conhecimento. Além disso, a melhor maneira de nos preservarmos e aperfeiçoarmos é em comunidade, de modo que em conjunto formemos como que “uma só mente e um só corpo,” buscando todos juntos o que for mais útil. Em semelhante situação vale o preceito: “nada para mim que não seja também para os outros”.[13]

   Assim, como só a alegria aumenta a potência, o ódio nunca pode ser bom, pois ele a diminui. O mesmo acontece com as paixões a ele relacionadas, como a inveja, o desprezo, o escárnio, a ira e a vingança. Elas são limitadoras. E as ações movidas por essas paixões são sempre torpes e injustas. Como o ódio é sempre mau, quem vive segundo a razão deve retribuir com amor e generosidade o ódio, a ira e o desprezo. Pois o ódio é aumentado pelo ódio recíproco, diminuindo a potência no universo, enquanto o amor incita o amor, aumentando a potência do universo.[14] Além disso, se pagamos o mal com o bem, em muitos casos somos nós mesmos recompensados, além de evitarmos sermos alvos de mais mal. Considerando que somos seres eminentemente sociais, a ética aparentemente egoísta de Spinoza termina em uma apologia ao altruísmo, embora este seja um altruísmo de cunho claramente utilitário. Essa é a sua versão dos ensinamentos de Jesus, considerado por ele o maior dos profetas. Contudo, nem sempre é assim. Jesus nem sempre pagava o mal com o bem, como o demonstra o episódio dos vendilhões do templo. Eis alguns dizeres bem conhecidos que atestam esses limites sem requerer comentário:

 

O homem é um animal ingato.

Dostoievsky

Inhambu de tanto emprestar o rabo acabou sem.

Dito popular brasileiro

Faças aos outros o que não queres que te façam antes que os outros te façam o que não queres que te façam.

Millôr Fernandes

 

Em muitos casos se pagarmos o mal com o bem receberemos mais mal em troca. E se os bons pagassem o mal sempre com o bem, eles logo seriam relegados aos porões da sociedade, de onde não poderia mais sequer praticar o bem, permitindo com isso a ascensão do mal. Contudo, a própria lógica da ética spinoziana nos faz compreender que devemos impor limites a fazer o bem, na medida em que compreendermos que isso nos leva a diminuir e não mais a aumentar a potência no universo.

   O altruísmo de Spinoza também nos faz atentos a algo que não pode ser esquecido. A posição segundo a qual o mal precisa ser sempre pago com um mal correspondente, segundo um desejo instintivo de vingança, parece algo não menos danoso do que uma cega forma de altruísmo. Contra a ideia de que só o sangue lava o sangue há o dito de Mahatma Gandhi: “olho por olho e dente por dente e logo todos terminarão cegos”. Ao menos nossa atitude inicial, digamos, nossa meta-atitude sobre nossa reação natural diante do mal, deve ser a de Spinoza. Devemos aprender a tratar o mal racionalmente e não reativamente.

   Já que tudo é determinado não há, em última análise, o mal na natureza. O pretenso conhecimento do mal é apenas perspectivista e inferior, resultando do conhecimento inadequado das causas. Sabemos, por exemplo, que Nero mandou matar a sua mãe Agripina. Do ponto de vista dela e de nós mesmos, esse foi um ato insano e criminoso. Mas não parece ter sido mais tão insano quando descobrimos que Agripina estava conspirando no sentido pôr fim à vida de Nero. Da perspectiva do conhecimento adequado, capaz de levar em conta a totalidade das causas, esse teria sido para Spinoza um acontecimento necessário e, nesse sentido, nem bom nem mal. Assim, se tivéssemos somente ideias adequadas, se pudéssemos julgar o mundo sob a perspectiva da eternidade, não teríamos conhecimento do mal. E por isso mesmo Deus não pode ter conhecimento do mal.

   Para Spinoza é a força da razão o que pode nos libertar das paixões. E o método para a libertação das paixões já foi aclarado acima: ele consiste em substituir o quanto for possível o conhecimento inadequado pelo conhecimento adequado. Quando temos de uma paixão uma ideia clara e distinta, ela se revela como uma realidade dependente de um número infinito de causas, todas elas necessárias. Quando tomamos consciência dessas causas subjacentes, a paixão sofrida deixa de suscitar ódio ou amor pela causa, já que ela é infinitamente causada. O amor e o ódio se diluem, tendendo a se distribuir em infinitas realidades.

   A sublimação spinoziana que tem por consequência tornar o homem virtuoso não deve ser confundida com a repressão dos instintos defendida pelas religiões. Na religião o homem reprime os instintos lascivos para se tornar virtuoso. Para Spinoza o que acontece é o contrário: é por ter se tornado virtuoso que o homem não precisa mais ser motivado por seus instintos lascivos.

   Freud leu Spinoza e foi influenciado; através de seu método das associações livres ele buscava fazer com que o paciente se tornasse consciente de representações reprimidas que produziam os sintomas. Uma vez que as associações (geralmente causais) eram tornadas conscientes, os sintomas neuróticos tendiam a desaparecer.

   Quanto ao Deus-natureza, devemos amá-lo acima de todas as coisas. Mas Deus não nos ama, uma vez que a eterna ordem das coisas, ou seja, Deus, não tem paixões. Contudo, escreve Spinoza, Deus ama a si mesmo infinitamente, e quando amamos a Deus, posto que somos partes dele, nós compartilhamos desse amor infinito: “O amor intelectual da mente para com Deus é parte do amor infinito com que Deus ama a si mesmo”.[15] E o espírito humano, adiciona ele, não pode ser totalmente destruído com o corpo, restando nele algo de eterno no conhecimento adequado. Daí que há um resto de misticismo em Spinoza.[16]

   Para Spinoza a bem-aventurança consiste na vivência do amor intelectual de Deus, quando sentimos e experimentamos que somos eternos.[17] Freud poderia responder a isso da mesma maneira que respondeu a uma carta de Romain Roland. Nessa carta Roland lhe escreveu sobre um sentimento oceânico de unidade com o mundo, de um sentimento que pode lembrar o que podemos ter quando nos encontramos a sós contemplando a beleza dos raios de sol que penetram na bruma de uma Floresta. A resposta de Freud foi como um balde de água fria: trata-se, sob perspectiva da psicanálise, apenas de um sentimento de regressão à infância mais remota, quando a pessoa era ainda incapaz de separar o mundo externo de si mesma.

   Podemos resumir dizendo que o caminho da liberdade consiste, para Spinoza, em formas de sublimação resultantes do uso da razão. Primeiro, em substituir as paixões passivas resultantes do conhecimento inadequado por sentimentos ativos resultantes de conhecimento adequado. Em seguida, em perseguir o prazer proporcionado pelo conhecimento adequado das noções comuns e, principalmente, em alçar-se ao conhecimento adequado do terceiro gênero, que resulta do amor intellectualis dei – o amor racional por Deus. Essa é a estratégia da bem-aventurança, da sabedoria através da qual eliminamos as paixões passivas e suas tristezas inevitáveis.

 

4

 

Crítica. Algumas objeções sobre o sistema de Spinoza estão em ordem. Uma primeira, óbvia, é que a apresentação “axiomático-dedutiva” é um ornamento improvável. Em geometria podemos ter algumas definições e axiomas intuitivos e coerentes entre si e com base nisso podemos demonstrar uma variedade de teoremas. Mas em filosofia não é assim. As definições de Spinoza foram estabelecidas com base em conceptualizações tradicionais passíveis de questionamento. Ele deve tê-las estabelecido com certo grau de arbitrariedade de maneira a produzirem, tanto quanto possível, os resultados esperados. Quando nos damos conta desse detalhe, ao menos parte da aura de mistério que envolve a Ética se dissolve. Além disso, em razão de seu racionalismo ele se viu forçado a tratar as relações causais, que são empíricas e espaço-temporais, como se fossem relações de consequência lógica.

   Quanto à concepção das coisas sub specie aeternitatis não há evidência alguma de que somos capazes disso. Podemos ter intuições profundas de como as coisas possam ser em matemática, em ciências empíricas, e mesmo em filosofia, as quais parecem ter vindo do nada pelo fato de que não podemos nos dar conta do acúmulo de experiências e processos de pensamento geralmente inconscientes que precederam essas intuições. Além disso, para chegarmos a essas intuições precisaremos possuir apropriada virtude epistêmica, ou seja, precisamos ser suficientemente conscientes e honestos. Uma visão das coisas para além disso parece ilusória.

   Também podemos nos questionar sobre a razoabilidade da dissolução das paixões passivas a serem substituídas por afetos ativos proposta por Spinoza. Afinal, sua receita para a felicidade parece possuir a mesma limitação do estoicismo, qual seja, a crença exagerada no poder da razão. Pode servir de consolo em casos especiais. Spinoza, o principal eleito, tinha uma mente extremamente ágil e profunda. Ele escreveu que após o ato sexual o ser humano fica deprimido, o que fez intérpretes sugerirem uma disposição homossexual reprimida. Ele foi diagnosticado com tuberculose aos 25 anos e a doença pertencia ao seu histórico familiar. Sabia que sua vida seria encurtada. Escolheu o caminho da sublimação. Nietzsche concluiu que a fórmula ascética do amor intellectualis dei serviu maravilhosamente como um bálsamo à inteligência e à imaginação de uma pessoa enferma.

   O contraponto – não digo oposição – às ideias de Spinoza é dado pelos filósofos da vida comprometidos com o amor fati (o amor pelo destino) como Nietzsche e, mais ainda, por artistas, como fica claro em escritores como Baudelaire ou Dostoievsky. Como teria notado Bukowski:

 

Se alguma coisa queima a sua alma com propósito e desejo, é seu dever ser reduzido a cinzas por ela. Qualquer outra forma de existência será mais um tedioso livro na biblioteca de sua vida.[18]

 

A fórmula spinoziana, elixir para alguns e sonífero para outros, contrasta com a importância que a vida ativa possa ter para a sociedade humana. A vida ativa é parte constituinte de nossa antropologia, do ser humano como parte da natureza.

   E há sempre um grande risco em se fazer predominar a razão sobre tudo o mais, que é o de terminar por alienar-se do mundo da vida. A pessoa deixa de ouvir o mundo ao redor, as paixões, os instintos, ouvindo só a si mesma e aos seus preceitos. Isso é lembrado pela figura do pai na novela de Raduan Nassar intitulada Lavoura Arcaica. À cabeceira da mesa de jantar ele sempre fazia um imponente sermão moralista sobre a importância de nos devotarmos ao trabalho, à terra e à sociedade familiar. Até que um dia, ao saber que sua filha dileta havia tido sexo incestuoso com o irmão, ele perde a razão e a mata com uma foice, provando que a vida sempre excede a sabedoria.

   Segundo o psicólogo Abraham Maslow, o ser humano se encontra aprisionado a uma hierarquia de motivações.[19] Ele precisa satisfazer as mais básicas para poder passar para o nível seguinte. Assim, em um primeiro nível temos as necessidades fisiológicas: água, alimento, abrigo, sono... reprodução… Uma vez que elas sejam satisfeitas passamos a um segundo nível de necessidades, o de segurança: segurança pessoal, emprego, saúde, propriedade… Só tendo satisfeito esse segundo nível passamos ao nível das necessidades afetivas: amizade, intimidade, família… Uma vez satisfeito esse terceiro nível chegamos às necessidades de estima: autoestima, respeito, status, reconhecimento, força, liberdade… Finalmente, chegamos ao nível mais alto da pirâmide, que só se torna relevante quando todos os outros já foram satisfeitos: a necessidade de autoatualização, ou seja, o desejo de se tornar o máximo que a pessoa pode se tornar, além do que ele acreditava ser uma necessidade de transcendência.

   Suponha que pelo menos de um modo bastante geral, a assim chamada “pirâmide de Maslow” seja aceitável. A questão que surge, do ponto de vista spinoziano, seria o quanto de cada nível uma pessoa necessita para se sentir satisfeita e passar para o próximo, para o ápice, que para ele seria a prática do amor intellectualis dei. Parece que o próprio Spinoza, como muitos outros intelectuais, não precisou muito da satisfação das necessidades dos outros níveis, que facilmente lhe pareceriam supérfluas. Mas não há como generalizar. Para Platão, como vimos, tudo depende da parte da alma que prevalece. Se uma pessoa tem prevalência da alma volitiva ou da alma apetitiva, ela precisará trabalhar muito nos níveis mais baixos da pirâmide e talvez nunca chegue perto do topo, a não ser para passar férias no Havaí... Mas se a pessoa (por alguma razão qualquer) tiver prevalência da alma cognitiva, então é provável que se contente com menos dos níveis inferiores, dando proeminência ao nível superior, ou seja, a questões intelectuais e estéticas. Essas considerações sugerem, pois, uma relativização parcial da hierarquia de Maslow relacionada a tipos humanos. Mesmo assim, a filosofia da vida de Spinoza parece contrastar em demasia com o que há de verdadeiro na pirâmide de Maslow.

   Essas críticas não diminuem a importância da Ética de Spinoza. Ele sintetizou filosoficamente uma visão de mundo que refletia o melhor do conhecimento e da cultura de seu tempo. Ela foi secretamente aceita pelos livres-pensadores de sua época, influenciou o curso do pensamento humano e ainda hoje apela à nossa imaginação.

 

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Monismo. O modo de conceber a relação mente-corpo que pode ser retirado da filosofia de Spinoza pode ser genericamente chamado de teoria do duplo aspecto. Uma mesma coisa pode ser concebida ou sob o aspecto do mental ou sob o aspecto do físico. Essa concepção foi desenvolvida no século XX como teoria da identidade type-type e teoria da identidade token-token. Vale a pena considerá-las brevemente aqui.

   A teoria da identidade type-type foi desenvolvida na década de 1950 por dois filósofos australianos, U. T. Place[20] e J. J. Smart.[21] Segundo essa teoria, eventos mentais como sensações e sentimentos são idênticos a eventos neurofisiológicos. Nesse caso pode ser que aquilo que chamamos de dor seria o mesmo que, digamos, certos efeitos corticais resultantes de estimulação pré-cortical no tálamo e na formação reticular, a qual é geralmente produzida pela estimulação de células nociceptoras periféricas… Ela se chama teoria type-type por considerar a identidade entre ocorrências de tipos (espécies, classes) de eventos mentais e a ocorrência de tipos (espécies, classes) de eventos neurofisiológicos.

   A teoria da identidade de tipo nos diz que temos duas linguagens para nos referirmos à mesma coisa: a linguagem mentalista e a linguagem fisicalista. Através da linguagem mentalista falamos de dores, desejos, imagens mentais... e através da linguagem fisicalista falamos dos estados e eventos neurofisiológicos correspondentes. Isso pode não parecer muito claro porque a neurociência ainda se encontra em seus primórdios e não somos hoje capazes de descrever os tipos neurofisiológicos idênticos aos mentais. Mas a ciência nos trouxe analogias que ajudam a compreender o duplo aspecto pretendido. Nós falamos de nuvens referindo-nos a massas mais ou menos opacas e de cor branca ou acinzentada na atmosfera... Mas também podemos falar de uma imensidade de gotículas de água suspensas na atmosfera. É a mesma coisa. Nós falamos da água como um líquido transparente, incolor e inodoro... Mas a ciência nos mostrou que o que chamamos de água são grandes quantidades de moléculas de H2O aglutinadas pela força de coesão intermolecular. Do mesmo modo também identificamos o gene com porções de DNA e a luz com ondas eletromagnéticas. Segundo os teóricos da identidade, um dia seremos capazes de identificar tipos de eventos mentais de modo preciso como tipos de eventos cerebrais.

   Dentre as muitas objeções à teoria da identidade, a mais influente foi a da múltipla realizabilidade, sugerida por Hilary Putnam.[22] Considere, por exemplo, uma suposta (e totalmente incorreta) identificação da dor com a ativação de “fibras-C”.  Parece concebível que existam animais ou seres extraterrestres capazes de sentir dor, mas que tem no lugar delas ativadas as muito diferentes “fibras-G” ou mesmo que não possuam fibra alguma, mas que se comportem à perfeição como se sentissem dor. Nesse caso, contra a teoria da identidade, parece que deveríamos reconhecer que eles realmente sentem dor...

   Os exemplos acima são de eventos sensório-emocionais (fenomenais). Um outro caso é o de eventos cognitivos como o pensamento levado a efeito na compreensão de um enunciado completo, digamos:

 

(P) A Alemanha possui um sistema político parlamentarista.

 

Não parece nada óbvio que a realização cerebral do pensamento expresso por essa frase deve ser a mesma em cada um de nós. Da mesma forma que podemos resolver uma equação de segundo grau por métodos diferentes, é muito provável que nossos cérebros processem o mesmo pensamento de maneiras muito diferentes.

   De minha parte considero o argumento da múltipla realizabilidade implausível quando aplicado a eventos sensório-emocionais ou fenomenais, mas plausível quando aplicado a eventos cognitivos. Afinal, nós apelamos à semelhança e diferenças histológicas das células retinianas para dizermos que outros animais veem cores de maneiras similares ou diversas de nós mesmos, tão precisa é a função dessas células. E a ideia de seres extraterrestres sem terminações nervosas é demasiado ficcional, ignorando as limitações impostas pela bioquímica, biologia e neurociência. Não obstante, a objeção de que eventos cognitivos são multiplamente realizáveis parece bem mais plausível, o que pode significar que uma teoria da identidade do tipo token-token seja para esses casos mais adequada. Em outras palavras: um pensamento como o expresso em (P) não pode ser facilmente identificado com um tipo de estado neurofuncional, mas, mais propriamente, com um token, com uma ocorrência não previamente determinável.

   É interessante contrastarmos aqui a teoria da identidade com a influente teoria funcionalista da relação mente-corpo. Há muita coisa que não depende do que é feita para ser identificada, dependendo para isso de sua função. Por exemplo, uma armadilha para pegar passarinhos. Ela pode ser feita de madeira ou de metal, mas isso não é o que importa. Importa que ela seja capaz de pegar passarinhos. O funcionalismo recebeu uma versão influente na forma do assim chamado funcionalismo da máquina. Segundo essa versão, a relação entre cérebro e corpo pode ser comparada à relação entre o hardware e o software de um computador. Ou seja: o mental é o programa implementado no cérebro.

   O funcionalismo esclarece algo sobre as funções superiores da mente, como o pensamento. Mas ele deixa intacto o domínio dos estados fenomenais (qualia) sensoriais e emocionais, que dependem de seres biológicos e decididamente não pertencem ao programa. Não há como se fazer um computador sentir dores ou se apaixonar. Mas ele é capaz de manipular símbolos tal como nós mesmos, o que ajuda a explicar processos cognitivos. Afora isso, uma função não é algo totalmente independente do material. Uma faca deve ser capaz de cortar. Mas ela precisa ser feita de um material sólido e duro como o metal. Ela não pode ser feita de papelão ou marzipan.

   Essas considerações nos levam a uma hipótese que pode ser aqui apenas levantada. Pode bem ser que as relações entre eventos cerebrais e eventos sensório-emocionais possa ser resgatada se apelarmos para uma teoria da identidade type-type, enquanto as relações entre eventos cerebrais e eventos cognitivos possa ser melhor apreciada se for aproximada em termos funcionais, que demandem apenas uma identidade token-token. Se considerarmos um ato cognitivo qualquer perceberemos que ele possui sempre alguma ligação com eventos sensório-emocionais, sejam eles quais forem. Isso parece significar que aquilo que “prega” eventos cognitivos no cérebro é a sua complementariedade com eventos sensório-emocionais relacionados a estados cerebrais por identidades de tipo.

 

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Utilitarismo. Finalmente, cabe notar que Spinoza pode ser considerado um precursor da ética consequencialista, do utilitarismo, e até mesmo de um utilitarismo hedonista sublimado (ver cap. III, sec. 9). Segundo o consequencialismo, a fonte originária do valor moral não se encontra em leis deontológicas como os dez mandamentos, mas no bem que nossas ações possam produzir. No caso do utilitarismo esse bem é tanto o que diz respeito a nós mesmos quanto ao que diz respeito às outras pessoas envolvidas por nossas ações. Finalmente, no caso do utilitarismo hedonista, esse bem consiste no prazer. Diante disso alguém poderia se sentir escandalizado. Afinal, Spinoza parece ter sido tudo menos um hedonista! Só que aqui é preciso distinguir entre o sentido vulgar e da palavra ‘hedonismo’ e o sentido filosófico. No sentido vulgar o hedonismo diz respeito ao culto dos prazeres físicos, como o prazer sexual e alimentar. Mas no sentido filosófico o hedonismo também diz respeito aos prazeres estéticos e intelectuais. Assim, ouvir uma cantata de Bach produz prazer (para o músico), assim como aprender a teoria da relatividade (para o físico), aprender a prova de Gödel (para o matemático) e ler Spinoza (para o filósofo). Se você não acredita nisso, pergunte às poucas pessoas que verdadeiramente conhecem e elas lhe dirão que o prazer de aprender e, principalmente, o de descobrir e criar, pode ser indescritível. Nesse sentido basta considerar meu resumo da moralidade spinoziana para entender que ele tendia para uma forma hedonista de utilitarismo. Um filósofo como Nietzsche poderia dizer que nossa cultura cristã tendeu a limitar o conceito de prazer devido ao anti-hedonismo inerente ao seu ideal ascético.

   Aqueles que conhecem um pouco de ética se recordarão das consequências frequentemente absurdas derivadas da aceitação do utilitarismo hedonista de ação. Mas há uma forma de utilitarismo em princípio capaz de resistir a elas. Trata-se do que poderíamos chamar de utilitarismo de duas camadas. Ele foi sugerido por R. M. Hare[23] com sua distinção entre as proles, que seguem um utilitarismo de regras, e os arcanjos, que seguem o utilitarismo de ação. Para ele somos geralmente proles, mas em condições excepcionais podemos nos tornar arcanjos. Vou explicar, adicionando o que me parecer necessário.

   Na maioria das nossas ações seguimos regras utilitárias cuja forma geral pode ser exposta como:

 

UR: Uma boa ação é a que segue a regra que foi socialmente testada como produzindo um maior prazer ou um menor desprazer (com primazia do último) para todos os seres sencientes (em geral pessoas) capazes de ser por ela envolvidos.

 

Considere um exemplo: alguém tem tempo livre e decide fazer trabalho social. Ora, a regra moral envolvida na ação, a de auxiliar os que precisam, mesmo sem receber nada em troca, satisfaz plenamente UR. A pessoa aumenta o grau de prazer (em geral por diminuir o desprazer) e ela mesma se sentirá recompensada pelo que faz, como parte dos seres sencientes envolvidos. Mas se uma pessoa compra ações de uma companhia de cigarros, ela estará contribuindo para fazer mais mal do que bem a outras pessoas, mesmo que lhe possa trazer alguma forma de prazer. O que ela faz contradiz a regra utilitária de não realizar atividade lucrativa socialmente danosa, a qual por sua vez não satisfaz UR. Em muito do que fazemos seguimos regras morais que podem ser explicitadas.

    Mas nem sempre é assim. Segundo uma versão de Ifigênia em Áulis, Agamenon matou um servo Sagrado pertencente à deusa Artemis. Como punição, os ventos do porto de Áulis pararam de soprar e seus homens ficaram presos na ilha morrendo um a um de uma peste. A condição imposta por Artemis para que eles escapassem era a de que Agamenon sacrificasse sua filha Ifigênia, de quatro anos, no altar da deusa. Agamenon se recusou o quanto pôde, mas para o desespero da mãe, ele acabou sendo forçado a sacrificar sua filha, em razão do que os ventos voltaram a soprar e seus homens puderam abandonar a ilha. A regra utilitária infringida é a de não fazer mal a pessoas inocentes. Mas a situação real era tão grave que apesar de todas as vantagens que o cumprimento dessa regra normalmente trás, ela acabou sendo derrotada pelo bem maior (o desprazer menor) do sacrifício de uma pessoa inocente. O tema trágico da necessidade de uma ação claramente injusta que precisa ser realizada para que o bem geral prevaleça é, aliás, recorrente na arte, desde A Sagração da Primavera de Stravinsky, até a estória de Jesus no novo testamento. Um filósofo como Hare diria que Agamemnon se comportou como arcanjo, seguindo em um caso extremo o utilitarismo de ação. A regra do utilitarismo de ação pode ser expressa como:

 

UA: Uma boa ação é a que produz o maior prazer (entendido como incluindo predominantemente o menor desprazer) para o maior número de seres sensientes (em geral pessoas) que possam ser envolvidos.

 

A regra UA é aplicada nos casos extremos em que a regra que satisfaz UR é derrotada por um mal muito maior do que o que se seguiria se ela fosse seguida. Também aplicamos a regra UA nos casos para os quais não há nenhuma regra à disposição. Para aplicar UA é necessário fazer um cálculo hedônico do tipo considerado por Jeremy Bentham, o introdutor do utilitarismo de ação. Para ele uma ação moralmente correta seria medida pela intensidade do prazer, pela sua duração, pela sua certeza (o quão provável é o resultado), pela propinquidade (quanto mais próximo melhor), pela pureza (não vem acompanhado de desprazer) e pela sua extensão (pelo número de pessoas beneficiadas). A isso pode ser adicionado que a diminuição do desprazer deve ter grande predominância sobre o aumento do prazer.

   Obviamente, um utilitarismo hedonista de duas camadas demandaria muito refinamento para ser capaz de responder aos muitos contraexemplos concebíveis. Mas ele tem a vantagem de admitir regras de ação moral capazes de ser substituídas (uma flexibilidade que falta às regras deontológicas), além de cobrir aqueles casos nos quais as desvantagens de se seguir as regras se tornam tão imensas que elas precisam ser derrotadas.



[1] Isaac Deutcher: O judeu não judeu e outros ensaios (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1970), cap. 1.

[2] Baruch Spinoza: Ética (Belo Horizonte: Autêntica Editora 2007), 3ª edição bilíngue.

[3] Spinoza: Ética livro II, prop. 48.

[4] Spinoza: Ética livro I, def. 7.

[5] Spinoza: Ética, livro 1, escólio da proposição 29.

[6] Spinoza: Breve tratado de Deus, do homem e de seu bem estar (São Paulo: Autêntica Editora 2012), parte I, cap IX, p, 84.

[7] Spinoza: Ética, parte II, prop. 7. 

[8] Spinoza: Ética III, prop. 2, nota.

[9] Spinoza: Ética I, prop. 7, escólio.

[10] Spinoza: Etica, Livro II, prop. 40, esc. 2.

[11] Spinoza: Ética V, prop. 25.

[12] Spinoza: Ética III, prop. 59.

[13] Spinoza: Ética IV, prop. 19, escólio.

[14] Spinoza: Etica III, prop. 43.

[15] Spinoza: Ética V, prop. 36.

[16] Pode ser muito difícil separar afirmações factuais do uso figurativo da linguagem religiosa em Spinoza.

[17] Spinoza: Ética V, prop. 23, 32-36.

[18] Ao que consta, a passagem foi na verdade escrita por Andrea Balt sob inspiração de um poema de Bukowski (Rebellesociety.com, October 22, 2012).

[19]  A. H. Maslow: “A Theory of Human Motivation”. Psychological Review 1943, 50 (4), 370-396.

[20] U. T. Place, “Is Consciousness a Brain Process?”, em B. Beakley e P. Ludlow (eds.) The Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press 1992).

[21] J. J. C. Smart, “Sensations and Brain Processes”, em D. M. Rosenthal (ed.) The Nature of Mind, Oxford 1991. A teoria da identidade remonta, porém, ao trabalho importante de Herbert Feigl e a Moritz Schlick.

[22] Hilary Putnam: “The Nature of Mental States”, em D. M. Rosenthal (ed.) The Nature of Mind (Oxford: Oxford University Press 1991), pp. 200-201.

 

[23] R. M. Hare, Moral Thinking (Oxford: Oxford University Press 1981).