VI
SPINOZA: NATURALISMO PANTEÍSTA
Baruch Spinoza
(1632-1677) foi um filósofo extraordinariamente original e desafiador. Ele
nasceu em Amsterdam, de uma família de judeus fugidos da inquisição na Península
Ibérica, onde eles eram forçados a se converterem ou a irem embora. E caso se
convertessem, mas se recusassem a comer toucinho, arriscavam-se a ser
conduzidos à fogueira.
Em
Amsterdam Spinoza era considerado um aluno brilhante e uma esperança para a
comunidade judaica, que desejava aproximar o judaísmo do cristianismo tolerante
praticado na Holanda. Contudo, essas esperanças foram frustradas, pois ele cedo
enviesou-se na defesa de ideias inaceitáveis, rejeitando a crença em um Deus
pessoal criador do mundo e negando a existência de uma justiça divina após a
morte, coisas que ele tinha como mitos vulgares propagados pelos profetas com o
fito de apascentar o rebanho. As ideias ofensivas de Spinoza não ajudavam em
nada a comunidade judaica a sobreviver em um dos poucos países que lhes havia
dado guarida.
Como não conseguiram por nenhum meio
convencê-lo a se calar, decidiram excomungá-lo. A excomunhão significava que
ninguém mais poderia respirar o mesmo ar putrefeito que Spinoza respirava, nem
mesmo seus familiares. Daí se seguiu até mesmo uma tentativa frustrada de
homicídio. Claro que esse anátema deve ter surtido um efeito profundo na pessoa
de Spinoza, que na época tinha apenas 23 anos. Ele teve de fugir de Amsterdam,
passando a morar em quartos alugados de casas de família, onde desenvolveu uma
filosofia totalmente independente, que ainda hoje é capaz de soar como
revolucionária.
Spinoza foi um
exemplo daquilo que Isaac Deutscher chamou de um “Judeu não judeu”.
De um lado fora excluído de sua comunidade, de outro, fora dela só era
plenamente aceito por livres pensadores. Deutscher notou que essa condição era intelectualmente
vantajosa. Os judeus, como um povo estudioso, podiam assimilar o conhecimento
dos gentios, mas não se viam forçados a serem subservientes a esse
conhecimento, o que lhes dava liberdade para fazerem livre uso da cultura de
outros povos. E a vantagem foi maior no caso de judeus não-judeus como Spinoza
e Marx, ou de pessoas como Einstein e Freud, o primeiro um spinozista no que
concerne à religião, e o último, em suas próprias palavras, um judeu
completamente ateu.
Mas Spinoza não era propriamente um ateu.
Ele via Deus como sendo o próprio universo, enquanto o Deus pessoal das
religiões era para ele um produto antropomórfico da superstição. Como então
classificar Spinoza: como um ébrio de Deus ou como um ateu em pele de cordeiro?
A resposta depende do que estamos dispostos a admitir como sendo Deus.
Se rejeitamos o irracionalismo e a
superstição e nos contentamos com o sentimento de espiritualidade, de admiração
diante da magnificência do universo descoberto pela ciência, se reverenciamos
formas sublimes de arte religiosa, como as catedrais góticas ou as cantatas de
Bach, a ideia spinozista de um Deus imanente se torna mais compreensível.
Pessoalmente, Spinoza era tido como uma
figura amigável, gentil e despretensiosa, que gostava de uma vida simples e
frugal, não precisando de vida social, embora tivesse bons amigos e mantivesse
correspondência com pessoas cultas e influentes. Ele ganhava seu sustento como
um modesto polidor de lentes. Seus maiores gastos eram com livros. Não aceitou
quando foi convidado para ser professor em Heidelberg, pois isso lhe
comprometeria a liberdade intelectual. Morreu cedo, aos 45 anos, de
tuberculose, talvez agravada pela aspiração de pó de vidro.
Sua obra máxima, a Ética demonstrada à
maneira dos geômetras (Ethica ordine geometrico demonstrata),
escrita sob a forma de demonstrações matemáticas, começa tematizando Deus como
natureza, passando depois ao estudo da mente humana, do conhecimento, das
paixões e de como libertar-se delas pelo caminho da bem-aventurança. É um livro
repleto de insights que se fundem em um todo estranho e genial. Em profundidade,
o livro reconta a própria trajetória biográfica de seu autor. Antes de morrer
Spinoza trancou a obra em uma escrivaninha e deu a chave a um amigo,
pedindo-lhe que após sua morte ela fosse entregue ao editor.
1
Metafísica.
Para explicar a Ética devemos relembrar
Descartes. Para ele havia três substâncias: a substância extensa (res extensa),
dependente de Deus, que constituía o mundo físico, a substância pensante (res
cogitans), a alma, finita e dependente de Deus, e, por fim, a substância
pensante infinita e independente, que seria o próprio Deus.
Spinoza encontrou uma contradição
fundamental na distinção cartesiana entre três substâncias. Se a substância é,
como queria Descartes, aquilo que é definido como a própria causa de si mesma (causa
sui), existindo em completa independência de qualquer outra coisa, ela
não pode ser substância como mundo extenso, pois essa substância é dependente
de Deus para existir. E a substância também não pode ser a mente pensante
humana finita, pois ela também é dependente de Deus para existir. Por
conseguinte, só pode existir uma substância, que é o próprio Deus.
Mais do que isso, a substância-Deus precisa
ser uma única, pois em caso contrário ela precisaria limitar-se com outras do
mesmo gênero e não seria mais independente nem propriamente infinita. Ora, mas
que coisa é essa que é capaz de explicar sua existência sem precisar de nada
mais para existir e que devido a sua infinitude não se limita com mais nada? A
resposta de Spinoza só pode ser: tudo o que existe, ou seja, a natureza, o
mundo, o cosmo como um todo, que ele coloca no lugar do Deus cartesiano. Afinal,
se Deus fosse algo fora do mundo ele seria limitado pelo mundo, deixando, pois,
de ser infinito.
O Deus que é tudo o que existe, o Deus como
natureza (Deus sive natura), é também causa de si mesmo (causa sui),
pois não existe nada fora dele que possa causá-lo, razão pela qual sua essência
implica em sua existência. Sendo tudo o que existe, a forma como Deus age
causalmente no mundo deve ser muito diferente da maneira como atua o Deus das
religiões. Deus não é causa transiente do mundo (causa externa), mas sua causa
imanente (interna). Ou seja: tudo o que ele causalmente produz é interior a ele
mesmo.
Afora isso, tudo o que o
Deus-substância-natureza produz em si mesmo dele se deriva necessariamente.
Por isso, o que os homens chamam de livre-arbítrio é uma ilusão. Para Spinoza o
livre arbítrio não existe, pois isso significaria um rompimento com o
determinismo causal. Existe, contudo, a
liberdade no sentido compatível com o determinismo. Nesse sentido uma coisa é
dita livre quando age segundo a sua própria natureza, não sendo determinada ou
coagida por qualquer outra.
Por ser assim, o Deus de Spinoza, embora não
podendo agir de outra forma, é totalmente livre. Afinal, ele age em
conformidade com a sua própria natureza, sem nada que o constranja. Isso não
significa que suas ações não sejam estritamente determinadas, uma vez que o determinismo
nada mais tem a ver com a liberdade. Tudo o que acontece é determinado pela
natureza absoluta da potência infinita de Deus. A impressão que temos de
possuir livre arbítrio como superação do determinismo causal é resultado de
nossa ignorância das causas.
Mal comparando, a relação entre Deus e o
mundo em Spinoza é como a relação que existe entre um corpo e suas células. Nós
e os objetos ao nosso redor somos partes de Deus. Spinoza fez aqui uma
distinção esclarecedora entre Deus como causa sui, que ele chama de
natureza criadora (natura naturans), e deus como natureza criada (natura
naturata), que é o que tem a ver com os efeitos, com os modos que se seguem
necessariamente à natureza criadora. Albert Einstein
provavelmente parafrasearia a natura naturans como dizendo respeito às
leis naturais últimas, subjacentes e ordenadoras do universo.
Deus é, portanto, a substância única e
também a natureza, o todo do universo. A essência de Deus são os seus atributos.
Sendo Deus infinito ele deve ser constituído por um número infinito de
atributos. Precisa ser assim, pois Deus é realidade, perfeição e riqueza
suprema. Deus precisa possuir uma infinidade de atributos. Mas de todos os infinitos
atributos de Deus nós só temos acesso a dois: a extensão e o pensamento.
Esses dois atributos são aspectos de uma mesma coisa. Tudo a que podemos ter
acesso só pode aparecer a nós ou sob o aspecto da extensão ou sob o aspecto do
pensamento.
Atributos contém modos. Esses modos
são os acidentes ou afecções, que dependem tanto do atributo da extensão quanto
do atributo do pensamento. Produzidos por Deus há, para Spinoza, modos
infinitos imediatos e mediatos. Os modos infinitos imediatos do atributo de
extensão e pensamento seriam respectivamente o movimento (motus) e o
intelecto (intellectus absolute infinitus). Quanto aos modos infinitos
mediatos dos atributos de extensão e pensamento, eles seriam respectivamente a
face extensa de todo o universo (facies totius universi) e,
talvez, a ideia de Deus (idea Dei).
Contudo, o que realmente importa são aqui os
modos finitos. Eles são algo bem mais trivial. Eles são todos os objetos
físicos, no caso de modos do atributo da extensão, e todas as entidades
mentais, no caso de modos do atributo de pensamento. Tais modos finitos são
dependentes dos modos infinitos, que são dependentes dos atributos, que são
dependentes de Deus. Assim, coisas materiais como corpos humanos, pedras,
átomos, planetas… são modos finitos do atributo de extensão. E ideias,
pensamentos, desejos, sentimentos, imagens mentais, são modos finitos do
atributo de pensamento.
É fundamental saber que para cada modo do
pensamento deve haver um modo de extensão estritamente paralelo a ele. Esse
paralelismo deve ocorrer nos mais ínfimos detalhes, uma vez que é pelos
atributos do pensamento e da extensão que temos acesso a um mesmo Deus.
Extensão e pensamento são como que “modos de apresentação” de Deus ou da
natureza para nós, o primeiro ao qual temos acesso interno, o segundo ao qual
temos acesso externo. Mais do que isso, o pensamento espelha a extensão, de
modo que a sucessão causal das ideias no atributo do pensamento deve ser
correlata à sucessão causal dos eventos no atributo da extensão. Como ele
escreveu: “A ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das
coisas.”
Esse ponto é importante porque nos sugere
uma solução para o problema da relação mente-corpo, que parece bem mais
aceitável do que o interacionismo entre substâncias pensante e extensa sugerido
por Descartes. A solução de Spinoza é o que já foi chamado de uma teoria do duplo
aspecto. “Mente e corpo são uma e a mesma coisa, a qual é concebida ora sob
o atributo do pensamento, ora da extensão. Em uma linguagem
contemporânea, estados e eventos mentais são o mesmo que estados e eventos
cerebrais, embora descritos sob perspectivas diferentes.
Não
obstante, há no paralelismo psicofísico proposto por Spinoza um problema óbvio,
que não tem sido salientado graças à indulgência dos intérpretes. Se os modos
dos diferentes atributos precisam ser paralelos, se eles precisam corresponder
ponto a ponto, então o duplo aspecto que vale para entidades mentais também
deve valer para quaisquer entidades físicas. Em um exemplo do próprio Spinoza:
um círculo dado na natureza deve corresponder a um círculo mental, o que deveria então também
valer para objetos físicos como o Monte Everest ou Júpiter. O preço dessa
concessão é uma espécie de pampsiquismo: tudo no universo é não só físico como
também mental. É verdade que para ele quanto mais complexo for o corpo, maior
será o elemento mental correspondente, o que dá primazia ao duplo aspecto no
ser humano... Mesmo assim, trata-se de uma proposição demasiado implausível. O
defeito seria facilmente sanado se Spinoza admitisse que a correspondência
entre o modo do pensamento e o modo da extensão só pode existir onde existirem
mentes, ou seja, em seres humanos e animais, mas isso seria incondizente com o
seu sistema.
2
Epistemologia. Em sua Ética
Spinoza distingue três gêneros de conhecimento, o primeiro deles inadequado e
passivo e os dois últimos adequados e ativos.
O primeiro
gênero é o do conhecimento da opinião (opinio) ou imaginação
(imaginatio) Ele consiste nas ideias derivadas da sensação, sendo o mais
inferior e adquirido passivamente pela mente. Esse é o conhecimento das coisas
singulares, o conhecimento imediato dos objetos materiais, o conhecimento por “ter
ouvido dizer” (testemunho) e da recordação de fatos. Esse conhecimento nada nos
diz das relações causais entre as coisas.
Ele não
possui as marcas da clareza e distinção, que para Descartes eram próprias do
conhecimento verdadeiro. É assim porque nós conhecemos as coisas do mundo empírico
exteriormente, pouco ou nada sabendo de sua interconexão com a multiplicidade das
causas. Por exemplo, uma jovem tem como modelo de homem uma fantasia que lhe
tinha sido infundida na infância. Ela encontra o que lhe parece ser esse modelo
e se casa com ele. Anos depois se arrepende e a separação lhe causa profunda
dor. O sentimento do amor vem muitas vezes seguido de decepção e tristeza. Outro
exemplo: eu assisto casualmente um vídeo em que uma pessoa vestida de preto tenta
abrir a fechadura de uma porta com a ajuda de um arame. Faço um juízo: “Essa
pessoa está tentando assaltar a casa”. Mas esse juízo é precário, pois por desconhecer
as causas eu não poderia saber que é o próprio dono que havia perdido a chave
de seu apartamento em uma festa de halloween. O conhecimento inadequado é
passivo, relativo e limitado, produzindo alegrias incertas, que facilmente se
transmudam em infelicidade e dor. Essa relação entre conhecimento inadequado e
sofrimento e decepção será explorada na teoria da felicidade de Spinoza.
O segundo
gênero de conhecimento é o da razão (ratio). Ele é próprio do
conhecimento científico, como o das matemáticas e da física. Ele inclui as noções
comuns, que são verdades fundamentais, como axiomas matemáticos, leis
físicas e o que delas decorre. Trata-se daquilo que satisfaz os critérios de
verdade como “clareza e distinção” postulados por Descartes, como é também o
caso de ideias de fundo empírico como as de extensão, movimento, corpo e também
da ideia da ideia.
O terceiro e
mais alto gênero de conhecimento é o intuitivo (scientia intuitiva).
Chegamos a ele pelo exercício do segundo gênero de conhecimento. Esse
conhecimento vem de Deus, pois “procede da ideia adequada dos atributos divinos
para a ideia adequada da essência das coisas”. Quando isso acontece
conhecemos as coisas sob a espécie da eternidade (sub specie aeternitatis).
Nós saltamos os passos intermediários para a visão intelectual da essência das
coisas sob a ideia adequada dos atributos divinos. Uma analogia pode ser feita
com uma regra de três simples, como 1/2 = 3/x. Não precisamos calcular para
saber que x = 6, pois sabemos isso de imediato. Spinoza via a sua própria
filosofia como resultado do conhecimento intuitivo. Os dois últimos gêneros de
conhecimento são necessariamente verdadeiros, pois refletem a ordem da
natureza, onde tudo é necessário.
A ideia de que algo possa ser contingente era
para Spinoza mero produto da imaginação, resultando de nossa experiência do
conhecimento inadequado para o qual falta o conhecimento das causas. A razão,
porém, é capaz de um conhecimento adequado, particularmente o do terceiro
gênero, pelo qual contemplamos a essência eterna e infinita de Deus. Nesse
conhecimento consistia para ele a maior felicidade que nós humanos podemos
conceber, a felicidade causada pelo amor intelectual de Deus (amor dei
intelectualis).
3
Ética.
Passemos agora à interessante psicologia moral de
Spinoza. Para ele nós sofremos na medida em que temos ideias inadequadas das
coisas, ideias advindas das paixões, que são afetos resultantes do
conhecimento do corpo e causadas pelo mundo externo. Usando uma analogia pouco
sutil: pelo conhecimento inadequado os seres humanos são como as células de um
organismo que, circulando no sangue, só tem acesso às paredes dos vasos
sanguíneos e a outras células que passam ao redor. Mas pelo conhecimento
adequado somos como essas mesmas células que, tendo decifrado seu próprio DNA,
se tornam capazes de conhecer o organismo humano da maneira pela qual ele
realmente funciona. Spinoza acreditava que pelo segundo e terceiro gênero de
conhecimento nos tornaríamos capazes de ter conhecimento das coisas naquilo que
elas possuem de essencial. Isso tem consequências com relação às paixões, pois
não seríamos mais enganados por elas, não sofrendo por causa disso.
Passamos agora à questão volicional. Para
Spinoza nós aspiramos à autopreservação e ao aumento de nossa potência e
perfeição (conatus). Como para ele a mente é a ideia do corpo, o aumento
da potência da mente também aumenta a do corpo. A alegria é a consciência de um
aumento da potência ou perfeição, o contrário sendo a tristeza.
Spinoza define os afetos (emoções,
paixões) como sendo apenas três: alegria (Letitia), tristeza
(tristitia) e desejo (cupiditas). Todas as outras emoções
se derivam dela. Vejamos alguns exemplos dentre as engenhosas definições de
mais de setenta afetos:
O amor é a ideia da alegria acompanhada da consciência
da ideia de uma causa externa.
O ódio é o sofrimento acompanhado da ideia de uma
causa externa.
A admiração é a imaginação de alguma coisa à qual a
mente se mantém fixada porque essa imaginação singular não tem qualquer ligação
com as demais.
O desprezo é a imaginação de alguma coisa que toca tão
pouco a mente que, diante da presença dessa coisa, ela é levada a imaginar mais
aquilo que ela não tem do que aquilo que ela tem.
Spinoza
também discorre de forma reprovadora sobre a própria ocorrência de certas
paixões. A compaixão, escreve ele, é inútil, pois nos leva a sofrer junto ao
próximo. O arrependimento do mal realizado é maléfico, pois só acrescenta
sofrimento ao sofrimento. Tanto a humildade quanto a soberba são males, a
primeira porque é sofrimento da própria impotência e a segunda porque depende
de uma noção exagerada e errônea que a pessoa possui de si mesma.
O ódio e o amor diminuem quando percebemos
que a causa de nossa tristeza ou alegria não é livre, mas determinada por
outras causas e ainda por outras e assim ao infinito. Ora, como o ódio não
passa de tristeza, quando vemos que as causas imaginadas para o ódio se
distribuem em uma infinidade de objetos, o ódio se dilui neles e se dissipa. Essa
é a forma de racionalização spinoziana que nos lembra da conhecida máxima:
“tudo compreender é tudo perdoar”, o que não significa, entenda-se, tudo
aceitar e tudo esquecer.
Tudo considerado, o que a razão exige é que cada
um ame a si mesmo e busque aquilo que é útil em preservar e aumentar a potência
do próprio ser, entendida como aperfeiçoamento. A melhor maneira de nos
preservarmos e aperfeiçoarmos é pelo conhecimento adequado, que garantidamente aumenta
a potência de nosso próprio ser. Nisso consiste a felicidade, pois o bem
supremo para a mente é o conhecimento de Deus como natureza. Isso não é, em
última análise, egoísmo pois quanto mais o homem conhece, mais ele possibilita
que os outros seres humanos, na medida em que também são dotados de razão,
usufruam desse conhecimento. Além disso, a melhor maneira de nos preservarmos e
aperfeiçoarmos é em comunidade, de modo que em conjunto formemos como que “uma
só mente e um só corpo,” buscando todos juntos o que for mais útil. Em
semelhante situação vale o preceito: “nada para mim que não seja também para os
outros”.
Assim, como só a alegria aumenta a potência,
o ódio nunca pode ser bom, pois ele a diminui. O mesmo acontece com as paixões
a ele relacionadas, como a inveja, o desprezo, o escárnio, a ira e a vingança.
Elas são limitadoras. E as ações movidas por essas paixões são sempre torpes e
injustas. Como o ódio é sempre mau, quem vive segundo a razão deve retribuir
com amor e generosidade o ódio, a ira e o desprezo. Pois o ódio é aumentado
pelo ódio recíproco, diminuindo a potência no universo, enquanto o amor incita
o amor, aumentando a potência do universo. Além disso, se pagamos o mal com o bem, em muitos
casos somos nós mesmos recompensados, além de evitarmos sermos alvos de mais
mal. Considerando que somos seres eminentemente sociais, a ética aparentemente
egoísta de Spinoza termina em uma apologia ao altruísmo, embora este seja um
altruísmo de cunho claramente utilitário. Essa é a sua versão dos ensinamentos
de Jesus, considerado por ele o maior dos profetas. Contudo, nem sempre é
assim. Jesus nem sempre pagava o mal com o bem, como o demonstra o episódio dos
vendilhões do templo. Eis alguns dizeres bem conhecidos que atestam esses
limites sem requerer comentário:
O homem é um animal ingato.
Dostoievsky
Inhambu de tanto emprestar o rabo acabou sem.
Dito popular brasileiro
Faças aos outros o que não queres que te façam antes
que os outros te façam o que não queres que te façam.
Millôr Fernandes
Em
muitos casos se pagarmos o mal com o bem receberemos mais mal em troca. E se os
bons pagassem o mal sempre com o bem, eles logo seriam relegados aos porões da
sociedade, de onde não poderia mais sequer praticar o bem, permitindo com isso
a ascensão do mal. Contudo, a própria lógica da ética spinoziana nos faz
compreender que devemos impor limites a fazer o bem, na medida em que
compreendermos que isso nos leva a diminuir e não mais a aumentar a potência no
universo.
O altruísmo de Spinoza também nos faz
atentos a algo que não pode ser esquecido. A posição segundo a qual o mal
precisa ser sempre pago com um mal correspondente, segundo um desejo instintivo
de vingança, parece algo não menos danoso do que uma cega forma de altruísmo. Contra
a ideia de que só o sangue lava o sangue há o dito de Mahatma Gandhi: “olho por
olho e dente por dente e logo todos terminarão cegos”. Ao menos nossa atitude
inicial, digamos, nossa meta-atitude sobre nossa reação natural diante do mal,
deve ser a de Spinoza. Devemos aprender a tratar o mal racionalmente e não
reativamente.
Já que tudo é determinado não há, em última
análise, o mal na natureza. O pretenso conhecimento do mal é apenas
perspectivista e inferior, resultando do conhecimento inadequado das causas. Sabemos,
por exemplo, que Nero mandou matar a sua mãe Agripina. Do ponto de vista dela e
de nós mesmos, esse foi um ato insano e criminoso. Mas não parece ter sido mais
tão insano quando descobrimos que Agripina estava conspirando no sentido pôr
fim à vida de Nero. Da perspectiva do conhecimento adequado, capaz de levar em
conta a totalidade das causas, esse teria sido para Spinoza um acontecimento
necessário e, nesse sentido, nem bom nem mal. Assim, se tivéssemos somente
ideias adequadas, se pudéssemos julgar o mundo sob a perspectiva da eternidade,
não teríamos conhecimento do mal. E por isso mesmo Deus não pode ter
conhecimento do mal.
Para Spinoza é a força da razão o que pode
nos libertar das paixões. E o método para a libertação das paixões já foi aclarado
acima: ele consiste em substituir o quanto for possível o conhecimento
inadequado pelo conhecimento adequado. Quando temos de uma paixão uma ideia
clara e distinta, ela se revela como uma realidade dependente de um número
infinito de causas, todas elas necessárias. Quando tomamos consciência dessas
causas subjacentes, a paixão sofrida deixa de suscitar ódio ou amor pela causa,
já que ela é infinitamente causada. O amor e o ódio se diluem, tendendo a se
distribuir em infinitas realidades.
A sublimação spinoziana que tem por
consequência tornar o homem virtuoso não deve ser confundida com a repressão dos
instintos defendida pelas religiões. Na religião o homem reprime os instintos
lascivos para se tornar virtuoso. Para Spinoza o que acontece é o contrário: é
por ter se tornado virtuoso que o homem não precisa mais ser motivado por seus
instintos lascivos.
Freud leu Spinoza e foi influenciado;
através de seu método das associações livres ele buscava fazer com que o
paciente se tornasse consciente de representações reprimidas que produziam os
sintomas. Uma vez que as associações (geralmente causais) eram tornadas
conscientes, os sintomas neuróticos tendiam a desaparecer.
Quanto ao Deus-natureza, devemos amá-lo
acima de todas as coisas. Mas Deus não nos ama, uma vez que a eterna ordem das
coisas, ou seja, Deus, não tem paixões. Contudo, escreve Spinoza, Deus ama a si
mesmo infinitamente, e quando amamos a Deus, posto que somos partes dele, nós
compartilhamos desse amor infinito: “O amor intelectual da mente para com Deus
é parte do amor infinito com que Deus ama a si mesmo”. E o espírito humano,
adiciona ele, não pode ser totalmente destruído com o corpo, restando nele algo
de eterno no conhecimento adequado. Daí que há um resto de misticismo em
Spinoza.
Para Spinoza a bem-aventurança consiste na
vivência do amor intelectual de Deus, quando sentimos e experimentamos que
somos eternos.
Freud poderia responder a isso da mesma maneira que respondeu a uma carta de
Romain Roland. Nessa carta Roland lhe escreveu sobre um sentimento oceânico de unidade
com o mundo, de um sentimento que pode lembrar o que podemos ter quando nos
encontramos a sós contemplando a beleza dos raios de sol que penetram na bruma
de uma Floresta. A resposta de Freud foi como um balde de água fria: trata-se, sob
perspectiva da psicanálise, apenas de um sentimento de regressão à infância
mais remota, quando a pessoa era ainda incapaz de separar o mundo externo de si
mesma.
Podemos resumir dizendo que o caminho da
liberdade consiste, para Spinoza, em formas de sublimação resultantes do uso da
razão. Primeiro, em substituir as paixões passivas resultantes do conhecimento
inadequado por sentimentos ativos resultantes de conhecimento adequado. Em
seguida, em perseguir o prazer proporcionado pelo conhecimento adequado das
noções comuns e, principalmente, em alçar-se ao conhecimento adequado do
terceiro gênero, que resulta do amor intellectualis dei – o amor
racional por Deus. Essa é a estratégia da bem-aventurança, da sabedoria através
da qual eliminamos as paixões passivas e suas tristezas inevitáveis.
4
Crítica.
Algumas objeções sobre o sistema de Spinoza estão em
ordem. Uma primeira, óbvia, é que a apresentação “axiomático-dedutiva” é um
ornamento improvável. Em geometria podemos ter algumas definições e axiomas
intuitivos e coerentes entre si e com base nisso podemos demonstrar uma
variedade de teoremas. Mas em filosofia não é assim. As definições de Spinoza
foram estabelecidas com base em conceptualizações tradicionais passíveis de questionamento.
Ele deve tê-las estabelecido com certo grau de arbitrariedade de maneira a
produzirem, tanto quanto possível, os resultados esperados. Quando nos damos
conta desse detalhe, ao menos parte da aura de mistério que envolve a Ética
se dissolve. Além disso, em razão de seu racionalismo ele se viu forçado a
tratar as relações causais, que são empíricas e espaço-temporais, como se fossem
relações de consequência lógica.
Quanto à concepção das coisas sub specie
aeternitatis não há evidência alguma de que somos capazes disso. Podemos
ter intuições profundas de como as coisas possam ser em matemática, em ciências
empíricas, e mesmo em filosofia, as quais parecem ter vindo do nada pelo fato
de que não podemos nos dar conta do acúmulo de experiências e processos de pensamento
geralmente inconscientes que precederam essas intuições. Além disso, para
chegarmos a essas intuições precisaremos possuir apropriada virtude epistêmica,
ou seja, precisamos ser suficientemente conscientes e honestos. Uma visão das
coisas para além disso parece ilusória.
Também podemos nos questionar sobre a
razoabilidade da dissolução das paixões passivas a serem substituídas por
afetos ativos proposta por Spinoza. Afinal, sua receita para a felicidade parece
possuir a mesma limitação do estoicismo, qual seja, a crença exagerada no poder
da razão. Pode servir de consolo em casos especiais. Spinoza, o principal
eleito, tinha uma mente extremamente ágil e profunda. Ele escreveu que após o
ato sexual o ser humano fica deprimido, o que fez intérpretes sugerirem uma
disposição homossexual reprimida. Ele foi diagnosticado com tuberculose aos 25
anos e a doença pertencia ao seu histórico familiar. Sabia que sua vida seria
encurtada. Escolheu o caminho da sublimação. Nietzsche concluiu que a fórmula
ascética do amor intellectualis dei serviu maravilhosamente como um
bálsamo à inteligência e à imaginação de uma pessoa enferma.
O contraponto – não digo oposição – às
ideias de Spinoza é dado pelos filósofos da vida comprometidos com o amor
fati (o amor pelo destino) como Nietzsche e, mais ainda, por artistas, como
fica claro em escritores como Baudelaire ou Dostoievsky. Como teria notado
Bukowski:
Se alguma coisa queima a sua alma com propósito e
desejo, é seu dever ser reduzido a cinzas por ela. Qualquer outra forma de
existência será mais um tedioso livro na biblioteca de sua vida.
A
fórmula spinoziana, elixir para alguns e sonífero para outros, contrasta com a importância
que a vida ativa possa ter para a sociedade humana. A vida ativa é parte
constituinte de nossa antropologia, do ser humano como parte da natureza.
E há sempre um grande risco em se fazer
predominar a razão sobre tudo o mais, que é o de terminar por alienar-se do
mundo da vida. A pessoa deixa de ouvir o mundo ao redor, as paixões, os
instintos, ouvindo só a si mesma e aos seus preceitos. Isso é lembrado pela
figura do pai na novela de Raduan Nassar intitulada Lavoura Arcaica. À
cabeceira da mesa de jantar ele sempre fazia um imponente sermão moralista
sobre a importância de nos devotarmos ao trabalho, à terra e à sociedade
familiar. Até que um dia, ao saber que sua filha dileta havia tido sexo
incestuoso com o irmão, ele perde a razão e a mata com uma foice, provando que
a vida sempre excede a sabedoria.
Segundo o psicólogo Abraham Maslow, o ser
humano se encontra aprisionado a uma hierarquia de motivações. Ele precisa satisfazer as
mais básicas para poder passar para o nível seguinte. Assim, em um primeiro
nível temos as necessidades fisiológicas: água, alimento, abrigo, sono...
reprodução… Uma vez que elas sejam satisfeitas passamos a um segundo nível de
necessidades, o de segurança: segurança pessoal, emprego, saúde, propriedade… Só
tendo satisfeito esse segundo nível passamos ao nível das necessidades
afetivas: amizade, intimidade, família… Uma vez satisfeito esse terceiro nível chegamos
às necessidades de estima: autoestima, respeito, status, reconhecimento, força,
liberdade… Finalmente, chegamos ao nível mais alto da pirâmide, que só se torna
relevante quando todos os outros já foram satisfeitos: a necessidade de autoatualização,
ou seja, o desejo de se tornar o máximo que a pessoa pode se tornar, além do
que ele acreditava ser uma necessidade de transcendência.
Suponha
que pelo menos de um modo bastante geral, a assim chamada “pirâmide de Maslow”
seja aceitável. A questão que surge, do ponto de vista spinoziano, seria o
quanto de cada nível uma pessoa necessita para se sentir satisfeita e passar
para o próximo, para o ápice, que para ele seria a prática do amor
intellectualis dei. Parece que o próprio Spinoza, como muitos outros
intelectuais, não precisou muito da satisfação das necessidades dos outros
níveis, que facilmente lhe pareceriam supérfluas. Mas não há como generalizar. Para
Platão, como vimos, tudo depende da parte da alma que prevalece. Se uma pessoa
tem prevalência da alma volitiva ou da alma apetitiva, ela precisará trabalhar
muito nos níveis mais baixos da pirâmide e talvez nunca chegue perto do topo, a
não ser para passar férias no Havaí... Mas se a pessoa (por alguma razão
qualquer) tiver prevalência da alma cognitiva, então é provável que se contente
com menos dos níveis inferiores, dando proeminência ao nível superior, ou seja,
a questões intelectuais e estéticas. Essas considerações sugerem, pois, uma
relativização parcial da hierarquia de Maslow relacionada a tipos humanos. Mesmo
assim, a filosofia da vida de Spinoza parece contrastar em demasia com o que há
de verdadeiro na pirâmide de Maslow.
Essas críticas não diminuem a importância da
Ética de Spinoza. Ele sintetizou filosoficamente uma visão de mundo que
refletia o melhor do conhecimento e da cultura de seu tempo. Ela foi
secretamente aceita pelos livres-pensadores de sua época, influenciou o curso
do pensamento humano e ainda hoje apela à nossa imaginação.
5
Monismo. O modo de
conceber a relação mente-corpo que pode ser retirado da filosofia de Spinoza pode
ser genericamente chamado de teoria do duplo aspecto. Uma mesma coisa
pode ser concebida ou sob o aspecto do mental ou sob o aspecto do físico. Essa
concepção foi desenvolvida no século XX como teoria da identidade type-type
e teoria da identidade token-token. Vale a pena considerá-las brevemente
aqui.
A teoria da identidade type-type foi
desenvolvida na década de 1950 por dois filósofos australianos, U. T. Place e J. J. Smart. Segundo essa teoria,
eventos mentais como sensações e sentimentos são idênticos a eventos
neurofisiológicos. Nesse caso pode ser que aquilo que chamamos de dor seria o
mesmo que, digamos, certos efeitos corticais resultantes de estimulação
pré-cortical no tálamo e na formação reticular, a qual é geralmente produzida
pela estimulação de células nociceptoras periféricas… Ela se chama teoria type-type
por considerar a identidade entre ocorrências de tipos (espécies, classes)
de eventos mentais e a ocorrência de tipos (espécies, classes) de eventos
neurofisiológicos.
A teoria da identidade de tipo nos diz que
temos duas linguagens para nos referirmos à mesma coisa: a linguagem mentalista
e a linguagem fisicalista. Através da linguagem mentalista falamos de dores,
desejos, imagens mentais... e através da linguagem fisicalista falamos dos
estados e eventos neurofisiológicos correspondentes. Isso pode não parecer muito
claro porque a neurociência ainda se encontra em seus primórdios e não somos
hoje capazes de descrever os tipos neurofisiológicos idênticos aos mentais. Mas
a ciência nos trouxe analogias que ajudam a compreender o duplo aspecto
pretendido. Nós falamos de nuvens referindo-nos a massas mais ou menos opacas e
de cor branca ou acinzentada na atmosfera... Mas também podemos falar de uma
imensidade de gotículas de água suspensas na atmosfera. É a mesma coisa. Nós
falamos da água como um líquido transparente, incolor e inodoro... Mas a
ciência nos mostrou que o que chamamos de água são grandes quantidades de
moléculas de H2O aglutinadas pela força de coesão intermolecular. Do
mesmo modo também identificamos o gene com porções de DNA e a luz com ondas
eletromagnéticas. Segundo os teóricos da identidade, um dia seremos capazes de
identificar tipos de eventos mentais de modo preciso como tipos de eventos
cerebrais.
Dentre as muitas objeções à teoria da
identidade, a mais influente foi a da múltipla realizabilidade, sugerida por
Hilary Putnam.
Considere, por exemplo, uma suposta (e totalmente incorreta) identificação da
dor com a ativação de “fibras-C”. Parece
concebível que existam animais ou seres extraterrestres capazes de sentir dor,
mas que tem no lugar delas ativadas as muito diferentes “fibras-G” ou mesmo que
não possuam fibra alguma, mas que se comportem à perfeição como se sentissem
dor. Nesse caso, contra a teoria da identidade, parece que deveríamos
reconhecer que eles realmente sentem dor...
Os
exemplos acima são de eventos sensório-emocionais (fenomenais). Um outro caso é
o de eventos cognitivos como o pensamento levado a efeito na compreensão de um
enunciado completo, digamos:
(P) A Alemanha possui um sistema político
parlamentarista.
Não
parece nada óbvio que a realização cerebral do pensamento expresso por essa
frase deve ser a mesma em cada um de nós. Da mesma forma que podemos resolver
uma equação de segundo grau por métodos diferentes, é muito provável que nossos
cérebros processem o mesmo pensamento de maneiras muito diferentes.
De
minha parte considero o argumento da múltipla realizabilidade implausível
quando aplicado a eventos sensório-emocionais ou fenomenais, mas plausível
quando aplicado a eventos cognitivos. Afinal, nós apelamos à semelhança e diferenças
histológicas das células retinianas para dizermos que outros animais veem cores
de maneiras similares ou diversas de nós mesmos, tão precisa é a função dessas
células. E a ideia de seres extraterrestres sem terminações nervosas é demasiado
ficcional, ignorando as limitações impostas pela bioquímica, biologia e neurociência.
Não obstante, a objeção de que eventos cognitivos são multiplamente
realizáveis parece bem mais plausível, o que pode significar que uma teoria da
identidade do tipo token-token seja para esses casos mais adequada. Em
outras palavras: um pensamento como o expresso em (P) não pode ser facilmente identificado
com um tipo de estado neurofuncional, mas, mais propriamente, com um token,
com uma ocorrência não previamente determinável.
É interessante contrastarmos aqui a teoria
da identidade com a influente teoria funcionalista da relação mente-corpo. Há
muita coisa que não depende do que é feita para ser identificada, dependendo
para isso de sua função. Por exemplo, uma armadilha para pegar passarinhos. Ela
pode ser feita de madeira ou de metal, mas isso não é o que importa. Importa
que ela seja capaz de pegar passarinhos. O funcionalismo recebeu uma versão
influente na forma do assim chamado funcionalismo da máquina. Segundo
essa versão, a relação entre cérebro e corpo pode ser comparada à relação entre
o hardware e o software de um computador. Ou seja: o mental é o
programa implementado no cérebro.
O funcionalismo esclarece algo sobre as
funções superiores da mente, como o pensamento. Mas ele deixa intacto o domínio
dos estados fenomenais (qualia) sensoriais e emocionais, que dependem de
seres biológicos e decididamente não pertencem ao programa. Não há como se
fazer um computador sentir dores ou se apaixonar. Mas ele é capaz de manipular
símbolos tal como nós mesmos, o que ajuda a explicar processos cognitivos.
Afora isso, uma função não é algo totalmente independente do material. Uma faca
deve ser capaz de cortar. Mas ela precisa ser feita de um material sólido e
duro como o metal. Ela não pode ser feita de papelão ou marzipan.
Essas considerações nos levam a uma hipótese
que pode ser aqui apenas levantada. Pode bem ser que as relações entre eventos
cerebrais e eventos sensório-emocionais possa ser resgatada se apelarmos para
uma teoria da identidade type-type, enquanto as relações entre eventos
cerebrais e eventos cognitivos possa ser melhor apreciada se for aproximada em
termos funcionais, que demandem apenas uma identidade token-token. Se
considerarmos um ato cognitivo qualquer perceberemos que ele possui sempre
alguma ligação com eventos sensório-emocionais, sejam eles quais forem. Isso
parece significar que aquilo que “prega” eventos cognitivos no cérebro é a sua
complementariedade com eventos sensório-emocionais relacionados a estados
cerebrais por identidades de tipo.
6
Utilitarismo. Finalmente, cabe notar que Spinoza pode ser
considerado um precursor da ética consequencialista, do utilitarismo, e até mesmo
de um utilitarismo hedonista sublimado (ver cap. III, sec. 9). Segundo o
consequencialismo, a fonte originária do valor moral não se encontra em leis
deontológicas como os dez mandamentos, mas no bem que nossas ações possam
produzir. No caso do utilitarismo esse bem é tanto o que diz respeito a nós
mesmos quanto ao que diz respeito às outras pessoas envolvidas por nossas
ações. Finalmente, no caso do utilitarismo hedonista, esse bem consiste no
prazer. Diante disso alguém poderia se sentir escandalizado. Afinal, Spinoza parece
ter sido tudo menos um hedonista! Só que aqui é preciso distinguir entre o
sentido vulgar e da palavra ‘hedonismo’ e o sentido filosófico. No sentido
vulgar o hedonismo diz respeito ao culto dos prazeres físicos, como o prazer
sexual e alimentar. Mas no sentido filosófico o hedonismo também diz respeito
aos prazeres estéticos e intelectuais. Assim, ouvir uma cantata de Bach produz
prazer (para o músico), assim como aprender a teoria da relatividade (para o
físico), aprender a prova de Gödel (para o matemático) e ler Spinoza (para o
filósofo). Se você não acredita nisso, pergunte às poucas pessoas que
verdadeiramente conhecem e elas lhe dirão que o prazer de aprender e,
principalmente, o de descobrir e criar, pode ser indescritível. Nesse sentido
basta considerar meu resumo da moralidade spinoziana para entender que ele
tendia para uma forma hedonista de utilitarismo. Um filósofo como Nietzsche poderia
dizer que nossa cultura cristã tendeu a limitar o conceito de prazer devido ao
anti-hedonismo inerente ao seu ideal ascético.
Aqueles que conhecem um pouco de ética se
recordarão das consequências frequentemente absurdas derivadas da aceitação do
utilitarismo hedonista de ação. Mas há uma forma de utilitarismo em princípio
capaz de resistir a elas. Trata-se do que poderíamos chamar de utilitarismo
de duas camadas. Ele foi sugerido por R. M. Hare com sua distinção entre as proles, que seguem
um utilitarismo de regras, e os arcanjos, que seguem o utilitarismo de
ação. Para ele somos geralmente proles, mas em condições excepcionais podemos
nos tornar arcanjos. Vou explicar, adicionando o que me parecer necessário.
Na maioria das nossas ações seguimos regras
utilitárias cuja forma geral pode ser exposta como:
UR: Uma boa ação é a que segue a regra que foi
socialmente testada como produzindo um maior prazer ou um menor desprazer (com
primazia do último) para todos os seres sencientes (em geral pessoas) capazes
de ser por ela envolvidos.
Considere
um exemplo: alguém tem tempo livre e decide fazer trabalho social. Ora, a regra
moral envolvida na ação, a de auxiliar os que precisam, mesmo sem receber nada
em troca, satisfaz plenamente UR. A pessoa aumenta o grau de prazer (em geral por
diminuir o desprazer) e ela mesma se sentirá recompensada pelo que faz, como
parte dos seres sencientes envolvidos. Mas se uma pessoa compra ações de uma
companhia de cigarros, ela estará contribuindo para fazer mais mal do que bem a
outras pessoas, mesmo que lhe possa trazer alguma forma de prazer. O que ela
faz contradiz a regra utilitária de não realizar atividade lucrativa socialmente
danosa, a qual por sua vez não satisfaz UR. Em muito do que fazemos seguimos
regras morais que podem ser explicitadas.
Mas
nem sempre é assim. Segundo uma versão de Ifigênia em Áulis, Agamenon matou um
servo Sagrado pertencente à deusa Artemis. Como punição, os ventos do porto de
Áulis pararam de soprar e seus homens ficaram presos na ilha morrendo um a um de
uma peste. A condição imposta por Artemis para que eles escapassem era a de que
Agamenon sacrificasse sua filha Ifigênia, de quatro anos, no altar da deusa.
Agamenon se recusou o quanto pôde, mas para o desespero da mãe, ele acabou
sendo forçado a sacrificar sua filha, em razão do que os ventos voltaram a
soprar e seus homens puderam abandonar a ilha. A regra utilitária infringida é
a de não fazer mal a pessoas inocentes. Mas a situação real era tão grave que
apesar de todas as vantagens que o cumprimento dessa regra normalmente trás, ela
acabou sendo derrotada pelo bem maior (o desprazer menor) do sacrifício de uma
pessoa inocente. O tema trágico da necessidade de uma ação claramente injusta
que precisa ser realizada para que o bem geral prevaleça é, aliás, recorrente
na arte, desde A Sagração da Primavera de Stravinsky, até a estória de
Jesus no novo testamento. Um filósofo como Hare diria que Agamemnon se
comportou como arcanjo, seguindo em um caso extremo o utilitarismo de ação. A
regra do utilitarismo de ação pode ser expressa como:
UA: Uma boa ação é a que produz o maior prazer
(entendido como incluindo predominantemente o menor desprazer) para o maior
número de seres sensientes (em geral pessoas) que possam ser envolvidos.
A
regra UA é aplicada nos casos extremos em que a regra que satisfaz UR é
derrotada por um mal muito maior do que o que se seguiria se ela fosse seguida.
Também aplicamos a regra UA nos casos para os quais não há nenhuma regra à
disposição. Para aplicar UA é necessário fazer um cálculo hedônico do tipo
considerado por Jeremy Bentham, o introdutor do utilitarismo de ação. Para ele
uma ação moralmente correta seria medida pela intensidade do prazer, pela sua
duração, pela sua certeza (o quão provável é o resultado), pela propinquidade
(quanto mais próximo melhor), pela pureza (não vem acompanhado de desprazer) e
pela sua extensão (pelo número de pessoas beneficiadas). A isso pode ser
adicionado que a diminuição do desprazer deve ter grande predominância sobre o
aumento do prazer.
Obviamente, um utilitarismo hedonista de
duas camadas demandaria muito refinamento para ser capaz de responder aos muitos
contraexemplos concebíveis. Mas ele tem a vantagem de admitir regras de ação
moral capazes de ser substituídas (uma flexibilidade que falta às regras
deontológicas), além de cobrir aqueles casos nos quais as desvantagens de se
seguir as regras se tornam tão imensas que elas precisam ser derrotadas.
Spinoza: Etica, Livro
II, prop. 40, esc. 2.
U. T.
Place, “Is Consciousness a Brain Process?”, em B. Beakley e P. Ludlow (eds.) The
Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press 1992).
J. J.
C. Smart, “Sensations and Brain Processes”, em D. M. Rosenthal (ed.) The Nature of Mind, Oxford 1991. A teoria da
identidade remonta, porém, ao trabalho importante de Herbert Feigl e a Moritz
Schlick.
Hilary Putnam: “The Nature of Mental States”, em D. M. Rosenthal (ed.) The
Nature of Mind (Oxford: Oxford University Press 1991), pp. 200-201.