Draft de capítulo de um livro introdutório ...
XIV
HEGEL: ESPIRITUALISMO
DIALÉTICO
Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) foi a mais importante figura do
idealismo alemão e o último grande construtor de sistemas. Foi colega e amigo
de Schelling no seminário teológico de Tübingen. A amizade perdeu-se depois que
Hegel escreveu que a filosofia da identidade de Schelling é como a noite na
qual todas as vacas são pretas e outras coisas do gênero.[1]
Sobre a vida de Hegel não há
muito a dizer. Embora tenha nascido de uma família de algumas posses, ele viveu
na época em que a Europa foi assolada pelas guerras napoleônicas. Era professor
em Jena quando o exército de Napoleão invadiu a cidade, confiscando seus
haveres. Mas o principal deles, a Fenomenologia do Espírito, sua obra
mais influente, foi a tempo enviado para publicação. Hegel teve então de passar
por dificuldades financeiras, aceitando um lugar como diretor de um colégio em
Nuremberg. Casou-se. Teve três filhos, um deles fora do matrimônio,
caridosamente adotado por sua esposa após a morte da mãe. Após um tempo como
professor em Heidelberg, Hegel tornou-se professor em Berlim, onde viveu os
últimos treze anos de sua vida e onde se tornou uma espécie de filósofo oficial
do reino da Prússia. Atendia aos serviços religiosos. Em 1831 Berlim foi
assolada por uma peste. Hegel refugiou-se no campo. Contudo, sentindo falta de
seus alunos acabou por retornar cedo demais, sendo fatalmente vitimado pela
doença aos 61 anos. O sistema filosófico extraordinariamente imaginativo de
Hegel não nasceu do nada. Ele foi lentamente erguido com o auxílio de uma imensa
quantidade de leituras. Parece ter sido dele a frase: “Não há nada de original
em mim e o que é original é falso”.
1
O ponto de partida de Hegel foi o mesmo de todo o idealismo alemão: a
rejeição da coisa em si como uma contradição dentro do próprio sistema
kantiano. Uma vez aceito o idealismo, o problema epistemológico da percepção no
interior do qual se deblateraram filósofos de Descartes, Locke a Kant,
desaparece. Não é preciso mais explicar como somos capazes de ter acesso a um
mundo externo essencialmente heterogêneo a nós mesmos, uma vez que ele não tem
mais nada de heterogêneo: tudo são ideias, mente, espírito. A investigação
epistemológica que motivou muito da filosofia feita Descartes a Kant passa a
dar lugar a uma metafísica do processo, tal como em Empédocles e em Eriúgena. A
preocupação de Hegel passa a ser com a evolução do mundo como um todo,
entendida como o desdobramento de um espírito absoluto (Deus, a razão
infinita), que se aliena a si mesmo como natureza, para depois reconhecer-se
objetivamente como ele mesmo em coisas como a evolução histórica, passando
então a reconhecer-se a si mesmo como espírito subjetivo na arte, na religião e
na própria história da filosofia, para encontrar-se enfim, sob a forma absoluta
na filosofia do próprio Hegel. Nunca um sistema filosófico foi tão
criativamente ambicioso quanto o de Hegel.
Embora pouco factível quando
travestida e magnificada na forma de uma investigação da evolução de um
espírito absoluto omni-abrangente, o que Hegel fez de mais importante foi
investigar a evolução da consciência humana em suas múltiplas e variadas
manifestações. Daí que as verdadeiras contribuições de Hegel foram para a
filosofia prática, incluindo a história, a arte, o direito, a religião e a
própria filosofia. Só esse esforço especulativo já resgata a importância de sua
obra.
2
A filosofia do processo de Hegel contém dois pressupostos que precisam
ser salientados. O primeiro deles é ontológico. Trata-se da assunção de que tudo
o que é real é racional e tudo o que é racional é real.[2]
Isso pode parecer estranho, mas é fácil de ser compreendido. O mundo inteiro
não é nada mais do que ideia, mente, pensamento, espírito, razão, Deus,
infinito, conceitos que em Hegel são aptos a serem usados de modo
intercambiável. O espírito absoluto é essencialmente pensamento. O pensamento é
racional. Logo, tudo o que existe, seja interno ou externo a nós mesmos, tem de
ser racional. A adoção desse princípio tem a consequência de inspirar Hegel na
busca de explicações racionais. Da escravidão na Roma antiga até as
consequências nefastas da revolução francesa, tudo deve ter alguma
racionalidade justificadora, ao menos do ponto de vista do absoluto. Afinal,
tudo é consequência do desdobramento do espírito absoluto e a filosofia terá a
função de explicar por que deve ser assim.
O segundo pressuposto é
metodológico. Para Hegel o método da filosofia não poderia restringir-se à
silogística aristotélica nem à lógica transcendental de Kant, incapazes de
investigar o modo de transformação do espírito absoluto. A lógica que investiga
o devir da realidade precisa ser o que ele chamou de lógica dialética.
Essa lógica deve dar conta do fato de que os conceitos contém os seus opostos e
que sua aplicação passa a eles no vir a ser das coisas. Assim, o conceito de
ser contém o do nada, o conceito de sujeito contém o de objeto, etc. Ele estava
interessado em uma dialética que se aplicasse à realidade como um todo, à
realidade que para ele era o espírito absoluto em suas infinitas divisões. Ele
encontrou o modo de progressão do absoluto nas tríades dialéticas de Fichte. O
absoluto primeiro põe-se a si mesmo (a tese) na afirmação de uma parte da
realidade que o constitui. No que se segue o absoluto nega aquilo que antes
pôs, afirmando a realidade constitutiva de seu oposto ou, no dizer de Hegel,
sua contradição. Mas essa oposiçao termina por demonstrar-se insuficiente, o
que faz com que o espírito unifique o que foi posto (a tese) ao que foi oposto
(a antítese), naquilo que eles possuem de mais verdadeiro. Isso se dá pela
negação da negação, um movimento de superação conservadora (síntese) no qual o
espírito se sublima a si mesmo (sich selbst aufhebt), incorporando em si
as verdades parciais do que é posto (tese) e do que é oposto (antítese). Essa
superação, por sua vez, servirá de base (tese) para uma nova negação, que irá
gerar uma nova oposição (antítese), que produzirá uma nova superação (síntese)
e assim por diante em um processo infinito.
Alguns pensam que Hegel fez com
sua dialética foi superar o princípio da não-contradição exposto na lógica
aristotélica. Mas isso decorre de uma má compreensão da relação entre a
dialética e aquele princípio. Segundo o princípio da não-contradição (em sua
formulação ontológica) uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob
o mesmo aspecto ou (em sua formulação epistêmica) uma proposição não
pode ser afirmada e negada em um mesmo sentido. Seja como for, se Hegel
pretendeu rejeitar esse princípio ele estava errado.[3]
Afinal, a suposta “contradição”, em Hegel, ou existe como potência no interior
de algo e, portanto, sob um aspecto diverso (ou, usando a formulação
linguística do princípio, em um sentido diverso), ou ainda, quando a
oposição e a superação se atualizam a nós em tempos diferentes. A
contradição hegeliana não é, pois, uma simples negação, mas um contrário, uma
oposição, um conflito, uma tensão, posto que a antítese é também uma tese. É só
assim que a dialética é capaz de fazer sentido: ela é uma oposição surgida no
cerne de alguma coisa, acabando por produzir sua superação do aspecto positivo
da mesma. E a aplicação do método dialético só pode consistir de proposições
que são verdadeiras sob um certo aspecto e falsas sob outro, e/ou que são
verdadeiras em um momento e falsas em outro.
Podemos encontrar um análogo da
dialética idealista nas dialéticas discursivas. Esse é o caso da dialética
argumentativa exercida nos diálogos de Platão, em que um falante defendia uma
tese enquanto outro, geralmente Sócrates, argumentava contra ela, chegando aos
poucos a uma aproximação maior da verdade. Um outro exemplo foi o método de
pensamento dos filósofos céticos da antiguidade, que para Hegel precediam a
dialética. Eles desenvolviam teses para então desenvolver antíteses de igual
valor, de modo a demonstrarem que era impossível chegar à verdade (ver cap. IV,
3). Mas os céticos, rejeitando a
possibilidade de conhecimento, paravam aí, não procedendo em direção a uma
síntese. Também encontramos a dialética como exercício filosófico nas
universidades medievais, nas quais o proponente deveria defender a tese
enquanto seu oponente deveria encontrar argumentos em favor da antítese.
Parece haver uma confirmação de
que alguma espécie de dialética possa ser entendida como um fenômeno
concernente ao desenvolvimento da consciência humana em seus mais diferentes
aspectos na maneira como Jean Piaget expõe os sucessivos estados do
desenvolvimento da criança. Em sua investigação, o desenvolvimento cognitivo da
criança segue duas funções antagônicas, que são as de assimilação e acomodação.
Na assimilação os esquemas de interação com o meio são conservados e o
organismo tende a submeter o meio a suas formas de organização. A acomodação,
por sua vez, é uma fonte de mudanças do organismo na criação de novas maneiras
de se adaptar ao meio. Embora esses mecanismos sejam geralmente indissociáveis,
na mudança de uma fase para outra do desenvolvimento da criança a acomodação
leva vantagem, pois há uma diferenciação maior dos esquemas, com o
desencadeamento de novas e mais robustas formas de assimilação. Como escreve
Piaget: “Toda conquista da acomodação se converte, pois, em matéria de
assimilação, embora esta resista incessantemente a novas acomodações.”[4]
Ora, não há dúvida que o
processo de assimilação pode ser concebido como um por dialético (tese),
enquanto a acomodação constitui-se em seu contrapor (antítese), disso se
seguindo um novo processo de assimilação (síntese) que sustenta os esquemas
aprendidos até que, pelo acúmulo de novas experiências, o organismo passe por
uma nova acomodação (antítese) e assim por diante. Isso se dá mesmo que
diversas assimilações a acomodações acabem por se sobrepor no processo. A
maneira como Piaget concebe o desenvolvimento das capacidades intelectivas na
criança não difere, essencialmente, daquilo que Hegel entendia como um processo
dialético. Mais além, assim como a ontogênese (na embriologia) recapitula a
filogênese (no desenvolvimento da espécie) também pode ser que as sucessivas fases
do desenvolvimento da criança recapitulem o desenvolvimento da consciência
humana em suas realizações objetivas e subjetivas na história. Por exemplo:
Piaget notou que quando uma criança explica o movimento de uma seta como
empurrando o ar com a sua ponta, de modo que ele passe para a sua cauda e a
empurre para frente, ela nos provê de uma explicação similar à explicação
fornecida por Aristóteles em uma de suas malfadadas tentativas de explicar
fenômenos físicos especulativamente.
A conclusão disso tudo parece
ser que a dialética diz respeito primeiramente ao modo como desenvolvemos nosso
pensamento. Raciocinamos opondo teses e antíteses com base no material
informativo que nos é acrescentado, objetivando chegar a sínteses mais
compreensivas em um processo teleológico cujo produto é intencional. Mas se o
pensamento se desenvolve dialeticamente, então isso pode muito bem valer para
tudo aquilo que tem a ver com o pensamento. Esse seria o caso das fases do
desenvolvimento cognitivo da criança em Piaget. Mas esse também pode ser o caso
de produtos sócio-históricos do pensamento. Ou seja: as instituições, a
história, a cultura, as artes, a religião e mesmo a filosofia são capazes de se
desenvolver em estágios dialéticos na medida em que são produtos intencionais.
Não quero dizer com isso que tais processos sejam lineares, uma vez que há no
mundo concreto inúmeros fatores intervenientes que nada tem a ver com eles
(Hegel sabia disso). Mas se o que foi considerado é certo, então ao menos
bosquejos dialéticos podem ser encontrados nas ações humanas e em seus produtos
históricos e culturais, como é o caso da arte, da religião e da filosofia. Se
raciocinarmos assim parece que somos capazes de validar em alguma medida as
ambições de Hegel em sua filosofia do espírito.
Não obstante, é hoje bastante
claro que processos dialéticos não valem onde não há mais lugar nem para a
intencionalidade nem para o que possa ser relacionado a ela, ou seja, no mundo
da natureza puramente biológica e inorgânica. Hegel tentou desenvolver uma
dialética da natureza, onde não existe um elemento intencional. Ele não poderia
saber disso na época em que viveu, quando pouco se conhecia de ciência além dos
desenvolvimentos da física de Newton. Mas nos tempos atuais, mais bem
esclarecidos pela ciência, a crença em uma dialética da natureza torna-se uma
projeção indébita da racionalidade humana onde ela não é mais capaz de atuar.
3
No sistema filosófico de Hegel a primeira e mais abrangente de todas as
tríades dialéticas constitui-se no movimento triádico do espírito absoluto que
começa com sua constituição lógico-metafísica (tese), é seguido de sua
auto-alienação no mundo da natureza (antítese) e termina na auto-identificação
(do real) e no auto-reconhecimento (do racional) de si mesmo como espírito
absoluto (síntese).
Há, pois, três grandes momentos
dialéticos. O primeiro é estudado na Lógica de Hegel, que é ao mesmo
tempo uma metafísica. Ela é a ciência da ideia em si, do espírito absoluto, a
investigação da estrutura da mente de Deus antes da criação do mundo, por assim
dizer.[5]
O segundo momento é estudado em sua filosofia da natureza, que é a ciência da
ideia objetificada, do Deus objetificado, da ideia que vem a ser outro de si. O
terceiro momento é o da filosofia do espírito.[6]
Ele é o da ciência da ideia como o Deus que se reconhece a si mesmo através dos
homens, terminando na forma absoluta de autoconsciência. A lógica de Hegel nos
parece hoje questionável e sua filosofia da natureza ridiculamente implausível.
Mas a filosofia do espírito é rica em insights e capaz de nos dizer algo, mesmo
à luz da ciência e da cultura de nosso tempo. Vou considerar aqui
esquematicamente as duas primeiras, para depois seção considerar em um mínimo
de detalhes a filosofia do espírito.
A lógica de Hegel deve
investigar a constituição do absoluto primordial em sua eterna essência, antes
de ele alienar-se de si mesmo como natureza ou como consciência humana. Ela
investiga Deus, a ideia ou o pensamento em sua essência absoluta e necessária.
Hegel quis que a sua lógica fosse também metafísica, posto que nela são
investigados conceitos puramente abstratos cuja aplicação atravessa toda a
realidade concebível, como é o caso daquilo que Aristóteles e Kant chamavam de
categorias.
A lógica de Hegel divide-se na
tríade do ser, da essência e do conceito. Começando com o ser, ele apresenta
uma muito famosa tríade primordial que envolve a passagem do ser para o não
ser, que por sua vez passa ao vir a ser ou Devir. Ou, como ele escreveu:
O puro Ser (Seyn) é o começo: porque ele
é de um lado o puro pensamento e de outro a imediatez em si mesma, simples e
indeterminada, e porque o primeiro começo não pode ser mediado por coisa alguma
ou ser mais além determinado. (...) Mas o mero Ser, sendo mera abstração, é
portanto o absolutamente negativo, o qual, em seu aspecto igualmente imediato,
é apenas Nada (Nichts). (...) O Nada, se ele é para ser imediato e igual
a ele mesmo é também, de modo converso, o mesmo que o Ser. A verdade do Ser e
do Nada é dessa maneira a unidade dos dois e essa unidade é o Devir (Werden).[7]
Tentando uma paráfrase: o ser puro (a tese) é o absolutamente imediato e
completamente indeterminado. Mas sendo assim ele é totalmente vazio de
conteúdo. Mas nesse caso ele nada é. Ou seja: dele se deriva diretamente o que
não é, ou seja, o Nada (antítese). Ora, dessa oscilação entre o Ser e o Nada e
o Nada e o Ser resulta o vir a ser, o Devir (síntese), que incorpora em si
mesmo o Nada (o ser que ainda não é) e o Ser (o ser que já é).
Após essa impressionante
primeira tríade Hegel prossegue mostrando que o Devir infinito, por sua vez, se
opõe ao ser determinado, que é o ser finito. O ser finito, por sua vez, se opõe
ao ser determinado, o ser finito das categorias da qualidade, quantidade e
medida. Da reflexão do ser infinito no finito vem a ser as relações, que passam
do ser à essência... Na sequência ele vem a explicitar uma multiplicidade de
outros conceitos, incluindo os de fenômeno, realidade em ato, substancialidade,
causalidade, ação recíproca, a divisão entre o subjetivo e o objetivo, etc.
etc.
Não pretendo considerar essas
sequências. A falta de clareza e constante confusão conceitual é na lógica de
Hegel tão imensa que podemos imaginar alguém inventando uma outra série de
determinações dialéticas com igual poder de convicção. Uma pessoa com uma boa
capacidade de análise perceberá as falhas no argumento, o que arruinará o seu
prazer estético.
Mas a lógica de Hegel não é
simples mistificação. Por exemplo: ele pretende ter resolvido o grande problema
humiano da falta de necessitação do efeito pela causa. Em sua doutrina da
essência ele nota que a necessidade da relação entre causa e efeito advém do
fato de, considerando que a causa e o efeito acontecem em um mesmo evento, elas
são duas maneiras diferentes de se considerar uma mesma coisa, o que garante a
necessitação do efeito pela causa.[8]
Isso é falso porque embora causa e efeito se encontrem no instante de sua
consumação, elas se prolongam em tempos diferentes. Mesmo que esteja errado, o que
Hegel diz provoca o pensamento. Daí podemos concluir que mesmo uma leitura in
negativo da lógica de Hegel possa ser proveitosa.[9]
O segundo grande momento do
absoluto é aquele investigado pela filosofia da natureza. Trata-se da ideia que
se opõe a si mesma pondo-se como o outro, sem, contudo, reconhecer-se nesse
outro. Hegel apresenta aqui uma progressão dialética da mecânica para a física
e, finalmente, para o mundo da natureza geológica, vegetal e, finalmente,
animal. O indivíduo animal morre por não se adequar à ideia, dele restando a
mente humana, que é reabsorvida na ideia eterna, marcando a passagem da
natureza para o espírito... A filosofia da natureza é a parte mais obviamente
artificial e fantasiosa do sistema e dispensa considerações críticas.
4
Faço uma pausa agora para comentar criticamente a famosa primeira tríade
da lógica hegeliana. Ela se assemelha à abertura de certas obras de Wagner, que
se mostram impressionantes, mas que logo depois se tornam melodicamente
maçantes. Após Wittgenstein nós nos tornamos dispostos a ver em textos como
esse um engalfinhado de confusões lógico-conceituais magnificando alguns poucos
insights. Embora em termos literais o texto acima não faça sentido, ele parece
fazer sentido e ser mesmo impressionante. A questão é: o que o faz parecer ter
sentido? Qual a fonte de seu inicial fascínio?
Em uma tentativa de resposta
podemos repetir aqui a sugestão feita por Paul Edwards no que concerne a
Heidegger, um filósofo que usava de estratégias discursivas semelhantes. Em um
conhecido artigo[10] Edwards
cita trechos de Heidegger em que ele se impressiona com o fato de que o Ser se
encontra para além dos entes. Por exemplo:
A sala de leituras é. Ela é iluminada. Nós
reconhecemos a sala de leitura iluminada toda de uma vez... como algo que é.
Mas onde está em toda a sala de leitura o ‘é’. Em nenhum lugar entre as coisas
encontramos o ser.
Onde está o Ser dessa escola superior? Afinal
ela é. O edifício é. Se qualquer coisa pertence a esse ser é seu Ser; mas não
encontramos o Ser dentro dela.
Nós corremos (ou ficamos) ao redor do mundo com
todas as nossas tolas sutilezas e conceitos. Mas onde em tudo isso está o Ser? [11]
Edwards nos lembra de que há três sentidos fundamentais do verbo ser:
como cópula (Sócrates é sábio), como identidade (Uma rosa é uma rosa) e como
existência (Nos altos cumes é serenidade), a isso se adicionando diferentes
tonalidades conotativas. Heidegger está usando o verbo ser nas passagens acima
no sentido de existência. E o que ele está fazendo é apontar para o fato de que
a existência não é uma propriedade das coisas, embora ele o apresente como se
fosse algo misterioso, superior, impressionante e indizível. Recorde-se de
nossa análise do conceito de existência no capítulo XII desse livro (seção 11):
a existência é o que Frege apontou como sendo propriedade de conceitos e que eu
procurei mostrar que um objeto existe quando possui a meta-propriedade
disposicional de ter a sua regra de identificação efetivamente aplicável a si
mesmo, o que o faz não ser um objeto ficcional. Para Edwards, ao dizer que o
Ser das coisas não se encontra nelas Heidegger está apenas redescobrindo de
forma magnificada algo já bem sabido por filósofos, especialmente os
analíticos. Como ele escreve:
Umas poucas palavras estão em ordem no que
concerne à ‘descoberta’ de Heidegger da “paradoxal natureza do ser”, sua
“tendência misteriosa” de revelar-se tanto como de ocultar-se a si mesmo em ser
uma espécie de eterno strip-tease cósmico. Esse tema é infinitamente repetido
nos trabalhos de Heidegger. Podemos agora ver que não há nenhum “mistério” aqui
e que Heidegger não descobriu coisa alguma. O “ocultamento” do Ser é um modo de
referir ao fato de que quando procuramos pela existência nas coisas não podemos
encontrá-la; a “revelação” do Ser é uma maneira desnecessariamente mística de
dizer que apesar disso as coisas existem. Nós podemos honestamente caracterizar
a descoberta de Heidegger da “paradoxal natureza do ser” como uma redescrição
bombástica desses fatos; e, diversamente da análise dos enunciados existenciais
esboçada acima, não faz nada para explicá-los.
O que Heidegger faz não é nada mais do que redescobrir o fato de que a
existência não é uma propriedade das coisas, como se isso fosse a porta para
uma dimensão superior da realidade, a do Ser, usualmente no lugar do Deus
cristão.
Meu ponto é o de um argumento
como o de Edwards contra Heidegger também pode ser aplicado à primeira tríade
da doutrina do ser na lógica de Hegel. O verbo ser também é usado primariamente
no sentido de existência. Penso que se nos recordarmos que a existência foi
analisada por Frege como significando o mesmo que a propriedade de um conceito,
qual seja, a de que sob ele cai pelo menos um objeto, podemos parafrasear a
primeira tríade da doutrina do Ser como se segue:
A propriedade conceitual da existência enquanto
tal (o puro Ser) é o começo: ela
pode ser considerada de forma pura, em separação de qualquer conceito
particular a que se possa aplicar (...) Mas a simples propriedade conceitual da
existência abstraída de seus conceitos não resulta em objeto algum ao qual
conceitos possam se aplicar (é apenas o Nada). Essa falta de ligação com
conceitos é como a existência enquanto tal, como mera propriedade... A existência
como propriedade separada de conceitos não conduz à existência de coisa alguma,
nem a existência de coisa alguma conduz a sua ligação com um conceito. E no
perceber dessa alternância há um movimento da mente para lá e para cá e
vice-versa (o Devir).
Podemos parafrasear usando a noção de “efetiva aplicabilidade da regra
conceitual sem o conceito” ao invés da “propriedade conceitual sem o conceito”.
Eis como fica sendo:
A efetiva aplicabilidade conceitual, tomada
como mera efetiva aplicabilidade (o
puro Ser) é o começo: ela pode ser pensada enquanto tal separada de
qualquer conceito particular (...) Mas a simples efetiva aplicabilidade
conceitual como existência abstraída de qualquer regra conceitual não resulta
em objeto algum ao qual conceitos possam se aplicar, na verdade não resulta em
coisa alguma (é apenas Nada). Ora, essa existência como mera propriedade
conceitual de aplicabilidade não ligada a nenhum conceito específico conduz à
existência de coisa alguma, e a existência de coisa alguma conduz a sua ligação
com um conceito e no perceber dessa alternância encontra-se um movimentos da
mente de um lado para o outro e vice-versa (o Devir).
Essas paráfrases tornam o que Hegel disse menos metafórico e mais
preciso. Mas a aura metafísica perdeu-se. Não é mais o relato de algo
misterioso e extraordinário. Parece que devemos aqui dar razão a Wittgenstein,
que escreveu que toda uma nuvem de metafísica se condensa em uma gota de
gramática.[12]
O que acabei de fazer é uma
paráfrase lógico-conceitual. Mas ela não é a única. O uso nominalizado do verbo
ser não se restringe ao sentido de existência. Em Heidegger ele poderia em
muitas sentenças ser substituído pela palavra ‘Deus’ sem mudança de sentido. Ou
seja: o Ser é também uma espécie de metáfora universal, um artifício filosófico
originariamente inventado por Parmênides. Essa ambiguidade também admite um
entendimento psicológico. Acontece muitas vezes de nos sentirmos em um estado
de grande preenchimento, quando nos vemos por qualquer razão plenamente satisfeitos:
este é o “momento do Ser”! Mas esse sentimento de plenitude logo passa, pois
logo nos cansamos e sentimo-nos vazios... Esse é o “momento do nada”. Contudo,
devido a essa mesma vaziez, procuramos algo que nos motive, que nos entretenha
outra vez, motivando-nos em direção a algo que supere esse nada: esse é o
“momento do Devir”. Nessa busca (“o infinito”) finalmente encontramos algo (“o
determinado”) ao qual as categorias começam a se aplicar... Sob essa paráfrase
psicológica os primeiros momentos da lógica de Hegel nada mais são do que uma
maneira formal, abstraída de conteúdos psicológicos, de expor coisas como esses
movimentos emocionais que seres humanos como indivíduos ou em coletividade
repetidamente experienciam, e que subjazem à própria dialética do discurso. Só
isso já parece motivar o movimento meramente psicológico do Ser para o
não ser e dele para o Devir sugerido por Hegel.
Jean Paul Sartre, sem dúvida
inspirado por Hegel, foi mais explícito.[13]
Ele usou as metáforas do ser-em-si (l’être en-soi), o ser das coisas, e
do ser-para-si (l’être pour-soi), o ser propriamente humano. O
ser-para-si age sobre o ser em si como um abismo nadificador que se detém na
angústia da negatividade (“a náusea”). Essa progressão nada mais é do que uma
maneira magnificada de dizer que as coisas nos chamam atenção até que as
conheçamos bem e que elas se tornem tediosas para nós. Os artifícios retóricos
de Sartre e Hegel seriam descritos pela psicanálise freudiana como efeito do
processo primário que se manifesta nos sintomas neuróticos, nos sonhos, na
arte, nos devaneios e e na própria filosofia. Se bem me lembro Freud escreveu
que a filosofia trata o concreto (aqui o psicológico) como se fosse o abstrato
(aqui o lógico-metafísico) do mesmo modo que o esquizofrênico trata o abstrato
como se fosse o concreto.
5
É em sua filosofia do espírito que Hegel apresentou o que ele tinha de
mais importante a dizer. O espírito é o auto-reconhecimento da ideia através da
alteridade por ela posta. Para ele o espírito também se desenvolve através de
um processo dialético triádico, que começa pondo o espírito subjetivo
(individual), ao qual se opõe o espírito objetivo (geral ou social), terminando
no espírito absoluto (universal ou divino).
Comecemos com o espírito subjetivo.
Ele é o indivíduo humano. Também ele passa por três momentos dialéticos. O
primeiro é o da alma ou mente, em que o espírito é o indivíduo unido a um
corpo. Aqui ele é objeto da antropologia. Para Hegel a mente e o corpo não
podem ser opostos, como pensava Descartes, pois nesse caso não haveria
comunidade entre eles. No segundo momento o espírito se torna consciência. Ele
reflete sobre si mesmo na forma de autoconsciência, pondo-se como um eu. Esse
eu torna-se capaz de autoconsciência pelo reconhecimento de outras
consciências, como é mostrado na famosa dialética do senhor e do escravo. Aqui
ele é objeto da fenomenologia.[14]
O terceiro momento é aquele em que o espírito se torna objeto da psicologia,
considerando-se a si mesmo de forma universal como possuidor de uma vontade
livre e capaz de submeter-se ao escrutínio racional.
O espírito objetivo se
opõe ao espírito subjetivo. Esse é o momento em que o espírito individual passa
a viver a vida da humanidade, objetivando-se através de modelos de suas interações
sociais e instituições culturais. Os três momentos dialéticos do espírito
objetivo são os do direito, moralidade e eticidade.
Hegel começa com o direito
individual, o direito da pessoa, que se resume em direito à propriedade,
contratual e penal. A propriedade se distingue por ser fundada no
reconhecimento mútuo entre as partes, diversamente da posse. A lei representa a
vontade comum, sendo pois o direito de todos. Se alguém viola a lei, esse
alguém perde seus direitos pessoais, só podendo recuperá-los se sofrer a
punição prescrita. Na medida em que a pessoa que viola a lei considerar justo
que outra pessoa sofra a mesma punição no caso de fazer o mesmo contra ela,
será coerente que ela aceite seu castigo como sendo justo.
O direito regula apenas o
comportamento exterior das pessoas. Ele não é capaz de interferir em sua
interioridade, em suas intenções. É aqui que o direito cede lugar à moralidade.
O que determina a ação moral é a intenção concreta. Se a intenção for o que
deve ser, gerando o bem estar, ela se universaliza como uma boa vontade. Mas
quando a intenção que determina a ação não for o que deve ser, o que teremos
será a má vontade que circunstancia o mal.
Para Hegel o terceiro momento,
o da eticidade (Sittlichkeit), é o da síntese entre o direito e a
moralidade. O bem que daí resulta é o de uma comunidade social. A forma mais
alta de moralidade é para ele algo concreto, ou seja, aquela que se constitui
no espírito de um povo determinado sob a perspectiva de sua realização
histórica. A eticidade, por sua vez, também segue um devir dialético, começando
com a família, passando à sociedade civil e terminando na economia pública.
Da oposição entre família e
sociedade civil resulta o estado. O estado é a unidade universal na qual se
resolvem as vontades individuais. Para Hegel o estado se encontra sempre acima
dos cidadãos. O estado não existe para os cidadãos, mas os cidadãos para o
estado. Para ele o estado é absoluto, o Deus na terra, ou, melhor dizendo, ele
é a consciência que vige entre Deus e a humanidade! É dele que dependem a
religião e a moralidade. Um cidadão torna-se livre na medida em que ele
consegue conformar as suas ações com as instituições do estado.
Para Hegel as decisões dos
estados tem prerrogativa até mesmo sobre o direito internacional, de modo que
quando os interesses vitais dos estados entram em conflito a guerra torna-se
inevitável.[15] Para ele a guerra seria uma forma saudável de
se decidir sobre quem tem razão, sendo responsável pelo progresso histórico da
humanidade. Ele possui ademais a função de guardar nas mentes das pessoas as
realidades da morte e da destruição. Um estado é como um indivíduo que precisa
de outro para ter sua identidade reconhecida. Por conseguinte, não há em Hegel
a ideia do mundo presidido por um estado mundial ou por uma confederação de
estados com interesses comuns, como Kant sugeriu em A paz perpétua.[16]
Os estados representavam para
Hegel os diversos povos. Esses povos progridem e conflitam entre si como partes
do espírito do mundo (Weltgeist), que se serve dos povos para
realizar-se. Quando um povo acaba de exercer a sua função ele entra em
decadência, dando lugar a outro. O espírito do mundo também pode se servir de
indivíduos, como nos casos de Alexandre, Cesar e Napoleão. Enquanto general
Napoleão encarnou o espírito de seu tempo (Zeitgeist) levando a
exigência de ascensão da classe burguesa a vários outros povos. Ele esteve
serviço da astúcia da razão (list der Vernunft) para depois ser
descartado. A forma mais elevada de estado era para Hegel uma monarquia
constitucional que respeitasse os direitos individuais, o que não se conformava
à perfeição com o estado prussiano de sua época.
6
Adentramo-nos aqui na mais importante filosofia da história de Hegel. A
vida do espírito objetivo se revela temporalmente na historicidade, que também
deve desdobrar-se em movimentos dialéticos cujo objetivo final é alcançar a
consciência da liberdade. O desenvolvimento do espírito absoluto
presentifica-se na história através de quatro momentos nos quais a liberdade
humana se desenvolveu.
O primeiro é o da infância da
humanidade no Oriente (China, Índia, Egito Antigo e Pérsia). Nessas
civilizações estacionárias só era livre o déspota, com poderes absolutos
arbitrários. Os indivíduos não possuíam uma moral própria e leis que deles
emanassem.
A adolescência do espírito foi
representada pela Grécia antiga, onde já havia certo grau de liberdade entre os
cidadãos. Mas embora já houvesse uma ideia da individualidade livre, tratava-se
de uma liberdade limitada pela escravidão e pelo fato de que embora houvesse
liberdade social, não havia liberdade individual. A liberdade dos cidadãos era
a dos hábitos morais estabelecidos pela cidade-estado e não a liberdade
reflexiva das consciências individuais, pois os cidadãos viam-se tão
absolutamente ligados à cidade-estado que eles não distinguiam seus próprios
interesses dos interesses do estado. A maior glória, por exemplo, era morrer em
um campo de batalha. Tratava-se da liberdade do hábito ou do costume e não do
uso da razão. O conflito entre a liberdade individual e a liberdade do cidadão
como membro da pólis se demonstra, por exemplo, na tragédia de Antígona. O rei
da cidade decide que o irmão de Antígona não poderá ser enterrado, devendo
servir de repasto para os abutres e os animais selvagens. Contrariando essa
decisão ela decide enterrar o irmão e é punida por isso. Outro exemplo é o de
Sócrates, cujo delito foi o de se opor aos valores da cidade estado uma
liberdade originada de sua própria consciência crítica. Com isso ele se tornou
inimigo mortal da liberdade do costume, razão pela qual foi condenado.
Roma constituiu a virilidade do
espírito, que se exprimiu na forma do império. Diversamente de outros impérios,
o império romano era formado de uma coleção de povos os mais diversos, que
precisavam ser unificados pela mais severa disciplina através do uso da força.
Disso resultou que, embora os cidadãos já tivessem uma consciência reflexiva da
liberdade individual herdada da Grécia, eles não eram capazes de realizá-la na
prática. Tratava-se de uma liberdade formal, posto que as liberdades concretas
eram esmagadas pelo poder de Roma. No mundo romano o espírito grego
espontaneamente livre havia sido destruído. Isso explica o proliferar de
filosofias como as do estoicismo, epicurismo e ceticismo, que negavam a
importância dos afazeres do mundo. Hegel via essas filosofias como expressões
da impotência do indivíduo. Elas refletiam o desespero do indivíduo, que mesmo
vendo-se a si mesmo livre era incapaz de influenciar os poderes que regiam seu
destino. Afora isso, Roma precisava de escravos para nutrir seu sistema e eles
não possuíam liberdade alguma.
Como superação dessa situação
entrou em cena o cristianismo com a sua doutrina moralizante, segundo a qual
vivemos nesse mundo para purgar-nos do pecado original e a verdadeira vida
começa no além-mundo. Precisamos para isso quebrar o domínio de nossos desejos
naturais de modo a fazermo-nos merecedores da vida eterna, o que é possível
dado que fomos feitos à imagem de Deus e que por isso nosso valor é infinito.
Para Hegel, o cristianismo significou um grande progresso na consciência
humana, que se descobriu como sendo essencialmente espiritual. Se somos
seres essencialmente espirituais então devemos ser capazes de transcender a
hostilidade do mundo natural de uma forma positiva. Para Hegel o cristianismo
substitui a moralidade do costume grega pela moralidade do amor. Ele acabou por
dominar o mundo europeu ao tornar-se a religião oficial de Roma e permanecer,
ou por ter cristianizado os bárbaros ou por resistir a eles, como aconteceu no
decadente império bizantino. Só essa concepção igualitária do homem defendida
pelo cristianismo permitiu o desaparecimento da escravidão na Europa, pois deu
a todos a perspectiva da liberdade ao considerar cada indivíduo humano como
possessor de um valor infinito e candidato a vida eterna.
É curioso contrastarmos a
opinião de Hegel sobre o cristianismo com a de Nietzsche. Este último via no
cristianismo a aceitação de uma mentira vital, que era a do ideal ascético,
segundo o qual nossos desejos naturais deveriam ser controlados e reprimidos em
troca de uma compensação dada pela vida eterna em outro mundo. Afinal, parece
razoável considerarmos o cristianismo como apenas uma forma de escapismo mais
venérea e popular do que as doutrinas do estoicismo, epicurismo e ceticismo,
substituindo a veneração da razão estoica pela veneração a um Deus
recriminador. Sob o ponto de vista nietzscheano essa seria a mais séria distorção
da filosofia da história de Hegel.
Quanto à Idade Média, tudo o
que Hegel nela viu foi uma longa e terrível noite na qual a igreja perverteu o
verdadeiro espírito cristão. Só com o renascimento e, mais tarde, com a
revolução francesa, houve um progresso real. E foi só pelo florescimento do
mundo germânico que o espírito entrou em sua fase de ancianidade construtiva.
Para Hegel o alvorecer do mundo
germânico começou com Lutero. A igreja católica havia sido corrompida, tratando
a divindade como se ela estivesse incorporada no mundo real através de rituais,
cerimônias e vendas de indulgência. O protestantismo permitiu a cada ser humano
encontrar a salvação por si mesmo, como indivíduo. A consciência individual do
ser humano passou a ser o árbitro último do que é bom e verdadeiro. Assim, após
a reforma luterana, que demandou uma fé abstrata, e após a revolução francesa,
que naufragou devido ao despreparo das pessoas em lidar com as demandas da
racionalidade, mas que permitiu o estabelecimento de leis capazes de tornar
racional o estado, fez-se possível a criação de um estado racional na Alemanha,
capaz de tornar possível ao indivíduo realizar-se de modo verdadeiramente livre
em sua racionalidade reflexiva. É por isso que no mundo germânico as liberdades
individuais se tornaram capazes de se encontrar, em uma síntese final, com a
liberdade do absoluto. Pois quando o estado é racional, ser livre é ser capaz
de adequar-se a ele! Para Hegel na sociedade racionalmente organizada do mundo
germânico de seu tempo que a ideia da liberdade havia alcançado a sua
consumação. Pois em um mundo racionalmente organizado, a liberdade subjetiva da
racionalidade individual passa a coincidir com a liberdade objetiva da
racionalidade do estado.
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Passados pelo espírito subjetivo (tese) e por sua oposição no espírito
objetivo (antítese) chegamos agora a sua superação conservadora: o espírito
absoluto (síntese). Tal é o caso do espírito que se considera em si e por si
mesmo e que tudo supera sem deixar nada fora de si. É ele a síntese do temporal
com o eterno, do finito com o infinito, do particular com o universal. Mas a
realização do espírito absoluto também deve se dar através de três subsequentes
momentos dialéticos: o da arte, o da religião e o da filosofia.
Vejamos o momento da arte
(tese). Para Hegel ela é a revelação do divino na intuição sensível: a
manifestação sensível do absoluto. Na arte a ideia se manifesta como forma
sensível. A arte é melhor quando mais eficaz for essa intermediação. O belo da
arte é, aliás, sempre superior ao belo da natureza, uma vez que a arte é
produto do espírito.[17]
A arte também se manifesta sob
três formas dialéticas. A primeira, própria da arte oriental, foi a arte
simbólica cultuada da Pérsia, Índia e Egito. A arquitetura foi a principal
forma de arte simbólica. Ela se utilizava de elementos naturais como um leão
para simbolizar a coragem, um pássaro para simbolizar a alma, a luz para
simbolizar o divino. Mas por esse meio a ideia só pôde ser apresentada de forma
distorcida, bizarra e grotesca[18],
embora ele conceda que essa forma de arte possa ser também sublime. A superação
antitética da arte oriental só se deu pela objetivação da ideia na arte
clássica grega. Nessa forma de arte foi escolhida principalmente a escultura
das formas humanas para representar o absoluto, como no caso de uma estátua do
deus Apolo. Essas duas formas de arte, a simbólica e a clássica, só foram
superadas pela arte romântica. As principais formas de arte romântica são para
Hegel as da pintura, da música e, principalmente, a da poesia. Na poesia o que
se expressava era uma mente que já se concebia como espírito infinito e que era
muito mais complexa e sofisticada do que aquela que se expressou nas duas
formas anteriores de arte. Através da arte romântica a arte começou a superar a
natureza própria da arte, tornando-se arte-religião e quase que abandonando o
elemento sensível.
Como manifestação do espírito
absoluto, a arte encontrou o seu oposto (antítese) na religião, que é o momento
da pura objetividade. Aqui a intuição se espiritualiza na forma da representação
do absoluto, na medida em que isso é possível. A religião encontra um
desenvolvimento histórico que coincide com o desenvolvimento da ideia de Deus
na consciência humana. Hegel também encontra nesse desenvolvimento três
momentos dialéticos. O primeiro foi o da religião natural. Ele foi o momento da
magia, do fetichismo, do simbolismo. Ele é para Hegel o momento das religiões
orientais na China e na Índia. No segundo momento a ideia de Deus passou às
religiões da liberdade, passando da substancialidade à individualidade
espiritual. Nós o encontramos na religião persa e na egípcia. Finalmente
encontramos as religiões da individualidade espiritual – o culto ao sublime
entre os judeus, do belo entre os gregos e dos fins entre os romanos.
Finalmente chegamos ao cristianismo, a religião mais alta, a religião absoluta.
O cristianismo é a única religião que conseguiu satisfazer plenamente o
objetivo de unir o homem ao divino, e dentro do cristianismo encontramos também
uma evolução, que passou por um momento imagístico na Idade Média, chegando ao
seu apogeu no momento conceptual do protestantismo.
A síntese do momento subjetivo
da arte com o momento objetivo da religião só pode ser encontrada na filosofia.
Só na transparência da razão filosófica o espírito absoluto explicita-se a si
mesmo por completo, de modo a alcançar sua inteira autoconsciência. Nela o
absoluto não é mais nem intuído nem representado, vindo diretamente expresso no
conceito. Também essa explicitação é dialética, evolvendo na história da
filosofia tal como Hegel a interpreta. A história da filosofia toma aqui o
lugar da auto-explicitação do absoluto. Por meio de tríades dialéticas
apresentadas nas formas dos diversos sistemas filosóficos a ideia adquire um
conhecimento cada vez maior de si mesma.
Um primeiro momento foi o da
filosofia dos pré-socráticos. Tales, ao considerar a água como o princípio,
estava tomando o conceito de água pela primeira vez em um sentido abstrato.
Sócrates é uma figura chave por ter adicionado à moralidade grega convencional
um princípio de reflexão da consciência sobre si mesma – aquilo que poderia ser
chamado de moralidade reflexiva. Contudo, assim como Antígona, Sócrates não
encontrou respaldo para essa moralidade reflexiva na moralidade comunitária da
pólis. Algo similar aconteceu com as filosofias de Platão e de Aristóteles... O
verdadeiro estar em casa no mundo não será encontrado senão quando a procissão
das filosofias cristãs e modernas tiver desembocado no próprio Hegel. É só
nessa última filosofia que o espírito absoluto atinge a sua mais completa
maturidade, tomando absoluta consciência de si mesmo. Eis como ele descreve a
posição de sua própria filosofia como a culminação última do pensamento ocidental:
Até aqui chegou o espírito do mundo. E cada
estágio toma sua forma própria no verdadeiro sistema da filosofia. Nada se
perdeu, todos os princípios foram preservados, dado que em seu aspecto final a
filosofia é a totalidade de suas formas. Essa ideia concreta é o resultado dos
esforços do espírito durante quase vinte e cinco séculos de trabalho honesto no
sentido de tornar-se objetivo para si mesmo, de conhecer-se a si mesmo: tantae
molis erat, se ipsam cognoscere mentem. [19]
Depois de mim, teria dito Hegel, não haverá mais a necessidade de ser
original.
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Vejamos agora algumas objeções. A mais séria é contra qualquer forma de
idealismo absoluto: o aparecimento e a ordem das representações
sensíveis nunca é demonstrado como dependendo da mente ou espírito. Por isso
pensamos que existe algo independente da mente que é a fonte dessas
representações, algo fora da mente! Ou seja, aquilo que faz com que apliquemos
nossas categorias não chega a ser nunca justificado como sendo de ordem mental.
Além disso, se a mente forma o mundo ao trabalhar nele, então parece que ela
precisa fazê-lo sobre um material que não é a própria mente.
Há, obviamente, inúmeras
objeções menores que podem ser levantadas, muitas vezes decorrentes do afã
sistematizador da pretendida dialética universal de Hegel, que torna seus
esquemas argumentativos forçados, artificiais e fantasiosos (virtude epistêmica
nunca foi o forte do idealismo alemão). Um exemplo: a arte, a religião e a
filosofia não culminaram uma depois da outra, como Hegel sugeriu e como seria
de esperar se sua relação fosse realmente o produto de um desenvolvimento
dialético. Sabemos apenas que a filosofia foi um fenômeno derivado posterior,
que coexistiu com a arte e a religião, o que pode ser justificado por sua
natureza derivada (cap. I, 8).
Se queremos avaliar o modo como
Hegel produziu sua filosofia precisamos recorrer ao nosso esquema da filosofia
entendida como um sendo uma prática cultural derivada da prática científica
(heurística), da prática artística (metafórica) e da prática religiosa
(mística) (cap. I, sec. 8). A filosofia de Hegel não contém quase nada da
prática científica. Ele não foi nenhum paladino da verdade. Sua motivação pende
para os elementos estético e místico, pois ele estava sempre disposto a sacrificar
a verdade pelos efeitos retóricos. E muito de sua filosofia impressiona mais
pela tonalidade religiosa-oracular (a própria configuração sistemática
grandiloquente).
Essa disposição esteticista e
mística torna-se mais clara quanto comparamos Hegel com Hume. O último está
mais próximo da arte e da ciência, mas de modo algum da religião e da mística.
Daí ter ele desenvolvido argumentos feitos para impressionar seus leitores
pelas conclusões inaceitáveis, em apelo a um efeito estético-imaginativo. Mas eles
são também proveitosos pelo desafio que colocam para quem está interessado na
verdade. Como o modelo de Hume é literário, ele não nos leva pelo nariz, dado
que a arte é uma ilusão que se sabe tal. Afinal, ele apresenta argumentos
claros que o conduzem ao paradoxo, deixando para nós mesmos escolher se os
aceitamos ou não, além do trabalho de explicar porque os aceitamos ou não. Já
Hegel segue um modelo retórico-místico-oracular, capaz de lembrar-nos das
prédicas religiosas.
Há, por fim, a questão da plausibilidade.
Não há porque duvidar do progresso da ciência. Hegel viveu antes da descoberta
da evolução natural por Darwin, que se faz por tentativa e erro e não é
teleológica nem dialética. Ele viveu antes da descoberta dos princípios da
termodinâmica e da cosmologia contemporânea, que mostrou ser a mente consciente
um acaso ínfimo dentro do universo. Mesmo que essa mente consciente seja
produto do universo e, nesse sentido, a sua consciência, ela não é um produto
teleológico desse universo e isso basta para a rejeição do hegelianismo. Claro,
nada garante que nossa ciência não possa ser ultrapassada por algo totalmente
inesperado. Mas se tomarmos como base tudo o que hoje sabemos, tanto o hegelianismo quanto
o idealismo alemão se tornaram posições especulativas extremamente implausíveis.
[1] Hegel: Fenomenologia do
espírito, prefácio.
[2] Hegel: Filosofia do
Direito, prefácio.
[3] Ver Ciência da Lógica (Wissenschaft
der Logik), livro II, sec. 1, cap.2,
C.
[4] A construção do real na
criança, p. 329 (Trad. Port. Rio de Janeiro: Zahar 1970.)
[5] Isso não deve ser entendido
literalmente, pois como o mundo é para Hegel parte de Deus, ele não poderia
tê-lo criado.
[6] Para Hegel a lógica investiga
Deus como o pai, a filosofia da natureza investiga Deus incarnado, ou seja,
como o Filho, e a filosofia do espírito investiga Deus como o Espírito Santo, o
que resolveria filosoficamente o mistério da santíssima trindade! Ver Vorlesungen über
die philosophie der Religion II (Werke vol. 12), Parte 3, I, 3.
[7] Ciência da Lógica (versão da Enciclopedia)
parágrafos iniciais das seções 86, 87, 88.
[8] Hegel, Wissenschaft
der Logik, livro II, cap. 3, sec. B. Ver também Justus Hartnack: An
Introduction to Hegel’s Logic (Indianapolis: Hackett 1998) pp. 95-96.
[9] Algo assim foi observado por
Simon Blackburn com respeito ao pós-modernismo. Ver Truth (Oxford:
Oxford University Press 2005)
[10] Paul Edwards:
“Heidegger Quest for Being”, in Philosophy 1989, vol. 64, n. 250, pp. 437-470.
[11] Ibid. p. 443.
[12] Wittgenstein: Investigações
filosóficas (Philosophische Untersuchungen 1953), Part II, p. 222.
[13] J. P. Sartre: O Ser e o
nada (L’étre et le néant: Essay d’ontologie Phénoménologique 1945)
parte II, cap. 3.
[14] Embora esse momento apareça
na Enciclopedia, ele foi mais profundamente desenvolvido na mais
influente obra de Hegel, a Fenomenologia do Espírito.
[15] Hegel: Die Verfassung
Deutschlands, in Schriften zur Politik und Rechstsphilosophie ed. Georg
Lasson, 2a ed. Leipzig 1923.
[16] Kant, Pela paz
perpétua: um esboço filosófico (Zum ewigen Frieden: einer
philosophischen Entwurf), 1795.
[17] G. W. F. Hegel: Curso de
estética: o belo na arte (São Paulo: Martins Fontes 1996), I, Definições
Gerais, 1.
[18] G. W. F. Hegel: Curso de
estética: o belo na arte. Ibid. Parte II, seção 1 (a forma simbólica de
arte).
[19] “Tão difícil era para a mente
conhecer-se a si mesma”. Leituras de Hegel sobre a História da Filosofia.
Seção III: Filosofia alemã recente. E. Resultado final.