Quem sou eu

Minha foto
If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

domingo, 21 de abril de 2024

HEGEL: A DIALÉTICA DO ESPÍRITO ABSOLUTO (draft; introdução para Defil.UFRN)

 Draft de capítulo de um livro introdutório ...

 

 

XIV

HEGEL: ESPIRITUALISMO DIALÉTICO

 

Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) foi a mais importante figura do idealismo alemão e o último grande construtor de sistemas. Foi colega e amigo de Schelling no seminário teológico de Tübingen. A amizade perdeu-se depois que Hegel escreveu que a filosofia da identidade de Schelling é como a noite na qual todas as vacas são pretas e outras coisas do gênero.[1]

   Sobre a vida de Hegel não há muito a dizer. Embora tenha nascido de uma família de algumas posses, ele viveu na época em que a Europa foi assolada pelas guerras napoleônicas. Era professor em Jena quando o exército de Napoleão invadiu a cidade, confiscando seus haveres. Mas o principal deles, a Fenomenologia do Espírito, sua obra mais influente, foi a tempo enviado para publicação. Hegel teve então de passar por dificuldades financeiras, aceitando um lugar como diretor de um colégio em Nuremberg. Casou-se. Teve três filhos, um deles fora do matrimônio, caridosamente adotado por sua esposa após a morte da mãe. Após um tempo como professor em Heidelberg, Hegel tornou-se professor em Berlim, onde viveu os últimos treze anos de sua vida e onde se tornou uma espécie de filósofo oficial do reino da Prússia. Atendia aos serviços religiosos. Em 1831 Berlim foi assolada por uma peste. Hegel refugiou-se no campo. Contudo, sentindo falta de seus alunos acabou por retornar cedo demais, sendo fatalmente vitimado pela doença aos 61 anos. O sistema filosófico extraordinariamente imaginativo de Hegel não nasceu do nada. Ele foi lentamente erguido com o auxílio de uma imensa quantidade de leituras. Parece ter sido dele a frase: “Não há nada de original em mim e o que é original é falso”.

 

1

 

O ponto de partida de Hegel foi o mesmo de todo o idealismo alemão: a rejeição da coisa em si como uma contradição dentro do próprio sistema kantiano. Uma vez aceito o idealismo, o problema epistemológico da percepção no interior do qual se deblateraram filósofos de Descartes, Locke a Kant, desaparece. Não é preciso mais explicar como somos capazes de ter acesso a um mundo externo essencialmente heterogêneo a nós mesmos, uma vez que ele não tem mais nada de heterogêneo: tudo são ideias, mente, espírito. A investigação epistemológica que motivou muito da filosofia feita Descartes a Kant passa a dar lugar a uma metafísica do processo, tal como em Empédocles e em Eriúgena. A preocupação de Hegel passa a ser com a evolução do mundo como um todo, entendida como o desdobramento de um espírito absoluto (Deus, a razão infinita), que se aliena a si mesmo como natureza, para depois reconhecer-se objetivamente como ele mesmo em coisas como a evolução histórica, passando então a reconhecer-se a si mesmo como espírito subjetivo na arte, na religião e na própria história da filosofia, para encontrar-se enfim, sob a forma absoluta na filosofia do próprio Hegel. Nunca um sistema filosófico foi tão criativamente ambicioso quanto o de Hegel.

   Embora pouco factível quando travestida e magnificada na forma de uma investigação da evolução de um espírito absoluto omni-abrangente, o que Hegel fez de mais importante foi investigar a evolução da consciência humana em suas múltiplas e variadas manifestações. Daí que as verdadeiras contribuições de Hegel foram para a filosofia prática, incluindo a história, a arte, o direito, a religião e a própria filosofia. Só esse esforço especulativo já resgata a importância de sua obra.

 

2

 

A filosofia do processo de Hegel contém dois pressupostos que precisam ser salientados. O primeiro deles é ontológico. Trata-se da assunção de que tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real.[2] Isso pode parecer estranho, mas é fácil de ser compreendido. O mundo inteiro não é nada mais do que ideia, mente, pensamento, espírito, razão, Deus, infinito, conceitos que em Hegel são aptos a serem usados de modo intercambiável. O espírito absoluto é essencialmente pensamento. O pensamento é racional. Logo, tudo o que existe, seja interno ou externo a nós mesmos, tem de ser racional. A adoção desse princípio tem a consequência de inspirar Hegel na busca de explicações racionais. Da escravidão na Roma antiga até as consequências nefastas da revolução francesa, tudo deve ter alguma racionalidade justificadora, ao menos do ponto de vista do absoluto. Afinal, tudo é consequência do desdobramento do espírito absoluto e a filosofia terá a função de explicar por que deve ser assim.

  O segundo pressuposto é metodológico. Para Hegel o método da filosofia não poderia restringir-se à silogística aristotélica nem à lógica transcendental de Kant, incapazes de investigar o modo de transformação do espírito absoluto. A lógica que investiga o devir da realidade precisa ser o que ele chamou de lógica dialética. Essa lógica deve dar conta do fato de que os conceitos contém os seus opostos e que sua aplicação passa a eles no vir a ser das coisas. Assim, o conceito de ser contém o do nada, o conceito de sujeito contém o de objeto, etc. Ele estava interessado em uma dialética que se aplicasse à realidade como um todo, à realidade que para ele era o espírito absoluto em suas infinitas divisões. Ele encontrou o modo de progressão do absoluto nas tríades dialéticas de Fichte. O absoluto primeiro põe-se a si mesmo (a tese) na afirmação de uma parte da realidade que o constitui. No que se segue o absoluto nega aquilo que antes pôs, afirmando a realidade constitutiva de seu oposto ou, no dizer de Hegel, sua contradição. Mas essa oposiçao termina por demonstrar-se insuficiente, o que faz com que o espírito unifique o que foi posto (a tese) ao que foi oposto (a antítese), naquilo que eles possuem de mais verdadeiro. Isso se dá pela negação da negação, um movimento de superação conservadora (síntese) no qual o espírito se sublima a si mesmo (sich selbst aufhebt), incorporando em si as verdades parciais do que é posto (tese) e do que é oposto (antítese). Essa superação, por sua vez, servirá de base (tese) para uma nova negação, que irá gerar uma nova oposição (antítese), que produzirá uma nova superação (síntese) e assim por diante em um processo infinito.

   Alguns pensam que Hegel fez com sua dialética foi superar o princípio da não-contradição exposto na lógica aristotélica. Mas isso decorre de uma má compreensão da relação entre a dialética e aquele princípio. Segundo o princípio da não-contradição (em sua formulação ontológica) uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto ou (em sua formulação epistêmica) uma proposição não pode ser afirmada e negada em um mesmo sentido. Seja como for, se Hegel pretendeu rejeitar esse princípio ele estava errado.[3] Afinal, a suposta “contradição”, em Hegel, ou existe como potência no interior de algo e, portanto, sob um aspecto diverso (ou, usando a formulação linguística do princípio, em um sentido diverso), ou ainda, quando a oposição e a superação se atualizam a nós em tempos diferentes. A contradição hegeliana não é, pois, uma simples negação, mas um contrário, uma oposição, um conflito, uma tensão, posto que a antítese é também uma tese. É só assim que a dialética é capaz de fazer sentido: ela é uma oposição surgida no cerne de alguma coisa, acabando por produzir sua superação do aspecto positivo da mesma. E a aplicação do método dialético só pode consistir de proposições que são verdadeiras sob um certo aspecto e falsas sob outro, e/ou que são verdadeiras em um momento e falsas em outro.

   Podemos encontrar um análogo da dialética idealista nas dialéticas discursivas. Esse é o caso da dialética argumentativa exercida nos diálogos de Platão, em que um falante defendia uma tese enquanto outro, geralmente Sócrates, argumentava contra ela, chegando aos poucos a uma aproximação maior da verdade. Um outro exemplo foi o método de pensamento dos filósofos céticos da antiguidade, que para Hegel precediam a dialética. Eles desenvolviam teses para então desenvolver antíteses de igual valor, de modo a demonstrarem que era impossível chegar à verdade (ver cap. IV, 3).  Mas os céticos, rejeitando a possibilidade de conhecimento, paravam aí, não procedendo em direção a uma síntese. Também encontramos a dialética como exercício filosófico nas universidades medievais, nas quais o proponente deveria defender a tese enquanto seu oponente deveria encontrar argumentos em favor da antítese.

   Parece haver uma confirmação de que alguma espécie de dialética possa ser entendida como um fenômeno concernente ao desenvolvimento da consciência humana em seus mais diferentes aspectos na maneira como Jean Piaget expõe os sucessivos estados do desenvolvimento da criança. Em sua investigação, o desenvolvimento cognitivo da criança segue duas funções antagônicas, que são as de assimilação e acomodação. Na assimilação os esquemas de interação com o meio são conservados e o organismo tende a submeter o meio a suas formas de organização. A acomodação, por sua vez, é uma fonte de mudanças do organismo na criação de novas maneiras de se adaptar ao meio. Embora esses mecanismos sejam geralmente indissociáveis, na mudança de uma fase para outra do desenvolvimento da criança a acomodação leva vantagem, pois há uma diferenciação maior dos esquemas, com o desencadeamento de novas e mais robustas formas de assimilação. Como escreve Piaget: “Toda conquista da acomodação se converte, pois, em matéria de assimilação, embora esta resista incessantemente a novas acomodações.”[4]

   Ora, não há dúvida que o processo de assimilação pode ser concebido como um por dialético (tese), enquanto a acomodação constitui-se em seu contrapor (antítese), disso se seguindo um novo processo de assimilação (síntese) que sustenta os esquemas aprendidos até que, pelo acúmulo de novas experiências, o organismo passe por uma nova acomodação (antítese) e assim por diante. Isso se dá mesmo que diversas assimilações a acomodações acabem por se sobrepor no processo. A maneira como Piaget concebe o desenvolvimento das capacidades intelectivas na criança não difere, essencialmente, daquilo que Hegel entendia como um processo dialético. Mais além, assim como a ontogênese (na embriologia) recapitula a filogênese (no desenvolvimento da espécie) também pode ser que as sucessivas fases do desenvolvimento da criança recapitulem o desenvolvimento da consciência humana em suas realizações objetivas e subjetivas na história. Por exemplo: Piaget notou que quando uma criança explica o movimento de uma seta como empurrando o ar com a sua ponta, de modo que ele passe para a sua cauda e a empurre para frente, ela nos provê de uma explicação similar à explicação fornecida por Aristóteles em uma de suas malfadadas tentativas de explicar fenômenos físicos especulativamente.

   A conclusão disso tudo parece ser que a dialética diz respeito primeiramente ao modo como desenvolvemos nosso pensamento. Raciocinamos opondo teses e antíteses com base no material informativo que nos é acrescentado, objetivando chegar a sínteses mais compreensivas em um processo teleológico cujo produto é intencional. Mas se o pensamento se desenvolve dialeticamente, então isso pode muito bem valer para tudo aquilo que tem a ver com o pensamento. Esse seria o caso das fases do desenvolvimento cognitivo da criança em Piaget. Mas esse também pode ser o caso de produtos sócio-históricos do pensamento. Ou seja: as instituições, a história, a cultura, as artes, a religião e mesmo a filosofia são capazes de se desenvolver em estágios dialéticos na medida em que são produtos intencionais. Não quero dizer com isso que tais processos sejam lineares, uma vez que há no mundo concreto inúmeros fatores intervenientes que nada tem a ver com eles (Hegel sabia disso). Mas se o que foi considerado é certo, então ao menos bosquejos dialéticos podem ser encontrados nas ações humanas e em seus produtos históricos e culturais, como é o caso da arte, da religião e da filosofia. Se raciocinarmos assim parece que somos capazes de validar em alguma medida as ambições de Hegel em sua filosofia do espírito.

   Não obstante, é hoje bastante claro que processos dialéticos não valem onde não há mais lugar nem para a intencionalidade nem para o que possa ser relacionado a ela, ou seja, no mundo da natureza puramente biológica e inorgânica. Hegel tentou desenvolver uma dialética da natureza, onde não existe um elemento intencional. Ele não poderia saber disso na época em que viveu, quando pouco se conhecia de ciência além dos desenvolvimentos da física de Newton. Mas nos tempos atuais, mais bem esclarecidos pela ciência, a crença em uma dialética da natureza torna-se uma projeção indébita da racionalidade humana onde ela não é mais capaz de atuar.

 

3

 

No sistema filosófico de Hegel a primeira e mais abrangente de todas as tríades dialéticas constitui-se no movimento triádico do espírito absoluto que começa com sua constituição lógico-metafísica (tese), é seguido de sua auto-alienação no mundo da natureza (antítese) e termina na auto-identificação (do real) e no auto-reconhecimento (do racional) de si mesmo como espírito absoluto (síntese).

   Há, pois, três grandes momentos dialéticos. O primeiro é estudado na Lógica de Hegel, que é ao mesmo tempo uma metafísica. Ela é a ciência da ideia em si, do espírito absoluto, a investigação da estrutura da mente de Deus antes da criação do mundo, por assim dizer.[5] O segundo momento é estudado em sua filosofia da natureza, que é a ciência da ideia objetificada, do Deus objetificado, da ideia que vem a ser outro de si. O terceiro momento é o da filosofia do espírito.[6] Ele é o da ciência da ideia como o Deus que se reconhece a si mesmo através dos homens, terminando na forma absoluta de autoconsciência. A lógica de Hegel nos parece hoje questionável e sua filosofia da natureza ridiculamente implausível. Mas a filosofia do espírito é rica em insights e capaz de nos dizer algo, mesmo à luz da ciência e da cultura de nosso tempo. Vou considerar aqui esquematicamente as duas primeiras, para depois seção considerar em um mínimo de detalhes a filosofia do espírito.

   A lógica de Hegel deve investigar a constituição do absoluto primordial em sua eterna essência, antes de ele alienar-se de si mesmo como natureza ou como consciência humana. Ela investiga Deus, a ideia ou o pensamento em sua essência absoluta e necessária. Hegel quis que a sua lógica fosse também metafísica, posto que nela são investigados conceitos puramente abstratos cuja aplicação atravessa toda a realidade concebível, como é o caso daquilo que Aristóteles e Kant chamavam de categorias.

   A lógica de Hegel divide-se na tríade do ser, da essência e do conceito. Começando com o ser, ele apresenta uma muito famosa tríade primordial que envolve a passagem do ser para o não ser, que por sua vez passa ao vir a ser ou Devir. Ou, como ele escreveu:

 

O puro Ser (Seyn) é o começo: porque ele é de um lado o puro pensamento e de outro a imediatez em si mesma, simples e indeterminada, e porque o primeiro começo não pode ser mediado por coisa alguma ou ser mais além determinado. (...) Mas o mero Ser, sendo mera abstração, é portanto o absolutamente negativo, o qual, em seu aspecto igualmente imediato, é apenas Nada (Nichts). (...) O Nada, se ele é para ser imediato e igual a ele mesmo é também, de modo converso, o mesmo que o Ser. A verdade do Ser e do Nada é dessa maneira a unidade dos dois e essa unidade é o Devir (Werden).[7]

 

Tentando uma paráfrase: o ser puro (a tese) é o absolutamente imediato e completamente indeterminado. Mas sendo assim ele é totalmente vazio de conteúdo. Mas nesse caso ele nada é. Ou seja: dele se deriva diretamente o que não é, ou seja, o Nada (antítese). Ora, dessa oscilação entre o Ser e o Nada e o Nada e o Ser resulta o vir a ser, o Devir (síntese), que incorpora em si mesmo o Nada (o ser que ainda não é) e o Ser (o ser que já é).

   Após essa impressionante primeira tríade Hegel prossegue mostrando que o Devir infinito, por sua vez, se opõe ao ser determinado, que é o ser finito. O ser finito, por sua vez, se opõe ao ser determinado, o ser finito das categorias da qualidade, quantidade e medida. Da reflexão do ser infinito no finito vem a ser as relações, que passam do ser à essência... Na sequência ele vem a explicitar uma multiplicidade de outros conceitos, incluindo os de fenômeno, realidade em ato, substancialidade, causalidade, ação recíproca, a divisão entre o subjetivo e o objetivo, etc. etc.

  Não pretendo considerar essas sequências. A falta de clareza e constante confusão conceitual é na lógica de Hegel tão imensa que podemos imaginar alguém inventando uma outra série de determinações dialéticas com igual poder de convicção. Uma pessoa com uma boa capacidade de análise perceberá as falhas no argumento, o que arruinará o seu prazer estético.

   Mas a lógica de Hegel não é simples mistificação. Por exemplo: ele pretende ter resolvido o grande problema humiano da falta de necessitação do efeito pela causa. Em sua doutrina da essência ele nota que a necessidade da relação entre causa e efeito advém do fato de, considerando que a causa e o efeito acontecem em um mesmo evento, elas são duas maneiras diferentes de se considerar uma mesma coisa, o que garante a necessitação do efeito pela causa.[8] Isso é falso porque embora causa e efeito se encontrem no instante de sua consumação, elas se prolongam em tempos diferentes. Mesmo que esteja errado, o que Hegel diz provoca o pensamento. Daí podemos concluir que mesmo uma leitura in negativo da lógica de Hegel possa ser proveitosa.[9]

   O segundo grande momento do absoluto é aquele investigado pela filosofia da natureza. Trata-se da ideia que se opõe a si mesma pondo-se como o outro, sem, contudo, reconhecer-se nesse outro. Hegel apresenta aqui uma progressão dialética da mecânica para a física e, finalmente, para o mundo da natureza geológica, vegetal e, finalmente, animal. O indivíduo animal morre por não se adequar à ideia, dele restando a mente humana, que é reabsorvida na ideia eterna, marcando a passagem da natureza para o espírito... A filosofia da natureza é a parte mais obviamente artificial e fantasiosa do sistema e dispensa considerações críticas.

 

4

 

Faço uma pausa agora para comentar criticamente a famosa primeira tríade da lógica hegeliana. Ela se assemelha à abertura de certas obras de Wagner, que se mostram impressionantes, mas que logo depois se tornam melodicamente maçantes. Após Wittgenstein nós nos tornamos dispostos a ver em textos como esse um engalfinhado de confusões lógico-conceituais magnificando alguns poucos insights. Embora em termos literais o texto acima não faça sentido, ele parece fazer sentido e ser mesmo impressionante. A questão é: o que o faz parecer ter sentido? Qual a fonte de seu inicial fascínio?

   Em uma tentativa de resposta podemos repetir aqui a sugestão feita por Paul Edwards no que concerne a Heidegger, um filósofo que usava de estratégias discursivas semelhantes. Em um conhecido artigo[10] Edwards cita trechos de Heidegger em que ele se impressiona com o fato de que o Ser se encontra para além dos entes. Por exemplo:

 

A sala de leituras é. Ela é iluminada. Nós reconhecemos a sala de leitura iluminada toda de uma vez... como algo que é. Mas onde está em toda a sala de leitura o ‘é’. Em nenhum lugar entre as coisas encontramos o ser.

Onde está o Ser dessa escola superior? Afinal ela é. O edifício é. Se qualquer coisa pertence a esse ser é seu Ser; mas não encontramos o Ser dentro dela.

Nós corremos (ou ficamos) ao redor do mundo com todas as nossas tolas sutilezas e conceitos. Mas onde em tudo isso está o Ser? [11]

 

Edwards nos lembra de que há três sentidos fundamentais do verbo ser: como cópula (Sócrates é sábio), como identidade (Uma rosa é uma rosa) e como existência (Nos altos cumes é serenidade), a isso se adicionando diferentes tonalidades conotativas. Heidegger está usando o verbo ser nas passagens acima no sentido de existência. E o que ele está fazendo é apontar para o fato de que a existência não é uma propriedade das coisas, embora ele o apresente como se fosse algo misterioso, superior, impressionante e indizível. Recorde-se de nossa análise do conceito de existência no capítulo XII desse livro (seção 11): a existência é o que Frege apontou como sendo propriedade de conceitos e que eu procurei mostrar que um objeto existe quando possui a meta-propriedade disposicional de ter a sua regra de identificação efetivamente aplicável a si mesmo, o que o faz não ser um objeto ficcional. Para Edwards, ao dizer que o Ser das coisas não se encontra nelas Heidegger está apenas redescobrindo de forma magnificada algo já bem sabido por filósofos, especialmente os analíticos. Como ele escreve:

 

Umas poucas palavras estão em ordem no que concerne à ‘descoberta’ de Heidegger da “paradoxal natureza do ser”, sua “tendência misteriosa” de revelar-se tanto como de ocultar-se a si mesmo em ser uma espécie de eterno strip-tease cósmico. Esse tema é infinitamente repetido nos trabalhos de Heidegger. Podemos agora ver que não há nenhum “mistério” aqui e que Heidegger não descobriu coisa alguma. O “ocultamento” do Ser é um modo de referir ao fato de que quando procuramos pela existência nas coisas não podemos encontrá-la; a “revelação” do Ser é uma maneira desnecessariamente mística de dizer que apesar disso as coisas existem. Nós podemos honestamente caracterizar a descoberta de Heidegger da “paradoxal natureza do ser” como uma redescrição bombástica desses fatos; e, diversamente da análise dos enunciados existenciais esboçada acima, não faz nada para explicá-los. 

 

O que Heidegger faz não é nada mais do que redescobrir o fato de que a existência não é uma propriedade das coisas, como se isso fosse a porta para uma dimensão superior da realidade, a do Ser, usualmente no lugar do Deus cristão.

   Meu ponto é o de um argumento como o de Edwards contra Heidegger também pode ser aplicado à primeira tríade da doutrina do ser na lógica de Hegel. O verbo ser também é usado primariamente no sentido de existência. Penso que se nos recordarmos que a existência foi analisada por Frege como significando o mesmo que a propriedade de um conceito, qual seja, a de que sob ele cai pelo menos um objeto, podemos parafrasear a primeira tríade da doutrina do Ser como se segue:

 

A propriedade conceitual da existência enquanto tal  (o puro Ser) é o começo: ela pode ser considerada de forma pura, em separação de qualquer conceito particular a que se possa aplicar (...) Mas a simples propriedade conceitual da existência abstraída de seus conceitos não resulta em objeto algum ao qual conceitos possam se aplicar (é apenas o Nada). Essa falta de ligação com conceitos é como a existência enquanto tal, como mera propriedade... A existência como propriedade separada de conceitos não conduz à existência de coisa alguma, nem a existência de coisa alguma conduz a sua ligação com um conceito. E no perceber dessa alternância há um movimento da mente para lá e para cá e vice-versa (o Devir).

 

Podemos parafrasear usando a noção de “efetiva aplicabilidade da regra conceitual sem o conceito” ao invés da “propriedade conceitual sem o conceito”. Eis como fica sendo:

 

A efetiva aplicabilidade conceitual, tomada como mera efetiva aplicabilidade  (o puro Ser) é o começo: ela pode ser pensada enquanto tal separada de qualquer conceito particular (...) Mas a simples efetiva aplicabilidade conceitual como existência abstraída de qualquer regra conceitual não resulta em objeto algum ao qual conceitos possam se aplicar, na verdade não resulta em coisa alguma (é apenas Nada). Ora, essa existência como mera propriedade conceitual de aplicabilidade não ligada a nenhum conceito específico conduz à existência de coisa alguma, e a existência de coisa alguma conduz a sua ligação com um conceito e no perceber dessa alternância encontra-se um movimentos da mente de um lado para o outro e vice-versa (o Devir).

 

Essas paráfrases tornam o que Hegel disse menos metafórico e mais preciso. Mas a aura metafísica perdeu-se. Não é mais o relato de algo misterioso e extraordinário. Parece que devemos aqui dar razão a Wittgenstein, que escreveu que toda uma nuvem de metafísica se condensa em uma gota de gramática.[12]

   O que acabei de fazer é uma paráfrase lógico-conceitual. Mas ela não é a única. O uso nominalizado do verbo ser não se restringe ao sentido de existência. Em Heidegger ele poderia em muitas sentenças ser substituído pela palavra ‘Deus’ sem mudança de sentido. Ou seja: o Ser é também uma espécie de metáfora universal, um artifício filosófico originariamente inventado por Parmênides. Essa ambiguidade também admite um entendimento psicológico. Acontece muitas vezes de nos sentirmos em um estado de grande preenchimento, quando nos vemos por qualquer razão plenamente satisfeitos: este é o “momento do Ser”! Mas esse sentimento de plenitude logo passa, pois logo nos cansamos e sentimo-nos vazios... Esse é o “momento do nada”. Contudo, devido a essa mesma vaziez, procuramos algo que nos motive, que nos entretenha outra vez, motivando-nos em direção a algo que supere esse nada: esse é o “momento do Devir”. Nessa busca (“o infinito”) finalmente encontramos algo (“o determinado”) ao qual as categorias começam a se aplicar... Sob essa paráfrase psicológica os primeiros momentos da lógica de Hegel nada mais são do que uma maneira formal, abstraída de conteúdos psicológicos, de expor coisas como esses movimentos emocionais que seres humanos como indivíduos ou em coletividade repetidamente experienciam, e que subjazem à própria dialética do discurso. Só isso já parece motivar o movimento meramente psicológico do Ser para o não ser e dele para o Devir sugerido por Hegel.

   Jean Paul Sartre, sem dúvida inspirado por Hegel, foi mais explícito.[13] Ele usou as metáforas do ser-em-si (l’être en-soi), o ser das coisas, e do ser-para-si (l’être pour-soi), o ser propriamente humano. O ser-para-si age sobre o ser em si como um abismo nadificador que se detém na angústia da negatividade (“a náusea”). Essa progressão nada mais é do que uma maneira magnificada de dizer que as coisas nos chamam atenção até que as conheçamos bem e que elas se tornem tediosas para nós. Os artifícios retóricos de Sartre e Hegel seriam descritos pela psicanálise freudiana como efeito do processo primário que se manifesta nos sintomas neuróticos, nos sonhos, na arte, nos devaneios e e na própria filosofia. Se bem me lembro Freud escreveu que a filosofia trata o concreto (aqui o psicológico) como se fosse o abstrato (aqui o lógico-metafísico) do mesmo modo que o esquizofrênico trata o abstrato como se fosse o concreto.

 

5

 

É em sua filosofia do espírito que Hegel apresentou o que ele tinha de mais importante a dizer. O espírito é o auto-reconhecimento da ideia através da alteridade por ela posta. Para ele o espírito também se desenvolve através de um processo dialético triádico, que começa pondo o espírito subjetivo (individual), ao qual se opõe o espírito objetivo (geral ou social), terminando no espírito absoluto (universal ou divino).

   Comecemos com o espírito subjetivo. Ele é o indivíduo humano. Também ele passa por três momentos dialéticos. O primeiro é o da alma ou mente, em que o espírito é o indivíduo unido a um corpo. Aqui ele é objeto da antropologia. Para Hegel a mente e o corpo não podem ser opostos, como pensava Descartes, pois nesse caso não haveria comunidade entre eles. No segundo momento o espírito se torna consciência. Ele reflete sobre si mesmo na forma de autoconsciência, pondo-se como um eu. Esse eu torna-se capaz de autoconsciência pelo reconhecimento de outras consciências, como é mostrado na famosa dialética do senhor e do escravo. Aqui ele é objeto da fenomenologia.[14] O terceiro momento é aquele em que o espírito se torna objeto da psicologia, considerando-se a si mesmo de forma universal como possuidor de uma vontade livre e capaz de submeter-se ao escrutínio racional.

   O espírito objetivo se opõe ao espírito subjetivo. Esse é o momento em que o espírito individual passa a viver a vida da humanidade, objetivando-se através de modelos de suas interações sociais e instituições culturais. Os três momentos dialéticos do espírito objetivo são os do direito, moralidade e eticidade.

   Hegel começa com o direito individual, o direito da pessoa, que se resume em direito à propriedade, contratual e penal. A propriedade se distingue por ser fundada no reconhecimento mútuo entre as partes, diversamente da posse. A lei representa a vontade comum, sendo pois o direito de todos. Se alguém viola a lei, esse alguém perde seus direitos pessoais, só podendo recuperá-los se sofrer a punição prescrita. Na medida em que a pessoa que viola a lei considerar justo que outra pessoa sofra a mesma punição no caso de fazer o mesmo contra ela, será coerente que ela aceite seu castigo como sendo justo.

   O direito regula apenas o comportamento exterior das pessoas. Ele não é capaz de interferir em sua interioridade, em suas intenções. É aqui que o direito cede lugar à moralidade. O que determina a ação moral é a intenção concreta. Se a intenção for o que deve ser, gerando o bem estar, ela se universaliza como uma boa vontade. Mas quando a intenção que determina a ação não for o que deve ser, o que teremos será a má vontade que circunstancia o mal.

   Para Hegel o terceiro momento, o da eticidade (Sittlichkeit), é o da síntese entre o direito e a moralidade. O bem que daí resulta é o de uma comunidade social. A forma mais alta de moralidade é para ele algo concreto, ou seja, aquela que se constitui no espírito de um povo determinado sob a perspectiva de sua realização histórica. A eticidade, por sua vez, também segue um devir dialético, começando com a família, passando à sociedade civil e terminando na economia pública.

   Da oposição entre família e sociedade civil resulta o estado. O estado é a unidade universal na qual se resolvem as vontades individuais. Para Hegel o estado se encontra sempre acima dos cidadãos. O estado não existe para os cidadãos, mas os cidadãos para o estado. Para ele o estado é absoluto, o Deus na terra, ou, melhor dizendo, ele é a consciência que vige entre Deus e a humanidade! É dele que dependem a religião e a moralidade. Um cidadão torna-se livre na medida em que ele consegue conformar as suas ações com as instituições do estado.

   Para Hegel as decisões dos estados tem prerrogativa até mesmo sobre o direito internacional, de modo que quando os interesses vitais dos estados entram em conflito a guerra torna-se inevitável.[15]  Para ele a guerra seria uma forma saudável de se decidir sobre quem tem razão, sendo responsável pelo progresso histórico da humanidade. Ele possui ademais a função de guardar nas mentes das pessoas as realidades da morte e da destruição. Um estado é como um indivíduo que precisa de outro para ter sua identidade reconhecida. Por conseguinte, não há em Hegel a ideia do mundo presidido por um estado mundial ou por uma confederação de estados com interesses comuns, como Kant sugeriu em A paz perpétua.[16]

   Os estados representavam para Hegel os diversos povos. Esses povos progridem e conflitam entre si como partes do espírito do mundo (Weltgeist), que se serve dos povos para realizar-se. Quando um povo acaba de exercer a sua função ele entra em decadência, dando lugar a outro. O espírito do mundo também pode se servir de indivíduos, como nos casos de Alexandre, Cesar e Napoleão. Enquanto general Napoleão encarnou o espírito de seu tempo (Zeitgeist) levando a exigência de ascensão da classe burguesa a vários outros povos. Ele esteve serviço da astúcia da razão (list der Vernunft) para depois ser descartado. A forma mais elevada de estado era para Hegel uma monarquia constitucional que respeitasse os direitos individuais, o que não se conformava à perfeição com o estado prussiano de sua época.

 

6

 

Adentramo-nos aqui na mais importante filosofia da história de Hegel. A vida do espírito objetivo se revela temporalmente na historicidade, que também deve desdobrar-se em movimentos dialéticos cujo objetivo final é alcançar a consciência da liberdade. O desenvolvimento do espírito absoluto presentifica-se na história através de quatro momentos nos quais a liberdade humana se desenvolveu.

   O primeiro é o da infância da humanidade no Oriente (China, Índia, Egito Antigo e Pérsia). Nessas civilizações estacionárias só era livre o déspota, com poderes absolutos arbitrários. Os indivíduos não possuíam uma moral própria e leis que deles emanassem.

  A adolescência do espírito foi representada pela Grécia antiga, onde já havia certo grau de liberdade entre os cidadãos. Mas embora já houvesse uma ideia da individualidade livre, tratava-se de uma liberdade limitada pela escravidão e pelo fato de que embora houvesse liberdade social, não havia liberdade individual. A liberdade dos cidadãos era a dos hábitos morais estabelecidos pela cidade-estado e não a liberdade reflexiva das consciências individuais, pois os cidadãos viam-se tão absolutamente ligados à cidade-estado que eles não distinguiam seus próprios interesses dos interesses do estado. A maior glória, por exemplo, era morrer em um campo de batalha. Tratava-se da liberdade do hábito ou do costume e não do uso da razão. O conflito entre a liberdade individual e a liberdade do cidadão como membro da pólis se demonstra, por exemplo, na tragédia de Antígona. O rei da cidade decide que o irmão de Antígona não poderá ser enterrado, devendo servir de repasto para os abutres e os animais selvagens. Contrariando essa decisão ela decide enterrar o irmão e é punida por isso. Outro exemplo é o de Sócrates, cujo delito foi o de se opor aos valores da cidade estado uma liberdade originada de sua própria consciência crítica. Com isso ele se tornou inimigo mortal da liberdade do costume, razão pela qual foi condenado.

   Roma constituiu a virilidade do espírito, que se exprimiu na forma do império. Diversamente de outros impérios, o império romano era formado de uma coleção de povos os mais diversos, que precisavam ser unificados pela mais severa disciplina através do uso da força. Disso resultou que, embora os cidadãos já tivessem uma consciência reflexiva da liberdade individual herdada da Grécia, eles não eram capazes de realizá-la na prática. Tratava-se de uma liberdade formal, posto que as liberdades concretas eram esmagadas pelo poder de Roma. No mundo romano o espírito grego espontaneamente livre havia sido destruído. Isso explica o proliferar de filosofias como as do estoicismo, epicurismo e ceticismo, que negavam a importância dos afazeres do mundo. Hegel via essas filosofias como expressões da impotência do indivíduo. Elas refletiam o desespero do indivíduo, que mesmo vendo-se a si mesmo livre era incapaz de influenciar os poderes que regiam seu destino. Afora isso, Roma precisava de escravos para nutrir seu sistema e eles não possuíam liberdade alguma.

   Como superação dessa situação entrou em cena o cristianismo com a sua doutrina moralizante, segundo a qual vivemos nesse mundo para purgar-nos do pecado original e a verdadeira vida começa no além-mundo. Precisamos para isso quebrar o domínio de nossos desejos naturais de modo a fazermo-nos merecedores da vida eterna, o que é possível dado que fomos feitos à imagem de Deus e que por isso nosso valor é infinito. Para Hegel, o cristianismo significou um grande progresso na consciência humana, que se descobriu como sendo essencialmente espiritual. Se somos seres essencialmente espirituais então devemos ser capazes de transcender a hostilidade do mundo natural de uma forma positiva. Para Hegel o cristianismo substitui a moralidade do costume grega pela moralidade do amor. Ele acabou por dominar o mundo europeu ao tornar-se a religião oficial de Roma e permanecer, ou por ter cristianizado os bárbaros ou por resistir a eles, como aconteceu no decadente império bizantino. Só essa concepção igualitária do homem defendida pelo cristianismo permitiu o desaparecimento da escravidão na Europa, pois deu a todos a perspectiva da liberdade ao considerar cada indivíduo humano como possessor de um valor infinito e candidato a vida eterna.

   É curioso contrastarmos a opinião de Hegel sobre o cristianismo com a de Nietzsche. Este último via no cristianismo a aceitação de uma mentira vital, que era a do ideal ascético, segundo o qual nossos desejos naturais deveriam ser controlados e reprimidos em troca de uma compensação dada pela vida eterna em outro mundo. Afinal, parece razoável considerarmos o cristianismo como apenas uma forma de escapismo mais venérea e popular do que as doutrinas do estoicismo, epicurismo e ceticismo, substituindo a veneração da razão estoica pela veneração a um Deus recriminador. Sob o ponto de vista nietzscheano essa seria a mais séria distorção da filosofia da história de Hegel.

   Quanto à Idade Média, tudo o que Hegel nela viu foi uma longa e terrível noite na qual a igreja perverteu o verdadeiro espírito cristão. Só com o renascimento e, mais tarde, com a revolução francesa, houve um progresso real. E foi só pelo florescimento do mundo germânico que o espírito entrou em sua fase de ancianidade construtiva.

   Para Hegel o alvorecer do mundo germânico começou com Lutero. A igreja católica havia sido corrompida, tratando a divindade como se ela estivesse incorporada no mundo real através de rituais, cerimônias e vendas de indulgência. O protestantismo permitiu a cada ser humano encontrar a salvação por si mesmo, como indivíduo. A consciência individual do ser humano passou a ser o árbitro último do que é bom e verdadeiro. Assim, após a reforma luterana, que demandou uma fé abstrata, e após a revolução francesa, que naufragou devido ao despreparo das pessoas em lidar com as demandas da racionalidade, mas que permitiu o estabelecimento de leis capazes de tornar racional o estado, fez-se possível a criação de um estado racional na Alemanha, capaz de tornar possível ao indivíduo realizar-se de modo verdadeiramente livre em sua racionalidade reflexiva. É por isso que no mundo germânico as liberdades individuais se tornaram capazes de se encontrar, em uma síntese final, com a liberdade do absoluto. Pois quando o estado é racional, ser livre é ser capaz de adequar-se a ele! Para Hegel na sociedade racionalmente organizada do mundo germânico de seu tempo que a ideia da liberdade havia alcançado a sua consumação. Pois em um mundo racionalmente organizado, a liberdade subjetiva da racionalidade individual passa a coincidir com a liberdade objetiva da racionalidade do estado.

 

7

  

Passados pelo espírito subjetivo (tese) e por sua oposição no espírito objetivo (antítese) chegamos agora a sua superação conservadora: o espírito absoluto (síntese). Tal é o caso do espírito que se considera em si e por si mesmo e que tudo supera sem deixar nada fora de si. É ele a síntese do temporal com o eterno, do finito com o infinito, do particular com o universal. Mas a realização do espírito absoluto também deve se dar através de três subsequentes momentos dialéticos: o da arte, o da religião e o da filosofia.

   Vejamos o momento da arte (tese). Para Hegel ela é a revelação do divino na intuição sensível: a manifestação sensível do absoluto. Na arte a ideia se manifesta como forma sensível. A arte é melhor quando mais eficaz for essa intermediação. O belo da arte é, aliás, sempre superior ao belo da natureza, uma vez que a arte é produto do espírito.[17]

   A arte também se manifesta sob três formas dialéticas. A primeira, própria da arte oriental, foi a arte simbólica cultuada da Pérsia, Índia e Egito. A arquitetura foi a principal forma de arte simbólica. Ela se utilizava de elementos naturais como um leão para simbolizar a coragem, um pássaro para simbolizar a alma, a luz para simbolizar o divino. Mas por esse meio a ideia só pôde ser apresentada de forma distorcida, bizarra e grotesca[18], embora ele conceda que essa forma de arte possa ser também sublime. A superação antitética da arte oriental só se deu pela objetivação da ideia na arte clássica grega. Nessa forma de arte foi escolhida principalmente a escultura das formas humanas para representar o absoluto, como no caso de uma estátua do deus Apolo. Essas duas formas de arte, a simbólica e a clássica, só foram superadas pela arte romântica. As principais formas de arte romântica são para Hegel as da pintura, da música e, principalmente, a da poesia. Na poesia o que se expressava era uma mente que já se concebia como espírito infinito e que era muito mais complexa e sofisticada do que aquela que se expressou nas duas formas anteriores de arte. Através da arte romântica a arte começou a superar a natureza própria da arte, tornando-se arte-religião e quase que abandonando o elemento sensível.

   Como manifestação do espírito absoluto, a arte encontrou o seu oposto (antítese) na religião, que é o momento da pura objetividade. Aqui a intuição se espiritualiza na forma da representação do absoluto, na medida em que isso é possível. A religião encontra um desenvolvimento histórico que coincide com o desenvolvimento da ideia de Deus na consciência humana. Hegel também encontra nesse desenvolvimento três momentos dialéticos. O primeiro foi o da religião natural. Ele foi o momento da magia, do fetichismo, do simbolismo. Ele é para Hegel o momento das religiões orientais na China e na Índia. No segundo momento a ideia de Deus passou às religiões da liberdade, passando da substancialidade à individualidade espiritual. Nós o encontramos na religião persa e na egípcia. Finalmente encontramos as religiões da individualidade espiritual – o culto ao sublime entre os judeus, do belo entre os gregos e dos fins entre os romanos. Finalmente chegamos ao cristianismo, a religião mais alta, a religião absoluta. O cristianismo é a única religião que conseguiu satisfazer plenamente o objetivo de unir o homem ao divino, e dentro do cristianismo encontramos também uma evolução, que passou por um momento imagístico na Idade Média, chegando ao seu apogeu no momento conceptual do protestantismo.

   A síntese do momento subjetivo da arte com o momento objetivo da religião só pode ser encontrada na filosofia. Só na transparência da razão filosófica o espírito absoluto explicita-se a si mesmo por completo, de modo a alcançar sua inteira autoconsciência. Nela o absoluto não é mais nem intuído nem representado, vindo diretamente expresso no conceito. Também essa explicitação é dialética, evolvendo na história da filosofia tal como Hegel a interpreta. A história da filosofia toma aqui o lugar da auto-explicitação do absoluto. Por meio de tríades dialéticas apresentadas nas formas dos diversos sistemas filosóficos a ideia adquire um conhecimento cada vez maior de si mesma.

   Um primeiro momento foi o da filosofia dos pré-socráticos. Tales, ao considerar a água como o princípio, estava tomando o conceito de água pela primeira vez em um sentido abstrato. Sócrates é uma figura chave por ter adicionado à moralidade grega convencional um princípio de reflexão da consciência sobre si mesma – aquilo que poderia ser chamado de moralidade reflexiva. Contudo, assim como Antígona, Sócrates não encontrou respaldo para essa moralidade reflexiva na moralidade comunitária da pólis. Algo similar aconteceu com as filosofias de Platão e de Aristóteles... O verdadeiro estar em casa no mundo não será encontrado senão quando a procissão das filosofias cristãs e modernas tiver desembocado no próprio Hegel. É só nessa última filosofia que o espírito absoluto atinge a sua mais completa maturidade, tomando absoluta consciência de si mesmo. Eis como ele descreve a posição de sua própria filosofia como a culminação última do pensamento ocidental:

 

Até aqui chegou o espírito do mundo. E cada estágio toma sua forma própria no verdadeiro sistema da filosofia. Nada se perdeu, todos os princípios foram preservados, dado que em seu aspecto final a filosofia é a totalidade de suas formas. Essa ideia concreta é o resultado dos esforços do espírito durante quase vinte e cinco séculos de trabalho honesto no sentido de tornar-se objetivo para si mesmo, de conhecer-se a si mesmo: tantae molis erat, se ipsam cognoscere mentem. [19]

 

Depois de mim, teria dito Hegel, não haverá mais a necessidade de ser original.

 

8

 

Vejamos agora algumas objeções. A mais séria é contra qualquer forma de idealismo absoluto: o aparecimento e a ordem das representações sensíveis nunca é demonstrado como dependendo da mente ou espírito. Por isso pensamos que existe algo independente da mente que é a fonte dessas representações, algo fora da mente! Ou seja, aquilo que faz com que apliquemos nossas categorias não chega a ser nunca justificado como sendo de ordem mental. Além disso, se a mente forma o mundo ao trabalhar nele, então parece que ela precisa fazê-lo sobre um material que não é a própria mente.

   Há, obviamente, inúmeras objeções menores que podem ser levantadas, muitas vezes decorrentes do afã sistematizador da pretendida dialética universal de Hegel, que torna seus esquemas argumentativos forçados, artificiais e fantasiosos (virtude epistêmica nunca foi o forte do idealismo alemão). Um exemplo: a arte, a religião e a filosofia não culminaram uma depois da outra, como Hegel sugeriu e como seria de esperar se sua relação fosse realmente o produto de um desenvolvimento dialético. Sabemos apenas que a filosofia foi um fenômeno derivado posterior, que coexistiu com a arte e a religião, o que pode ser justificado por sua natureza derivada (cap. I, 8).

   Se queremos avaliar o modo como Hegel produziu sua filosofia precisamos recorrer ao nosso esquema da filosofia entendida como um sendo uma prática cultural derivada da prática científica (heurística), da prática artística (metafórica) e da prática religiosa (mística) (cap. I, sec. 8). A filosofia de Hegel não contém quase nada da prática científica. Ele não foi nenhum paladino da verdade. Sua motivação pende para os elementos estético e místico, pois ele estava sempre disposto a sacrificar a verdade pelos efeitos retóricos. E muito de sua filosofia impressiona mais pela tonalidade religiosa-oracular (a própria configuração sistemática grandiloquente). 

   Essa disposição esteticista e mística torna-se mais clara quanto comparamos Hegel com Hume. O último está mais próximo da arte e da ciência, mas de modo algum da religião e da mística. Daí ter ele desenvolvido argumentos feitos para impressionar seus leitores pelas conclusões inaceitáveis, em apelo a um efeito estético-imaginativo. Mas eles são também proveitosos pelo desafio que colocam para quem está interessado na verdade. Como o modelo de Hume é literário, ele não nos leva pelo nariz, dado que a arte é uma ilusão que se sabe tal. Afinal, ele apresenta argumentos claros que o conduzem ao paradoxo, deixando para nós mesmos escolher se os aceitamos ou não, além do trabalho de explicar porque os aceitamos ou não. Já Hegel segue um modelo retórico-místico-oracular, capaz de lembrar-nos das prédicas religiosas.

    Há, por fim, a questão da plausibilidade. Não há porque duvidar do progresso da ciência. Hegel viveu antes da descoberta da evolução natural por Darwin, que se faz por tentativa e erro e não é teleológica nem dialética. Ele viveu antes da descoberta dos princípios da termodinâmica e da cosmologia contemporânea, que mostrou ser a mente consciente um acaso ínfimo dentro do universo. Mesmo que essa mente consciente seja produto do universo e, nesse sentido, a sua consciência, ela não é um produto teleológico desse universo e isso basta para a rejeição do hegelianismo. Claro, nada garante que nossa ciência não possa ser ultrapassada por algo totalmente inesperado. Mas se tomarmos como base tudo o que hoje sabemos, tanto o hegelianismo quanto o idealismo alemão se tornaram posições especulativas extremamente implausíveis.

  

 

 



[1] Hegel: Fenomenologia do espírito, prefácio.

[2] Hegel: Filosofia do Direito, prefácio.

[3] Ver Ciência da Lógica (Wissenschaft der Logik), livro II, sec. 1, cap.2,  C.

[4] A construção do real na criança, p. 329 (Trad. Port. Rio de Janeiro: Zahar 1970.)

[5] Isso não deve ser entendido literalmente, pois como o mundo é para Hegel parte de Deus, ele não poderia tê-lo criado.

[6] Para Hegel a lógica investiga Deus como o pai, a filosofia da natureza investiga Deus incarnado, ou seja, como o Filho, e a filosofia do espírito investiga Deus como o Espírito Santo, o que resolveria filosoficamente o mistério da santíssima trindade! Ver Vorlesungen über die philosophie der Religion II (Werke vol. 12), Parte 3, I, 3.

[7] Ciência da Lógica (versão da Enciclopedia) parágrafos iniciais das seções 86, 87, 88.

[8] Hegel, Wissenschaft der Logik, livro II, cap. 3, sec. B. Ver também Justus Hartnack: An Introduction to Hegel’s Logic (Indianapolis: Hackett 1998) pp. 95-96.

[9] Algo assim foi observado por Simon Blackburn com respeito ao pós-modernismo. Ver Truth (Oxford: Oxford University Press 2005)

[10] Paul Edwards: “Heidegger Quest for Being”, in Philosophy 1989,  vol. 64, n. 250, pp. 437-470.

[11] Ibid. p. 443.

[12] Wittgenstein: Investigações filosóficas (Philosophische Untersuchungen 1953), Part II, p. 222.

[13] J. P. Sartre: O Ser e o nada (L’étre et le néant: Essay d’ontologie Phénoménologique 1945) parte II, cap. 3.

[14] Embora esse momento apareça na Enciclopedia, ele foi mais profundamente desenvolvido na mais influente obra de Hegel, a Fenomenologia do Espírito.

[15] Hegel: Die Verfassung Deutschlands, in Schriften zur Politik und Rechstsphilosophie ed. Georg Lasson, 2a ed. Leipzig 1923.

[16] Kant, Pela paz perpétua: um esboço filosófico (Zum ewigen Frieden: einer philosophischen Entwurf), 1795.

[17] G. W. F. Hegel: Curso de estética: o belo na arte (São Paulo: Martins Fontes 1996), I, Definições Gerais, 1.

[18] G. W. F. Hegel: Curso de estética: o belo na arte. Ibid. Parte II, seção 1 (a forma simbólica de arte).

[19] “Tão difícil era para a mente conhecer-se a si mesma”. Leituras de Hegel sobre a História da Filosofia. Seção III: Filosofia alemã recente. E. Resultado final.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

IDEALISMO ALEMÃO: FICHTE E SCHELLING (draft para texto introdutório)

 DRAFT PARA UM LIVRO...                                                                         


                                                                            XIII

O IDEALISMO ALEMÃO

 

A revolução cartesiana esgotou-se com o iluminismo alemão representado por Kant. Do iluminismo, com a sua crença nos poderes ilimitados da razão, resultaram a revolução francesa, o reino do terror e as guerras napoleônicas. De seu esgotamento veio o reestabelecimento das monarquias europeias, mesmo admitindo a ascensão da classe burguesa. O romantismo veio como reação ao iluminismo, revalorizando a tradição, a confiança nos instintos, nas paixões, na vida interior e na imaginação. Junto a ele surgiu em filosofia o idealismo alemão, instaurando uma filosofia extremamente especulativa de inspiração teológica. Através dele o paradigma cartesiano, centrado na epistemologia, cedeu lugar a um idealismo que permitia aos filósofos se concentrarem diretamente em questões de filosofia prática, dando opiniões filosóficas sobre praticamente o que quiserem, graças às artimanhas da dialética. Os principais filósofos desse período foram Fichte, Schelling e Hegel. Quero me concentrar em uma exposição de Hegel, o mais importante filósofo do idealismo alemão. Mas para melhor compreendê-lo será necessário um breve excurso sobre o pensamento de Fichte e Schelling, sem os quais Hegel não teria existido.

 

Fichte. A ideia originadora do idealismo alemão foi apresentada por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Ele encontrou uma inconsistência fundamental no sistema kantiano, que dizia respeito à coisa-em-si, ao mundo noumênico. A coisa-em-si é o que deve permanecer inacessível ao entendimento, desconhecido. Deve ser assim porque ela está além do alcance da intuição sensível e das categorias do entendimento, que nos permitem ter acesso cognitivo ao mundo empírico. Contudo, a coisa-em-si é o que determina o mundo fenomênico, justificando assim a sua existência exterior e independente de nós. O problema encontrado por Fichte é que se a coisa-em-si determina o mundo fenomênico, ela só pode fazê-lo causalmente, e se nós sabemos disso é porque aplicamos a categoria de causalidade à coisa em si. Ora, ao fazermos isso estamos aplicando as categorias para além do domínio dos fenômenos, o que é proibido pelo sistema da crítica da razão pura. Trata-se de uma inconsistência fundamental.

   Fichte encontrou-se com Kant para discutir o assunto, mas não sabemos do conteúdo dessa conversação. Tudo o que sabemos é que a sua solução foi livrar-se da coisa-em-si. Para ele a coisa-em-si era uma suposição desnecessária, uma bagagem dispensável, e por assumir sua existência o sistema kantiano era dogmático. A solução seria aceitar o que ficou sendo chamado de idealismo absoluto: a inteira realidade objetiva passou a ser entendida como sendo mental. O idealismo absoluto passou a ser o nome dado ao movimento filosófico que teve como principais atores Fichte, Schelling e Hegel.

   Embora Fichte rejeitasse a coisa-em-si, ele não rejeitou seu contraponto noumênico, o Eu transcendental. Para Kant existe um eu empírico semelhante ao considerado por Hume, constituído por fenômenos subjetivamente dados. Mas para ele existe também um “eu” do “eu penso”, responsável pela unidade da consciência e inacessível à experiência, parecendo levar ao contraponto subjetivo da coisa-em-si, que é o Eu transcendental dotado de atividade. O que Fichte fez em sua obra A Doutrina da Ciência[1] foi propor que nossa intuição do Eu seja em última análise elevada ao nível transindividual de uma intuição intelectual da atividade criativa do próprio Deus por ele chamado de o Eu puro ou Eu absoluto.

   Se isso for aceito fica aberto o espaço para a construção do sistema de Fichte a partir de um princípio único. O Eu transcendental, o Eu puro ou absoluto é colocado no lugar de Deus. Esse Eu absoluto é reconhecido como pura atividade autoponente, ou seja, como uma atividade que se produz a si mesma em um processo dialético no qual à tese será oposta a uma antítese que, por oposição à tese produz uma síntese. Daí seu primeiro princípio, o princípio absolutamente incondicionado de toda a experiência, que é:

 

TESE: O Eu se põe simplesmente a si mesmo. (Das Ich setzt schlechthin sich selbst).[2]

 

Dizer que o Eu puro se põe a si mesmo significa aqui dizer que ele toma consciência de si mesmo através de contínua autocriação. Essa autoconsciência que o Eu tem de si é um puro agir. A ação pela qual o Eu se põe constitui-se ela mesma em seu produto: ela é uma ação-feito (Tathandlung). Com efeito, o Eu nada mais é, para Fichte, do que uma infinita atividade autoprodutora.

   Esse princípio de autoponência do Eu é resumido por Fichte nas fórmulas “Eu sou”, “Eu sou Eu” e “Eu = Eu”. Dela decorre, por abstração do conteúdo, o próprio princípio lógico da identidade: “A = A”. O pôr do eu instaura, pois, a própria lógica. Conscientizando-se da realidade formada, o pôr do Eu instaura também a primeira das categorias fichteanas: a categoria da realidade.

   Esse primeiro princípio exprime apenas um aspecto da autoponência, pois ele é uma tese a desdobrar-se necessária e simultaneamente em antítese e síntese. Considerando que a natureza do Eu é um agir, e que todo o agir é um agir sobre algo, a sua autoconsciência só se realizará se ela for ao mesmo tempo oposição a uma alteridade. Para que possa se pôr a si mesmo como Eu, o Eu deve produzir, através da imaginação produtiva irrefletida, o Não-Eu dentro de si mesmo, seu objeto indeterminado. Daí o segundo princípio fichteano, a antítese:

 

ANTÍTESE: O Eu opõe a si um Não-Eu (Das Ich setzt sich schlechthin entgegen ein Nicht-Ich).[3]

 

Nesse princípio, o Não-Eu infinito é inconscientemente posto pelo Eu infinito. Com isso se origina o princípio lógico da contradição: “A ≠ de não-A”, e a categoria aqui instaurada é a da negação.

   Contudo, sendo o Eu e o não-Eu infinitos, essa dupla infinitude deveria fazer com que eles se anulassem um ao outro! Daí que a instabilidade da antítese demanda a sua resolução através de uma síntese, que é apresentada pelo terceiro princípio fichteano:

 

SÍNTESE: Eu oponho no Eu ao Eu divisível o Não-Eu divisível.  (Ich setze im Ich dem teilbaren Ich ein telbares Nicht-Ich entgegen).[4]

 

Para Fichte o Eu e o Não-Eu infinitos se aniquilariam um ao outro se não originassem entidades finitas em seu interior, limitando-se mutuamente. Tratam-se do Eu divisível, ou seja, da subjetividade limitada, fenomenal (na verdade da multiplicidade de nossos eus pessoais) limitado pelo não-Eu divisível, como objetividade limitada, mundo externo, natureza, o qual é limitado pelo Eu divisível.  (O princípio lógico que essa ação-feito exemplifica e instaura é “A = em parte não-A; não-A = em parte A”, e a categoria correspondente é a de limitação.)

    A grande objeção à ideia de que o Eu produz o não-Eu seria a concepção do realismo ingênuo, segundo a qual temos a mais sólida convicção de que os objetos possuem realidade fora de nós mesmos. A resposta – aceitável do ponto de vista especulativo – está na teoria fichteana da imaginação produtiva.[5] Segundo essa teoria, o não-Eu é posto originariamente pela atividade independente da imaginação produtiva, que, ao produzir o objeto, o faz de maneira irrefletida e inconsciente. Disso resulta que a nossa consciência natural e irrefletida apreende o mundo externo como independente do Eu e alheio a ele. Só a reflexão filosófica nos faz compreender que a autoconsciência deve ser o princípio único, e que ela só existe pela produção da alteridade a partir de si mesma, o que nos assegura a falsidade da concepção do realismo ingênuo.

   Lendo-se a Doutrina da Ciência pode-se ter a impressão de que o Eu puro seja de natureza individual, sendo um Eu diferente para cada um de nós. Mas isso não é possível, pois se assim fosse então o Eu de cada sujeito individual produziria um mundo sem comunicação com os outros, o que nos conduziria ao solipsismo. Na verdade, o Eu autoponente de Fichte é um Eu único, ao qual pertence o eu fenomenal de cada sujeito individual. Essa suposição é necessária para garantir a possibilidade de um mundo externo comum, acerca do qual possamos formar juízos sobre cuja verdade sejamos capazes de concordância intersubjetiva: se as pessoas A e B veem uma mesma árvore, ela é a mesma porque o sujeito último que a concebe e conhece, o Eu puro, é um só.

  Toda a ênfase de Fichte está na ação. Para ele, a atividade pela qual o Eu limita, determina o não-Eu, é o agir prático-moral, que é a atividade infinita do sujeito sobre o objeto. Já a atividade pela qual o Eu se deixa determinar pelo Não-Eu é o agir teorético-cognitivo, aquele pelo qual se adquire consciência do objeto produzido. Como para Fichte a essência do sujeito é atividade, e é ele quem produz o não-Eu, torna-se claro porque para ele a razão prática detém o primado sobre a razão teórica.

   Cumpre finalmente assinalar que para Fichte a formação da alteridade desencadeia um movimento recuperador por parte do Eu limitado, no qual ele busca reapropriar-se da identidade originária com o Eu puro em uma tarefa infinita, sendo nisso que consiste também a destinação humana, e, na intensidade do empenho nessa direção, seu valor moral.

   A mais importante consequência histórica do idealismo absoluto proposto por Fichte é que, se tomado a sério, ele põe um ponto final na revolução cartesiana. Para a filosofia moderna de Descartes a Kant (com exceção de Spinoza) há um abismo a ser transposto entre o sujeito e o objeto do conhecimento, uma vez que ambos são heterogêneos. Com a aceitação do idealismo absoluto esse abismo desaparece, uma vez que ambos se tornam homogêneos. Essa concepção irá influir daí para frente naqueles filósofos que aceitarem a cartada radical do idealismo.

   Que dizer da construção intelectual acima resumida? O argumento de Fichte é escassamente inteligível, a começar pelo fato de que termos fundamentais como ‘ponência’ (setzen) não são suficientemente explicados. Contudo, o que ele diz não é totalmente destituído de sentido, é indicativo, sugestivo. Qual é o truque? Trata-se simplesmente do convite a um esforço imaginativo: nós nos colocamos no lugar do Eu absoluto de Fichte e nos concebemos como se fossemos seres todo-poderosos criando o mundo e a nós mesmos a partir do nada. Com isso o que fazemos é magnificar a nossa consciência trivial de que somos seres ativos e que só somos capazes de nos conhecer através da interação com outras pessoas, pois só assim conhecemos nossas potencialidades e limites, etc. Contudo, a sugestão metafisicamente selvagem de que Deus fez o mundo pela imaginação produtiva de modo inconsciente para depois redescobri-lo como parte de si mesmo é ainda muito mais gratuita do que a hipótese da incognoscível coisa em si criticada por Fichte. Para um filósofo criado dentro da atmosfera do romantismo alemão era justo pensar o mundo do ponto de vista do sujeito ativo, atirando-se a ele pela força da paixão, como se ele originariamente lhe pertencesse. Mas essa forma extrema de evasão não demorou muito para deixar de ser sedutora e a afigurar-se como um conto de fadas metafísico.

 

2

 

Eu-comunitário. Segundo consta, uma vez Fichte teria dito aos seus alunos: “Pensem nessa parede; pensem agora em quem pensou essa parede; pensem agora em quem pensou em quem pensou essa parede...” Esse experimento evidencia que o Eu que objetiva encontra-se sempre acima e além de qualquer eu empírico por ele objetivado, não podendo jamais ser alcançado pela experiência. O mesmo fez Wittgenstein ao comparar o olho e o campo visual com o Eu e a experiência que ele é capaz de ter. O Eu se encontra no limite da experiência empírica, assim como o olho se encontra no limite do campo visual.[6] O olho não é capaz de se experienciar, mas somos capazes de saber de sua existência já pela atividade de ver; do mesmo modo, o Eu Fichteano não é capaz de se experienciar, embora sejamos capazes de saber de sua existência pela sua atividade experienciadora do mundo. A conclusão desses filósofos, e mesmo a de Kant, é a de que existe alguma coisa como um Eu transcendental, puro, absoluto, que tudo experiencia, mas que é estruturalmente incapaz de ser experienciado: o correspondente subjetivo da coisa-em-si.

   É possível evidenciar que esse suposto Eu transcendental que paira acima e além da experiência é uma ilusão metafísica. Hume pode aqui ajudar. Ele escreveu sobre o eu empírico como um feixe de perceptos (eventos mentais) que se sucedem uns aos outros com extraordinária rapidez e que é sempre diverso... Mas ele também falou do eu como sendo uma comunidade de perceptos, da qual alguns membros de tempos em tempos saem, enquanto outros entram, mas que mesmo assim pode ser identificada como sendo a mesma. Ora, a questão é se não poderíamos entender esse eu empírico comunitário como sendo o mesmo que é enganosamente tomado como sendo o Eu transcendental? A razão é que esse eu-comunitário, tal como o Eu transcendental, como veremos, não parece poder ser objetivado.

   Podemos elaborar essa ideia do eu-comunitário do seguinte modo. Temos experiências de características de nós mesmos que parecem permanentes. Uma pessoa tem dificuldades para guardar nomes próprios, outra tem facilidade para guardar números. Essas não são características importantes. Mas há disposições emocionais que são identificadoras de uma pessoa, assim como desejos, gostos, capacidades, habilidades, memórias. Uma pessoa pode gostar de matemática, ser passional, ser melancólica, pode saber epistemologia, certamente possui memórias pessoais de sua infância e de experiências marcantes. Somos capazes de ter experiências introspectivas de tudo isso. A experiência que vez que outra temos dessa e daquela característica recorrente de nós mesmos nos permite formar uma auto-imagem de nós como sujeitos psicológicos. Se tais características puderem ser simplificadamente designadas pelo conjunto {C1, C2, C3... Cn}, a auto-imagem ganha pela introspecção dessas características pode ser simplificadamente designada pelas representações correspondentes, digamos: {R1, R2, R3... Rn}.

   Um ponto importante a ser notado é que embora sejamos capazes de ter a experiência de uma ou outra dessas características em diferentes momentos, assim como de suas repetições em contextos experienciais semelhantes, muitas vezes com a mediação das reações de outras pessoas, não somos certamente capazes de ter a experiência do todo. Uma auto-imagem é formada aos poucos, com base na repetição de experiências em contextos similares. Assim, uma pessoa pode ter a experiência de C2 de modo a confirmar a representação R2 de sua auto-imagem {R1, R2, R3... Rn}, mas não será nunca capaz de ter uma representação completa de seu eu-comunitário {C1, C2, C3... Cn}. A razão disso é que as diferentes características que constituem o eu-comunitário se atualizam em ocasiões e contextos diferentes. Em resumo: embora sejamos capazes de atualizar nossa auto-imagem em um esforço no sentido de descrever o eu-comunitário, esse mesmo eu não pode ser como um todo atualizado diante de nós. É impossível para alguém ter a experiência de seu eu-comunitário como um todo em um dado momento, simplesmente pelo fato de que tal experiência exigiria a presença de contextos muito diversos que não podem ser dados simultaneamente. Aqui parece que o eu-comunitário começa a se parecer com o Eu transcendental.

   Alguém poderia agora apresentar a seguinte objeção: Não podemos identificar o eu-comunitário com o Eu transcendental, pois enquanto o eu comunitário pode ser parcialmente experienciado em tempos e contextos diferentes, de modo a que se possa formar uma auto-imagem, o eu transcendental não é capaz de ser experienciado de maneira alguma. O melhor exemplo para demonstrar isso é talvez o do cogito cartesiano. Considere o proferimento “eu penso, eu existo” feito no presente. Quando realizo esse proferimento eu não penso absolutamente nada de minha auto-imagem. Tudo o que possuo é realmente a consciência de mim mesmo como a fonte da atividade de pensar. Do mesmo modo, quando realizo um proferimento qualquer no presente, digamos, “Eu estou vendo um muro”, é óbvio que não faço nenhuma introspecção de características que me são próprias, nem sequer de uma só delas. Logo, o Eu transcendental que um filósofo como Fichte poderia inferir do “eu penso” ou do “eu vejo um muro” não deve ter nada a ver com o eu-comunitário.

   A resposta a essa objeção é que muitas vezes temos a consciência de algo que não atualizamos na consciência, e que esse pode bem ser o caso do “eu” presente no cogito ou em casos similares. Imagine, por exemplo, que alguém tenha convidado seis pessoas para um almoço, mas não seja capaz de se recordar de quem foi a sexta pessoa. Mesmo assim, ela é capaz de se recordar que foram seis pessoas. Uma pessoa pode saber que é capaz de resolver uma equação de segundo grau, o que não faz há anos, mas para isso não precisa atualizar o procedimento de resolução. Os exemplos de casos em que se sabe que se é capaz de atualizar uma experiência, mas que não precisa fazê-lo para saber disso, são muitos. A referência ao sexto convidado, assim como a referência ao procedimento de resolução conhecido é meramente implícita. Essa constatação nos permite fazer a seguinte proposta: uma pessoa não precisa ser capaz de atualizar nada do seu eu-comunitário para saber que está se referindo a ele, logo, pode bem ser que a referência ao eu-comunitário no caso do “eu penso” e em casos similares seja apenas implícita.

   Uma consequência da proposta acima é que uma pessoa irreflexiva que não possui nenhuma auto-imagem também não será capaz de dar sentido a proferimentos nos quais ela usa o pronome “eu”, uma vez que ela não será capaz de fazer referência implícita a qualquer coisa que se assemelhe a um eu-comunitário. Ou seja: é exatamente porque já temos formada alguma ideia de nós mesmos que somos capazes de dar sentido a proferimentos do tipo “eu penso”. Uma criança capaz de utilizar o pronome pessoal “eu” já precisa possuir alguma forma de auto-imagem, caso contrário não seria capaz de dar sentido à palavra.[7] como algo mais do que “o emissor da palavra “eu””.

   Se essa proposta for correta, então o Eu transcendental, o Eu puro, o Eu absoluto, não passam de ilusões metafísicas produzidas pelo desejo de encontrar algo de permanente e imaterial na subjetividade humana, alguma indicação metafísica da existência da alma. A filosofia cristã é uma maneira intelectualizada de reafirmar o ideal ascético.

 

2

 

Schelling. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi colega de Hegel e de Hölderlin no seminário teológico de Tübingen. Ele foi o criador de uma filosofia da natureza de fundo teológico.[8] Seguindo os passos de Fichte ele adotou o idealismo. Mas ao invés de considerar como absoluto o Eu puro, ele decidiu considerá-lo uma instância neutra, que ele chamou de absoluto como indiferença. O absoluto seria a fusão perfeita de todos os opostos, permanecendo homogeneamente subjacente a tudo o que existe. É dessa indiferença que brotam as dualidades. O absoluto só se diferencia a partir do surgimento da consciência. A natureza, por sua vez, é o conjunto das esferas finitas que se formam na esfera infinita do absoluto indiferenciado. A natureza é para ele espírito visível, enquanto o espírito é a natureza invisível.

  Schelling entendeu a natureza como um processo que se desenvolve dialeticamente em direção a uma complexidade cada vez maior e tentou mapeá-lo. A tese é uma infinita expansão, produtora do crescimento e da vida. Ela é seguida de um desequilíbrio que conduz à sua antítese, que é a contração infinita, produtora da decadência e da morte. Desse novo desequilíbrio é gerada a síntese, a maior delas sendo a autoconsciência. Através de movimentos dialéticos a natureza gera a consciência de si própria nos sujeitos humanos. O absoluto primeiro se objetiva na natureza e depois retorna a si mesmo pela razão reflexiva dos seres humanos. Nesse processo, as forças do amor e do ódio demandam especial consideração. A força do amor é a de Eros, da tese, da expansão, enquanto a força do ódio é a da antítese, da contração. O princípio da expansão é, porém, maior que o da contração, caso contrário o universo já teria desaparecido e não estaríamos em um contínuo desenvolvimento em direção à maior complexidade. Daí porque o amor é superior ao ódio. É dessa superioridade do amor sobre o ódio que advém a vida moral. A cultura, a arte, a religião e a mitologia, são expressões do movimento dialético pelo qual a civilização deve emergir como força expansiva. É aqui, aliás, que a cultura alemã emerge como força expansiva, em contraposição à força de contração da cultura inglesa, coarctada da natureza por seu empirismo, utilitarismo e materialismo. (Schelling pode ser situado nos primórdios do nacionalismo germânico.) A natureza deverá no final atingir completa reunificação quando, através de nós, tiver tomado consciência de si mesma como um todo na forma do Eu absoluto.

   Não pretendo me adentrar aqui nos labirínticos meandros da filosofia de Schelling, que construiu um variado e complexo sistema orgânico, no qual buscava considerar tudo em relação a tudo. Apesar de não consiga ver em seu sistema muito mais do que uma embolada poético-argumentativa pré-darwiniana, reconheço a existência de pontos positivos. Um deles foi a ênfase no inconsciente, mas tarde detalhadamente explorado por Freud. Outro foi o de ter salientado a importância do amor como princípio construtivo necessário ao comportamento moral, embora eu prefira desmistificá-lo como dizendo respeito ao Eros freudiano como pulsão de preservação da espécie. Ainda outro ponto positivo foi a ênfase ecológica. Para ele a natureza e a humanidade são um e o mesmo. A ideia de que somos partes da natureza e que uma separação violenta dela pode significar a morte é perfeitamente atual. Fichte pode ser lembrado como um filósofo que tentou mostrar a essencialidade da integração com a natureza como realização de nosso estar no mundo como seres humanos.



[1] J. G. Fichte: Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre, Hamburg 1988 (1794).

[2] J. G. Fichte: Wissenschaftslehre, parte 1, sec. 6.

[3]  J. G. Fichte: Ibid., par. 2, sec 10.

[4]  J. G. Fichte; Ibid., par. 3 sec. D.

[5]  J. G. Fichte, Ibid., Sintese E, p. 66 e ss.

[6]  Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus 5.632-5.6331.

[7] Note-se que a criança pode usar o pronome para se referir apenas ao seu emissor físico, evitando o recurso a um eu subjetivo, como no proferimento “Índio quer apito”.

[8] Schelling escreveu muito, mas seus livros mais infuentes foram Ideen zu einer Philosophie der Natur (1797) e o System des Tranzendentalen Idealismus (1800).