Parte do draft do livro "Introdução histórica à filosofia"...
I
OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA
A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 500 anos antes
de Cristo. Mas a filosofia enquanto tal é muito mais antiga. Para alguns ela
nasceu na China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o
chamado Livro das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria
oracular redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras.
Para outros ela teria nascido na Índia há cerca de 1500 anos antes de Cristo,
originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal
objetivo era orientar a vida humana.
A filosofia, tanto ocidental
quanto a oriental, teve origens religiosas. Como resultado disso temos uma incômoda
confusão, ainda hoje comum entre leigos, entre filosofia e sabedoria de vida. A
filosofia acadêmica, contudo, como resultado de uma especulação coletiva de
comunidades de conhecedores, sedimentada sobre uma tradição milenar, pouco tem
a ver com sabedoria de vida, tendo se tornado hoje uma investigação
aparentemente esotérica e inacessível ao público leigo.
É interessante lembrar nesse
contexto a opinião de Hegel, para quem a filosofia, tal como hoje a concebemos,
se originou realmente na Grécia antiga e não no oriente. A razão por ele aventada
é que a filosofia oriental não se diferenciava suficientemente da religião. Com efeito, essa filosofia
se encontrava mais próxima de uma forma de sabedoria mística, de um
aconselhamento sobre a arte do bem-viver, de uma forma elevada de autoajuda. Em
contraste com isso, a filosofia nascida com os filósofos pré-socráticos se
ocupava de argumentos críticos desenvolvidos por pessoas que conheciam bem a
ciência da época. Essas pessoas buscavam substituir o legado do pensamento
mitológico por um questionamento especulativo que prefigurava o pensamento
científico. A opinião de Hegel pode ser exagerada, mas há nela algo de
verdadeiro.
Para entender o nascimento da
filosofia ocidental precisamos considerar o pensamento dos filósofos
pré-socráticos, assim chamados por terem aparecido antes de Sócrates e por
terem preocupações filosóficas cosmológicas em geral diferentes das
preocupações essencialmente morais de Sócrates. Eles foram os primeiros a terem
surgido na Grécia, em um período que foi do século VI ao século V antes de
Cristo. O principal objetivo desses filósofos era encontrar um princípio
originador e sustentador de tudo o que existe, a assim chamada arché.
Esse princípio pertencia à natureza (physis), daí o naturalismo dos
pré-socráticos. Na época a Grécia importava a ciência nascente do Egito e da
Babilônia e os filósofos pré-socráticos eram bons cientistas, conhecendo
matemática, geometria, engenharia, astronomia. Em razão dessa base científica,
o pensamento deles, embora incluindo algum elemento místico, caracterizava-se
por um rompimento com o pensamento mitológico que os antecedeu. Seu projeto
comum era o de substituir as explicações mitológicas da natureza e de suas anomalias
por princípios especulativos que pelo menos tivessem a forma de
princípios científicos, uma vez que em tais domínios a ciência como ciência era
impossível.
1
Os milesianos. O primeiro pré-socrático foi o filósofo jônico Tales de Mileto (647-524
a.C.). Ele também foi um astrônomo e matemático, tendo previsto um eclipse solar
no ano de 585 a.C. Ele acreditava que a água fosse a arché, o princípio
de todas as coisas, posto que a vida nasce das coisas úmidas. O princípio água
coincidia com o divino, donde tudo se encontra pleno de deuses.
Tales foi a primeira pessoa a
ter a ideia de uma unidade na multiplicidade de tudo o que existe, a intuição
original de que tudo é um, o que significa dizer que
o universo possui uma unidade constitutiva à qual nós podemos, em princípio,
ter acesso cognitivo. O esforço no sentido de obter uma compreensão unificadora
de todas as coisas foi uma característica da filosofia pré-socrática e também
dos grandes sistemas da tradição filosófica ocidental.
A busca da unidade na
multiplicidade tem sido em nossa época reforçada através da noção de consiliência.
Ela consiste, no entender de Susan Haack, na assunção da existência de uma
unidade na realidade. Essa assunção é essencial
à toda investigação. Ela faz com que através da investigação nós possamos admitir
que diferentes ideias, caso verdadeiras, sejam capazes de se complementar umas
às outras, reforçando-se assim em sua plausibilidade. A noção vale para as
ciências, mas pode valer também para a filosofia.
Tales foi sucedido por outros dois
filósofos Jônicos mais jovens do que ele: Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro
sugeriu que o mundo fosse resultado de um elemento indefinido ou, mais
literalmente, do ápeiron, que se traduz como o ilimitado. Essa é
uma ideia importante por tornar o princípio explicativo das coisas, pela
primeira vez na história da filosofia, algo não perceptível aos sentidos.
Anaximandro (610-546 a.C.) foi
responsável pela ideia de que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros,
que não cai nem para um lado nem para o outro, graças ao equilíbrio das forças.
O filósofo da ciência Karl Popper viu nisso uma antecipação do conceito de
inércia e até mesmo o da gravitação. A filosofia dos
pré-socráticos atuava entre a mitologia e a ciência e, às vezes, como uma clara
antecipação da última.
Anaxímenes (599-524 a.C.), por
sua vez, sugeriu que o princípio originador e constitutivo fosse o ar. Afinal,
não podemos permanecer vivos sem respirarmos. E disso ele supôs que o mundo
inteiro, tal como um ser vivo, também fosse dependente da existência do ar para
subsistir. Como explicou em um dos fragmentos:
Como nossa alma, que é ar, nos governa e mantem
unidos, assim também o vento e o ar, que são o mesmo, mantêm unido o universo
inteiro.
Anaxágoras (500-428 a.C.), nascido na Jônia, foi outro importante
filósofo pré-socrático. Ele é visto como o introdutor do conceito de mente em
filosofia. Ele entendia a arché como sendo o nous, ou seja, a
mente ou pensamento. Para ele a mente deve ser algo que embora sendo material é
absolutamente puro:
A mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo
o conhecimento de todas as coisas e o maior poder.
A mente seria uma força infinita que, agindo sobre a matéria informe, dá
origem a tudo o que existe nesse mundo.
Anaxágoras foi também o
defensor da versão pré-socrática da teoria do Big-Bang. Segundo ele, no começo
todo o universo se encontrava comprimido em um átomo primordial:
Todas as coisas estavam juntas, infinitamente pequenas
em número e pequenez, pois o pequeno era infinitamente pequeno. E como estava
tudo unido nada era reconhecível devido à pequenez.
Para Anaxágoras esse ínfimo átomo era como que um plasma indiviso, posto
que misturava tudo no infinitamente pequeno, fazendo com que nada mais fosse
distinguível. Esse átomo primordial começou a girar com força cada vez maior,
jogando para fora de si o éter e o ar e formando as estrelas, o sol e a lua.
Essa rotação fez com que os elementos se separassem, mas isso nunca aconteceu
por completo, de modo que cada coisa preserva em si algo de todas as demais
(atualmente dizemos que também possuímos em nossos corpos átomos das estrelas).
Essa expansão do universo existe hoje e continuará existindo sempre. E com isso
também outros mundos semelhantes ao nosso podem ter sido gerados, com sol e lua
próprios e mesmo habitados por criaturas tão inteligentes quanto nós!
Em meio a tudo isso a única coisa que continua
a mesma e que tudo move é a mente. Nesse último ponto seu Big-Bang difere do
nosso, uma vez que preferimos substituir seu conceito animista de mente pelo de
leis fundamentais da natureza.
2
Princípios múltiplos. Vários filósofos pré-socráticos entenderam a arché
como sendo múltipla. Esse foi o caso dos seguidores de Pitágoras, que tendo
percebido que tudo na natureza possuía quantidades e formas, concluíram que os
números eram o princípio fundamentador do universo. Eles seriam o fundamento,
começando do número um, que é base da aritmética, e do ponto, que é base da
geometria. Com base na matemática os filósofos pitagóricos formaram uma seita que
objetivava explicar não só o universo, mas também a vida humana. Eles
acreditavam na doutrina da transmigração das almas, que acabou por influenciar
o pensamento de Platão.
Também acreditavam em
princípios múltiplos os filósofos atomistas Leucipo e seu discípulo Demócrito
(460-370 a.C.), do qual restaram muitos fragmentos, além de Epicuro (341-270
a.C.), um atomista tardio da época helenista. Para Demócrito o mundo é constituído
do que ele chamou de átomos (a-tomos), que são partículas invisíveis,
indivisíveis, com solidez e impenetrabilidade, tamanhos e formas diversas e
infinitos em número. Eles são os elementos constitutivos de todas as coisas
visíveis. Afora os átomos, só o que existe é o espaço ou vazio. Os átomos se
movem e se chocam uns contra os outros segundo leis causais deterministas. Como
consequência, os atomistas foram os primeiros filósofos distintamente
materialistas. Mas isso não os impedia de acreditarem no espírito, pois as
almas humanas poderiam ser entendidas como constituídas de átomos extremamente
sutis. Assim, quando sonhamos com um antepassado morto pode ser porque os
átomos constitutivos de suas almas penetraram em nossas cabeças enquanto
estávamos dormindo, interagido com os átomos de nossas almas.
É importante notar que os
atomistas estavam antecipando a possibilidade de descobertas científicas que
ocorreram mais de dois mil anos depois. Elas foram o que em sua memória
decidimos chamar de átomos, que compõem a tabela periódica, mais tarde
substituídos por partículas subatômicas indivisíveis chamadas de elétrons,
quarks, gluons e fótons. Mesmo que eles de maneira alguma pudessem antecipar a
física das partículas tal como ela é hoje estabelecida, eles anteciparam a
ideia de que o universo poderia ser formado por partículas invisíveis discretas,
móveis e possuidoras de massa. Não deixa de ser impressionante que após mais de
dois mil anos a ciência tenha demonstrado que as especulações dos atomistas gregos
são capazes de receber fundamentação científica.
Além das especulações
cosmológicas, a maior parte dos fragmentos deixados por Demócrito foram instrutivos
ditames morais, muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:
É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem acredita tê-lo.
Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.
Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal, porém, atinge mesmo
aquele que não o procura.
A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada pelo entendimento.
Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma
virtuosa é o universo.
Em verdade, porém, nada sabemos, pois no abismo encontra-se a verdade.
É curioso notar que esses dísticos valem hoje tanto quanto valeram há 2.500
anos. Parece que o ser humano em alguns aspectos pouco ou nada aprendeu com os
erros de seus antepassados.
Um outro pré-socrático
pluralista que merece ser citado foi Empédocles de Agrigento (florescido em 450
a.C.), um filósofo bastante vaidoso que se considerava um deus e que segundo a
lenda deu fim a sua vida atirando-se na cratera do Etna. Ele foi um precursor
de Darwin ao sugerir especulativamente que as espécies se desenvolvem através
de uma luta entre seres vivos que por acaso nascem com as mais diversas
características, o que faz com que só os mais aptos sobrevivam. Para ele os
seres vivos se originaram do mar e o ser humano, em tempos primevos, deveria
ser muito diferente, considerando que hoje ele precisa de anos de completa
dependência dos pais para poder sobreviver por si mesmo, diversamente dos
animais.
Empédocles foi o inventor da
ideia de que o universo é constituído por quatro elementos (raízes) que ele
encontrou em filósofos anteriores. Esses elementos originários são a água
(Tales), o ar (Anaxímenes), o fogo (Heráclito) e a terra (Xenófanes). Eles são imutáveis
e combinam-se uns aos outros de modo a formar o universo visível. Essa teoria
foi aceita até o século XVII, quando químicos como Robert Boyle fizeram-na cair
por terra.
Para Empédocles atuam sobre os
quatro elementos duas forças físicas, que ele chamou de harmonia (o amor) e
discórdia (o ódio). A ação alternada dessas duas forças faz com que o universo
sofra um processo cíclico de mudança através do qual de tempos em tempos tudo
se repete. Assim, no início de um ciclo os elementos se encontram todos
perfeitamente misturados, os objetos não existem e a força imperante é a da
harmonia em toda a esfera do mundo, que forma um todo homogêneo. Mas a força da
discórdia logo penetra na esfera do mundo e começa a agir separando os
elementos e formando os objetos hoje conhecidos, até quando terra, ar, água e
fogo se tornam completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começa
a agir novamente, misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o
retorno ao estágio inicial de perfeição, quando inicia-se um novo ciclo pela
força da discórdia... Em seu tempo Empédocles acreditava que o mundo se
encontrava em um estágio intermediário, em que as forças da discórdia agiam de
maneira cada vez efetiva.
A doutrina cíclica de
Empédocles foi sugerida pela observação dos acontecimentos cíclicos no mundo. As
estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e darem frutos na
primavera e no verão, para então perderem as suas folhas no outono secando no
inverno, só para florescerem de novo no próximo ano. Os seres vivos são gerados
sem forma, crescendo e se diferenciando até envelhecer e, na morte, tornam-se
outra vez matéria informe.
A ideia de um mundo cíclico foi
famosamente reapresentada por Nietzsche sob a forma do que ele chamou de o
eterno retorno. Mas ele o entendia como um experimento psicológico para testar
a autenticidade de nossas atitudes perante a vida. Para tal ele imaginou que
as nossas vidas devessem se repetir identicamente nos mais ínfimos detalhes um
número infinito de vezes. Se alguém aprovasse o eterno retorno, querendo que
cada experiência de sua vida, cada prazer e desprazer, cada pensamento e
decisão, retornasse outra vez e assim infinitamente, essa seria a prova de uma
atitude absolutamente corajosa diante da existência.
Finalmente, a ideia de um
mundo cíclico nada tem assim de tão absurda. Ela tem sido presente na
cosmologia contemporânea: para alguns astrofísicos o Big-Bang deverá ser
seguido pelo Big-Crunch e assim sucessivamente. Existe, pois, até mesmo
uma versão atual daquilo que Empédocles propôs de forma puramente especulativa.
3
Heráclito. Quero me deter em Heráclito e Parmênides, uma vez que eles foram os mais
impressionantes filósofos pré-socráticos. Na antiguidade eles eram considerados
opostos, pois Heráclito enfatizava a mudança e Parmênides a imobilidade do Ser.
Mas veremos que nem por isso eles se opõem tão completamente, posto que por detrás
da mudança Heráclito enfatiza a unidade da razão, que pode ser comparada ao Ser
de Parmênides.
Heráclito de Éfeso (florescimento
500 a.C.), como Nietzsche e Wittgenstein, foi um filósofo que se exprimia por
meio de aforismos oraculares. Muitos desses aforismos são profundos e nos dizem
algo ainda hoje. Eis alguns deles:
A harmonia
invisível é mais forte do que a visível.
O que está em cima
é idêntico ao que está embaixo.
A natureza ama
ocultar-se.
Tudo se faz por
contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e
da lira).
A harmonia
invisível é mais forte que a visível.
Jamais encontrarás os confins da alma, tão profundo é o seu logos.
Heráclito pertencia à nobreza hefésia. Foi um pensador de índole
aristocrática, misantropo, melancólico, mas profundo e poético. Expressava-se
por meio de aforismos de tom profético. Seus dísticos eram intencionalmente
obscuros de modo a não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele
desdenhava o homem comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir
racionalmente.
Heráclito era um elitista no
que concerne aos seres humanos. Embora a razão seja um bem comum a todos, para ele
muito poucos são os que fazem uso dela:
A despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um
tivesse um entendimento particular; não sabe nem escutar nem falar.
As opiniões dos homens são jogos de crianças.
Heráclito, ao que parece, era também um filósofo capaz de odiar em
medida pouco comum, como demonstram seus aforismos desdenhosos acerca de seus
concidadãos. Faço aqui apenas uma breve seleção deles:
Os porcos preferem
a lama à água limpa.
Os cães ladram
para o que desconhecem.
Tudo o que rasteja
merece ser chicoteado.
Um para mim vale mil se for o melhor.
Asnos preferem a grama ao ouro.
Se você quiser ofender alguém gravemente sem precisar lançar mão de
palavrões, basta se lembrar de algum desses aforismos.
Heráclito foi o filósofo do
conflito. Para ele o conflito entre os opostos é necessário, pois é dele que
nasce a mais bela harmonia. Ele considerava as guerras necessárias:
A Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei;
de uns fez deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.
A Guerra como solução de conflitos era parte essencial do mundo antigo. Por
exemplo, foi graças à genialidade e astúcia de um general grego, Temístocles,
que a Grécia não foi escravizada pelos persas, permitindo a continuação da
produção cultural grega com o aparecimento de Platão e Aristóteles. Hegel era
um admirador de Heráclito. A ideia hegeliana de que a razão humana é apenas um
momento da razão universal parece ter sua origem em Heráclito.
Mas não seria a necessidade da
guerra uma ideia ultrapassada, posto que esperamos que no futuro as guerras
deixem de existir? Essa seria uma maneira bastante superficial de entendermos o
que Heráclito quis dizer. Mesmo que as guerras deixem de existir, os conflitos
entres grupos humanos continuarão existindo de forma mais elevada, por exemplo,
como conflito de influências, valores, ideias e ideais. Se Heráclito estivesse
aqui entre nós ele diria que a sua ideia de guerra, agora entendida de forma
metafórica como qualquer forma de convulsão social, continuará sempre
existindo, dado que é inerente à vida humana em sociedade.
Outra ideia iconoclasta de
Heráclito é a de que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para
que exista a justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas
oposições são interdependentes, o que deve desfazer a ilusão escapista de que
possa haver um mundo inteiramente justo e inteiramente bom, ao menos dentro da
perspectiva humana. Essa ideia vale para a sociedade e também para os
indivíduos. Para Heráclito o ser humano é constitutivamente aprisionado ao
conflito, de modo que a possibilidade de que ele se eleve à afirmação de uma
existência para além de qualquer conflito é enganosa. De onde se pode concluir
que seria melhor para o ser humano aceitar o conflito e tentar superá-lo
conscientemente pela ação ou pela reflexão – aqui um ponto de contato entre
Heráclito e Nietzsche.
Faço uma pausa para lembrar um
livro: O visconde partido ao meio de Ítalo Calvino. Na estória, o
visconde Medardo di Terralba é uma pessoa que na Guerra contra os mouros foi partido
em duas metades por uma bala de canhão. Os cirurgiões conseguiram resolver o
problema separando as metades de modo a formar duas pessoas, dois viscondes.
Mas eles incorreram em um erro, pois um deles herdou a parte má do visconde,
enquanto o outro herdou a parte boa. Aquele que herdou a parte má se
transformou em um psicopata que se divertia em destruir tudo o que fosse vivo,
belo ou bom. Já o que herdou a parte boa era bom demais. Era ingênuo e esquecia
de si mesmo. Sua namorada logo se cansou dele por considerá-lo tedioso. A
estória termina quando as duas metades se reencontram e entram em duelo.
Curiosamente, durante a luta elas pareciam querer aproximar-se uma da outra.
Feridos, eles caem outra vez nas mãos de um cirurgião competente, que reúne as duas
partes e faz reviver o visconde original. Sem grande surpresa esse novo visconde
passa a ser uma pessoa que age corretamente, na justa medida, ciente outra vez
dos extremos volitivos do bem e do mal que deve manter sob a vigilância e o controle
de sua consciência.
Para Heráclito a arché
não era a água, nem o ar, nem a terra, mas o fogo, no qual outros elementos se
desfazem. Segundo ele:
Este mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre
vivente fogo, com medidas certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.
Para ele sem o conflito o mundo se desfaria em nada. Ele não foi só o
filósofo do conflito, mas também do movimento, da mudança. Como o fogo, tudo se
encontra em movimento, embora preso a medidas determinadas por leis. Também a
vida é tensão, conflito, movimento incessante:
Tu não podes atravessar duas vezes o mesmo rio, pois
novas águas correm sempre por ele.
Mas não entende Heráclito quem acredita que ele queria reduzir tudo ao movimento
e ao conflito desordenado, pois sob o conflito de opostos ele acreditava em uma
ordem oculta da natureza imposta pelas leis da razão (o logos) e
alcançável através do pensamento. Para ele é a razão que secretamente domina o
mundo. Heráclito era um panteísta que acreditava que Deus se encontra em todas
as coisas. Mas esse Deus, o Uno, era para ele a própria razão que revela a
identidade na diferença, a unidade no todo e a medida de cada coisa. A razão, escreveu
ele, é comum a todos, mas o vulgo não faz uso dela, nem os habitantes de sua
cidade, que deveriam ser todos enforcados, nem mesmo os grandes poetas como
Homero e Hesíodo.
O fundamento último da filosofia de Heráclito
não se encontra, portanto, no movimento, nem no conflito dos opostos, mas na
ideia da unidade do todo, na ideia de que a razão, o logos que subjaz ao
conflito, é capaz de unificar os opostos e dar lhes proporção e medida. Sob a
perspectiva do Deus que para ele é a razão ou o Uno, todas as tensões são reconciliadas
e as diferenças harmonizadas. Como ele disse:
Para o Deus todas as coisas são justas e boas, mas os
homens sustentam que algumas coisas são erradas e outras certas.
Há também em Heráclito o que me parece uma sugestão acerca da natureza
da filosofia como um saber antecipador da ciência, que ele apresenta na forma
do saber adivinhatório do oráculo. Eis como ele o expõe:
A sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem
alegria, sem ornatos e sem perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos,
graças ao deus que está nela.
Esse juízo de Heráclito sobre a sibila é na verdade sobre sua própria
filosofia. Ele também se aplica ao que de melhor foi feito na história da
filosofia. Muito da filosofia pré-socrática metaforicamente antecipa o que será
futuramente tematizado em maior rigor e detalhe por outros filósofos ou mesmo
descoberto de forma científica. Por isso a filosofia também tem sido chamada de
o berçário das ciências, ou ainda, de o guardador de lugar da ciência.
4
Parmênides. Talvez o mais influente dentre os filósofos pré-socráticos tenha sido Parmênides
de Eleia (530-460 a.C.), o fundador da escola eleática. Para ele o princípio, a
arché, era o que ele chamou de o ser. Ele definiu o ser como uma
coisa imóvel e imutável. A ideia central é a de que o ser, o uno, é, enquanto o
não-ser, a mudança, o devir, é apenas ilusão. Precisa ser assim porque se
qualquer coisa vem a ser então ou ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se ela vem
a ser do ser então ela já é, caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se
qualquer coisa vem do não-ser, então ela nada é, pois nada vem do não-ser.
Mas o que é, afinal, o ser?
Parmênides apresenta o ser como possuindo uma lista de atributos. Para ele o ser
é incorruptível, nem é gerado nem perecível, encontrando-se inteiro em cada
instante. Ele é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel e também finito e redondo,
pois a esfera finita era para os gregos o símbolo da perfeição. Em conformidade
com o modo de pensar dos pré-socráticos o ser parmenideano deve, pois,
pertencer à physis, à natureza. E como ele adiciona que o objeto do pensar
e do ser é o mesmo, ele parece estar apontando
para o objeto do pensar verdadeiro. O ser parmenideano parece tomar o lugar dos
deuses do politeísmo, mas perdendo a qualidade de projeção antropomórfica
característica dos últimos. Seu discurso sobre o ser também poderia estar
apontando para as leis da natureza, mais tarde aproximativamente apreendidas
pela mente humana, no que parece possível de ser encontrada uma proximidade
última entre Parmênides e Heráclito.
Parmênides complementa esse
pensamento metafísico-ontológico (i.e., daquilo que é, que existe de maneira mais
geral) com algumas sugestões epistemológicas que dão início a um domínio de
investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que chega até os
dias de hoje. Ele distingue explicitamente a via do conhecimento da via erro. O
conhecimento diz respeito ao ser, enquanto o erro diz respeito ao pretenso conhecimento
do não-ser. O conhecimento do ser é imutável, diversamente do pretenso
conhecimento do não-ser, que advém da aparência, que é o conhecimento daquilo
que aparece aos sentidos e se apresenta como mutável.
Vale a pena transcrevermos aqui
o fragmento principal do poema de Parmênides:
E agora (disse a musa) vou falar: e tu, escuta as
minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da
investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que não pode ser que ele
não seja; esse é o caminho da persuasão, pois segue a verdade. O segundo
caminho diz que o que não é, é, e que o não-ser é necessário; essa via,
digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é, nem expressá-lo
em palavra.
Filósofos posteriores, tanto materialistas como idealistas, foram
influenciados por Parmênides. Assim, os atomistas, que eram materialistas,
acreditavam que os átomos eram o ser, pois estes eram imutáveis e
indestrutíveis. Já Platão acreditava que o Ser eram as ideias imutáveis e
indestrutíveis, existentes em um mundo puramente inteligível e de ordem superior
ao mundo material.
Os discursos de filósofos como
Heráclito e Parmênides nos impressionam tanto hoje quanto na época em que foram
escritos e o que eles significam possui muito de originário e enigmático, tendo
suscitado inúmeras interpretações. O efeito tão sublime quanto ofuscante do
poema de Parmênides parece ser o resultado da condensação de ideias diversas, mas
relacionadas, vagamente expressas em algumas poucas linhas. Ela pode ser assim
interpretado como uma antecipação metafórica e sincrética do que será mais
tarde detalhado por outros. Há nele um resquício da religião, dado que ele possui
ainda características divinas, como as de ser eterno e indestrutível.
Considere, por exemplo, o que os lógicos depreenderam do poema de Parmênides.
Eles perceberam que ao afirmar que o ser é e que não pode não ser ele estava
vislumbrando os princípios da identidade e da não-contradição, mais tarde
detalhadamente tematizados por Aristóteles. Há também um aceno epistemológico
na ideia de que não se pode conhecer aquilo que é falso. Além disso, ele nos
faz pensar nas leis últimas da natureza. Parmênides inventou a substantivação
do verbo ser como uma espécie de metáfora universal que lhe permite dizer muito
mais do que pode ser dito no discurso literal.
5
Os filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem substituído as
explicações mitológicas por especulações metafísicas que possuíssem o que poderíamos
chamar de a forma das teorias científicas, entendendo-se por isso ideações
especulativas que detém suficiente analogia com as últimas e cuja criação é
motivada por um conhecimento prévio da natureza da investigação científica. É
isso o que há em comum entre o atomismo especulativo de Demócrito e a teoria
atômica da microfísica contemporânea, ou entre a especulação de Anaxágoras e a
presente teoria cosmológica do Big-Bang. Eles tiveram a ideia de substituir a antiga
explicação do cosmo por meio de deuses pela explicação através de princípios especulativos
que eles mesmos não tinham como avaliar, dado a insuficiência de meios e
informações que lhes permitissem resultados precisos em um domínio de
investigação ainda inexistente.
Tais especulações só foram possíveis porque
esses filósofos foram profundamente influenciados pelas ciências que eles
conheciam e cujo desenvolvimento já se iniciava na Grécia antiga. Havia a
matemática importada do Egito e da Babilônia, como o caso da geometria, considerada
pela primeira vez pelos gregos em abstração de suas aplicações, o que permitiu
que ela fosse axiomatizada no trabalho que culminou com a obra de Euclides
intitulada Os Elementos. Havia o conhecimento de astronomia tomados dos
egípcios. Platão já acreditava que a terra se movia. Sabemos, por exemplo, do
notável feito de Erastótenes (circa 300 a.C.). Ele conseguiu medir o
diâmetro da terra com razoável precisão, já sabendo que ela era redonda. Ele
mandou colocar duas estacas ao meio dia, separadas mais de mil quilômetros uma
da outra. Uma delas fazia uma sombra maior do que a outra, devido à
circunferência da terra. Tomando como comparação as medidas dos triângulos
formados pelas estacas e suas sombras, ele conseguiu calcular com certa
precisão a circunferência da terra, um feito extraordinário que foi esquecido nos
séculos seguintes. Havia também um conhecimento de engenharia e de rudimentos
de física, como pode ser ilustrado pela lei de Alavanca de Arquimedes (287-222
a.C.) ou por sua medição da massa específica de diferentes substâncias,
estabelecida pela relação entre o volume de água por elas deslocado e o peso. É
evidente que os gregos já estavam cientes da imensa vantagem teórica e prática
que só o conhecimento científico é capaz de trazer.
6
Auguste Comte. O estudo dos filósofos pré-socráticos nos oferece uma excelente
oportunidade para investigarmos a natureza da filosofia. Quando nos perguntamos
sobre o que eles estavam fazendo e sobre a natureza da filosofia em sua relação
com a ciência, alguma luz pode ser trazida pela consideração da assim chamada “lei
dos três estados” desenvolvida por Auguste Comte (1798-1857), o mais importante
filósofo francês do século XIX.
A chamada lei dos três estados
da evolução da civilização, embora já antevista por outros, foi mais
sistematicamente desenvolvida por Comte em seu Curso de filosofia positiva. Esses estados são o teológico,
o metafísico e o positivo. Quero no que se segue interpretar lei de
tal forma que ela ainda possa ser reconhecida como plausível. Uma primeira
observação é que não se trata obviamente de uma lei no sentido mais estrito das
leis físicas, mas de uma lei no sentido de uma regularidade tendencial.
Trata-se da identificação de uma vaga sucessão de três estados, que tendem a se
sobrepor de modo parcial e irregular no desenvolvimento da civilização. Eis como
Comte a apresenta:
A lei consiste em que cada uma de nossas principais concepções,
cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes
estados teóricos: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou
abstrato; o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano,
por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas pesquisas, três
métodos de filosofar (...)
O estado teológico é aquele no qual as anomalias da natureza (seus
imprevistos) são explicadas pela intervenção de projeções antropomórficas
chamadas “deuses”. Tendencialmente ele começa com o subestado do fetichismo,
caracterizado pelo animismo: a ideia de que objetos como plantas e animais também
incorporam deidades. O estado teológico passa então ao politeísmo, no qual um
grande número de deuses concorre na explicação das anomalias da natureza.
Nesses dois subestados, cada anomalia pode ser explicada por um deus diferente,
não se impondo a questão de unificar suas causas. Essa unificação só é realizada
no terceiro subestado, o do monoteísmo, que se caracteriza pela crença na
existência de um único Deus. O monoteísmo permite uma explicação unificada do
mundo, ainda que antropomórfica. Para Comte, o estado teológico corresponde à
infância da humanidade. Em suas fases iniciais ele é repetição do que ocorre no
crescimento cognitivo do indivíduo humano, correspondendo à sua infância, ou
seja, ao estado no qual a criança acredita na existência de fadas, bruxas e
gnomos.
O estado metafísico é o que faz
a transição entre os estados teológico e positivo. Nele os seres humanos buscam
substituir os seres sobrenaturais por entidades abstratas em uma passagem do
imaginativo para racional. O Deus sobrenatural deve ser substituído por “abstrações
personificadas” que sirvam de princípio explicativos para todo o universo, de
preferência reduzindo-se tudo a um único princípio. Exemplos de tais princípios
explicativos são as archai dos pré-socráticos. Esse estado é uma
passagem intermediária entre os estados religioso e científico.
Os estados religioso e
metafísico são importantes para Comte por motivarem os seres humanos a continuarem
buscando o conhecimento científico quando ele ainda não é possível. Foi assim
que o ser humano persistiu observando os movimentos dos astros por milhares de
anos quando buscava através disso meios de prever o futuro. Mas essa
persistência foi indispensável, pois foi só por meio dessas crenças
supersticiosas que o ser humano se permitiu chegar a descobertas astronômicas
reais, desde a medição, distinção e previsão dos movimentos das estrelas e
planetas, do geocentrismo de Ptolomeu, até mais tarde a ruptura que consistiu
no heliocentrismo de Copérnico, nas leis de Kepler e nas descobertas de Galileu
e Newton. Sem um longo estado de especulação pré-científica nada disso poderia
ter ocorrido. Para Comte esse foi o momento da adolescência da humanidade. Em
termos de desenvolvimento cognitivo do indivíduo trata-se realmente da
adolescência, na qual os jovens se comportam como aprendizes de feiticeiros, crendo
tudo saber sem terem aprendido o suficiente. (Piaget identificou a
característica metafísica do adolescente com o domínio intuitivo da lógica
proposicional no estágio operatório-formal depois dos 12 anos de idade.)
Fazendo abstração de qualquer
tentativa de datar os estados e desconsiderando o
radicalismo positivistas de Comte, a consideração do estado metafísico nos
auxilia na compreensão do que os filósofos pré-socráticos estavam fazendo, pois
os princípios ou archai por eles buscados encontravam-se de algum modo entre
os deuses da mitologia e as leis naturais. Podemos aqui distinguir duas
espécies teóricas de archai: as excessivas e as escassas.
As excessivas são as que adicionam a entidades naturais propostas como formas
de leis entidades com vida e consciência própria semelhantes aos deuses. As escassas
são as que se restringem a entidades naturais propostas e formas de leis, sem a
adição de entidades supernaturais. Os pré-socráticos são os melhores exemplos
de filósofos metafísicos no sentido proposto por Comte, uma vez que suas archai
apresentam o inteiro espectro, já que eles estavam enfadados da mitologia e
aspiravam a ciência sem ter condições de alcançá-la, disso resultando suas
especulações. Assim, a água de Tales era um princípio exuberante: ela funciona
como se fosse uma lei natural a possibilitar a vida, encontrando-se ao mesmo
tempo repleta de deuses. O ar de Anaximandro era necessário à respiração e,
portanto, à vida. Para os pitagóricos esses princípios eram números e formas
tornadas exuberantes, posto que não só satisfazem relações matemáticas e
geométricas, mas que devem exercer papel determinante no destino dos seres viventes.
O ar de Anaximandro é uma arché que permite, pela sua respiração, fazer
o homem e o universo viverem, sendo também espírito, ainda que menos
exuberante. O mesmo acontece com a mente de Anaxágoras. Aqui o papel do psicológico
é menor, posto que essa mente deve pertencer à physis; ainda assim
trata-se de um princípio espiritual capaz de comandar o curso do universo. Em
Empédocles os quatro elementos regidos pelas forças do Amor e do Ódio, que
apesar de receberem nomes de afetos são melhor interpretadas como forças
físicas, regulando nomologicamente o curso cíclico do universo, o que os torna
as archai escassas. Exemplos de archai escassas, elementos ou
formas não-espirituais, são os átomos de Demócrito, o Ápeiron de Anaxímenes, o
fogo de Heráclito e o ser de Parmênides. Neles o aspecto espiritual tende a
desaparecer, permanecendo alguma coisa vaga e obscura, uma forma que toma o
lugar de da inalcançável compreensão do todo. Princípios metafísicos
fundamentadores da realidade como um todo continuaram sendo propostos ao longo
de toda a história da filosofia. Assim, Platão tinha as ideias, Aristóteles a
substância, os medievais o Deus dos filósofos, Leibniz as mônadas, Kant o noumenon,
Hegel o absoluto, Heidegger o Ser, Wittgenstein o indizível... Sob essa
perspectiva o período metafísico foi mantido até pelo menos a primeira metade
do século XX, em discrepância com a perspectiva positivista de Comte.
O último estado é o científico
ou positivo. Aqui o ser humano substitui a pergunta pelo “porquê” pela pergunta
pelo “como”. Ele desistiu de buscar princípios últimos explicativos de todo o
universo, contentando-se em buscar relações fixas entre os fenômenos observados,
ou seja: leis da natureza. Ao invés de buscar por uma verdade absoluta o ser
humano passou a buscar verdades por meio de aproximações sucessivas, consciente
de poder sempre estar errado. Essa seria a fase adulta do desenvolvimento da
humanidade, correspondendo, na psicologia do crescimento individual, ao homem
adulto.
O ponto importante é que se
Comte estiver certo então a filosofia, compreendida pelo que ele chama de
metafísica, deverá ser toda ela em algum ponto substituída por alguma espécie
de ciência.
7
A lei dos três estados precisa ser complementada pela classificação das
ciências particulares feita por Comte, uma vez que os estados religioso e
metafísico antecedem o nascimento de cada uma delas e que elas nascem
sucessivamente da mais simples para a mais complexa, em dependência uma da
outra.
Para Comte as ciências empíricas
particulares podem ser classificadas segundo a sua generalidade e segundo a sua
complexidade. A generalidade opõe-se à complexidade e vice-versa. Quanto mais
geral é uma ciência, mais simples ela é em seus princípios. Quanto mais
complexa é uma ciência, menos geral ela é. Alterando um pouco a lista de Comte
das ciências particulares nós chegamos ao seguinte quadro:
Maior complexidade SOCIOLOGIA
PSICOLOGIA
BIOLOGIA
QUÍMICA
FÍSICA Maior simplicidade
A física é a ciência de maior simplicidade quanto aos princípios. Em
compensação suas leis devem se aplicar ao universo inteiro. A química diz
respeito a combinações entre os átomos. Ela se aplica ao fenômeno emergente que
são os compostos químicos que existem na terra, mas não se aplica a maior parte
do universo, que não permite a composição química mais complexa. A biologia se
aplica à vida, um fenômeno emergente relativo aos reinos animal e vegetal, que
cobrem parte da terra. A psicologia diz respeito apenas aos seres vivos
conscientes, capazes de vida mental, o que é mais um fenômeno emergente, não se
aplicando, por exemplo, aos vegetais. E a sociologia só se aplica aos seres
vivos conscientes capazes de se reunir na formação de sociedades complexas, o
que nos permite perguntar se essas sociedades não são também um fenômeno
emergente.
Há um grande número de outras ciências, mas
elas são derivadas, por exemplo, a geologia, que usa conhecimentos da física,
da química, da biologia, etc. com o objetivo de estudar rochas. A astronomia
(que Comte erroneamente considerava uma ciência particular) aplica
conhecimentos de física, química, etc. para estudar o cosmo. A neurociência
intenta aplicar nosso conhecimento de biologia, bioquímica, biofísica, etc.
para estudar o funcionamento do cérebro...
Importante é notar que a
passagem do estado metafísico para o estado científico se deu no emergir de
cada ciência particular em tempos diferentes. As ciências mais gerais surgiram
primeiro, uma vez que seu conhecimento era geralmente pressuposto para o
surgimento das outras. A “física” aristotélica (enquanto física) era puramente
especulativa e completamente errônea, tendo prevalecido até o fim da Idade
Média, tornando-se realmente ciência só após Galileu, no século XVI. Entre as
ciências empíricas a física surgiu primeiro, uma vez que ela é pressuposta
pelas outras ciências particulares, mas não as pressupõe. A química só passou
de seu estado metafísico para o estado científico no final do século XVIII,
pressupondo em muito a física. A biologia só começou a se libertar das
especulações durante o século XIX com Pasteur, pressupondo para seu
desenvolvimento o conhecimento de ciências mais básicas, incluindo invenções
como a do microscópio. E a psicologia e a sociologia se encontram ainda hoje em
um estado parcialmente conjectural (metafísico), a despeito do otimismo de
Comte quanto à última. Ciências derivadas como a neurociência, por sua vez,
dependem para seu desenvolvimento de toda espécie de desenvolvimentos
anteriores de outros ciências, inclusive na produção dos meios de pesquisa.
Quando consideramos o que se deu realmente vemos que a lei dos três estados diz
respeito apenas a uma tendência geral de sucessão, não existindo um tempo
histórico para cada estado, visto que eles se sobrepõem de tal maneira que
ainda hoje encontramos resíduos do estado teológico e muito do estado
metafísico em muito do que fazemos.
Um ponto a ser adicionado é que
a ruptura epistemológica abrupta que aconteceu com o surgimento de uma ciência
como a física não precisa se repetir da mesma forma no surgimento de outras
ciências. A passagem da psicologia para a ciência tem sido gradual, com
dimensões resistentes na assim chamada psicologia profunda. Se domínios da
filosofia como a epistemologia e a ética passarem ao nível de ciência isso não
significa que deverá haver uma ruptura com a epistemologia e ética tradicionais,
que conserva algumas verdades já descobertas por Platão. Além disso, se
domínios centrais da filosofia forem capazes de passar ao nível de ciência
precisaremos considerar melhor que conceito de ciência estaremos usando.
Filósofos em geral sempre
torceram o nariz para as ideias de Comte. Eles se sentiam feridos pelo seu positivismo
reducionista, por sua maneira antifilosófica e apressada de substituir a
conjectura filosófica pela ciência. Sartre chegou a dizer que Comte está na
origem do fascismo... Mas isso é bastante injusto. Sensatamente consideradas, certas
ideias de Comte parecem-nos hoje, em suas linhas gerais, bem mais plausíveis do
que algumas especulações de Sartre, especialmente quando revisadas sob a
perspectiva que veremos a seguir.
7
J. L. Austin. A consideração da lei dos três estados nos leva diretamente a uma outra
ideia, que é a de que a filosofia é uma protociência. Segundo ela a
filosofia é aquilo que é possível fazer antes do surgimento da ciência.
Quando ainda não sabemos o suficiente sobre os métodos a serem empregados,
quando não sabemos sequer quais são os dados que devem ser considerados mais
fundamentais, por isso mesmo não tendo critério para saber que teoria devemos
escolher, o que resulta é uma pluralidade de conjecturas filosóficas. Essa
situação também permite um uso relativamente livre da imaginação na busca de
soluções meramente especulativas. E isso é aquilo que mais caracteriza a
filosofia. Como observou J. L. Austin em uma famosa metáfora que não me canso
de repetir, na qual prepara o terreno para seu plano de retirar do domínio
conjectural da filosofia uma ciência da interação comunicativa:
Na história da investigação humana, a filosofia ocupa
o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso: de tempos em tempos ele
lança fora uma porção de si mesmo para formar estação como ciência, um planeta,
frio e bem regulado, progredindo continuamente em direção a um final distante.
Isso aconteceu há muito tempo atrás com o nascimento da matemática, e ainda com
o nascimento da física... Não é possível que o próximo século possa ver o
nascimento, através do trabalho conjunto de filósofos, gramáticos e numerosos
outros estudantes da linguagem, de uma verdadeira e abrangente ciência da
linguagem? Então nós teremos nos livrado de mais uma parte da filosofia (haverá
ainda muitas deixadas para trás) da única maneira pela qual podemos nos livrar
da filosofia, que é chutando-a para o andar de cima.
Austin demonstrou isso na prática. Ele passou os últimos dezesseis anos
de sua vida trabalhando no desenvolvimento de uma gramática dos diferentes atos
de interação linguística, como afirmar, perguntar, prometer, pedir, ordenar,
batizar... disso resultando o que ele chamou de uma “teoria dos atos de fala,”
que hoje é estudada mais nos cursos de linguística do que nos de filosofia. Esse é o conceito de
filosofia como protociência, complementar à visão de Comte. O sol
inicial central e tumultuoso não pode ser melhor descrito do que na exposição
da filosofia originária dos pré-socráticos.
Há nesse ponto uma objeção à
ideia de filosofia como protociência que é sintomática e resulta de simples confusão.
Ela foi feita por Anthony Kenny, que observou que pelo menos os domínios
centrais da filosofia, como a metafisica, as teorias do significado e a ética,
continuarão para sempre filosóficos. Essa conclusão se deve à
concepção positivista de ciência que Kenny e muitos outros tem em mente. A
concepção mais difundida é a proveniente do positivismo lógico e se resume ao
emprego de experimentos verificacionais (Carnap) ou falseadores (Popper),
notadamente aqueles passíveis de repetição. Tais concepções se aplicam quando
muito à física, mas não se aplicam a domínios obviamente científicos como a
teoria da evolução, que não é passível de experimentos repetíveis. Ademais, o
que dizer de ciências como a linguística, a história, a antropologia física?
Concepções positivistas de ciência costumam ser reducionistas, por isso mesmo deixando
de corresponder ao que cientistas e pessoas com educação científica costumam
chamar de ciência, que é algo muito mais amplo. Se quisermos entender a
filosofia como protociência tendo uma concepção positivista da natureza da
ciência a conclusão de Kenny é inevitável. O sol seminal filosófico, naquilo
que ele tem de mais central, jamais poderá dar lugar à ciência.
Há, porém, uma definição de não
reducionista de ciência que se complementa perfeitamente com a ideia de
filosofia como protociência e que corresponde exatamente ao que cientistas e
pessoas com educação científica costumam chamar de ciência. Trata-se do que um
sociólogo da ciência, John Ziman, sugeriu. Segundo Ziman, o traço mais
fundamental da investigação científica é que ela é um conhecimento público
consensualizável (públic consensualizable knowledge). Explicando: o
conhecimento científico precisa ser apto à possível obtenção de consenso quanto
aos seus resultados da parte de uma adequada comunidade de ideias. Essa é a concepção
implicitamente vigente entre os cientistas. A antropologia física é científica
porque a comunidade científica é capaz de concordar com os seus resultados. A
teoria das cordas pertence à microfísica, que é ciência, porque é ao menos
fisicamente (mesmo que não praticamente) possível que ela venha a obter uma comprovação
experimental com a qual os físicos estejam de acordo. Mas isso não acontece com
a astrologia, visto que os astrólogos jamais conseguiram chegar a um acordo
sobre seus resultados. E isso também não acontece com a filosofia.
Resumindo-nos aos pré-socráticos, não temos como dizer quem estava certo, se
Heráclito ou Parmênides, se Empédocles ou Demócrito. A pergunta sequer faz
sentido.
Se admitirmos uma concepção
suficientemente liberal de ciência como a proposta por Ziman, a possibilidade
de que toda a filosofia venha a se tornar ciência se torna plausível. Quando
teorias pertencentes a domínios centrais da filosofia como a epistemologia e a
ética se tornarem objeto de consenso entre os filósofos, eles deixarão de ser
filosóficos para se tornarem científicos. E não precisaremos nos tornar
positivistas ou reducionistas para concordarmos com isso.
8
O triângulo filosófico. Há, por fim, ainda outra maneira conhecida de se entender a natureza da
filosofia que é complementar ao que sugerimos até aqui e que nos proporciona um
quadro mais amplo. Trata-se da ideia de que a
filosofia seja uma prática cultural derivada. Um exemplo de prática cultural
derivada é a ópera. Ela é basicamente um resultado derivado de três práticas
artístico-culturais que são: a poesia, o enredo literário e a música (a melodia
instrumental junto ao canto lírico). Tendo em vista a filosofia, parece que
podemos considerá-la como uma prática cultural derivada das três práticas
culturais mais fundamentais, que são as práticas religiosa, artística e
científica. A filosofia não é propriamente nenhuma dessas três práticas, mas
retira material, métodos e motivações de cada uma delas. Da prática religiosa
ela retira a motivação mística, visível em sua perspectiva abrangente, como no tradicional
e impossível esforço para explicar o universo como um todo e o lugar do homem
nele. Da prática artística ela retira seu caráter inevitavelmente metafórico,
como visto em seus conceitos fundamentadores (como o ser, a ideia, a coisa em
si, o absoluto...), em suas imagens retóricas, em seus exemplos. Finalmente, da
prática científica ela retira seu objetivo heurístico, além de sua metodologia
formal ou empírica. Com isso podemos construir um triângulo em cujos vértices se
encontram a religião, a arte e a ciência, encontrando-se a filosofia no espaço
interior do triângulo, como é sugerido abaixo:
CIÊNCIA
FILOSOFIA
RELIGIÃO ARTE
Quando consideramos a filosofia dos pré-socráticos encontramos todos
esses elementos. É evidente o elemento estético nos aforismos de Heráclito ou
no poema de Parmênides. Mas Heráclito escreve em tom oracular e o poema de
Parmênides é apresentado por uma deusa, o que revela o elemento místico.
Finalmente, Heráclito busca a sabedoria do logos enquanto Parmênides tem
por objeto o conhecimento do que é verdadeiro, coisas que podem ser buscadas
pela ciência. A mesma combinação podemos encontrar em outros filósofos
pré-socráticos.
Podemos intuitivamente situar
os diferentes filósofos em diferentes locais internamente ao triângulo.
Filósofos que possuem em medida similar elementos místicos, estéticos e
heurísticos podem ser postados no meio do triângulo, a exemplo de Platão. Filósofos
cujo trabalho possui predominância de elementos místicos podem ser postados
próximos ao vértice religioso do triângulo, a exemplo de Hegel. Filósofos com
predominância de elementos estéticos, poetas-filósofos como Nietzsche, podem
ser postados próximos do vértice artístico do triângulo. Filósofos com
predominância dos elementos estético e místico, como Kierkegaard e Heidegger,
podem ser postados próximos à linha de baixo do triângulo. E ainda, Filósofos
com interesses particularmente heurísticos, como Locke, Russell, Rudolph Carnap
e Saul Kripke, podem ser postados próximos ao vértice científico do triângulo.
O triângulo filosófico nos
ajuda até mesmo a classificar as filosofias de diferentes culturas. Filósofos
alemães, desde místicos como Meister Eckhart até filósofos de grande estatura
como Kant, Husserl e Heidegger, geralmente demonstravam proximidade do vértice
religioso, que foi grandiosamente exemplificada pelo idealismo absoluto de
Hegel. A filosofia francesa desde Descartes, mas em um nível extremo no
movimento pós-modernista de pensadores como Foucault, Deleuze e Derrida, possui
ênfase estética, tendendo ao extremo artístico. Finalmente, a filosofia
anglo-americano-australiana põe ênfase no aspecto heurístico, próprio do
vértice científico. Basta considerar exemplos de filósofos como Locke, Russell,
W. V-O. Quine, Saul Kripke, e mesmo, se bem considerados, J. L. Austin e John
Searle.
9
A filosofia dos pré-socráticos foi no século V substituída pela
filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Os dois últimos, junto a filósofos como Kant, Hume e Hegel, constituem o cânone,
se assim podemos se pode dizer, da tradição filosófica, pela amplitude, coesão
lógica e força imaginativa de seus sistemas. Eles foram tentativas de explicar
o mundo e o lugar do homem nele com base no conhecimento e na cultura de suas
épocas.