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If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

sábado, 4 de maio de 2024

Claudio Ferreira Costa: PHILOSOPHICAL TEXTS - TEXTOS DE FILOSOFIA

     


             THIS "BLOG" WAS IDEALIZED AS A WAY TO MAKE MY WORK IN PHILOSOPHY MORE ACCESSIBLE. IT CONTAINS MORE THAN 100 WRITINGS, THOUGH USUALLY IN DRAFT FORMS, IN ENGLISH AND/OR PORTUGUESE. THE PAPERS WITH INTEREST FOR THE RESEARCHER WERE MARKED WITH #.

ESSE "BLOG" FOI IDEALIZADO COMO UMA MANEIRA DE TORNAR MEU TRABALHO FACILMENTE ACESSÍVEL. ELE CONTÉM MAIS DE 100 ESCRITOS, MUITOS DELES EM PORTUGUÊS. ALGUNS SÃO DIDÁTICOS, OUTROS NÃO. OS TRABALHOS DE INTERESSE PARA PESQUISADORES FORAM MARCADOS COM #



FROM MY CURRICULUM

I was born in Vila Seropedica, near to Rio de Janeiro, Brazil, 1954. After an intellectually boring medicine undergraduate study, I gained my MS in philosophy at the IFCS (Rio de Janeiro) and a Ph.D. in philosophy at the University of Konstanz (Germany). Since 1992, I work as a researcher and professor at the UFRN (Natal), secluded in the beautiful Northeastern of Brazil, though always in contact with the international philosophical discussion through many grants taken at the universities of Konstanz, Munich, Berkeley, Oxford, Göteborg, and Ecóle Normale Supérieure (INS). Even if dealing with contemporary analytic philosophy, I am at odds with the lack of comprehensiveness of the present mainstream philosophy. I have social dyslexia (a light degree of autism), which explains not only my lack of sociability but also my obsessive interests and intellectual independence. The books I am not ashamed to have written are "The Philosophical Inquiry" (Lanham: UPA, 2002), which develops a thesis on the nature of philosophy, Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions" (Cambridge Scholars Publishing, 2014), and "Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy" (Cambridge Scholars Publishing, 2018). The book from 2014 is a selection of essays (some of them, in my view, really relevant), while the long book from 2018 can be read as a comprehensive analysis of a cluster of concepts regarding philosophical methodology, the concept of meaning, verificationism, and truth, as investigated by philosophers from Frege to Wittgenstein. The book last published book, "How do Proper Names Really Work?" (De Gruyter 2023), has as its main goal to overthrow the old stalemate between the new and the old orthodoxy in the philosophy of language. Personally, I believe this book should be a game-changer in the field. If it will be noticed, I do not know.


SOME BOOKS (ALGUNS LIVROS):






 
















LEIBNIZ: INTRODUÇÃO

  DRAFT

 

VII

LEIBNIZ: IDEALISMO INFINITISTA

 

Difícil encontrar duas personalidades tão opostas quanto as de Spinoza e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). O primeiro tornou-se uma pessoa privada e moralmente impecável. O último foi um homem do mundo, que vivia sagazmente de seus serviços à nobreza da época. Gostava de dinheiro. Por um tempo teve três empregos simultaneamente. Passou a vida escrevendo a história da dinastia de Hanover, ganhando para isso, mas sem conseguir terminá-la. Filho de um professor, ele foi um grande polímata, com uma imensa variedade de conhecimentos. Mas acima de tudo filósofo e também um importante lógico e matemático, que juntamente com Newton inventou o cálculo infinitesimal – um talento que influenciou decisivamente sua maneira de filosofar. Leibniz publicou muito pouco, mas escreveu inúmeros textos e milhares de cartas em várias línguas, o que representa um sério problema para os intérpretes. Já foram publicados 47 volumes das obras completas de Leibniz e isso representa apenas metade do que escreveu. Devido a sua imensa variedade de “distrações”, ele dificilmente conseguia terminar alguma coisa. E ainda que sua filosofia contenha muitos insights profundamente instigantes, ele nunca conseguiu formulá-la de modo suficientemente sistemático. Na exposição introdutória que se segue precisarei ignorar os inúmeros problemas advindo das variações especulativas e indecisões argumentativas presentes na imensa obra de Leibniz.

   O objetivo precípuo da metafísica de Leibniz era conciliar a crença no Deus cristão com a ciência e cultura de sua época. Sua filosofia alia uma impressionante coerência interna a uma extrema implausibilidade factual, tendo sido por isso considerada demasiado imaginativa e bizarra até mesmo pelos seus contemporâneos. Mais além, por seu interesse em lógica e matemática ele influenciou filósofos analíticos como Gottlob Frege, Bertrand Russell e mesmo um contemporâneo nosso como Saul Kripke.

    Há uma convicção pessoal de Leibniz que merece ser lembrada. Ele acreditava que no caso de haver duas posições filosóficas opostas, mas interessantes, o mais provável seria que ambas tivessem algo de importante a dizer – algo que poderia ser resgatado por uma posição que abrangesse seus pontos de maior interesse, como ele mesmo tentou demonstrar em sua filosofia. O defeito mais comum, segundo ele, é o do espírito sectário, em que as pessoas, ao rejeitarem as outras, se apequenam... Ele tinha a consciência de que o pensamento de um filósofo não deveria ser medido pelos seus erros flagrantes e inevitáveis, mas pelos seus acertos prováveis.

 

1

 

Quero resumir aqui apenas as partes centrais da filosofia teórica de Leibniz. Antes de começar devo observar que para ele, como para Aristóteles, o enunciado fundamental é o predicativo singular, que tem a forma sujeito-predicado ou Fa, como o expresso pela frase “Sócrates é sábio”. Precisa ser assim porque nesse enunciado o sujeito pode se referir a uma substância e o predicado a uma propriedade, substância e propriedade sendo os constituintes metafísicos últimos de toda a realidade.

   Leibniz acreditava que enunciados com outras formas poderiam ser reduzidos a enunciados predicativos. Assim, um enunciado condicional como “Se algo é um cão, então esse algo é um animal” poderia ser reduzido a “O conceito de cão contém o conceito de animal”. E o enunciado relacional “Paris ama Helena”, que tem a forma aRb, poderia ser reduzido a “Paris ama e, por esse mesmo fato, Helena é amada”. Mas essa última redução já não parece mais convincente. O que ele está dizendo, mudando a posição das palavras, parece ser: “Paris ama Helena e, por esse mesmo fato, Helena é amada por alguém”, o que é duplamente relacional. Relações assimétricas como “João é pai de Maria” são particularmente resistentes à transformação em proposições meramente predicativas.

   Ao contrário do que Leibniz pensava, o mais comum é encontrarmos enunciados aparentemente predicativos que, devidamente analisados, demonstram ser enunciados relacionais. Por exemplo: “João é pai” parece predicativo. Mas suficientemente analisado esse enunciado se revela relacional, por exemplo: “João é pai de Maria, de José e de Carlos”. Afinal, ser pai significa ser pai de uma, duas ou mais pessoas (uma proposição n-ádica). Na lógica aristotélica enunciados relacionais eram facilmente interpretados como sendo predicativos.

   Mesmo sob o peso da objeção acima quero agora expor a teoria racionalista da verdade proposta por Leibniz, que é fundamental para a compreensão de seu sistema. Para ele uma frase predicativa é verdadeira quando o conceito de seu sujeito contém o conceito de seu predicado.[1] Nesse caso temos o que ele chamou de uma verdade da razão, que é um enunciado que sabemos ser necessariamente verdadeiro e cuja negação implica em contradição. Esse é claramente o caso de enunciados como, por exemplo, (1) “Sócrates é Sócrates”, (2) “O triângulo tem três ângulos”, (3) “Meu irmão é um homem (= ser humano)” e (4|) “2 + 2 = 4”. Eles podem ser considerados enunciados de identidade, possuindo a forma A = A. Em outras palavras: eles seguem o princípio da identidade e negá-los fere o princípio da não-contradição. Não posso afirmar “A = A & ~(A = A)”.

   No exemplo (1) já temos uma identidade e não precisamos recorrer à análise para revelá-la. Mas nos outros exemplos sim. Para revelar a identidade no enunciado (2) “O triângulo tem três lados” precisamos analisar o conceito de triângulo, digamos, como “uma figura fechada, plana, com três lados”. Podemos com isso demonstrar a identidade envolvida substituindo o sujeito pela sua definição na primeira frase. O resultado fica sendo: “A figura plana fechada com três lados... tem três lados.” Mas isso é também uma frase de identidade, que pode ser formalizada como “A(B) = A”. Para o enunciado (3) “Meu irmão é um homem (é um ser humano)” precisamos substituir “meu irmão” por “o ser humano filho do mesmo pai que eu” na construção do enunciado “O ser humano filho do mesmo pai que eu... é um ser humano”, que é também um enunciado de identidade. Considere agora (4): “2 + 2 = 4”. Esse enunciado pode ser submetido a seguinte versão da prova leibniziana de que 2 + 3 = 4. Para tal nós definimos 2 como 1 + 1 (Df.i), 3 como 2 + 1 (Df.ii) e 4 como 3 + 1 (Df.iii). Depois fazemos a seguinte sequência de substituições:

 

1.    2 + 2 = 2 + 1 + 1 (Df.i)

2.    2 + 2 = 3 + 1 (Df.ii)

3.    2 + 2 = 4 (Df.iii)

 

Com isso temos uma análise finita de “2 + 2 = 4” como sendo uma frase de identidade. Vemos, pois, que todos os quatro enunciados acima são capazes de serem entendidos como sendo de identidade ou redutíveis a eles, demonstrando-se verdades da razão.

   A teoria da verdade de Leibniz parece encontrar sua óbvia limitação no que ele chamava de verdades de fato. Essas verdades são enunciados verdadeiros nos quais o conceito do predicado não parece estar de nenhum modo contido no conceito do sujeito. Exemplos são “Cabral descobriu o Brasil”, “Júlio Cesar morreu em 44 a.C.”, “Adão comeu a maçã…” Esses enunciados exprimem para Leibniz verdades de fato. Podemos negar verdades de fato sem contradição. “Cabral não descobriu o Brasil” é uma frase falsa, mas não a vemos como sendo contraditória, diversamente de “O triângulo não tem três ângulos”. Elas não se baseiam no princípio da identidade. E nós não as vemos como necessárias, mas como contingentes.

   Leibniz então se perguntou: por que nas verdades de fato o conceito do sujeito não parece conter o conceito do predicado? O bom senso responderia que isso não acontece simplesmente porque a teoria da verdade de Leibniz é limitada, aplicando-se apenas a verdades da razão e não a enunciados empíricos contingentes. A teoria da verdade aplicável a verdades de fato seria a velha teoria da correspondência, segundo a qual a verdade de um enunciado contingente consiste em sua adequação ao fato empírico ao qual ele se refere… Mas esse não é o caso de um racionalista como Leibniz! Para ele tudo deve poder ser de algum modo derivado da razão. O Deus de Leibniz é um ser absolutamente racional e não poderia ter produzido nada que fosse desnecessário ou supérfluo. Por isso, para ele tudo o que acontece no mundo precisa ter uma “razão suficiente”. Mas se é assim então tudo o que se predica verdadeiramente de um sujeito precisa pertencer intrinsecamente a ele, de modo a ser dele predicado com razão suficiente, ou seja, necessariamente. Mas como é possível que verdades contingentes como “Cabral descobriu o Brasil” possam ser vistas como satisfazendo sua definição de verdade? Leibniz tinha uma resposta para isso. Do ponto de vista humano essa frase é contingente; mas do ponto de vista divino ela é de algum modo necessária.

   Como isso é possível? Leibniz encontrou uma maneira tão engenhosa quanto inacreditável de generalizar sua teoria da verdade para as verdades de fato. Sua resposta está na distinção que ele fez entre análise finita e análise infinita. As verdades da razão demandam análises finitas. Já as verdades de fato demandam análises infinitas nas quais absolutamente tudo o que acontece com o objeto é explicitado. Uma frase como “Cabral descobriu o Brasil” teria a forma A(BCD…) = A. Mas quem pode saber disso? Nós, certamente, não. Para nós essa é uma verdade contingente, posto que a sua negação é perfeitamente concebível. A resposta era para Leibniz óbvia: Deus sabe e para ele essa não seria mais uma verdade percebida como contingente! Deus é onisciente. Por conseguinte, ele sempre soube que Cabral teria de descobrir o Brasil. Ele sabe que pertence ao conceito de Cabral o fato de ele descobrir o Brasil em 21 de abril de 1500 e tudo o mais que possa ter acontecido com ele nos mais ínfimos detalhes. Para Deus “Cabral descobriu o Brasil” é um enunciado de identidade no qual o predicado pertence ao sujeito.

   Para que seja assim é também necessário que para Leibniz aquilo que individua um objeto sejam simplesmente todas as suas propriedades, o que inclui tudo o que lhe acontece. Assim, pertence necessariamente a Cabral ter descoberto o Brasil em 21 de abril de 1500, pois se ele não tivesse descoberto o Brasil ele não seria Cabral. Aqui importa sua distinção entre ter o conceito e ter um conceito. Só Deus tem o conceito completo de Cabral, pois conhece todas as suas propriedades. O que nós temos é apenas um conceito de Cabral – um conceito incompleto, perspectivo e mesmo variável.[2]

   Nesse contexto também uma importante distinção é a que Leibniz fez entre o ‘é’ da essência e o ‘é’ da existência. A teoria da verdade de Leibniz não se encontra comprometida com a afirmação de existência. Considere a frase “O Ciclope é um gigante de um olho só”. Essa é uma verdade da razão, um enunciado necessário pertencente à mitologia grega. Mas Ciclopes não existem. O ‘é’ em questão é um ‘é’ da essência e não da existência, dizendo-nos que é essencial ao conceito de Ciclope que Ciclopes sejam gigantes de um olho só.

   Essa consideração tem implicações para a análise infinita. Deus é capaz de conceber uma infinidade de mundos possíveis. Assim, há um mundo possível no qual Adão se recusou a comer a maçã, outro no qual ele comeu uma pera, outro no qual ele não foi tentado, pois Eva resistiu à sedução da serpente… Cada um desses Adãos é diferente, uma vez que eles possuem diferentes condições de individuação. Todos eles existem na mente de Deus, mas só um deles foi atualizado em nosso mundo, que foi o Adão que comeu a maçã. Uma consequência é que o enunciado “Adão comeu a maçã” é não só essencialmente verdadeiro, mas também existencialmente verdadeiro, dado que a condição de ter comido a maçã foi atualizada em nosso mundo. Mas o enunciado “Adão comeu a pera” é apenas essencialmente verdadeira na mente de Deus, tanto quanto “O Ciclope é um gigante de um olho só”, que é essencialmente verdadeiro na mente de Deus, mas existencialmente falso, posto que seu conteúdo não se encontra realizado em nosso mundo.

   Ainda um ponto importante é o princípio do melhor. Deus, sendo perfeito, não poderia ter escolhido realizar qualquer mundo possível. Por isso ele decidiu realizar o melhor dos mundos possíveis, que é o nosso. Nele existem coisas ruins como guerras e episódios infelizes, como o de Eva ter se deixado seduzir pela serpente... Mesmo assim, embora só Deus seja capaz de saber porque nosso mundo é o melhor, mundos melhores do que o nosso são logicamente inconsistentes e a única coisa que Deus não é capaz de transgredir são as leis da lógica (os únicos aos quais é dado esse direito são alguns lógicos contemporâneos). Por isso Deus não teve outra alternativa que não fosse a de escolher realizar o Adão que cedeu ao capricho de Eva, comendo a maçã da árvore proibida.

   Uma objeção que poderia ser feita é que se Deus, por sua perfeição, criou o melhor dos mundos possíveis, então ele teve de criar esse mundo. Ele não foi livre ao fazer isso. A resposta de Leibniz é a de que Deus ao criar este mundo não o fez forçado, mas por uma inclinação sem necessitação. É certo que a partir disso tudo o mais se seguiu através de uma imensa cadeia de necessidades; mas esse ato livre de criação serve como a justificação última para o caráter contingente das verdades de fato.

   As verdades de fato são o que são porque para que tudo o que se predica de um sujeito deva pertencer a ele Deus precisava ter uma razão suficiente para fazê-lo assim, mesmo que essa razão só seja compreendida por ele. Assim, a teoria da verdade de Leibniz implica no princípio da razão suficiente. Deus tinha em mente uma infinidade de Adãos, mas, movido pelo princípio do melhor ele escolheu realizar um só deles, qual seja, o Adão que comeu a maçã. Deus tinha em mente uma infinidade de Júlios Cesares, mas pelo princípio do melhor escolheu realizar somente aquele que lutou na Gália, atravessou o Rubicão em 49 a.C, derrotou Pompeu e foi assassinado em 44 a.C.

   Afora isso, o princípio da razão suficiente implica para Leibniz em mais um outro, que é o princípio da identidade dos indiscerníveis.[3] Nenhum objeto na natureza pode ser completamente idêntico a outro, nenhuma folha pode ser completamente idêntica a outra. E precisa ser assim, não só porque pelo princípio de individuação tudo o que acontecesse a um objeto também teria de acontecer ao outro, mas também porque Deus não teria razão suficiente para criar duas coisas absolutamente idênticas. Leibniz conta que se encontrava no jardim da Mme. N. quando apareceu um descrente colocando em dúvida o princípio da identidade dos indiscerníveis. Leibniz pediu ao homem para prová-lo encontrando duas folhas idênticas no jardim. O pobre homem procurou, procurou, mas não conseguiu encontrar, acabando por render-se ao princípio de Leibniz.

 

2

 

Passemos agora à questão da substância. Influenciado pela filosofia escolástica Leibniz via a substância como sendo aquilo que realmente existe. Sua definição era aristotélica: A substância é aquilo que pode ser sujeito de muitos predicados, mas que não pode ser predicado de sujeito algum. Mas então, o que é a substância? Leibniz excluiu a res extensa cartesiana pela seguinte razão. A substância, no sentido mais próprio, precisa ser algo que não pode ser dependente de nada mais para existir. A extensão, contudo, pode ser subdividida infinitamente. Assim, se admitíssemos que um corpo extenso fosse substância, ele dependeria de suas partes para existir, as quais seriam também substâncias e assim infinitamente. Mas a substância, por definição, não pode depender de nada (exceto de Deus) para existir. Se o mundo físico das coisas extensas não pode ser substancial, tudo o que resta são as mentes. Afinal, as mentes (para Leibniz) devem ser consideradas simples e, por isso mesmo, indivisíveis, o que as faz independentes das suas partes. E as mentes devem possuir, naturalmente, vida, tendo como características principais a percepção e a apetição (vontade).

   A essas substâncias simples de caráter mental Leibniz deu o nome de mônadas (do grego monas, que significa unidades). Elas são simples, pontuais, indivisíveis e por isso mesmo indestrutíveis. O universo é constituído de uma infinidade de mônadas que possuem percepções, ou seja, “representações no simples daquilo que é composto ou daquilo que lhe está fora”.[4] Tal como a substância aristotélica, a mônada leibniziana possui um correspondente da forma, que se encontra em seu aspecto mental, e um correspondente da matéria, que é sua potencialidade, por Leibniz chamada de matéria prima.

   Como só a substância mental é real, o espaço não pode ser real, nem o tempo. Sendo Deus perfeito ele criou um número infinito de mônadas, as quais, pelo princípio da identidade dos indiscerníveis, deveriam ser todas diferentes entre si. O que chamamos de universo nada mais é do que uma infinidade de mônadas. Enquanto Spinoza era frugal e só aceitava uma substância, Leibniz era esbanjador e admitia um número infinito de substâncias.

   Mas então, como explicar a solidez de uma rocha? Também aqui Leibniz não encontra problemas. Ele faz uma comparação com o arco-íris. As cores parecem existir, mas são meros reflexos de gotículas de água. Assim, agregados de infinitas mônadas mentais produzem a impressão de corpos físicos extensos como a rocha, que não passam de “fenômenos bem fundados” (phaenomena bene fundata). Leibniz é um filósofo idealista.

   Há uma série de propriedades das mônadas que são sui generis. A mais curiosa é que elas são “sem janelas”: elas não interagem umas com as outras, mesmo que assim lhes pareça. Elas não podem interagir porque relações não possuem a forma predicativa, e já sabemos que para ele as relações são ilusórias, não possuindo existência própria. A conclusão de Leibniz é que cada mônada, cada substância individual, já tem desde sempre a sua história completamente determinada por Deus. Além disso, a causalidade é impossível: basta considerarmos que as relações causais são originariamente temporais, a causa vindo antes de seu efeito, e entenderemos que Leibniz tem razão ao desclassificá-las. A única exceção é Deus, que é causa externa do mundo.

   Uma outra propriedade impressionante que Leibniz descobre nas mônadas é a capacidade que cada uma delas possui de espelhar todo o universo em todos os detalhes e em todos os tempos. Como ele escreve:

 

Ora, esse enlace, essa acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz cada substância simples ter relações que exprimem todas as outras e ser, portanto, um espelho vivo e perpétuo do universo.[5]

 

Esse espelhamento do universo não pode ser feito por meio de relações, mas pelas propriedades intrínsecas das mônadas. Assim, se a e b são mônadas, elas não se associam na forma aRb, mas na forma Fa e Fb, onde os F substituem os R tomando o lugar de propriedades fenomenais intrínsecas das mônadas.

   Uma outra propriedade das mônadas é que cada uma delas reflete o universo sob um ponto de vista particular, caracterizado por Leibniz como sendo a clareza e a distinção perceptual de aspectos das coisas movida pela apetição das mônadas. Explicando: cada mônada tem maior ou menor clareza e distinção diferentemente distribuída para coisas diferentes. Isso é importante porque se cada mônada reflete em si todo o universo então elas não parecem se diferenciar entre si, o que fere o princípio da identidade dos indiscerníveis; contudo, como cada uma reflete o universo sob um ponto de vista diferente, elas se diferenciam entre si nesse aspecto. É a diferença de ponto de vista que distingue cada mônada de todas as demais.

   Há uma outra maneira pela qual as mônadas diferem, que é pela sua posição na hierarquia das mônadas.

   As mais inferiores são as mônadas nuas. Agregados harmônicos de infinitas mônadas mais inferiores fazem derivar o que percebemos como sendo os corpos físicos, o mundo vegetal, os corpos dos animais e nossos próprios corpos. Essas mônadas têm percepção completamente inconsciente, não possuindo memória. Cada uma delas percebe o mundo infinitamente, mas de modo totalmente inconsciente. E um objeto físico qualquer é fundado em um número infinito de mônadas. A extensão, melhor dizendo, a impressão de extensão, era para Leibniz resultado da repetida continuidade de uma força de resistência e impenetrabilidade que constitui o que chamamos de matéria, que quando tornada força ativa produzia o movimento. Ultrapassando Descartes, Leibniz foi contemporâneo de Newton, preferindo tornar a extensão resultado da ação de forças físicas, mesmo que de modo vago e obscuro.

  O próximo nível é o das mônadas animais. Essas almas animais são capazes de percepção e memória. Elas percebem o mundo sob perspectivas particulares, mesmo assim confusas. Leibniz comparou a percepção confusa com o rugido das ondas do mar, que não permite que se ouça cada som separadamente. Assim, o corpo de um elefante é constituído de infinitas mônadas nuas, percebidas por uma mônada mestra, que é a sua mente animal. Essa última mônada é dominante em relação ao agregado de mônadas do qual se deriva o que é percebido como sendo o corpo do animal. Essa é uma sugestão mais sensível do que a de Descartes, segundo o qual os animais não passavam de autômatos.

   Em um terceiro nível temos as mônadas racionais. Espíritos racionais, como as almas dos seres humanos e os anjos, são capazes não só de perceberem o mundo sob pontos de vista particulares e de possuírem memória, mas são capazes de apercepção, que é o termo que Leibniz tinha para a consciência, que ele distinguia da mera percepção, que não precisa ser consciente.[6] Mesmo assim, embora tenhamos percepção de todo o universo, quase todo esse conhecimento é inconsciente.

   Com a noção de apercepção Leibniz (assim como Locke com o conceito de reflexão) estava antecipando as teorias contemporâneas da consciência que requerem estados mentais de ordem superior. Segundo David Armstrong, o primeiro proponente das teorias de ordem superior, esses estados se tornaram necessários para a regulação de sistemas cognitivos mais complexos. Segundo essas teorias a consciência dos estados mentais de primeira ordem dependem de sua cognição por estados mentais de segunda ordem. Para os defensores dessa teoria, um estado mental se torna consciente quando é objeto de uma cognição (percepção, para Armstrong, e pensamento para David Rosenthal) de nível superior. Por exemplo: se sinto uma muito leve dor de dente durante o dia, eu só me torno consciente dela quando penso nela. A mesma coisa deve acontecer com outros estados mentais ditos conscientes, como emoções e pensamentos. Mas a cognição de segunda ordem, segundo Rosenthal, não é consciente, a menos que se torne objeto de uma cognição de terceira ordem e assim por diante. O pensamento que está no topo, escreveu ele, nunca é consciente, o que explica a impossibilidade de uma forma completa de consciência e mesmo a dificuldade que temos em aceitar sua teoria.

 

3

 

Um outro conceito que Leibniz antecipou foi o de inconsciente, com a sua ideia de que quase a totalidade da percepção das mônadas é inconsciente. Tratam-se de petites perceptions, incapazes de ultrapassar o limiar da consciência. Somente no século XX com Freud, nas circunstâncias controladas do tratamento psicanalítico, o conceito de inconsciente foi mais detalhadamente e profundamente explorado.

   Há, finalmente, a mônada-Deus, que possui percepção absoluta do mundo inteiro sob todos os pontos de vista e absoluta apercepção. Nós somos limitados em nossos julgamentos por nossas perspectivas limitadas. Só Deus é capaz de julgar sob todas as perspectivas e com ilimitada sabedoria.

   As mônadas tem apetição, movimento, e aspiram à perfeição. Por essa razão o mundo se move em direção a Deus. Em nosso melhor mundo possível, quando algo de ruim ocorre (uma Guerra, uma catástrofe…), é apenas para que algo de melhor venha a acontecer mais tarde.

   Se as mônadas são sem janelas então por que elas parecem interagir umas com as outras? Por que eu pareço ser capaz de mover as mônadas que constituem o meu braço, ou me comunicar com outras mônadas mentes? A resposta de Leibniz foi feita por oposição ao ocasionalismo de Malebranche, que fazia sucesso na época. Malebranche rejeitava com boas razões o interacionismo de Descartes. Sua solução, porém, consistia na ideia de que Deus interfere a cada momento, fazendo com que acontecimentos no mundo exterior ocorram e fazendo com que logo a seguir a alma tome conhecimento deles e reaja, tendo a impressão de que essa reação está produzindo um movimento corporal, que é outra vez causado por Deus. O que Descartes entendia como interação passou a ser entendido como uma impressão de interação.[7]

   Leibniz não gostava dessa ideia, que fazia de Deus um trabalhador incansável. A sua solução foi tão simples quanto fantástica. Trata-se de sua famosa harmonia pré-estabelecida. Quando Deus criou o universo ele causou previamente tudo o que cada mônada perceberia ad aeternum. Deus fez isso como um perfeito relojoeiro, fazendo com que cada mônada por toda a eternidade aparentasse se relacionar com as outras, assim como relógios bem sincronizados são capazes de marcar a mesma hora.

 

4

 

Um outro tópico importante diz respeito à disputa com Newton em relação à física. Newton foi um físico incomparável, mas Leibniz lhe era superior como filósofo. Leibniz objetou contra a ação à distância implícita na ideia da força gravitacional de Newton. Aqui Leibniz antecipou especulativamente um pressuposto que só foi resgatado pela teoria generalizada da relatividade, qual seja, a ideia de que não existe uma força gravitacional atuando à distância. O que existe, sabemos hoje, é um encurvamento do espaço-tempo, que aumenta na proximidade dos corpos físicos e que faz com que corpos caiam ou entrem em órbita, como acontece com os planetas em relação ao sol.

   Leibniz também parece ter tido razão contra Newton em suas objeções à concepção absolutista do espaço e do tempo defendidas pelo último. Para Newton, espaço e tempo são absolutos e infinitos. O espaço é como um container infinito dentro do qual se encontram os objetos materiais, os eventos, as forças físicas… E com o tempo se sucede a mesma coisa: os eventos ocorrem no tempo, mas o tempo é absolutamente independente desses eventos. Espaço e tempo seriam para Newton o sensorium dei, ou seja, o meio pelo qual Deus ganha consciência do universo e se faz capaz de ordená-lo.

   Leibniz respondeu apelando para o princípio da identidade dos indiscerníveis e para o que hoje chamaríamos de um princípio da verificação. Esse princípio é nos diz que enunciados que por razões lógicas não podem ser tornados verdadeiros ou falsos simplesmente não fazem sentido. Ele respondeu a Newton dizendo que se o espaço fosse infinito, sendo o universo finito, então ele poderia estar situado em uma outra região do espaço sem que pudéssemos saber qual. O universo poderia até mesmo mover-se de uma região para outra do espaço infinito e não teríamos meios de verificar essa mudança. Se o tempo, por sua vez, fosse algo infinito dentro do qual os eventos se sucedem, o universo poderia ter se iniciado antes ou depois no interior do tempo, o que também não poderia ser verificado, pois diante da infinitude não teríamos como saber que antes ou depois seriam esses. Afora isso, Deus não teria qualquer razão suficiente para escolher situar o universo em uma região do espaço ou em um período do tempo. Afora isso, uma região do espaço infinito seria idêntica a uma outra região do espaço infinito, o que também fere o princípio da identidade dos indiscerníveis.

   O argumento contra Newton é bastante forte. Ele seria menos convincente se Leibniz não tivesse uma outra concepção do espaço e do tempo para concorrer com a posição newtoniana: a teoria relacional que veremos a seguir.

   Para Leibniz, espaço e tempo só existem porque existem corpos, eventos e forças físicas. Para ele o espaço é uma ordem de coexistências, enquanto o tempo é uma ordem de sucessões. Essa é a essência de sua teoria relacional do espaço e do tempo. Eles são dependentes das coisas que constituem o universo.

   Sob essa perspectiva, o que chamamos de espaço resulta de corpos materiais e eventos mais ou menos próximos, acima, abaixo, ao lado, com distâncias medidas pela repetição de uma mesma relação espacial. O mesmo acontece com o tempo: o antes, o depois e a simultaneidade dependem das coisas que pré-existem, pós-existem e co-existem. Como diríamos hoje, o tempo depende de eventos físicos; o tempo começou a ser medido pela repetição cíclica desses eventos, como os dias e as estações dos anos, tendo mais tarde se tornado precisos pela invenção de relógios, também eles cíclicos. Se corpos materiais, eventos e forças físicas não existissem, espaço e tempo não existiriam.

   Ao admitir que espaço e tempo são relacionais e considerando que relações para Leibniz não existem, espaço e tempo são para ele ideais: eles não possuem realidade própria. São, como ele escreveu, fenômenos bem fundados, produzidos pelos variados pontos de vista das mônadas. Mas como a monadologia é uma teoria só aceitável em meio às disputas teológicas da época de Leibniz, fazemos bem em separá-la da teoria relacional do espaço e do tempo. O próprio Leibniz fez isso ao apresentá-la em sua famosa discussão com Clarke, um seguidor de Newton.

   Um resultado da concepção relacional foi para Leibniz o horror ao vazio. Ele discutiu a experiência de Torricelli, que encheu de mercúrio um tubo fino de vidro com um lado fechado, mergulhando o lado aberto em uma cuba cheia de mercúrio. Como o mercúrio é muito pesado, parte dele descia dentro do tubo deixando um vácuo absoluto atrás de si. Leibniz respondeu que não se trata de um verdadeiro espaço vazio, pois “o vidro tem poros muito sutis através dos quais os raios de luz, os do imã e outras matérias muito finas podem passar”.[8]

   Seria interessante ver como a disputa entre espaço e tempo absolutos e relacionais pode ser projetada na física contemporânea. Segundo a teoria da relatividade restrita, medições de tempo precisam ser feitas sempre com relação a um sistema dito inercial, na qual elas se baseiam, e isso vem de encontro à concepção relacional de Leibniz. Um problema maior consistiria na comparação com a teoria da relatividade generalizada. É possível a um defensor contemporâneo de Leibniz dizer que os corpos e eventos físicos se relacionam espaço-temporalmente através da gravitação, de modo que o espaço-tempo só pode existir até onde existir gravitação. Assim, um espaço completamente “fora” do universo não poderá existir, o mesmo podendo se dizer do tempo.

 

5

 

Um último tópico a ser abordado diz respeito à oposição entre o ultra-racionalista Leibniz e seu contemporâneo mega-empirista John Locke com respeito ao conhecimento inato.

   Sendo um modelo de filósofo empirista, Locke rejeitou qualquer espécie de conhecimento inato. Nossa mente, quando nascemos, é como uma folha de papel em branco e todo nosso conhecimento é obtido a posteriori, através da experiência indutiva. Vemos o sol nascer todos os dias e, por indução, concluímos que ele também nascerá amanhã e, generalizando, todos os dias. Locke estendia o empirismo mesmo à matemática e a lógica. Um exemplo é o princípio da não-contradição, considerado por Aristóteles o mais fundamental da lógica. Segundo esse princípio “um enunciado não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido”. Para racionalistas como Leibniz, nós já nascemos com a disposição para seguir esse princípio. Para Locke é diferente: nós aprendemos os conceitos de cachorros e gatos, de vermelho e amarelo, etc. para então percebermos que cachorros não podem ser gatos, nem vermelhos podem ser amarelos… Isso nos leva a concluir que um enunciado como “Isso é um cachorro” não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido. No passo seguinte nós generalizamos, concluindo que um enunciado qualquer não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Como ainda iremos ver, até mesmo o princípio da não-contradição é, para um empirista como Locke, aprendido através da experiência empírica!

   Leibniz, pelo contrário, defendia que nós nascemos com uma multidão de inclinações, disposições, tendências ou virtualidades inatas, que incitadas pela experiência se transformam em conhecimento a priori, posto que não dependem de experiência indutiva. A palavra hoje mais utilizada é ‘disposição’. Uma propriedade de algo é disposicional quando só aparece no caso de serem dadas certas circunstâncias específicas, geralmente não presentes. Esse é o caso do sal de cozinha. Ele tem a propriedade disposicional de se dissolver se for misturado à água. Para Leibniz, o mesmo acontece com as assim chamadas ideias inatas. A sua analogia, por oposição à analogia lockeana da folha de papel em branco, é a de um bloco de mármore homogêneo com veios.[9] Tudo o que o escultor – ou seja, a experiência – precisa fazer é escavar nos veios, o que fará aparecer a estátua de Hércules – a ideia inata – que se encontrava oculta no bloco de mármore. Uma vez exposta, a estátua pode ser agora polida – melhor dizendo, a ideia inata pode ser colocada em palavras. É através do apelo a disposições inatas que um racionalista explicaria nossa capacidade para aprender e explicitar linguisticamente coisas como a aritmética e a geometria euclideana, assim como os princípios lógicos. E essa é uma posição bem corroborada pela psicologia contemporânea.

   Contudo, como justificar a verdade dessas ideias disposicionalmente inatas? A resposta de Leibniz é que, sendo feitos à imagem de Deus, possuímos um entendimento semelhante ao dele, embora infinitamente inferior, que se baseia no acesso disposicional a um conhecimento verdadeiro e a priori, que mesmo pressupondo a experiência não é dela originado. Se considerarmos o desenvolvimento da psicologia, por exemplo, a psicologia genética de Piaget, seremos levados a concluir que o tempo deu razão a Leibniz com respeito à disposição inata para a formação de conceitos e princípios que podem ser chamados de a priori no sentido de que embora pressupondo a experiência não se originaram dela. Mas ele não deu razão a Leibniz com respeito à verdade necessária dessas ideias ou princípios. O conhecimento a priori é, no entendimento de racionalistas contemporâneos como Laurence Bonjour, falível, ou seja, ele pode ser demonstrado falso pela experiência.[10] Aliás, a principal motivação de empiristas como Locke era a de garantir a flexibilidade de nosso entendimento, necessária ao desenvolvimento da ciência. Mas é exatamente essa flexibilidade aquilo que é preservado pela admissão da falibilidade do conhecimento a priori.

   O último ponto foi bem percebido e exposto de maneira incisiva por Karl Popper, um filósofo da ciência defensor do racionalismo, para quem um filósofo como Locke defendia uma teoria simplista do “balde mental”, à qual ele opunha sua teoria do holofote do conhecimento. Ele comparou nossas disposições inatas com as dos animais no fenômeno chamado de imprinting. Um ganso tem o que Popper chamou de uma “teoria” (disposicionalmente) inata: a de que o primeiro objeto móvel que ele encontrar diante de si após as primeira horas do nascimento é para ser seguido, posto que é “sua mãe.” Geralmente a “teoria” é verdadeira: esse objeto é realmente a sua mãe. Mas a “teoria” se demonstra falsa quando, por exemplo, esse primeiro objeto móvel forem as botas do pesquisador. Nesse caso, o pequeno animal irá perseguir as botas do pesquisador durante todo o seu crescimento, como se elas fossem a sua mãe em um processo irreversível.

   Popper comparou o caso dos animais caso com o dos humanos. Para ele a diferença é que, diversamente dos animais, enquanto nós compartilhamos com eles disposições inatas para formar teorias sobre o mundo, nós somos flexíveis o suficiente para abandoná-las quando a experiência às refuta. Procuramos então criar outras hipóteses teóricas que não se demonstrem refutáveis pela experiência. As disposições inatas podem ser o começo de tudo, mas não são o fim de tudo. O fim de tudo está no conhecimento científico.

   A última pergunta a ser respondida diz respeito à razão pela qual nossas disposições inatas para o conhecimento são falíveis. A resposta é simples. Elas são resultado da evolução natural. A seleção dos mais aptos faz com que sobrevivam aqueles indivíduos que possuem uma disposição, digamos, a de seguir o primeiro objeto móvel que se encontra diante deles como sendo a sua “mãe”, uma vez que esses espécimes serão os capazes de crescer e se reproduzir, passando essa disposição para a sua prole. Com o tempo todos os membros da espécie passam a possuir essa disposição.

   Mas por que tais disposições herdadas podem ser falsas? Para isso tenho uma sugestão. É porque também elas foram consequência de um processo indutivo. Na evolução, no curso do tempo, sempre novos indivíduos são expostos às mesmas circunstâncias, sendo selecionados aqueles que possuem as disposições que lhes permitam sobreviver e se multiplicar. Se essas disposições forem cognitivas, elas serão base de um conhecimento a priori. Mas sob o ponto de vista lógico esse processo seletivo é de natureza indutiva. É só pela repetição de circunstâncias similares com consequências similares que terminamos por produzir disposições cognitivas particulares. Temos a impressão de que tal processo não pode ser indutivo porque estamos acostumados com induções feitas por sujeitos cognitivos como nós mesmos. Mas isso não é necessário. Uma máquina é perfeitamente capaz de ser programado de modo a realizar induções sem necessidade de processo cognitivo. O mesmo se dá na formação de disposições através da evolução de uma espécie. Chamo a isso de indução evolucionária ou indução da espécie. Como alguns biólogos sugeriram, uma espécie pode ser tratada como se fosse um indivíduo que se estende no tempo, assim como um formigueiro pode ser tratado como um indivíduo. Do ponto de vista da formação de disposições cognitivas, uma espécie se transforma e evolui através da indução evolucionária. A conclusão epistemológica importante disso é que temos uma explicação da falibilidade do conhecimento a priori: como o mecanismo de formação das disposições inatas é indutivo, e como todo o conhecimento que advém da indução é falível, os resultados cognitivos dessas disposições podem ser sempre falseados por novas experiências.

   Uma última questão: estamos com essa ideia de uma indução da espécie esposando uma forma radical de empirismo? Creio que não. Mesmo que as disposições inatas sejam derivações indutivas da “experiência” da espécie, elas são mesmo assim inatas, atuando de modo a constituir pontos de partida estruturantes e direcionadores de nosso aprendizado. Seria mais correto dizer que estamos preconizando uma espécie de naturalismo, o que nos faz recordar de um racionalista como Spinoza. Parece claro que a oposição histórica entre racionalismo e empirismo está sendo aos poucos superada.   

 

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Para Leibniz o critério de identificação de um objeto consiste na totalidade de suas propriedades. O problema é que só o Deus de Leibniz, caso exista, será capaz de aplicar tal critério. O critério de identificação de objetos materiais a ser usado por nós mesmos deve ser suficientemente econômico para caber em nossas mentes. Os dois maiores candidatos ao papel de critério de identificação são no caso de objetos materiais a localização espaço-temporal e as propriedades essenciais. Esse é o caso, por exemplo, do critério de identificação do Taj Mahal. Esse monumento tem um critério de localização espaço-temporal: desde o término de sua construção em 1653 ele se localiza junto à cidade de Agra no norte da Índia. Mas ele também possui como critério de identificação propriedades essenciais, no caso, a de ser um belíssimo mausoléu de mármore branco com formas bem conhecidas, construído pelo imperador Shah Jahan para sua terceira esposa... A razão para privilegiarmos a localização espaço-temporal e propriedades ditas essenciais como critérios é intuitiva. Mas para convencer o cético podemos ir além, considerando o que as enciclopédias dizem. Qualquer enciclopédia que tenha um artigo sobre um nome conhecido como o Taj Mahal irá disponibilizar a localização espaço-temporal e os caracteres essenciais como critérios fundamentais para sua identificação.[11]

   Elementos espaço-temporalmente localizadores e essencialmente caracterizadores são os que nos permitem identificar objetos materiais. Eles precisam se fazer suficientemente presentes, mesmo que uma determinação mais precisa, capaz de aclarar casos limítrofes, seja impossível. Tal determinação mais precisa, felizmente, costuma ser desnecessária. Afinal, mesmo que não sejamos capazes de estabelecer se em mundos possíveis nos quais a Índia não possuía sultões ou no qual o Taj Mahal não foi construído como um mausoléu o Taj Mahal existiu realmente, os critérios acima são perfeitamente capazes de realizar seu trabalho no que concerne ao nosso mundo. Ao menos nas circunstâncias de nosso mundo, tal como nos foi dado conhecê-lo, podemos afirmar que o Taj Mahal existe.

   Observações semelhantes valem para os critérios de identificação de pessoas. Aqui devem ser adicionados critérios psicológicos de permanência, como o da memória, o das disposições de caráter e o das habilidades, também sendo impossível resolver casos limítrofes, mesmo assim sendo os critérios usuais perfeitamente funcionais para os casos ordinários.[12] A linguagem natural é naturalmente vaga e se desejarmos um maior nível de precisão bastará inventarmos novos nomes com novos critérios de identificação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] “...em toda proposição afirmativa verdadeira, necessária ou contingente, geral ou singular, a noção do predicado se encontra de algum modo contida na noção do sujeito (o predicado está incluido no sujeito).” Leibniz. Carta à Arnauld, 14 de Julho de 1686.

[2] G. W. Leibniz: Discurso de Metafísica sec. 8.

 

[3]  Esse princípio não deve ser confundido com o princípio da indiscernibilidade dos idênticos, que nada tem de metafísico. Segundo esse último princípio, se os nomes a e b se referem à mesma coisa então qualquer propriedade de a também se será propriedade de b e vice-versa.

[4] G. W. Leibniz: Princípios da natureza e da graça, sec. 1.

[5] G. W. Lebniz: Monadologia, 56.

[6] G. W. Leibniz: Monadologia, sec. 14.

 

[7] Os argumentos de Malebranche são mais sofisticados do que possa parecer nesse resumo. Ver Nicolas Malebranche: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2022 (Internet).

[8] G. W. Leibniz: Correspondência com Clarke, sobre a sec. 7.

[9] G. W. Leibniz: New Essay on Human Understanding, Prefácio..

[10] Laurence Bonjour: 

[11] Claudio Costa: How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III.

[12] Claudio Costa: “Definindo identidade pessoal”. In Arquiteturas conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2022) cap. 20.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA

  

 Parte do draft do livro "Introdução histórica à filosofia"...

 

I

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA

 

A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 500 anos antes de Cristo. Mas a filosofia enquanto tal é muito mais antiga. Para alguns ela nasceu na China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o chamado Livro das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria oracular redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras. Para outros ela teria nascido na Índia há cerca de 1500 anos antes de Cristo, originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal objetivo era orientar a vida humana.

   A filosofia, tanto ocidental quanto a oriental, teve origens religiosas. Como resultado disso temos uma incômoda confusão, ainda hoje comum entre leigos, entre filosofia e sabedoria de vida. A filosofia acadêmica, contudo, como resultado de uma especulação coletiva de comunidades de conhecedores, sedimentada sobre uma tradição milenar, pouco tem a ver com sabedoria de vida, tendo se tornado hoje uma investigação aparentemente esotérica e inacessível ao público leigo.

   É interessante lembrar nesse contexto a opinião de Hegel, para quem a filosofia, tal como hoje a concebemos, se originou realmente na Grécia antiga e não no oriente. A razão por ele aventada é que a filosofia oriental não se diferenciava suficientemente da religião.[1] Com efeito, essa filosofia se encontrava mais próxima de uma forma de sabedoria mística, de um aconselhamento sobre a arte do bem-viver, de uma forma elevada de autoajuda. Em contraste com isso, a filosofia nascida com os filósofos pré-socráticos se ocupava de argumentos críticos desenvolvidos por pessoas que conheciam bem a ciência da época. Essas pessoas buscavam substituir o legado do pensamento mitológico por um questionamento especulativo que prefigurava o pensamento científico. A opinião de Hegel pode ser exagerada, mas há nela algo de verdadeiro.

   Para entender o nascimento da filosofia ocidental precisamos considerar o pensamento dos filósofos pré-socráticos, assim chamados por terem aparecido antes de Sócrates e por terem preocupações filosóficas cosmológicas em geral diferentes das preocupações essencialmente morais de Sócrates. Eles foram os primeiros a terem surgido na Grécia, em um período que foi do século VI ao século V antes de Cristo. O principal objetivo desses filósofos era encontrar um princípio originador e sustentador de tudo o que existe, a assim chamada arché. Esse princípio pertencia à natureza (physis), daí o naturalismo dos pré-socráticos. Na época a Grécia importava a ciência nascente do Egito e da Babilônia e os filósofos pré-socráticos eram bons cientistas, conhecendo matemática, geometria, engenharia, astronomia. Em razão dessa base científica, o pensamento deles, embora incluindo algum elemento místico, caracterizava-se por um rompimento com o pensamento mitológico que os antecedeu. Seu projeto comum era o de substituir as explicações mitológicas da natureza e de suas anomalias por princípios especulativos que pelo menos tivessem a forma de princípios científicos, uma vez que em tais domínios a ciência como ciência era impossível.

 

1

 

Os milesianos. O primeiro pré-socrático foi o filósofo jônico Tales de Mileto (647-524 a.C.). Ele também foi um astrônomo e matemático, tendo previsto um eclipse solar no ano de 585 a.C. Ele acreditava que a água fosse a arché, o princípio de todas as coisas, posto que a vida nasce das coisas úmidas. O princípio água coincidia com o divino, donde tudo se encontra pleno de deuses.

   Tales foi a primeira pessoa a ter a ideia de uma unidade na multiplicidade de tudo o que existe, a intuição original de que tudo é um,[2] o que significa dizer que o universo possui uma unidade constitutiva à qual nós podemos, em princípio, ter acesso cognitivo. O esforço no sentido de obter uma compreensão unificadora de todas as coisas foi uma característica da filosofia pré-socrática e também dos grandes sistemas da tradição filosófica ocidental.

   A busca da unidade na multiplicidade tem sido em nossa época reforçada através da noção de consiliência. Ela consiste, no entender de Susan Haack, na assunção da existência de uma unidade na realidade.[3] Essa assunção é essencial à toda investigação. Ela faz com que através da investigação nós possamos admitir que diferentes ideias, caso verdadeiras, sejam capazes de se complementar umas às outras, reforçando-se assim em sua plausibilidade. A noção vale para as ciências, mas pode valer também para a filosofia.

   Tales foi sucedido por outros dois filósofos Jônicos mais jovens do que ele: Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro sugeriu que o mundo fosse resultado de um elemento indefinido ou, mais literalmente, do ápeiron, que se traduz como o ilimitado. Essa é uma ideia importante por tornar o princípio explicativo das coisas, pela primeira vez na história da filosofia, algo não perceptível aos sentidos.

   Anaximandro (610-546 a.C.) foi responsável pela ideia de que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros, que não cai nem para um lado nem para o outro, graças ao equilíbrio das forças. O filósofo da ciência Karl Popper viu nisso uma antecipação do conceito de inércia e até mesmo o da gravitação.[4] A filosofia dos pré-socráticos atuava entre a mitologia e a ciência e, às vezes, como uma clara antecipação da última.

   Anaxímenes (599-524 a.C.), por sua vez, sugeriu que o princípio originador e constitutivo fosse o ar. Afinal, não podemos permanecer vivos sem respirarmos. E disso ele supôs que o mundo inteiro, tal como um ser vivo, também fosse dependente da existência do ar para subsistir. Como explicou em um dos fragmentos:

 

Como nossa alma, que é ar, nos governa e mantem unidos, assim também o vento e o ar, que são o mesmo, mantêm unido o universo inteiro.[5]

 

Anaxágoras (500-428 a.C.), nascido na Jônia, foi outro importante filósofo pré-socrático. Ele é visto como o introdutor do conceito de mente em filosofia. Ele entendia a arché como sendo o nous, ou seja, a mente ou pensamento. Para ele a mente deve ser algo que embora sendo material é absolutamente puro:

 

A mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo o conhecimento de todas as coisas e o maior poder.

 

A mente seria uma força infinita que, agindo sobre a matéria informe, dá origem a tudo o que existe nesse mundo.

   Anaxágoras foi também o defensor da versão pré-socrática da teoria do Big-Bang.[6] Segundo ele, no começo todo o universo se encontrava comprimido em um átomo primordial:

 

Todas as coisas estavam juntas, infinitamente pequenas em número e pequenez, pois o pequeno era infinitamente pequeno. E como estava tudo unido nada era reconhecível devido à pequenez.

 

Para Anaxágoras esse ínfimo átomo era como que um plasma indiviso, posto que misturava tudo no infinitamente pequeno, fazendo com que nada mais fosse distinguível. Esse átomo primordial começou a girar com força cada vez maior, jogando para fora de si o éter e o ar e formando as estrelas, o sol e a lua. Essa rotação fez com que os elementos se separassem, mas isso nunca aconteceu por completo, de modo que cada coisa preserva em si algo de todas as demais (atualmente dizemos que também possuímos em nossos corpos átomos das estrelas). Essa expansão do universo existe hoje e continuará existindo sempre. E com isso também outros mundos semelhantes ao nosso podem ter sido gerados, com sol e lua próprios e mesmo habitados por criaturas tão inteligentes quanto nós!

   Em meio a tudo isso a única coisa que continua a mesma e que tudo move é a mente. Nesse último ponto seu Big-Bang difere do nosso, uma vez que preferimos substituir seu conceito animista de mente pelo de leis fundamentais da natureza.

 

2

 

Princípios múltiplos. Vários filósofos pré-socráticos entenderam a arché como sendo múltipla. Esse foi o caso dos seguidores de Pitágoras, que tendo percebido que tudo na natureza possuía quantidades e formas, concluíram que os números eram o princípio fundamentador do universo. Eles seriam o fundamento, começando do número um, que é base da aritmética, e do ponto, que é base da geometria. Com base na matemática os filósofos pitagóricos formaram uma seita que objetivava explicar não só o universo, mas também a vida humana. Eles acreditavam na doutrina da transmigração das almas, que acabou por influenciar o pensamento de Platão.

   Também acreditavam em princípios múltiplos os filósofos atomistas Leucipo e seu discípulo Demócrito (460-370 a.C.), do qual restaram muitos fragmentos, além de Epicuro (341-270 a.C.), um atomista tardio da época helenista. Para Demócrito o mundo é constituído do que ele chamou de átomos (a-tomos), que são partículas invisíveis, indivisíveis, com solidez e impenetrabilidade, tamanhos e formas diversas e infinitos em número. Eles são os elementos constitutivos de todas as coisas visíveis. Afora os átomos, só o que existe é o espaço ou vazio. Os átomos se movem e se chocam uns contra os outros segundo leis causais deterministas. Como consequência, os atomistas foram os primeiros filósofos distintamente materialistas. Mas isso não os impedia de acreditarem no espírito, pois as almas humanas poderiam ser entendidas como constituídas de átomos extremamente sutis. Assim, quando sonhamos com um antepassado morto pode ser porque os átomos constitutivos de suas almas penetraram em nossas cabeças enquanto estávamos dormindo, interagido com os átomos de nossas almas.

   É importante notar que os atomistas estavam antecipando a possibilidade de descobertas científicas que ocorreram mais de dois mil anos depois. Elas foram o que em sua memória decidimos chamar de átomos, que compõem a tabela periódica, mais tarde substituídos por partículas subatômicas indivisíveis chamadas de elétrons, quarks, gluons e fótons. Mesmo que eles de maneira alguma pudessem antecipar a física das partículas tal como ela é hoje estabelecida, eles anteciparam a ideia de que o universo poderia ser formado por partículas invisíveis discretas, móveis e possuidoras de massa. Não deixa de ser impressionante que após mais de dois mil anos a ciência tenha demonstrado que as especulações dos atomistas gregos são capazes de receber fundamentação científica.

   Além das especulações cosmológicas, a maior parte dos fragmentos deixados por Demócrito foram instrutivos ditames morais, muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:

 

É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem acredita tê-lo.

Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.

Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal, porém, atinge mesmo aquele que não o procura.

A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada pelo entendimento.

Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma virtuosa é o universo.

Em verdade, porém, nada sabemos, pois no abismo encontra-se a verdade.

 

É curioso notar que esses dísticos valem hoje tanto quanto valeram há 2.500 anos. Parece que o ser humano em alguns aspectos pouco ou nada aprendeu com os erros de seus antepassados.

   Um outro pré-socrático pluralista que merece ser citado foi Empédocles de Agrigento (florescido em 450 a.C.), um filósofo bastante vaidoso que se considerava um deus e que segundo a lenda deu fim a sua vida atirando-se na cratera do Etna. Ele foi um precursor de Darwin ao sugerir especulativamente que as espécies se desenvolvem através de uma luta entre seres vivos que por acaso nascem com as mais diversas características, o que faz com que só os mais aptos sobrevivam. Para ele os seres vivos se originaram do mar e o ser humano, em tempos primevos, deveria ser muito diferente, considerando que hoje ele precisa de anos de completa dependência dos pais para poder sobreviver por si mesmo, diversamente dos animais.

   Empédocles foi o inventor da ideia de que o universo é constituído por quatro elementos (raízes) que ele encontrou em filósofos anteriores. Esses elementos originários são a água (Tales), o ar (Anaxímenes), o fogo (Heráclito) e a terra (Xenófanes). Eles são imutáveis e combinam-se uns aos outros de modo a formar o universo visível. Essa teoria foi aceita até o século XVII, quando químicos como Robert Boyle fizeram-na cair por terra.

   Para Empédocles atuam sobre os quatro elementos duas forças físicas, que ele chamou de harmonia (o amor) e discórdia (o ódio). A ação alternada dessas duas forças faz com que o universo sofra um processo cíclico de mudança através do qual de tempos em tempos tudo se repete. Assim, no início de um ciclo os elementos se encontram todos perfeitamente misturados, os objetos não existem e a força imperante é a da harmonia em toda a esfera do mundo, que forma um todo homogêneo. Mas a força da discórdia logo penetra na esfera do mundo e começa a agir separando os elementos e formando os objetos hoje conhecidos, até quando terra, ar, água e fogo se tornam completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começa a agir novamente, misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o retorno ao estágio inicial de perfeição, quando inicia-se um novo ciclo pela força da discórdia... Em seu tempo Empédocles acreditava que o mundo se encontrava em um estágio intermediário, em que as forças da discórdia agiam de maneira cada vez efetiva.

   A doutrina cíclica de Empédocles foi sugerida pela observação dos acontecimentos cíclicos no mundo. As estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e darem frutos na primavera e no verão, para então perderem as suas folhas no outono secando no inverno, só para florescerem de novo no próximo ano. Os seres vivos são gerados sem forma, crescendo e se diferenciando até envelhecer e, na morte, tornam-se outra vez matéria informe.

   A ideia de um mundo cíclico foi famosamente reapresentada por Nietzsche sob a forma do que ele chamou de o eterno retorno. Mas ele o entendia como um experimento psicológico para testar a autenticidade de nossas atitudes perante a vida.[7] Para tal ele imaginou que as nossas vidas devessem se repetir identicamente nos mais ínfimos detalhes um número infinito de vezes. Se alguém aprovasse o eterno retorno, querendo que cada experiência de sua vida, cada prazer e desprazer, cada pensamento e decisão, retornasse outra vez e assim infinitamente, essa seria a prova de uma atitude absolutamente corajosa diante da existência.

    Finalmente, a ideia de um mundo cíclico nada tem assim de tão absurda. Ela tem sido presente na cosmologia contemporânea: para alguns astrofísicos o Big-Bang deverá ser seguido pelo Big-Crunch e assim sucessivamente. Existe, pois, até mesmo uma versão atual daquilo que Empédocles propôs de forma puramente especulativa.

 

3

 

Heráclito. Quero me deter em Heráclito e Parmênides, uma vez que eles foram os mais impressionantes filósofos pré-socráticos. Na antiguidade eles eram considerados opostos, pois Heráclito enfatizava a mudança e Parmênides a imobilidade do Ser. Mas veremos que nem por isso eles se opõem tão completamente, posto que por detrás da mudança Heráclito enfatiza a unidade da razão, que pode ser comparada ao Ser de Parmênides.

    Heráclito de Éfeso (florescimento 500 a.C.), como Nietzsche e Wittgenstein, foi um filósofo que se exprimia por meio de aforismos oraculares. Muitos desses aforismos são profundos e nos dizem algo ainda hoje. Eis alguns deles:

 

A harmonia invisível é mais forte do que a visível.

O que está em cima é idêntico ao que está embaixo.

A natureza ama ocultar-se.

Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e da lira).

A harmonia invisível é mais forte que a visível.

Jamais encontrarás os confins da alma, tão profundo é o seu logos.

 

Heráclito pertencia à nobreza hefésia. Foi um pensador de índole aristocrática, misantropo, melancólico, mas profundo e poético. Expressava-se por meio de aforismos de tom profético. Seus dísticos eram intencionalmente obscuros de modo a não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele desdenhava o homem comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir racionalmente.

   Heráclito era um elitista no que concerne aos seres humanos. Embora a razão seja um bem comum a todos, para ele muito poucos são os que fazem uso dela:

 

A despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um entendimento particular; não sabe nem escutar nem falar.

As opiniões dos homens são jogos de crianças.

 

Heráclito, ao que parece, era também um filósofo capaz de odiar em medida pouco comum, como demonstram seus aforismos desdenhosos acerca de seus concidadãos. Faço aqui apenas uma breve seleção deles:

 

Os porcos preferem a lama à água limpa.

Os cães ladram para o que desconhecem.

Tudo o que rasteja merece ser chicoteado.

Um para mim vale mil se for o melhor.

Asnos preferem a grama ao ouro.

 

Se você quiser ofender alguém gravemente sem precisar lançar mão de palavrões, basta se lembrar de algum desses aforismos.

   Heráclito foi o filósofo do conflito. Para ele o conflito entre os opostos é necessário, pois é dele que nasce a mais bela harmonia. Ele considerava as guerras necessárias:

 

A Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.

 

A Guerra como solução de conflitos era parte essencial do mundo antigo. Por exemplo, foi graças à genialidade e astúcia de um general grego, Temístocles, que a Grécia não foi escravizada pelos persas, permitindo a continuação da produção cultural grega com o aparecimento de Platão e Aristóteles. Hegel era um admirador de Heráclito. A ideia hegeliana de que a razão humana é apenas um momento da razão universal parece ter sua origem em Heráclito.

   Mas não seria a necessidade da guerra uma ideia ultrapassada, posto que esperamos que no futuro as guerras deixem de existir? Essa seria uma maneira bastante superficial de entendermos o que Heráclito quis dizer. Mesmo que as guerras deixem de existir, os conflitos entres grupos humanos continuarão existindo de forma mais elevada, por exemplo, como conflito de influências, valores, ideias e ideais. Se Heráclito estivesse aqui entre nós ele diria que a sua ideia de guerra, agora entendida de forma metafórica como qualquer forma de convulsão social, continuará sempre existindo, dado que é inerente à vida humana em sociedade.

   Outra ideia iconoclasta de Heráclito é a de que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para que exista a justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas oposições são interdependentes, o que deve desfazer a ilusão escapista de que possa haver um mundo inteiramente justo e inteiramente bom, ao menos dentro da perspectiva humana. Essa ideia vale para a sociedade e também para os indivíduos. Para Heráclito o ser humano é constitutivamente aprisionado ao conflito, de modo que a possibilidade de que ele se eleve à afirmação de uma existência para além de qualquer conflito é enganosa. De onde se pode concluir que seria melhor para o ser humano aceitar o conflito e tentar superá-lo conscientemente pela ação ou pela reflexão – aqui um ponto de contato entre Heráclito e Nietzsche.

   Faço uma pausa para lembrar um livro: O visconde partido ao meio de Ítalo Calvino. Na estória, o visconde Medardo di Terralba é uma pessoa que na Guerra contra os mouros foi partido em duas metades por uma bala de canhão. Os cirurgiões conseguiram resolver o problema separando as metades de modo a formar duas pessoas, dois viscondes. Mas eles incorreram em um erro, pois um deles herdou a parte má do visconde, enquanto o outro herdou a parte boa. Aquele que herdou a parte má se transformou em um psicopata que se divertia em destruir tudo o que fosse vivo, belo ou bom. Já o que herdou a parte boa era bom demais. Era ingênuo e esquecia de si mesmo. Sua namorada logo se cansou dele por considerá-lo tedioso. A estória termina quando as duas metades se reencontram e entram em duelo. Curiosamente, durante a luta elas pareciam querer aproximar-se uma da outra. Feridos, eles caem outra vez nas mãos de um cirurgião competente, que reúne as duas partes e faz reviver o visconde original. Sem grande surpresa esse novo visconde passa a ser uma pessoa que age corretamente, na justa medida, ciente outra vez dos extremos volitivos do bem e do mal que deve manter sob a vigilância e o controle de sua consciência.

    Para Heráclito a arché não era a água, nem o ar, nem a terra, mas o fogo, no qual outros elementos se desfazem. Segundo ele:

 

Este mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre vivente fogo, com medidas certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.

 

Para ele sem o conflito o mundo se desfaria em nada. Ele não foi só o filósofo do conflito, mas também do movimento, da mudança. Como o fogo, tudo se encontra em movimento, embora preso a medidas determinadas por leis. Também a vida é tensão, conflito, movimento incessante:

 

Tu não podes atravessar duas vezes o mesmo rio, pois novas águas correm sempre por ele.

 

Mas não entende Heráclito quem acredita que ele queria reduzir tudo ao movimento e ao conflito desordenado, pois sob o conflito de opostos ele acreditava em uma ordem oculta da natureza imposta pelas leis da razão (o logos) e alcançável através do pensamento. Para ele é a razão que secretamente domina o mundo. Heráclito era um panteísta que acreditava que Deus se encontra em todas as coisas. Mas esse Deus, o Uno, era para ele a própria razão que revela a identidade na diferença, a unidade no todo e a medida de cada coisa. A razão, escreveu ele, é comum a todos, mas o vulgo não faz uso dela, nem os habitantes de sua cidade, que deveriam ser todos enforcados, nem mesmo os grandes poetas como Homero e Hesíodo.

    O fundamento último da filosofia de Heráclito não se encontra, portanto, no movimento, nem no conflito dos opostos, mas na ideia da unidade do todo, na ideia de que a razão, o logos que subjaz ao conflito, é capaz de unificar os opostos e dar lhes proporção e medida. Sob a perspectiva do Deus que para ele é a razão ou o Uno, todas as tensões são reconciliadas e as diferenças harmonizadas. Como ele disse:

 

Para o Deus todas as coisas são justas e boas, mas os homens sustentam que algumas coisas são erradas e outras certas.

 

Há também em Heráclito o que me parece uma sugestão acerca da natureza da filosofia como um saber antecipador da ciência, que ele apresenta na forma do saber adivinhatório do oráculo. Eis como ele o expõe:

 

A sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos, graças ao deus que está nela.

 

Esse juízo de Heráclito sobre a sibila é na verdade sobre sua própria filosofia. Ele também se aplica ao que de melhor foi feito na história da filosofia. Muito da filosofia pré-socrática metaforicamente antecipa o que será futuramente tematizado em maior rigor e detalhe por outros filósofos ou mesmo descoberto de forma científica. Por isso a filosofia também tem sido chamada de o berçário das ciências, ou ainda, de o guardador de lugar da ciência.

 

4

 

Parmênides. Talvez o mais influente dentre os filósofos pré-socráticos tenha sido Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), o fundador da escola eleática. Para ele o princípio, a arché, era o que ele chamou de o ser. Ele definiu o ser como uma coisa imóvel e imutável. A ideia central é a de que o ser, o uno, é, enquanto o não-ser, a mudança, o devir, é apenas ilusão. Precisa ser assim porque se qualquer coisa vem a ser então ou ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se ela vem a ser do ser então ela já é, caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se qualquer coisa vem do não-ser, então ela nada é, pois nada vem do não-ser.

   Mas o que é, afinal, o ser? Parmênides apresenta o ser como possuindo uma lista de atributos. Para ele o ser é incorruptível, nem é gerado nem perecível, encontrando-se inteiro em cada instante. Ele é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel e também finito e redondo, pois a esfera finita era para os gregos o símbolo da perfeição. Em conformidade com o modo de pensar dos pré-socráticos o ser parmenideano deve, pois, pertencer à physis, à natureza. E como ele adiciona que o objeto do pensar e do ser é o mesmo,[8] ele parece estar apontando para o objeto do pensar verdadeiro. O ser parmenideano parece tomar o lugar dos deuses do politeísmo, mas perdendo a qualidade de projeção antropomórfica característica dos últimos. Seu discurso sobre o ser também poderia estar apontando para as leis da natureza, mais tarde aproximativamente apreendidas pela mente humana, no que parece possível de ser encontrada uma proximidade última entre Parmênides e Heráclito.

   Parmênides complementa esse pensamento metafísico-ontológico (i.e., daquilo que é, que existe de maneira mais geral) com algumas sugestões epistemológicas que dão início a um domínio de investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que chega até os dias de hoje. Ele distingue explicitamente a via do conhecimento da via erro. O conhecimento diz respeito ao ser, enquanto o erro diz respeito ao pretenso conhecimento do não-ser. O conhecimento do ser é imutável, diversamente do pretenso conhecimento do não-ser, que advém da aparência, que é o conhecimento daquilo que aparece aos sentidos e se apresenta como mutável.

   Vale a pena transcrevermos aqui o fragmento principal do poema de Parmênides:

 

E agora (disse a musa) vou falar: e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que não pode ser que ele não seja; esse é o caminho da persuasão, pois segue a verdade. O segundo caminho diz que o que não é, é, e que o não-ser é necessário; essa via, digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é, nem expressá-lo em palavra.[9]

 

Filósofos posteriores, tanto materialistas como idealistas, foram influenciados por Parmênides. Assim, os atomistas, que eram materialistas, acreditavam que os átomos eram o ser, pois estes eram imutáveis e indestrutíveis. Já Platão acreditava que o Ser eram as ideias imutáveis e indestrutíveis, existentes em um mundo puramente inteligível e de ordem superior ao mundo material.[10]

   Os discursos de filósofos como Heráclito e Parmênides nos impressionam tanto hoje quanto na época em que foram escritos e o que eles significam possui muito de originário e enigmático, tendo suscitado inúmeras interpretações. O efeito tão sublime quanto ofuscante do poema de Parmênides parece ser o resultado da condensação de ideias diversas, mas relacionadas, vagamente expressas em algumas poucas linhas. Ela pode ser assim interpretado como uma antecipação metafórica e sincrética do que será mais tarde detalhado por outros. Há nele um resquício da religião, dado que ele possui ainda características divinas, como as de ser eterno e indestrutível. Considere, por exemplo, o que os lógicos depreenderam do poema de Parmênides. Eles perceberam que ao afirmar que o ser é e que não pode não ser ele estava vislumbrando os princípios da identidade e da não-contradição, mais tarde detalhadamente tematizados por Aristóteles. Há também um aceno epistemológico na ideia de que não se pode conhecer aquilo que é falso. Além disso, ele nos faz pensar nas leis últimas da natureza. Parmênides inventou a substantivação do verbo ser como uma espécie de metáfora universal que lhe permite dizer muito mais do que pode ser dito no discurso literal.

 

5

 

 

Os filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem substituído as explicações mitológicas por especulações metafísicas que possuíssem o que poderíamos chamar de a forma das teorias científicas, entendendo-se por isso ideações especulativas que detém suficiente analogia com as últimas e cuja criação é motivada por um conhecimento prévio da natureza da investigação científica. É isso o que há em comum entre o atomismo especulativo de Demócrito e a teoria atômica da microfísica contemporânea, ou entre a especulação de Anaxágoras e a presente teoria cosmológica do Big-Bang. Eles tiveram a ideia de substituir a antiga explicação do cosmo por meio de deuses pela explicação através de princípios especulativos que eles mesmos não tinham como avaliar, dado a insuficiência de meios e informações que lhes permitissem resultados precisos em um domínio de investigação ainda inexistente.

   Tais especulações só foram possíveis porque esses filósofos foram profundamente influenciados pelas ciências que eles conheciam e cujo desenvolvimento já se iniciava na Grécia antiga. Havia a matemática importada do Egito e da Babilônia, como o caso da geometria, considerada pela primeira vez pelos gregos em abstração de suas aplicações, o que permitiu que ela fosse axiomatizada no trabalho que culminou com a obra de Euclides intitulada Os Elementos. Havia o conhecimento de astronomia tomados dos egípcios. Platão já acreditava que a terra se movia. Sabemos, por exemplo, do notável feito de Erastótenes (circa 300 a.C.). Ele conseguiu medir o diâmetro da terra com razoável precisão, já sabendo que ela era redonda. Ele mandou colocar duas estacas ao meio dia, separadas mais de mil quilômetros uma da outra. Uma delas fazia uma sombra maior do que a outra, devido à circunferência da terra. Tomando como comparação as medidas dos triângulos formados pelas estacas e suas sombras, ele conseguiu calcular com certa precisão a circunferência da terra, um feito extraordinário que foi esquecido nos séculos seguintes. Havia também um conhecimento de engenharia e de rudimentos de física, como pode ser ilustrado pela lei de Alavanca de Arquimedes (287-222 a.C.) ou por sua medição da massa específica de diferentes substâncias, estabelecida pela relação entre o volume de água por elas deslocado e o peso. É evidente que os gregos já estavam cientes da imensa vantagem teórica e prática que só o conhecimento científico é capaz de trazer.

 

6

 

Auguste Comte. O estudo dos filósofos pré-socráticos nos oferece uma excelente oportunidade para investigarmos a natureza da filosofia. Quando nos perguntamos sobre o que eles estavam fazendo e sobre a natureza da filosofia em sua relação com a ciência, alguma luz pode ser trazida pela consideração da assim chamada “lei dos três estados” desenvolvida por Auguste Comte (1798-1857), o mais importante filósofo francês do século XIX.

   A chamada lei dos três estados da evolução da civilização, embora já antevista por outros, foi mais sistematicamente desenvolvida por Comte em seu Curso de filosofia positiva.[11] Esses estados são o teológico, o metafísico e o positivo. Quero no que se segue interpretar lei de tal forma que ela ainda possa ser reconhecida como plausível. Uma primeira observação é que não se trata obviamente de uma lei no sentido mais estrito das leis físicas, mas de uma lei no sentido de uma regularidade tendencial. Trata-se da identificação de uma vaga sucessão de três estados, que tendem a se sobrepor de modo parcial e irregular no desenvolvimento da civilização. Eis como Comte a apresenta:

 

A lei consiste em que cada uma de nossas principais concepções, cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes estados teóricos: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas pesquisas, três métodos de filosofar (...)[12]

 

O estado teológico é aquele no qual as anomalias da natureza (seus imprevistos) são explicadas pela intervenção de projeções antropomórficas chamadas “deuses”. Tendencialmente ele começa com o subestado do fetichismo, caracterizado pelo animismo: a ideia de que objetos como plantas e animais também incorporam deidades. O estado teológico passa então ao politeísmo, no qual um grande número de deuses concorre na explicação das anomalias da natureza. Nesses dois subestados, cada anomalia pode ser explicada por um deus diferente, não se impondo a questão de unificar suas causas. Essa unificação só é realizada no terceiro subestado, o do monoteísmo, que se caracteriza pela crença na existência de um único Deus. O monoteísmo permite uma explicação unificada do mundo, ainda que antropomórfica. Para Comte, o estado teológico corresponde à infância da humanidade. Em suas fases iniciais ele é repetição do que ocorre no crescimento cognitivo do indivíduo humano, correspondendo à sua infância, ou seja, ao estado no qual a criança acredita na existência de fadas, bruxas e gnomos.

   O estado metafísico é o que faz a transição entre os estados teológico e positivo. Nele os seres humanos buscam substituir os seres sobrenaturais por entidades abstratas em uma passagem do imaginativo para racional. O Deus sobrenatural deve ser substituído por “abstrações personificadas” que sirvam de princípio explicativos para todo o universo, de preferência reduzindo-se tudo a um único princípio. Exemplos de tais princípios explicativos são as archai dos pré-socráticos. Esse estado é uma passagem intermediária entre os estados religioso e científico.

   Os estados religioso e metafísico são importantes para Comte por motivarem os seres humanos a continuarem buscando o conhecimento científico quando ele ainda não é possível. Foi assim que o ser humano persistiu observando os movimentos dos astros por milhares de anos quando buscava através disso meios de prever o futuro. Mas essa persistência foi indispensável, pois foi só por meio dessas crenças supersticiosas que o ser humano se permitiu chegar a descobertas astronômicas reais, desde a medição, distinção e previsão dos movimentos das estrelas e planetas, do geocentrismo de Ptolomeu, até mais tarde a ruptura que consistiu no heliocentrismo de Copérnico, nas leis de Kepler e nas descobertas de Galileu e Newton. Sem um longo estado de especulação pré-científica nada disso poderia ter ocorrido. Para Comte esse foi o momento da adolescência da humanidade. Em termos de desenvolvimento cognitivo do indivíduo trata-se realmente da adolescência, na qual os jovens se comportam como aprendizes de feiticeiros, crendo tudo saber sem terem aprendido o suficiente. (Piaget identificou a característica metafísica do adolescente com o domínio intuitivo da lógica proposicional no estágio operatório-formal depois dos 12 anos de idade.)

   Fazendo abstração de qualquer tentativa de datar os estados[13] e desconsiderando o radicalismo positivistas de Comte, a consideração do estado metafísico nos auxilia na compreensão do que os filósofos pré-socráticos estavam fazendo, pois os princípios ou archai por eles buscados encontravam-se de algum modo entre os deuses da mitologia e as leis naturais. Podemos aqui distinguir duas espécies teóricas de archai: as excessivas e as escassas. As excessivas são as que adicionam a entidades naturais propostas como formas de leis entidades com vida e consciência própria semelhantes aos deuses. As escassas são as que se restringem a entidades naturais propostas e formas de leis, sem a adição de entidades supernaturais. Os pré-socráticos são os melhores exemplos de filósofos metafísicos no sentido proposto por Comte, uma vez que suas archai apresentam o inteiro espectro, já que eles estavam enfadados da mitologia e aspiravam a ciência sem ter condições de alcançá-la, disso resultando suas especulações. Assim, a água de Tales era um princípio exuberante: ela funciona como se fosse uma lei natural a possibilitar a vida, encontrando-se ao mesmo tempo repleta de deuses. O ar de Anaximandro era necessário à respiração e, portanto, à vida. Para os pitagóricos esses princípios eram números e formas tornadas exuberantes, posto que não só satisfazem relações matemáticas e geométricas, mas que devem exercer papel determinante no destino dos seres viventes. O ar de Anaximandro é uma arché que permite, pela sua respiração, fazer o homem e o universo viverem, sendo também espírito, ainda que menos exuberante. O mesmo acontece com a mente de Anaxágoras. Aqui o papel do psicológico é menor, posto que essa mente deve pertencer à physis; ainda assim trata-se de um princípio espiritual capaz de comandar o curso do universo. Em Empédocles os quatro elementos regidos pelas forças do Amor e do Ódio, que apesar de receberem nomes de afetos são melhor interpretadas como forças físicas, regulando nomologicamente o curso cíclico do universo, o que os torna as archai escassas. Exemplos de archai escassas, elementos ou formas não-espirituais, são os átomos de Demócrito, o Ápeiron de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e o ser de Parmênides. Neles o aspecto espiritual tende a desaparecer, permanecendo alguma coisa vaga e obscura, uma forma que toma o lugar de da inalcançável compreensão do todo. Princípios metafísicos fundamentadores da realidade como um todo continuaram sendo propostos ao longo de toda a história da filosofia. Assim, Platão tinha as ideias, Aristóteles a substância, os medievais o Deus dos filósofos, Leibniz as mônadas, Kant o noumenon, Hegel o absoluto, Heidegger o Ser, Wittgenstein o indizível... Sob essa perspectiva o período metafísico foi mantido até pelo menos a primeira metade do século XX, em discrepância com a perspectiva positivista de Comte.

   O último estado é o científico ou positivo. Aqui o ser humano substitui a pergunta pelo “porquê” pela pergunta pelo “como”. Ele desistiu de buscar princípios últimos explicativos de todo o universo, contentando-se em buscar relações fixas entre os fenômenos observados, ou seja: leis da natureza. Ao invés de buscar por uma verdade absoluta o ser humano passou a buscar verdades por meio de aproximações sucessivas, consciente de poder sempre estar errado. Essa seria a fase adulta do desenvolvimento da humanidade, correspondendo, na psicologia do crescimento individual, ao homem adulto.

   O ponto importante é que se Comte estiver certo então a filosofia, compreendida pelo que ele chama de metafísica, deverá ser toda ela em algum ponto substituída por alguma espécie de ciência.

 

7

 

A lei dos três estados precisa ser complementada pela classificação das ciências particulares feita por Comte, uma vez que os estados religioso e metafísico antecedem o nascimento de cada uma delas e que elas nascem sucessivamente da mais simples para a mais complexa, em dependência uma da outra.

   Para Comte as ciências empíricas particulares podem ser classificadas segundo a sua generalidade e segundo a sua complexidade. A generalidade opõe-se à complexidade e vice-versa. Quanto mais geral é uma ciência, mais simples ela é em seus princípios. Quanto mais complexa é uma ciência, menos geral ela é. Alterando um pouco a lista de Comte das ciências particulares nós chegamos ao seguinte quadro:

 

Maior complexidade              SOCIOLOGIA

                                               PSICOLOGIA

                                               BIOLOGIA

                                               QUÍMICA

                                                FÍSICA                          Maior simplicidade                 

 

A física é a ciência de maior simplicidade quanto aos princípios. Em compensação suas leis devem se aplicar ao universo inteiro. A química diz respeito a combinações entre os átomos. Ela se aplica ao fenômeno emergente que são os compostos químicos que existem na terra, mas não se aplica a maior parte do universo, que não permite a composição química mais complexa. A biologia se aplica à vida, um fenômeno emergente relativo aos reinos animal e vegetal, que cobrem parte da terra. A psicologia diz respeito apenas aos seres vivos conscientes, capazes de vida mental, o que é mais um fenômeno emergente, não se aplicando, por exemplo, aos vegetais. E a sociologia só se aplica aos seres vivos conscientes capazes de se reunir na formação de sociedades complexas, o que nos permite perguntar se essas sociedades não são também um fenômeno emergente.

   Há um grande número de outras ciências, mas elas são derivadas, por exemplo, a geologia, que usa conhecimentos da física, da química, da biologia, etc. com o objetivo de estudar rochas. A astronomia (que Comte erroneamente considerava uma ciência particular) aplica conhecimentos de física, química, etc. para estudar o cosmo. A neurociência intenta aplicar nosso conhecimento de biologia, bioquímica, biofísica, etc. para estudar o funcionamento do cérebro...

   Importante é notar que a passagem do estado metafísico para o estado científico se deu no emergir de cada ciência particular em tempos diferentes. As ciências mais gerais surgiram primeiro, uma vez que seu conhecimento era geralmente pressuposto para o surgimento das outras. A “física” aristotélica (enquanto física) era puramente especulativa e completamente errônea, tendo prevalecido até o fim da Idade Média, tornando-se realmente ciência só após Galileu, no século XVI. Entre as ciências empíricas a física surgiu primeiro, uma vez que ela é pressuposta pelas outras ciências particulares, mas não as pressupõe. A química só passou de seu estado metafísico para o estado científico no final do século XVIII, pressupondo em muito a física. A biologia só começou a se libertar das especulações durante o século XIX com Pasteur, pressupondo para seu desenvolvimento o conhecimento de ciências mais básicas, incluindo invenções como a do microscópio. E a psicologia e a sociologia se encontram ainda hoje em um estado parcialmente conjectural (metafísico), a despeito do otimismo de Comte quanto à última. Ciências derivadas como a neurociência, por sua vez, dependem para seu desenvolvimento de toda espécie de desenvolvimentos anteriores de outros ciências, inclusive na produção dos meios de pesquisa. Quando consideramos o que se deu realmente vemos que a lei dos três estados diz respeito apenas a uma tendência geral de sucessão, não existindo um tempo histórico para cada estado, visto que eles se sobrepõem de tal maneira que ainda hoje encontramos resíduos do estado teológico e muito do estado metafísico em muito do que fazemos.

   Um ponto a ser adicionado é que a ruptura epistemológica abrupta que aconteceu com o surgimento de uma ciência como a física não precisa se repetir da mesma forma no surgimento de outras ciências. A passagem da psicologia para a ciência tem sido gradual, com dimensões resistentes na assim chamada psicologia profunda. Se domínios da filosofia como a epistemologia e a ética passarem ao nível de ciência isso não significa que deverá haver uma ruptura com a epistemologia e ética tradicionais, que conserva algumas verdades já descobertas por Platão. Além disso, se domínios centrais da filosofia forem capazes de passar ao nível de ciência precisaremos considerar melhor que conceito de ciência estaremos usando. 

   Filósofos em geral sempre torceram o nariz para as ideias de Comte. Eles se sentiam feridos pelo seu positivismo reducionista, por sua maneira antifilosófica e apressada de substituir a conjectura filosófica pela ciência. Sartre chegou a dizer que Comte está na origem do fascismo... Mas isso é bastante injusto. Sensatamente consideradas, certas ideias de Comte parecem-nos hoje, em suas linhas gerais, bem mais plausíveis do que algumas especulações de Sartre, especialmente quando revisadas sob a perspectiva que veremos a seguir.

 

7

 

J. L. Austin. A consideração da lei dos três estados nos leva diretamente a uma outra ideia, que é a de que a filosofia é uma protociência. Segundo ela a filosofia é aquilo que é possível fazer antes do surgimento da ciência. Quando ainda não sabemos o suficiente sobre os métodos a serem empregados, quando não sabemos sequer quais são os dados que devem ser considerados mais fundamentais, por isso mesmo não tendo critério para saber que teoria devemos escolher, o que resulta é uma pluralidade de conjecturas filosóficas. Essa situação também permite um uso relativamente livre da imaginação na busca de soluções meramente especulativas. E isso é aquilo que mais caracteriza a filosofia. Como observou J. L. Austin em uma famosa metáfora que não me canso de repetir, na qual prepara o terreno para seu plano de retirar do domínio conjectural da filosofia uma ciência da interação comunicativa:

 

Na história da investigação humana, a filosofia ocupa o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso: de tempos em tempos ele lança fora uma porção de si mesmo para formar estação como ciência, um planeta, frio e bem regulado, progredindo continuamente em direção a um final distante. Isso aconteceu há muito tempo atrás com o nascimento da matemática, e ainda com o nascimento da física... Não é possível que o próximo século possa ver o nascimento, através do trabalho conjunto de filósofos, gramáticos e numerosos outros estudantes da linguagem, de uma verdadeira e abrangente ciência da linguagem? Então nós teremos nos livrado de mais uma parte da filosofia (haverá ainda muitas deixadas para trás) da única maneira pela qual podemos nos livrar da filosofia, que é chutando-a para o andar de cima.[14]

 

Austin demonstrou isso na prática. Ele passou os últimos dezesseis anos de sua vida trabalhando no desenvolvimento de uma gramática dos diferentes atos de interação linguística, como afirmar, perguntar, prometer, pedir, ordenar, batizar... disso resultando o que ele chamou de uma “teoria dos atos de fala,” que hoje é estudada mais nos cursos de linguística do que nos de filosofia.[15] Esse é o conceito de filosofia como protociência, complementar à visão de Comte. O sol inicial central e tumultuoso não pode ser melhor descrito do que na exposição da filosofia originária dos pré-socráticos.

   Há nesse ponto uma objeção à ideia de filosofia como protociência que é sintomática e resulta de simples confusão. Ela foi feita por Anthony Kenny, que observou que pelo menos os domínios centrais da filosofia, como a metafisica, as teorias do significado e a ética, continuarão para sempre filosóficos.[16] Essa conclusão se deve à concepção positivista de ciência que Kenny e muitos outros tem em mente. A concepção mais difundida é a proveniente do positivismo lógico e se resume ao emprego de experimentos verificacionais (Carnap) ou falseadores (Popper), notadamente aqueles passíveis de repetição. Tais concepções se aplicam quando muito à física, mas não se aplicam a domínios obviamente científicos como a teoria da evolução, que não é passível de experimentos repetíveis. Ademais, o que dizer de ciências como a linguística, a história, a antropologia física? Concepções positivistas de ciência costumam ser reducionistas, por isso mesmo deixando de corresponder ao que cientistas e pessoas com educação científica costumam chamar de ciência, que é algo muito mais amplo. Se quisermos entender a filosofia como protociência tendo uma concepção positivista da natureza da ciência a conclusão de Kenny é inevitável. O sol seminal filosófico, naquilo que ele tem de mais central, jamais poderá dar lugar à ciência.

   Há, porém, uma definição de não reducionista de ciência que se complementa perfeitamente com a ideia de filosofia como protociência e que corresponde exatamente ao que cientistas e pessoas com educação científica costumam chamar de ciência. Trata-se do que um sociólogo da ciência, John Ziman, sugeriu. Segundo Ziman, o traço mais fundamental da investigação científica é que ela é um conhecimento público consensualizável (públic consensualizable knowledge). Explicando: o conhecimento científico precisa ser apto à possível obtenção de consenso quanto aos seus resultados da parte de uma adequada comunidade de ideias.[17] Essa é a concepção implicitamente vigente entre os cientistas. A antropologia física é científica porque a comunidade científica é capaz de concordar com os seus resultados. A teoria das cordas pertence à microfísica, que é ciência, porque é ao menos fisicamente (mesmo que não praticamente) possível que ela venha a obter uma comprovação experimental com a qual os físicos estejam de acordo. Mas isso não acontece com a astrologia, visto que os astrólogos jamais conseguiram chegar a um acordo sobre seus resultados. E isso também não acontece com a filosofia. Resumindo-nos aos pré-socráticos, não temos como dizer quem estava certo, se Heráclito ou Parmênides, se Empédocles ou Demócrito. A pergunta sequer faz sentido.

   Se admitirmos uma concepção suficientemente liberal de ciência como a proposta por Ziman, a possibilidade de que toda a filosofia venha a se tornar ciência se torna plausível. Quando teorias pertencentes a domínios centrais da filosofia como a epistemologia e a ética se tornarem objeto de consenso entre os filósofos, eles deixarão de ser filosóficos para se tornarem científicos. E não precisaremos nos tornar positivistas ou reducionistas para concordarmos com isso.

 

8

  

O triângulo filosófico. Há, por fim, ainda outra maneira conhecida de se entender a natureza da filosofia que é complementar ao que sugerimos até aqui e que nos proporciona um quadro mais amplo.[18] Trata-se da ideia de que a filosofia seja uma prática cultural derivada. Um exemplo de prática cultural derivada é a ópera. Ela é basicamente um resultado derivado de três práticas artístico-culturais que são: a poesia, o enredo literário e a música (a melodia instrumental junto ao canto lírico). Tendo em vista a filosofia, parece que podemos considerá-la como uma prática cultural derivada das três práticas culturais mais fundamentais, que são as práticas religiosa, artística e científica. A filosofia não é propriamente nenhuma dessas três práticas, mas retira material, métodos e motivações de cada uma delas. Da prática religiosa ela retira a motivação mística, visível em sua perspectiva abrangente, como no tradicional e impossível esforço para explicar o universo como um todo e o lugar do homem nele. Da prática artística ela retira seu caráter inevitavelmente metafórico, como visto em seus conceitos fundamentadores (como o ser, a ideia, a coisa em si, o absoluto...), em suas imagens retóricas, em seus exemplos. Finalmente, da prática científica ela retira seu objetivo heurístico, além de sua metodologia formal ou empírica. Com isso podemos construir um triângulo em cujos vértices se encontram a religião, a arte e a ciência, encontrando-se a filosofia no espaço interior do triângulo, como é sugerido abaixo:

 

                                                    CIÊNCIA

 

                                                  FILOSOFIA

 

                RELIGIÃO                                                     ARTE

 

Quando consideramos a filosofia dos pré-socráticos encontramos todos esses elementos. É evidente o elemento estético nos aforismos de Heráclito ou no poema de Parmênides. Mas Heráclito escreve em tom oracular e o poema de Parmênides é apresentado por uma deusa, o que revela o elemento místico. Finalmente, Heráclito busca a sabedoria do logos enquanto Parmênides tem por objeto o conhecimento do que é verdadeiro, coisas que podem ser buscadas pela ciência. A mesma combinação podemos encontrar em outros filósofos pré-socráticos.

   Podemos intuitivamente situar os diferentes filósofos em diferentes locais internamente ao triângulo. Filósofos que possuem em medida similar elementos místicos, estéticos e heurísticos podem ser postados no meio do triângulo, a exemplo de Platão. Filósofos cujo trabalho possui predominância de elementos místicos podem ser postados próximos ao vértice religioso do triângulo, a exemplo de Hegel. Filósofos com predominância de elementos estéticos, poetas-filósofos como Nietzsche, podem ser postados próximos do vértice artístico do triângulo. Filósofos com predominância dos elementos estético e místico, como Kierkegaard e Heidegger, podem ser postados próximos à linha de baixo do triângulo. E ainda, Filósofos com interesses particularmente heurísticos, como Locke, Russell, Rudolph Carnap e Saul Kripke, podem ser postados próximos ao vértice científico do triângulo.

   O triângulo filosófico nos ajuda até mesmo a classificar as filosofias de diferentes culturas. Filósofos alemães, desde místicos como Meister Eckhart até filósofos de grande estatura como Kant, Husserl e Heidegger, geralmente demonstravam proximidade do vértice religioso, que foi grandiosamente exemplificada pelo idealismo absoluto de Hegel. A filosofia francesa desde Descartes, mas em um nível extremo no movimento pós-modernista de pensadores como Foucault, Deleuze e Derrida, possui ênfase estética, tendendo ao extremo artístico. Finalmente, a filosofia anglo-americano-australiana põe ênfase no aspecto heurístico, próprio do vértice científico. Basta considerar exemplos de filósofos como Locke, Russell, W. V-O. Quine, Saul Kripke, e mesmo, se bem considerados, J. L. Austin e John Searle.  

 

9

 

A filosofia dos pré-socráticos foi no século V substituída pela filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão e Aristóteles. Os dois últimos, junto a filósofos como Kant, Hume e Hegel, constituem o cânone, se assim podemos se pode dizer, da tradição filosófica, pela amplitude, coesão lógica e força imaginativa de seus sistemas. Eles foram tentativas de explicar o mundo e o lugar do homem nele com base no conhecimento e na cultura de suas épocas.

 



[1] Hegel: Introdução à história da filosofia, B, III. Início da filosofia e da sua história, b) Separação do oriente: filosofia oriental.

[2] Friedrich Nietzsche: “Os filósofos Trágicos, in Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, col. Os pensadores, ed. Victor Civita (São Paulo: Abril Cultural 1978), pp. 10-12.

[3] Ver Susan Haack (2014). “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 15 ss.

[4]  Karl Popper: “Back to the Pre-Socratics.” In Conjectures and Refutations (Routledge…), cap.

[5]  Nas citações dos pré-socráticos fiz livre uso de G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield: The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press 1995), além das traduções que se encontram em Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, Col. Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1973).

[6]  Ver Anthony Kenny em A New History of Western Philosophy, (Oxford: Oxford University Press 2004) vol. I, p 25.

[7] Friedrich Nietzsche: A gaia ciência, sec. 285, 341.

[8] No poema a sentença é: “To gar auto noein estin te kai einain”. Edward Hussey traduz para o inglês como “The same thing is there to be thought and is there to be”, que em português fica sendo “a mesma coisa está lá para ser pensada e para ser”. Ver Edward Hussey: The Presocratics (London: Gerald Duckworth 1972), p. 84.

[9] G. S. Kirk, J. E, Haven, M Schofield: The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press 1995), 244-245.

[10] Giovanni Reale, baseado em H. Schwabl e Mario Untersteiner, encontrou em Parmênides os sinais de uma terceira via, a da opinião plausível (doxa) baseada na experiência sensível, reconhecendo, porém, a aporia resultante da tentativa de reconciliar essa admissão com a afirmação de que só o ser imutável e absoluto pode ser conhecido. Ver Giovanni Reale: História da filosofia antiga (São Paulo: Edições Loyola 1993) pp. 107-116.

[11] Comte: Cours de philosophie positive (Paris: Rouen Fréres 2830), p 3 e ss. Em tradução portuguesa ver “Curso de filosofia positiva” e “Discurso sobre o espírito positivo” na coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1973), vol. XXXIII. 

[12] Course se Phisosophie Positive, Prèmier Lesson, p. 2.

[13] Tendo em vista a perspectiva de sua época Comte datou o estágio teológico como anterior à revolução francesa, o estágio metafísico com estando entre aquela revolução e a queda de Napoleão, depois disso vindo o estágio positivo. Essa é, porém, uma maneira obviamente ideológica de se resolver a questão. É melhor admitir uma lenta sobreposição dos três estados subsequentes, da qual mesmo hoje ainda não saímos, o que é um breve contra o ilusório positivismo de Comte.

[14]  J. L. Austin: 1956b/1979: 232

[15] O livro foi publicado depois de sua morte sob o título de How to Do Things with Words (Oxford: Clarendon Press 1962)

[16]  Anthony Kenny: Aquinas on Mind (London: Routledge 1993) cap. 1, p. 4.

[17] Claro que os critérios para a identificação de uma adequada comunidade de ideias precisam ser investigados. Procurei desenvolver em algum detalhe a concepção de John Ziman no capítulo III de meu livro intitulado The Philosophical Inquiry: Towards a Global Theory (Langam: UPA 2002).

[18] Ver Claudio Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Theory. (Lohan: UPA 2002)