COMO RESOLVER O PROBLEMA DA INDUÇÃO?
HOW
TO SOLVE THE PROBLEM OF INDUCTION?
Claudio Ferreira Costa[1]
Resumo:
Nesse artigo é inicialmente feita uma breve reconstrução
do problema humiano da indução. Essa reconstrução é seguida de uma exposição
crítica de algumas importantes tentativas de solucioná-lo. No final é sugerida,
em seus traços gerais, uma nova e supostamente mais plausível forma de solução-dissolução
analítico-conceitual para o problema.
Summary
This paper begins with a short reconstruction of the humian problem of
induction. This reconstruction is followed by a critical discussion of some
attempts to solve the problem. In the end a new and arguably more plausible form
of solution-dissolution of the problem, the so-called analytic-conceptual approach,
is proposed.
Key-words: analysis, epistemology, Hume, induction.
Palavras-chave: análise, epistemologia, Hume, indução.
Gostaria de
discutir aqui o aparentemente insolúvel problema da justificação da indução introduzido
por David Hume. Para tal quero começar expondo a famosa crítica humiana à
possibilidade de fundamentação de nossas inferências indutivas. Em seguida
quero considerar algumas das mais conhecidas respostas a Hume, mostrando que
nenhuma delas é suficientemente plausível. Finalmente quero propor, em traços muito
gerais, o que chamo de solução (dissolução) analítico-conceitual, que me parece
ser a única alternativa realmente viável.
O argumento de Hume
Quero começar
reconstruindo rapidamente o argumento de Hume.[2] Ele
apresentou o problema por meio de uma crítica à necessidade causal, mas na
reconstrução que se segue eu desassocio o argumento dessa crítica de maneira a tornar
mais claro o que é essencial. Segundo Hume, nossas inferências indutivas
requerem princípios metafísicos de uniformidade
da natureza que as garantam. Embora a indução possa ser não só do
passado para o futuro, mas também do futuro para o passado e de uma região
espacial para outra no presente ou não, por razões de simplicidade me
restringirei aqui ao primeiro caso, cujo princípio de uniformidade pode ser
enunciado como:
PF: o
futuro será semelhante ao passado.
Se esse princípio for verdadeiro, ele
garantirá as inferências indutivas do passado para o futuro. Considere o
seguinte exemplo muito simples de justificação de um argumento indutivo pela
introdução de PF como primeira premissa:
1
O futuro será semelhante ao passado (PF).
2
O sol sempre nasceu a cada dia.
3
Portanto: o sol nascerá amanhã.
Essa parece à primeira vista uma maneira
natural de justificar a inferência de que se o sol sempre nasceu a cada dia ele
nascerá amanhã, uma inferência que também poderia ser estendida na forma da
generalização “O sol sempre nascerá”. Aqui começa a se delinear o problema da indução.
Ele se inicia com a constatação de que a primeira premissa do argumento, a
formulação de PF, não é nenhuma verdade da razão caracterizada pela
inconsistência de sua negação, ou seja, não é nenhuma proposição analítica. É
perfeitamente imaginável, escreve Hume, que o futuro se torne muito diverso do
passado, por exemplo, que árvores floresçam no inverno e que a neve queime como
fogo. Mesmo assim podemos ganhar a convicção de que o futuro será semelhante ao
passado com base em nossa experiência de futuros que já passaram, os quais
foram semelhantes aos seus próprios passados. Eis a inferência que parece
justificar PF:
1
Os futuros já passados sempre foram semelhantes aos
seus próprios passados.
2
Portanto: o futuro será semelhante ao passado.
O problema é que essa é uma inferência indutiva. Ou seja: para justificar a
indução recorremos a PF, o princípio de que o futuro será semelhante ao
passado, e para justificar PF recorremos outra vez à indução. A intentada
justificação da indução demonstra-se assim circular, posto que ela depende de
um princípio que acaba ele próprio por depender da indução para ser firmado. A
conclusão de Hume é a de que não há justificação racional possível para a
indução, não havendo, portanto, justificação racional, nem para as expectativas
criadas pelas leis da ciência empírica, nem sequer para as nossas próprias expectativas
cotidianas de senso comum, posto que ambas baseiam-se claramente na indução. É
verdade que possuímos uma disposição muito forte para crer em nossas
inferências indutivas. Mas para Hume essa disposição se deve tão somente a
nossa constituição psicológica. Somos instintivamente dispostos a adquirir certos
hábitos produtores de expectativas indutivas, que uma vez formados nos fazem
agir como as mariposas, que são dispostas pela sua natureza a voar sempre em
direção à luz. Essa é uma conclusão extremamente cética e não é sem razão que
só uns poucos filósofos acompanharam Hume nesse ponto. A maioria pensa que algo
deve estar errado em algum lugar. Quero a seguir considerar algumas dessas
reações.
Rejeição da indução
A reação mais radical consiste em aceitar a
conclusão cética de Hume. Karl Popper esteve entre os poucos que o fizeram.
Para ele a indução não existe. Mesmo assim a ciência continua de pé, pois ela
não se baseia na indução. De acordo com Popper, a ciência se baseia na criação
de novas teorias, tão imaginativas quanto ousadas, que são admitidas como
verdadeiras na medida em que resistem aos testes empíricos potencialmente capazes
de falseá-las.[3]
Essa resposta contém uma dificuldade que foi notada por muitos críticos
de Popper, nomeadamente, a de que ela recorre sub-repticiamente à indução.[4]
Afinal, que razão se tem, por exemplo, para acreditar que uma teoria que tem
resistido a testes refutadores no passado é mais confiável do que outra teoria
qualquer, entre o ilimitado número de teorias competitivas que podem ser criadas
e que ainda não passaram por testes refutadores, se não com base na indução? Mesmo
que se encontre uma estratégia para contornar essa objeção, há outra ainda
pior: como podemos saber que uma teoria que resistiu a testes refutadores no
passado continuará resistindo a exatamente os mesmos testes no futuro? Parece
que sem admitirmos um princípio da indução não temos razão alguma para confiar
mais em nossas teorias bem sucedidas do que em quaisquer outras, inclusive as
que já foram refutadas no passado!
Vindicação pragmática
Uma tentativa talvez mais promissora de lidar
com o problema da indução seria a justificação pragmática. Ela segue o
argumento humiano até o ponto onde fica estabelecido que não há meio de
justificar dedutivamente ou indutivamente a indução. Mas sugere uma resposta
pragmática.
Hans Reichenbach foi quem desenvolveu uma vindicação
pragmática particularmente engenhosa. Ele parte da idéia de que devemos tratar
a indução, não como uma inferência visando o estabelecimento de crenças, mas
como uma aposta feita em uma situação na qual não temos outra opção
senão apostar. Sua justificação da indução lembra a aposta de Pascal na
existência de Deus: “a razão não vos pode ajudar, mas vale apostar; pois
vencendo, ganhareis tudo, e perdendo, nada mais tereis a perder”. De uma forma
simplificada, eis o raciocínio de Reichenbach.[5] A
natureza é uniforme ou não é. Suponhamos que ela seja uniforme. Nesse caso, o
procedimento indutivo terá êxito. Já outro procedimento qualquer, por exemplo,
o de consulta à bola de cristal, poderá ter ou não ter êxito. Assim sendo, um
ponto para o procedimento indutivo. Imagine-se agora que a natureza não seja
uniforme. Nesse caso, procedimento algum poderá ter êxito. Logo, vale mais a
pena apostarmos no procedimento indutivo.
1
Ou a natureza é uniforme, ou não é.
2
Se a natureza é uniforme, o procedimento indutivo terá
êxito.
3
Se a natureza não é uniforme, nenhum procedimento terá
êxito.
4
Logo: se algum procedimento pode ter êxito, o
procedimento indutivo terá êxito.
Embora esse argumento seja dedutivamente
válido, podemos questionar se a terceira premissa é verdadeira. Além da indução
há outros procedimentos de previsão que podem ser alternativamente aventados,
como a sugestão de que aquilo que se mostrou provável no passado passará a ser
no futuro improvável e vice-versa (lógica contra-indutiva), o método de se
prever o futuro consultando a bola de cristal ou lendo as folhas de chá.
Argumentando a favor da verdade da terceira premissa, Reichenbach imagina que
na tentativa de se orientar em um mundo completamente caótico um procedimento
qualquer, digamos, o método de consulta à bola de cristal, se demonstre bem
sucedido. Ora, se esse método se revela satisfatório e a partir de premissas
verdadeiras probabiliza as conclusões, acabaremos por concluir que se ele
mereceu crédito no passado, ele deve merecer crédito também no futuro, o que é
uma inferência tipicamente indutiva. Assim, o sucesso do método da bola de
cristal vindica o método indutivo,
mostrando que existe realmente uma uniformidade importante na natureza.
Generalizando: se algum outro procedimento der certo, o procedimento indutivo
será corroborado; logo, se não temos outra opção senão apostar, é racional
apostarmos no procedimento indutivo.
A objeção fundamental à justificação
pragmática da indução é externa: ela parece fazer concessões demasiadas ao
ceticismo. Segundo a justificação de Reichenbach, não podemos realmente saber
coisa alguma através da indução; o que chamamos de crenças indutivas são na
verdade meras apostas, ainda mais arriscadas que as feitas em uma mesa de jogo,
que ao menos tem a sua probabilidade garantida. Somos, no dizer do próprio
Reichenbach, como cegos perdidos em uma floresta, tateando o que parece ser um
caminho, na esperança de sermos por ele conduzidos para fora dela... É difícil
imaginar uma situação cética mais desesperadora.
Justificações indutivistas
Passemos agora
as assim chamadas tentativas indutivistas de justificar a indução. Uma resposta
natural, quando nos perguntam como justificar que os argumentos indutivos que
foram até agora bem sucedidos continuarão a ser bem sucedidos no futuro, parece
ser: “Porque eles sempre foram bem sucedidos no passado”. Justificações
indutivistas da indução, como a proposta por Max Black[7] e
por F.L. Will[8], tentaram
mostrar que semelhante resposta não constitui uma petição de princípio. Para
introduzi-las comecemos formulando como princípio da indução a seguinte versão epistêmica
(ao invés de metafísica) subjetiva de PF:
PI: As regularidades observadas no passado
tenderão a se repetir no futuro.
Podemos justificar PI pelo seguinte
argumento:
1
No
passado as regularidades já observadas sempre tenderam a se repetir.
2
Logo PI: as regularidades observadas no passado
tenderão a se repetir
no futuro. (PI', 1)
Note-se que para passarmos da premissa
para conclusão nós precisamos aplicar o mesmo PI, na forma da regra de
inferência indutiva PI', à premissa, o que parece fazer a inferência circular.
Contudo, o defensor da solução indutivista poderá aqui responder que na função
de PI', PI funciona como um princípio de inferência de segundo nível, o que lhe
dá um diferente status justificacional. Ele reconhece que PI' ainda carece de
justificação; mas esse princípio ainda poderá ser justificado por meio de um
argumento idêntico em um terceiro nível, PI'', e assim sucessivamente. Como não
há um limite superior nessa hierarquia de níveis, a justificação não é
circular; e como para cada nível pode ser encontrada uma justificação, o
defensor da justificação indutivista se permite concluir que ela existe para
todos os níveis.
Não obstante, tem sido apontadas razões
aparentemente decisivas para a rejeição da solução indutivista do problema
humiano.[9]
Uma primeira delas é que outros sistemas, diversos do sistema da lógica
indutiva, e mesmo opostos a ele, podem ser justificados de maneira similar.
Esse é o caso de uma suposta lógica contra-indutiva: uma lógica
que afirma que as regularidades não observadas do futuro serão diferentes das
regularidades já observadas no passado, de modo que cada sucesso da lógica
indutiva seria assegurado por um princípio da lógica contra-indutiva em nível
superior. Uma outra razão para se rejeitar a solução indutivista é que, requerendo
um número infinito de níveis de inferência, torna-se impossível de ser completada,
de nada valendo na prática. Finalmente, a razão para a distinção epistêmica
entre os diversos níveis é obscura: não parece lícito justificarmos um
argumento através de uma mera repetição desse mesmo argumento em um
nível superior. Parece que a pretensa justificação indutiva da indução lança
mão de uma forma artificiosa de raciocínio, que se fosse admitida nos permitiria
justificar praticamente qualquer coisa.
A verdade sobre a justificação indutiva da
indução parece resumir-se no seguinte. Nós por vezes realmente realizamos
justificações indutivas de procedimentos indutivos. Alguém pode dizer que certo
método indutivo para a previsão do tempo será bem sucedido no futuro porque no
passado ele sempre foi bem sucedido. Mas o apelo ao sucesso passado de um
método indutivo é o apelo a uma certa base indutiva calibradora do
procedimento. Mas essa calibragem só é possível se for ultimamente baseada em
algum princípio da indução mais fundamental, que como tal não pode ser
indutivamente fundamentado.
Justificações
dedutivistas
Outra maneira de se tentar justificar a indução consiste um tanto
paradoxalmente em conceber a inferência indutiva como possuindo a forma de um
raciocínio dedutivo cuja conclusão é probabilística, como fizemos ao expor o
dilema humiano.[10] Para
tal será mister utilizarmos como premissa um princípio indutivista como,
digamos, a seguinte variante mais técnica de PI:
PI*: Se o fenômeno X tem sido
sempre observado em certa associação com o fenômeno Y na proporção n%, se X for
observado no futuro ele tenderá a preservar a mesma associação com Y em
proporção similar.
Contudo, como já foi notado, parece que em qualquer de suas formulações esse
princípio pode ser negado sem contradição, o que faz com que ele não possa ser
considerado uma verdade analítica ou conceitual. E se ele não é uma verdade
analítica, ele é um princípio sintético. Ora, ele não pode ser um princípio
sintético a posteriori, pois nesse caso nos defrontaremos com os
problemas da justificação indutivista já considerados. É aqui que surge o
espaço para a proposta de uma terceira via, que é a de se admitir princípios
indutivistas entendidos como postulações sintéticas a priori, ou seja, como proposições
informativas que não se originam da experiência.
O problema em torno dessa espécie de solução é
bem conhecido. É que se demandarmos que ela se torne inteiramente racional
parece que acabaremos inevitavelmente sendo forçados a aceitar que princípios da
indução devem ser tais que o mundo externo deva se conformar sempre ao que eles
dizem, de modo a torná-los garantidos. Mas essa exigência kantiana de que o
mundo externo deve se comportar tal como nossa razão ordena sempre pareceu de
uma arbitrariedade inaceitável e de fundo ultimamente místico, pois parece
demandar que Alguém deva ordenar que o mundo seja organizado de acordo com a
nossa razão.
Tentativas de dissolução do
problema
Ainda uma
alternativa foram as tentativas de dissolução do problema da indução por apelo
ao senso comum. Filósofos como A.J. Ayer, Paul Edwards e, mais influentemente, P.F.
Strawson, rejeitaram o problema da indução apresentando o que é chamado de soluções
(dissoluções) de senso comum do problema. Para Strawson o problema da indução é
um pseudoproblema resultante de um uso equívoco de conceitos como o de racionalidade
e justificação.[11]
Se perguntarmos a uma pessoa por que ela se sente justificada em acreditar que
o sol nascerá amanhã, ela poderá responder simplesmente que é porque o sol
sempre nasceu a cada 24 horas, e nenhum de nós deixará de considerar tal
justificação perfeitamente racional. Assim, é parte do que entendemos por racionalidade a aceitação dos
procedimentos da lógica indutiva. Por conseguinte, não faz sentido querer
justificar a própria lógica indutiva, pois não se pode justificar a própria
fonte de nossas decisões racionais, não se pode encontrar razões para aquilo
que exerce um papel fundamentador de nossa racionalidade. Rejeitar a lógica
indutiva seria intuitivamente percebido como irracional. Qualquer método de
inferência, nota Strawson, apóia-se no método indutivo. Mesmo uma lógica
contra-indutiva, se aplicável, só se confirmaria em um nível superior
indutivamente, na medida em que os resultados de sua aplicação fossem opostos
aos que a indução prevê.
O problema se assemelha à questão: como
justificar racionalmente a lógica dedutiva? Não há resposta geral para essa
pergunta, posto que a lógica dedutiva exerce um papel fundamentador em nossa
racionalidade. Rejeitá-la seria irracional. Mas por que os filósofos geralmente
não exigem uma justificação para a lógica dedutiva, mas exigem-na para a lógica
indutiva? A resposta seria que eles estão na verdade procurando uma justificação
dedutiva para a indução. Quando o filósofo se pergunta pela justificação
da indução, ele está pensando em uma justificação dedutivamente conclusiva; e quando
ele busca uma razão para a indução, ele está pensando em uma razão logicamente
conclusiva. Mas a indução não pode satisfazer tais parâmetros, simplesmente
porque não é dedução: como alguém já notou, não se pode censurar um gato por
não se comportar direito em uma festa de cães...
Segundo Strawson, a confusão resulta de
assimilarmos a racionalidade ao sucesso. O procedimento indutivo é
racional, mas isso não significa que só por isso ele nos deva oferecer uma
garantia de sucesso; é perfeitamente possível que o mundo se torne de repente
caótico e que nossos procedimentos indutivos deixem de ser bem sucedidos. Mas
como racionalidade não implica em sucesso, o procedimento indutivo não deixa
por isso de ser racional, inclusive porque concluir que em um universo caótico
nossos procedimentos indutivos não devem funcionar é lançar mão de um
raciocínio indutivo de nível superior.
Um problema geralmente apontado nessa tentativa
de dissolver o problema da indução é que ela, supostamente recorrendo ao senso
comum e ao conceito de racionalidade por ele instituido, estabelece de maneira a priori que é razoável crer em uma
conclusão para a qual há evidência indutiva. Mas se assim o fizermos, parece
que recaímos na justificação apriorista da indução, tendo de admitir algum
princípio da indução que funcione como uma espécie de juízo sintético a priori a garantir a indução. Strawson tentou evadir-se dessa espécie de
dificuldade ao propor a dissociação entre racionalidade e sucesso. Mas isso
expõe sua solução a uma objeção ainda mais destrutiva. Eis como podemos
formulá-la: se o conceito de racionalidade do senso comum não exige que a
indução, para ser racional, seja em alguma medida bem sucedida – o que já é
bastante questionável – então tanto pior para o conceito de racionalidade do
senso comum. Afinal, desde Hume o que tem interessado aos filósofos é uma
justificação para o sucesso de nossas inferências indutivas; mas é precisamente
isso o que Strawson não nos consegue oferecer.
Proposta de uma solução analítico-conceitual
Embora as
tentativas aqui consideradas de solucionar o problema da indução contenham insights parciais e úteis, elas estão
longe de ser bem sucedidas. Em contraposição, a estratégia que pretendo seguir
me parece ter ao menos a virtude de conduzir-nos ao fundo do problema. Ela se
aproxima da estratégia dedutivista por admitir princípios indutivistas a priori, embora não-sintéticos; mas ela
também retém algo da concepção de senso comum, posto que também pretende demonstrar
que o paradoxo humiano trás consigo características de um pseudoproblema. Quero
primeiro explicar minha tese geral e depois mostrar como ela se aplicaria a um
princípio indutivista escolhido.
1. Minha tese
geral possui um leve sabor kantiano, embora sem o indigesto condimento do
sintético a priori. Trata-se da idéia
de que faz parte de nosso próprio conceito de um mundo (natureza, realidade) qualquer,
e mesmo do conceito da experiência de um mundo qualquer, que o mundo ao qual os
conceitos relacionados a ele venham a se aplicar seja aberto à indução. Essa é
uma verdade conceitual, do mesmo modo que é uma verdade pertencente ao nosso
conceito de mundo externo que qualquer mundo externo ao qual esse conceito se
aplique possa ser em princípio e de algum modo apresentado à percepção sensível.
Definindo um mundo como um conjunto maximamente extenso de entidades
compatíveis entre si, o argumento é o seguinte. Para nós um mundo empírico só
pode existir se ele for ao menos concebível. Mas não podemos conceber um mundo
sem nenhum grau de uniformidade, ou seja, de regularidade. Ora, como só podemos
experienciar o que podemos conceber, então não podemos experienciar nenhum
mundo completamente destituído de regularidade. Mas como a existência de
regularidade ou uniformidade é o que basta para que algum procedimento indutivo seja aplicável, então não é possível
haver para nós nenhum mundo concebível nem experienciável que não seja aberto à
indução. É, pois, uma verdade conceitual que se um mundo nos for dado então algum
procedimento indutivo deverá ser aplicável a ele.
A objeção a essa tese é esperada: o que
nos autoriza a supor que não possa existir um mundo caótico, um mundo destituído
de qualquer regularidade e, portanto, fechado à indução? A generalizada crença
nessa possibilidade tem sido a meu ver um grande erro, cuja responsabilidade
deve ser atribuída a David Hume. Esse erro foi logo de início introduzido pelo
fato de Hume ter elegido a regularidade causal como foco de sua discussão e mesmo
pelos exemplos por ele escolhidos. No que se segue quero justificar esse ponto.
A regularidade causal é o que eu gostaria de
chamar de uma regularidade diacrônica,
qual seja, aquela na qual um fenômeno dado vem regularmente seguido por outro fenômeno
diverso do primeiro. Tais regularidades constituem aquilo que poderíamos chamar
de o devir do mundo. Mas podemos
conceber um mundo sem um devir, sem regularidades diacrônicas, incluindo entre
elas a regularidade causal. Esse seria o caso de um mundo sem mudança,
estático, congelado. Ainda assim parece que ele poderia ser corretamente
chamado de mundo. Assim, se nos concentramos nas regularidades diacrônicas e
pensamos nelas como se fossem todas as regularidades existentes em um mundo,
parece bastante possível pensarmos a existência de algum mundo não as possua,
mas que, por possuir regularidades sincrônicas, seja aberto à indução. Afinal,
mundos sem regularidades diacrônicas são concebíveis e mesmo em princípio
cognoscíveis, embora fechados à indução no que concerne a elas. O problema com esse
foco argumentativo humiano restrito à inferência indutiva diacrônica é que ele nos
desvia a atenção do fato de que um mundo empírico é igualmente constituído de regularidades sincrônicas, as quais,
tanto quanto as regularidades diacrônicas, só podem ser conhecidas através de
procedimentos indutivos. Mas o que são as regularidades sincrônicas? Eu as
defino como sendo as relações simultaneamente vigentes entre os fenômenos
diversamente localizados no espaço, na medida em que elas perduram no tempo.
Esse é o caso das relações que existem entre as faces de um cristal, para
tomarmos um exemplo distintivo. É a indução que deve justificar a persistência
das relações sincrônicas, fazendo-nos saber, por exemplo, que o cristal
permanecerá reconhecível como sendo o mesmo quando observado outras vezes no
futuro. O domínio das regularidades sincrônicas é extremamente amplo, dado que não
só qualquer objeto, mas qualquer propriedade complexa e qualquer estado de
coisas reconhecível possuem relações constitutivas entre suas partes, relações
essas que devem perdurar enquanto o objeto, a propriedade ou o estado de coisas
existirem. A forma mais interessante de regularidade sincrônica é a que
constitui aquilo que chamamos de estrutura.
Regularidades sincrônicas são em geral estruturas que perduram no tempo. Mesmo
um mundo congelado, sem regularidades diacrônicas, não deve deixar de possuir
regularidades sincrônicas, uma vez que ele deve possuir alguma estrutura. Por
conseguinte, a indução é aplicável a essa estrutura, uma vez que ela é sempre
aplicável a regularidades sincrônicas, na previsão de sua permanência. Suponhamos
que seja possível um mundo sem regularidades diacrônicas nem sincrônicas, sem
estrutura nem devir. Parece que esse mundo minimalista pode ser ao menos
ilustrado quando pensamos nele como sendo constituído de repetições irregulares
no tempo, de um único ponto luminoso, ou de um único som.[12] Contudo,
mesmo que o ponto luminoso ou o som ocorram irregularmente, eles precisarão
repetir-se alguma vez (enquanto o mundo durar), o que demonstra a regularidade
diacrônica da repetição, donde a indução se aplica a tais mundos minimalistas
enquanto eles durarem. Mas o que dizer de um mundo absolutamente destituido de ambas
as espécies de regularidade, sem estrutura nem devir – é ele concebível? A
resposta é clara: um mundo sem regularidade alguma não pode ser realmente concebível,
não sendo, portanto, acessível à experiência. Não podemos pensar nenhum
conjunto de elementos empíricos compatíveis sem lhe dar alguma estrutura ou
devir. Mas se é assim, se um mundo sem regularidades é algo inconcebível, considerando
que a existência de regularidades é tudo o que precisamos para que alguma
inferência indutiva seja aplicável, então não é possível que exista um mundo que
não seja aberto à indução. Onde há mundo precisa haver alguma regularidade, e onde
há alguma regularidade algum acesso indutivo é logicamente possível. Conceber
um mundo ao qual a indução não se aplica redundaria, pois, em conceber um mundo
sem regularidade de nenhuma espécie, o que contradiz nosso próprio conceito de
mundo.
Resumindo o que quero dizer: ao
concentrar-se na relação causal Hume nos induz a ignorar que o mundo seja
também constituído de regularidades sincrônicas, o que por sua vez nos induz a
crer que possamos conceber a existência de um mundo cujo devir seja inteiramente
caótico e que isso o torne inacessível à inferência indutiva.[13]
Quando levamos em devida consideração ambas as espécies de regularidade às
quais a indução se aplica, percebemos que um mundo inteiramente caótico, sem qualquer
regularidade, é impossível, pois qualquer mundo possível é feito de suas
regularidades, sendo por isso intrinsecamente aberto à indução.[14]
Uma constatação que corrobora essas
considerações foi feita por Keith Campbell.[15] Como
ele nota, para que possamos experienciar cognitivamente um mundo – uma
realidade objetivamente estruturada – é preciso que estejamos continuamente
reaplicando conceitos empíricos, os quais, por sua vez, para serem fixados,
aprendidos e usados, exigem uma reidentificação
dos designata de suas aplicações como
sendo idênticos; ora, isso só é possível se houver certo grau de uniformidade
no mundo, que seja suficiente para permitir a reidentificação. Com efeito, se o
mundo pudesse perder totalmente as suas regularidades – não só as diacrônicas,
mas também as sincrônicas – então nenhum conceito mais se reaplicaria, a
experiência do mundo cessaria e ele deixaria, para nós, de existir.
Mas não poderia existir um mundo parcialmente
caótico, com um mínimo de estrutura ou uniformidade, a qual mesmo assim fosse
insuficiente para a aplicação de procedimentos indutivos? Parece que não, pois
a indução tem uma natureza auto-ajustável, ou seja, a aplicação de seus
princípios deve ser sempre calibrável em conformidade com a natureza daquilo a
que eles se aplicam. A exigência de base indutiva, de uma repetida e variada experimentação
indutiva, pode ser tornada sempre maior, quanto mais improvável for a
uniformidade esperada; por conseguinte, mesmo um sistema com uniformidade
mínima, exigindo uma máxima busca indutiva, sempre acabaria possibilitando o
sucesso indutivo.[16]
Ou seja: basta haver alguma uniformidade para que alguma exigência de base
indutiva nos permita idealmente encontrá-la.
Essas considerações gerais sugerem um
entremeado de inferências conceituais, como as resumidas no seguinte diagrama:
efetiva experiência
conceitos empíricos procedimentos
indutivos
existência
de regularidades no mundo
(existência do próprio mundo)
A meu ver os conceitos acima são
internamente relacionados entre si no sentido de se derivarem extensionalmente
uns dos outros, do mesmo modo que o conceito de percepção sensível se deriva
extensionalmente do conceito de experiência e vice-versa (onde houver percepção
sensível haverá experiência e vice-versa, embora os sentidos e as entidades
referidas por esses termos sejam diferentes). Por esse meio, ao contrário do
que Hume acreditava, quando adequadamente entendidos os princípios da
uniformidade deverão revelar-se verdades analítico-conceituais, ou seja,
verdades da razão aplicáveis a qualquer mundo possível. O objetivo passa agora
a ser o de estabelecer esses princípios de maneira mais adequada, como verdades
conceituais.
2. Para mostrar
como a sugestão recém-apresentada poderia ser aplicada à reformulação dos
princípios da uniformidade ou indução, gostaria de reconsiderar PF em algum
detalhe. Seria possível transformá-lo em uma verdade conceitual? Entendo uma
proposição analítico-conceitual como sendo aquela cuja verdade depende apenas
da combinação de seus constituintes semânticos. Essa verdade caracteriza-se por
não ser ampliadora de nosso conhecimento (opostamente às proposições
sintéticas), possuindo como critério de identificação a característica de sua
negação implicar contradição ou incoerência ou impossibilidade de ser
concebida.
A questão que se coloca é se PF, afirmando
que o futuro será semelhante ao passado, é capaz de satisfazer essa
caracterização usual de analiticidade. Parece que não. Hume pensava que não.
Como já vimos, ele considera que podemos conceber que a neve passe a queimar
como fogo e que as árvores passem a florescer no inverno... Mas esses exemplos
de Hume são tão sugestivos quanto ilusórios, pois como uma enorme multidão de
outras regularidades, principalmente as sincrônicas, permanece, eles estão
longe de tornar o futuro tão dessemelhante do passado a ponto de invalidar
procedimentos indutivos. Contudo, ainda assim parece concebível que algum
cataclismo cósmico imprevisível, modifique profundamente o futuro, de modo que
ele se torne diferente do passado, o que tornaria PF concebivelmente negável. Contudo,
considere a seguinte formulação mais precisa do que gostariamos de dizer com
PF:
PF*:
O futuro deverá ter alguma semelhança com o seu passado.
Diversamente de
PF, PF* pode ser claramente entendido como expressando uma verdade analítico-conceitual.
Primeiro porque PF* pode ser visto como satisfazendo a caracterização de
analiticidade acima apresentada. Sem dúvida, pertence ao conceito de futuro que
ele seja futuro de seu próprio passado. Ele não pode ser o futuro de outro
passado qualquer. Mas se um futuro não tivesse nada a ver com o seu passado,
não poderíamos sequer reconhecê-lo como sendo o futuro de seu próprio passado, pois
ele poderia ser então o futuro de outro passado qualquer. Ou seja: o futuro F do mundo atual m só pode ser o futuro de m,
ou seja, Fm, que só pode ser o futuro
do passado de m, ou seja, Pm; ele não pode ser o futuro dos outros
inúmeros mundos possíveis m1, m2, m3... que
tiveram como passados Pm1, Pm2, Pm3...
É preciso, pois, que haja algo que identifique Fm como sendo o futuro de Pm.
E esse algo só pode ser uma margem de semelhança. Ou seja: a noção de futuro
deve se encontrar de alguma forma conceitualmente ligada à noção de seu passado
como lhe sendo em alguma medida, de algum modo, semelhante. Eis porque PF*
satisfaz a nossa caracterização de analiticidade. Mais além, PF* não amplia
nosso conhecimento e satisfaz o critério de identificação de proposições
analíticas, pois não parece que sejamos capazes de pensar que o futuro não
possua qualquer semelhança com o seu passado sem inconsistência.
Com
efeito, parece que toda vez que, na tentativa de rejeitar PF*, concebemos uma
dessemelhança tão grande entre futuro e passado que invalide todos os
procedimentos indutivos, falhamos em conceber uma natureza, um mundo objetivo
minimamente estruturado. Esse ponto pode ser facilmente ilustrado através de
exemplos. Imagine, em uma tentativa de imaginar um futuro completamente diverso
de seu passado, uma “completa transformação do mundo” como a narrada no livro
bíblico do Apocalipse. É difícil
imaginar alterações mais drásticas do que as que foram aí descritas. Afinal,
trata-se da narração do próprio fim do mundo por nós conhecido! Mas é um erro
pensar que a destruição de nosso mundo descrita no Apocalipse implicaria em uma
negação de PF*, posto que a idéia de uma “completa transformação” não é aqui
entendida em um sentido literal. Se examinarmos o texto mais de perto veremos
que a grande maioria das coisas com as quais estamos familiarizados – ou seja,
as regularidades sincrônicas básicas e mesmo a maioria das regularidades
diacrônicas – continua inalterada após a transformação, embora elas tenham sido
bizarramente combinadas, como na passagem bíblica descrevendo os gafanhotos
enviados pelo quinto anjo:
O aspecto
desses gafanhotos era o de cavalos aparelhados para a guerra. Nas suas cabeças
havia uma espécie de coroa com reflexos dourados. Seus rostos eram como os de
homem. Seus cabelos como os de mulher e seus dentes como os dentes de leão.
Seus tórax pareciam envoltos em ferro e o ruído de suas asas era como o ruído
de carros de muitos cavalos correndo para a guerra. Tinham caudas semelhantes à
do escorpião, com ferrões e o poder de afligir os homens por cinco meses.[17]
Ora, nada há nesse relato que ponha PF* em questão. Aliás , um
exame acurado do exemplo demonstra que ele sequer põe PF em questão! Pois
embora esses gafanhotos bíblicos se nos afigurem delirantemente estranhos, eles
são constituídos por combinações de partes com as quais já estamos muito bem
familiarizados – como cabelos, mulheres, homens, dentes, escorpiões, ferrões –
as quais incluem internamente e externamente uma vasta soma de regularidades,
de associações estruturais (como rostos de pessoas) e seqüenciais (como a
relação causal entre a ferroada do escorpião e os efeitos do seu veneno nos
seres humanos por certo tempo, além de inúmeras outras menos aparentes), que
permanecem preservadas e indutivamente acessíveis, a despeito das alterações.
Com efeito, não fosse assim o Apocalipse
não chegaria a ser compreensível, pensável, concebível, nem passível de
descrição lingüística, e o que não é nada disso é também impossível de ser
experienciado. O relato ilustra a idéia já mencionada de que o mundo futuro
precisa, ao menos na medida em que ele se encontre suficientemente próximo do
presente, continuar suficientemente semelhante ao seu passado para que se deixe
conceber como o futuro desse mesmo passado, ou seja, ele deve continuar
suficientemente semelhante ao seu passado para caucionar a aplicação de
procedimentos indutivos no reconhecimento de sua continuidade como mundo.
Mas o que dizer de um futuro imensamente
posterior ao presente? Ele não poderia ser totalmente diferente do passado?
Parece que sim. Se interpretássemos PF* como podendo se referir a um futuro
remotamente distante, destacado de todos aqueles que lhe antecederam, então
parece claro que PF* poderia ser falseado, pois não é inconcebível que uma
seqüência contínua de pequenas alterações possa no curso de um tempo muito
longo dar lugar a alguma coisa completamente diversa. Mas não é nesse sentido
que eu pretendi entender PF*, pois quando o apresentei já estava implícito que
ele era continuação de seu próprio passado, incluindo nisso, pelo menos, o
futuro que vem imediatamente após o presente.
Essa última consideração nos conduz a
outra verdade conceitual, constatável na relação considerada por PF*. É que
quanto mais nos aproximamos do ponto de junção entre o futuro e o passado, ou
seja, do presente, maior deve ser a semelhança entre ambos, tornando-se futuro
e passado idênticos em seu limite, que é o presente. Esse ponto pode ser
aproximado quando nos recordamos da análise aristotélica da mudança como
pressupondo a permanência de um algo
que continua idêntico e que sob forma contínua ganha ou perde.[18] A
sugestão é a de que toda mudança pressupõe alguma base de permanência, ou seja,
alguma regularidade sincrônica (estrutural), o que não só permite a inferência
indutiva, mas a requer para ser conhecida.
Mas isso não é tudo. Há uma constatação relevante
que ainda precisa ser feita, agora sobre a medida
da permanência do que é pressuposto. É que enquanto se dá a mudança, a medida
da permanência precisa ser de algum modo inversamente proporcional ao período
de tempo em que a mudança se dá. Mais precisamente: se nos é dada uma sequência
de mudanças que fazem parte de uma mudança mais completa, as mudanças que fazem
parte da sequência pressupõem mais permanência do que a mudança mais completa.
Esse princípio pode ser ilustrado através
de um exemplo: considere as mudanças resultantes do aquecimento de um pedaço de
cera. A mudança do estado sólido para o estado líquido pressupõe a mesma cera
como material. Mas a mudança seguinte, da cera líquida para a cinza de carbono,
pressupõe apenas a permanência da matéria (átomos de carbono). Eis um esquema
mostrando como as mudanças pressupõem maior permanência quanto mais parciais e mais
breves elas forem:
Entidades
físicas: Curso do tempo:
T1:
T2: T3:
Cera
sólida: XXXXXX
Cera líquida: XXXXXX
Cinza: XXXXXX
Cera: XXXXXXXXXXXX
Átomos de carbono XXXXXXXXXXXXXXXXXX
Do momento t1 ao
momento t2 pressupõe-se como permanente a cera e os seus constituintes
atômicos, que são átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio. Já do momento t1 ao
momento t3 pressupõe-se como permanente apenas os átomos de carbono. Note-se
que esse modelo não se restringe a mudanças no mundo físico-material. Em alterações
psicológicas, sociais, econômicas, enfim, em qualquer outro domínio que
venhamos a imaginar, o mesmo modelo se repete, o que demonstra pertencer à
própria estrutura do mundo da experiência possível que as mudanças que se dão
em um período de tempo mais curto pressuponham mais permanências do que as mudanças
mais completas em que elas tomam parte. Uma conseqüência disso é que o futuro
mais próximo de nós deve, por necessidade, ser mais semelhante ao seu passado
que os futuros mais distantes (os quais, como já notamos, podem se tornar até
mesmo irreconhecivelmente diversos do presente). No que concerne à indução,
esse princípio garante que as previsões indutivas se tornem tanto mais
prováveis quanto mais próximo for o futuro ao qual elas concernem.[19] Com
base nisso o princípio PF* pode ser aqui precisado como:
PF**:
O futuro
deverá ter alguma semelhança com o seu passado de tal modo que quanto mais
próximo o futuro estiver do ponto de junção com o seu próprio passado, mais ele
precisará se assemelhar a este seu passado.
Para
o correto entendimento de PF** é preciso lembrar apenas que inclusos na
aplicação desse princípio devam estar sempre os futuros que se prolonguem a
partir do presente e que estejam suficientemente próximos dele, uma vez que é
necessário que alguma coisa deles contenha a continuação das mudanças iniciadas
no passado.
Acredito que PF** possa ser analisado em mais detalhes e mais
formalmente. Mas parece-me que esse princípio já satisfaz claramente a
caracterização de analiticidade aqui sustentada, pois ele demonstra pertencer
ao próprio conceito de futuro que vem logo após o presente que ele se assemelhe
exponencialmente mais ao seu passado, quanto mais próximo ele estiver de seu
ponto de junção com o seu passado, convergindo para a identidade em seu ponto
de junção no presente. Assim compreendido PF** satisfaz a condição de
identificação da proposição analítica: não se pode negá-lo sem incoerência.
Por
ser assim parece-nos natural pensar que quanto mais distante do ponto de junção
com o seu passado um período de tempo futuro estiver, menos prováveis serão as
previsões indutivas a ele concernentes. Isso ajuda a explicar porque as nossas
generalizações indutivas sobre o futuro nunca chegam a ser sobre um futuro
indefinidamente remoto, como pode parecer a um primeiro exame. Quando dizemos,
por exemplo, que a indução nos permite inferir que o Sol sempre nascerá,
‘sempre’ é uma palavra que deveria ser colocada entre aspas. Faz sentido
afirmar, tendo como base indutiva o fato de o Sol sempre ter nascido, que ele
nascerá amanhã e mesmo daqui a mil anos. Mas não faz sentido algum (e na
verdade a astronomia sugere ser preditivamente falso) usar a mesma base
indutiva para dizer que o Sol nascerá daqui a 17 bilhões de anos.[20]
Finalmente, PF** pode garantir aplicações restringidas de PF, tornando PF
analítico qando entendido de maneira a se restringir ao domínio dessas
aplicações: se o futuro em questão estiver suficientemente próximo de seu ponto
de junção com o passado, então este futuro será necessariamente semelhante ao
passado. O problema, naturalmente, é que nos falta estabelecer critérios para
sabermos o quão próximo precisa estar um futuro do seu passado para que PF a
ele necessariamente se aplique. Podemos especular se a resposta não depende do
domínio de regularidades (de, digamos, um sub-mundo)
ao qual pertence a mudança que está sendo considerada, um domínio de
regularidades sendo entendido como aquele ao qual se aplica todo um sistema de
crenças bem entrincheiradas umas nas outras. Assim, a conclusão indutiva de que
sol nascerá amanhã pertence ao domínio de regularidades implicadas nas mudanças
investigadas pela astronomia, o que inclui um futuro muito distante para que as
mudanças mais amplas aconteçam, como, por exemplo, a morte do sol. É possível,
embora muito improvável, que o sol não nasça amanhã, como o próprio
procedimento indutivo prevê. Mas isso só será concebível ao preço de uma imensa
perda de outras regularidades e, subseqüentemente, de nossa inteligibilidade de
grande parte da natureza que nos cerca.
Ainda
assim, o que nos faz considerar altamente provável a permanência futura de
regularidades particulares, como a de que o sol nasce a cada dia? A resposta
parece partir da inevitável assunção do fato bruto de que o mundo existe como
um sistema de regularidades, posto que podemos concebê-lo e dele ter
experiência. Junto a isso também assumimos (e o fazemos como uma verdadeira e
inevitável aposta!) que esse sistema de regularidades que é o nosso mundo permanecerá
existindo.[21] Mas uma
vez aceitas essas assunções, parece que somos inevitavelmente induzidos a
admitir como provável a existência de certos domínios coesos de regularidades (do
que chamei de submundos) e das regularidades particulares implicadas nesses
domínios como sendo de permanência provável. A conseqüência desse modo de
conceber as coisas é que se rejeitarmos a permanência futura de uma
regularidade – como a de que o sol deve nascer a cada dia – precisaremos
rejeitar a permanência futura de todo o domínio de regularidades no qual ela se
inclui. Mas como a própria probabilidade da regularidade em questão é medida
com base na admissão da permanência futura desse domínio de regularidades,
deixa de ser racional que nós a coloquemos em questão.
Os argumentos que acabo de expor são certamente
esquemáticos e inconclusivos, limitando-se a uma única forma de indução. Mesmo
assim eles indicam a direção – o que já pode ser de alguma ajuda para um
problema que visto sob qualquer outro ângulo tem se afigurado desorientador e
intangível.
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[1] Doutor em filosofia, professor associado do Departamento de Filosofia da
UFRN, e-mail ruvstof@gmail.com .
[2] Para
quem se interessar pela formulação pessoal de Hume, ver seu An Inquiry Concerning Human Understanding,
sec. IV. Ver também David Hume: A
Treatise of Human Nature, parte III.
[3] Karl Popper: Objective Knowledge, pp. 1-31.
[4]
Ver por exemplo Anthony O’Hear: Karl
Popper, cap. III.
[5] Hans Reichenbach: Experience and Prediction, pp. 339-363. O
que exponho a seguir é a versão simplificada de Brian Skyrms em seu excelente
livro Choice and Chance, cap. 2.
[6] Ver Brian Skyrms em Choice and Chance: An Introduction to the
Inductive Logic, cap. 2.
[7] Max Black: “Inductive Support of
Inductive Rules”.
[8] F.L. Will: “Will the Future
be like the Past?”
[9] Ver Brian Skyrms: Choice and Chance, cap. 2. Ver também
Laurence Bonjour: In Defense of Pure
Reason, pp. 201-2.
[10] Um exemplo pode ser o de
Bertrand Russell: Human Knowledge, its Scope and Limits, cap. 6. Russell
não pretendia com seus postulados da inferência científica firmar princípios
sintéticos a priori, mas parece que não há como tratá-la de outro modo se
quisermos eliminar a arbitrariedade em sua escolha.
[11] P.F. Strawson: Introduction to Logical Theory,
pp. 248-263.
[14] Em
uma introdução elementar à filosofia encontro uma exposição da mesma idéia
formulada em termos do que a linguagem é capaz de dizer, o que sugere que o
verdadeiro insight filosófico possa
estar sendo inibido: “Seria impossível dizer verdadeiramente que o universo é um caos, pois se o universo fosse
genuinamente caótico não poderia haver linguagem para dizê-lo. A linguagem
depende de coisas e qualidades que tenham suficiente persistência no tempo para
serem identificadas pelas palavras e essa mesma persistência é uma forma de
uniformidade”. J. Teichman
& C.C. Evans: Philosophers: A
Beginners Guide, p. 181.
[16]
Estamos falando de uma possibilidade ideal
e não prática. Do ponto de vista prático, para que procedimentos indutivos se
apliquem é já necessário um mundo com uma estrutura e um devir extraordinariamente
complexos, no qual caibam seres humanos conscientes em condições de observar e
agir.
[17] João: Apocalipse, sec. 9.
[18]
Aristóteles: Física, 200b 33-35.
[19]
Podemos imaginar um mundo cíclico no qual em um futuro muito distante o futuro
imediatamente próximo ao do presente será repetido em todos os seus detalhes.
Mas a hipótese de um mundo cíclico é compatível com PF**, diferindo dela por
não exprimir uma necessidade conceitual.
[20] Essa poderia ser uma maneira de se obter um tratamento unificado do
procedimento indutivo, que nos permitisse tratar induções humianas como
induções estatísticas.
[21] Não há nenhuma razão que torne nem improvável nem provável que tudo desapareça no próximo momento (o
mundo e nós mesmos). Mas há razões que tornam improvável que uma parte do mundo
desapareça no próximo momento, enquanto outras continuem existindo, pois isso
já pressupõe a admissão da permanência do mundo.