JODOROWSKY
Para mim Alexandro Jodorowsky foi o melhor cineasta de todos os tempos. Gosto artístico é coisa
pessoal, difícil de comparar. Bergman é extraordinário, mas muito de seus temas
são um pouco gastos e convencionais. Claudio Assis é nosso melhor cineasta,
pela sua união de realismo cru com compaixão. Mas Jodorowsky transcende. Ele tem
sido uma espécie de gênio polivalente, com contribuições de interesse não só
para o cinema, mas para a literatura, para a poesia, para a pintura, para os quadrinhos
artísticos franceses, para a psicoterapia e para a filosofia da vida.
Tudo é diferente nesse cineasta, a começar pela sua
origem. A estória é parcialmente contada no filme “La Danza de la Realidad”. Seus
pais eram judeus que fugiram da Ucrânia para escaparem à perseguição dos
cossacos. Seu avô paterno era sapateiro. Eles embarcaram em um navio sem
destino certo e acabaram por aportar em Tucupilla, uma cidade mineira pobre de
uns 2.000 habitantes no litoral arenoso do norte do Chile, junto ao deserto de
Atacama, onde não há árvores e onde só chove uma vez por ano. Seu avô, sem
saber uma palavra de espanhol, perdeu parte da razão. Quem tomou a si a
responsabilidade pela família foi o pai de Jodorowsky, um comerciante ríspido
que era estalinista e que escondia em si uma infinita agressividade. Jodorowsky
nota o contraste entre seu pai estalinista e seu avô, que mais se parecia com um
Gandi.
Jodorowsky nasceu em 1929. Desde cedo ele
sofreu a experiência da rejeição. A rejeição das outras crianças, que eram de
origem indígena e espanhola. Rejeição por ser judeu. Rejeição da família. Do
pai, a quem não conseguia imitar e que via no garoto sensível um covarde, sem
notar que o garoto possuía tudo o que ele reprimira em si mesmo. Rejeição da
mãe, uma mulher humilhada, que se mantinha no casamento por questão de
sobrevivência e que segundo consta engravidou de Jodorowsky por ter sido
estuprada pelo marido após ter recebido dele uma surra por ter supostamente
aceito o flerte de um cliente. Rejeição da irmã mais velha, que era a preferida
e tinha ciúmes dele. Jodorowsky aprendeu a ler sozinho, aos cinco anos,
devorando os livros de contos da pequena biblioteca de Tucupilla. Como ele diz,
os livros o salvaram. Aprendeu a viver em sonhos, em um mundo paralelo.
Quando tinha nove anos a família mudou-se para
Santiago, mas Jodorowsky achou a cidade grande pior do que Tucupilla. Ele
engordou feito um hipopótamo, chegando a pesar 100 kilos aos doze anos, era
troçado pelos colegas e foi fisicamente agredido por ser judeu. Ele só
encontrou um espaço pessoal ao entrar para a universidade, quanto se juntou aos
poetas e boêmios de Santiago. Decidiu abandonar a universidade para se tornar marionetista,
tentando dramatizar desse modo seus problemas familiares. Seu pai chorou ao
saber da decisão. Ele trabalhou como palhaço em circos e depois no teatro,
chegando a criar uma peça.
Aos 24 anos decidiu abandonar o Chile com uma
passagem só de ida para Paris. Ele escreve que jogou seu caderno de endereços ao
mar para se libertar do passado. Chegou a Paris sem saber a língua. Começou com
trabalho braçal, mas logo matriculou-se em uma escola de mímica, e após um ano foi
acolhido pelo grande mímico Marcel Marceau, que reconheceu seu talento. Nos
próximos anos ele acompanhou Marceau pelo mundo inventando peças mímicas, como
a famosa “A jaula”. Nela uma pessoa tenta sair de um quartinho fechado. Ele
consegue, mas só para descobrir que se encontra encerrada em um quarto maior,
dessa vez para sempre. Depois, por algum tempo ele trabalhou para o cantor Maurice
Chevalier.
Mais
tarde Jodorowsky foi para o México, onde dirigiu muitas peças de teatro, como “Fim
de Jogo” de Beckett, inventando o seu próprio teatro pânico, que era um performance não programado ao vivo, com atores
nus a simbolizar um orgasmo coletivo. O prefixo ‘pan’ significa simplesmente ‘tudo’.
Junto a isso, por anos ele buscou um aprimoramento místico da consciência na
sabedoria de mestres zen e dos xamãs mexicanos, o que lhe serviu de fundamento
para uma terapia por ele inventada chamada de psicomágica. A ideia é a
seguinte. Os xamãs agem no inconsciente
das pessoas por sugestão, invocando divindades ou seres de outro mundo, embora saibam
que estão enganando. Mas em muitos casos – quando há um elemento psicossomático
na doença ou quando a crença é capaz de influenciar – eles de fato curam. Curam
pela sugestão.
O homem moderno, com razão, não é mais capaz
de crer nessas coisas. Mas, para Jodorowsky, o inconsciente crê. Como ele nota,
o inconsciente interpreta a metáfora como
se fosse realidade. Assim, se o psicoterapeuta lhe identificar um conflito
emocional, ele poderá dar ao paciente uma incumbência pela qual ele poderá se
libertar metaforicamente das causas de seus males e o inconsciente irá
assimilar essa experiência.
Por exemplo.
Uma paciente encontrava-se doente porque não conseguia libertar-se do ódio que
sentia por seu ex-marido. Jodorowsky sugeriu que ela pusesse uma foto do marido
em uma caixa e fizesse suas necessidades sobre a foto, enviando-a pelo correio
para o ex-marido. O próprio Jodorowsky enviou ao seu pai uma caixa com uma foto
junto a um melão que ele havia estraçalhado com uma faca. Para curar a timidez
de um paciente, Jodorowsky aconselhou que no dia da grande festa da padroeira
ele se vestisse de frade e, sem cuecas, subisse em uma árvore na praça, no meio
da multidão e se masturbasse sem que ninguém percebesse.
Podemos ter
dúvidas sobre o quão eficazes são esses atos de psicomágica. Mas parece haver
uma base neurofisiológica nisso. Lembro-me que o grande neurocientista
Americano Ramachandran inventou uma máquina para curar as dores do membro
fantasma que consistia em um simples espelho. O membro fantasma dói por
encontrar-se preso, enganchado, incapaz de se mover. O paciente move o membro real
e vê no espelho um membro que se move no lugar do membro fantasma, que ele sabe
não existir. Apesar disso o seu inconsciente registra essa ilusão óptica como
sendo o movimento real do membro fantasma amputado, que agora se torna livre, desaparecendo
com isso a dor. Essa experiência me parece uma prova neurológica da teoria de Jodorowsky.
Junto à psicomágica e aos profundos estudos do
Tarot, entendido como uma técnica de exploração do inconsciente, Jodorowsky
construiu uma espécie de filosofia da vida. Essa filosofia provém
principalmente de seu estudo de árvores
genealógicas. Para ele a sociedade
nos torna prisioneiros de um falso ego. Somos ou nos esforçamos para sermos
aquilo que nossos pais achavam que deveríamos ser. Não somente nossos pais e
familiares, mas nossos avós e, para além deles, nosso próprio meio cultural.
Tudo isso, pensa ele, é limitador, para não dizer, eliminador daquilo que seríamos
capazes de nos tornar, de nosso eu verdadeiro, expressão de nosso ser essencial.
Um eu verdadeiro que adivinho ser um ego independente, solitário e único, não
aconselhável para todos.
O que mais
limita é a família, a sociedade, a religião, a pátria. A única maneira de nos
encontrarmos a nós mesmos é pela libertação de tudo isso, como fez o próprio Jodorowsky.
Sua pátria, diz ele, são os seus sapatos. Sua religião é nenhuma. Ele é um
“ateu místico”. Ele nota que nenhuma de suas mulheres foi judia, a última delas
é uma pintora vietnamita com uma fina educação francesa. Sua ética é algo
spinozista. Ela se baseia no princípio de que nada deve ser para nós mesmos que
não seja para os outros, de que aquilo que não damos, nós nos tiramos, que só
precisamos do essencial. E a finalidade metafísica última da vida humana é nos
tornarmos a consciência do universo.
Quero dizer alguma coisa sobre os seus
filmes. Os melhores são por vezes extremamente violentos e profundamente
metafóricos. Se você não perceber que essa violência é uma metáfora
multiplamente interpretável, que objetiva ampliar a sua consciência,
tornando-lhe capaz de compreender melhor o mundo, você não os compreenderá e os
rejeitará falsamente como perversos e bizarros. Nada disso eles são. Jodorowsky
lembra-nos que a violência faz parte da vida; um nascimento é violento, a morte
é uma violência. A tragédia Grega e Shakespeare são violentos. Mas não se trata
da violência gratuita, daquela forma infantil de liberarmos nossa agressividade
condicionada do dia-a-dia, como acontece com os verdadeiramente horríveis
enlatados de Hollywood. Filmes nos quais, insiste Jodorowsky, você entra tonto
e sai tonto. Trata-se da violência libertadora, capaz de aprofundar nossa visão
das coisas.
Um
exemplo encontra-se no filme “A Montanha Sagrada”. Um chefe de polícia de um
estado totalitário coleciona os testículos de seus policiais. Para se tornar um
policial o candidato deve ter a grande honra de ter seus testículos extraídos a
sangue frio em praça pública, ao som de mil cavaleiros rufando seus tambores em
um espetáculo com símbolos nazistas. Depois os testículos são colocados em um
jarro de vidro com clorofórmio, de modo a fazerem parte da grande coleção de 1000
testículos do chefe de polícia. As imagens seriam mero mau gosto se não fossem
uma poderosa metáfora crítica sobre as perversões do poder, que emascula os
seus seguidores, limitando tanto as suas ações quanto as suas mentes. Chomsky
notou corretamente que todo poder precisa ser constantemente vigiado, pois o
destino frequente do poder não controlado é degenerar em alguma forma de perversão.
Outro
bom exemplo está no filme “Santa Sangre” (sangue santo). Nesse filme um menino
vê seu pai adúltero cortar ambos os braços de sua mãe, que lhe havia jogado
ácido sulfúrico no pênis, e depois se suicidar. Quando o menino se torna adulto
ele deixa seus braços atuarem como os de sua mãe, como que estivesse hipnotizado.
Ele fica atrás dela e os atos dela e dele são sincrônicos, como se um
adivinhasse o pensamento do outro. Em alguns atos eles concordam, como nas extraordinárias
performances teatrais da mãe. Em outros eles discordam, como quando a sua mãe
decide vingar-se das outras mulheres cometendo assassinatos com os braços do
filho. Para mim essa pode ser uma metáfora de nossos conflitos internos, de
nossos diversos centros de unidade psíquica, que ora concordam entre si, ora se
opõem dolorosamente. Mas também pode ser uma metáfora sobre o tão comum poder
da vontade daqueles que amamos sobre a nossa própria vontade. A polissemia é o
que torna poderosa a metáfora estética.
Os melhores filmes são os já citados junto a “El
Topo”. Há, certamente, limites. O elemento místico possui algo de escapista. Há
um hiper-simbolismo que não me diz muito e os enredos são artificiais... Mas a
arte não precisa ser perfeita. Shakespeare está aí para nos provar isso.