NOTA
SOBRE A METAFILOSOFIA CRÍTICA DE SUSAN HAACK
Quero resumir o primeiro
artigo sobre a fragmentação da filosofia e o caminho da reintegração que se
encontra no livro Susan Haack:
Reintegrating Philosophy.
Trata-se de um artigo crítico sobre a
filosofia analítica contemporânea, que segundo a autora se tornou obstrusamente
escolástica e ocupada em descobrir quantos filósofos são capazes de dançar
sobre a ponta de uma agulha.
Para
ela a filosofia contemporânea está se tornando hiper-especializada e
fragmentada, o que no final se deve a nossa cultura científica e à adução do
cientificismo na filosofia. A hiper-especialização pode ser boa para a ciência,
posto que ela já possui um corpo de verdades bem garantidas para serem
aplicadas e estendidas. Mas Para Susan Haack a hiper-especialização filosófica termina
sendo um contraprodutivo sinal de carreirismo e mentalidade de clique.
Embora essa não precise
ser sempre a regra, uma característica da filosofia sempre foi a ABRANGÊNCIA. A
filosofia sempre buscou o entendimento do TODO e sua fragmentação pode ser desastrosa.
Isso pode ser bem exemplificado pela República
de Platão que revela inter-conecções íntimas entre metafísica, epistemologia,
filosofia da mente, filosofia da arte, além de filosofia social e política.
Essa busca de um
conhecimento integrado perdeu-se hoje, mas é essencial à filosofia. Cada vez
mais a filosofia se torna fragmentada, internamente dividida e hermética, além
de desconsiderar campos associados e sua história. Ela se torna acadêmica no
sentido pejorativo do termo. Um exemplo é a epistemologia: ela forma
sub-domínios como o confiabilismo, o contextualismo, a epistemologia social, a
gettiorologia, e ainda sub-grupos e sub-sub-grupos de ideias. O problema é que
elas não são relacionadas entre si, cada sub-domínio funcionando à parte.
As pessoas escrevem sobre o assunto sem terem
lido uma palavra escrita há mais de dez anos. Mas filosofia não é ciência, que
segue um desenvolvimento mais ou menos linear. Coisas ditas por Platão podem
ser de interesse hoje.
Os membros de uma CLIQUE não discutem com o
que é desenvolvido por outra clique e se comportam de forma demasiado COMPLACENTE
entre si.
Para Haack, o comportamento desses filósofos
especialistas lembra uma descrição de John Locke, sobre homens estudiosos que
não fazem progresso por focarem sempre em uma coisa só. Citando Locke:
Eles
só conversam com um tipo de pessoa e só lêem um tipo de livro, não se
aventurando no OCEANO DO CONHECIMENTO, permanecendo no pequeno espaço que para
eles contém tudo o que há de valor no universo.
Para Haack, trata-se de
uma forma de VISÃO DE TÚNEL, quando a filosofia em grande parte deve seguir a
definição de Willfrid Sellars, segundo a qual ela deve
entender
como as coisas no mais amplo sentido da palavra se relacionam entre si no mais
amplo sentido da palavra.
A explicação que Susan Haack oferece para a
pobreza da filosofia especializada contemporânea está em seu conceito de
CONSILIÊNCIA. O que ela entende pela palavra é que existe apenas um único mundo
– não importando o quão complexo e variado ele seja – e que as verdades sobre
esse mundo devem de algum modo encontrar-se interconectadas no sentido de serem
INTERLIGADAS (interlocked) como, digamos, em um jogo de palavras cruzadas.
Exemplo 1: a teoria da
evolução pós-darwiniana é interligada à genética molecular e à genética
mendeliana, assim como a questões de geologia, concernentes, por exemplo, à
idade da terra.
Exemplo 2: verdades sobre os limites do conhecimento
humano devem se inter-relacionar com verdades sobre as capacidades da mente
humana.
Exemplo 3: verdades
antropológicas sobre a agressividade humana devem se inter-relacionar com a
existência de grupos humanos, estágios civilizatórios, circunstâncias do meio, variações
genéticas, desenvolvimento tecnológico e muitas outras coisas.
O mesmo se dá com a
filosofia: verdades de um domínio devem se encontrar INTERLIGADAS a verdades de
outros domínios. Por exemplo: epistemologia deve estar interligada com
filosofia da mente, filosofia da percepção, metafísica. Elas se reforçam e dão
plausibilidade ao que é dito.
A autora passa então às
CAUSAS da fragmentação, que ela relaciona ao OPORTUNISMO ACADÊMICO. A questão é
como as pessoas podem ter maior chance de promoverem as suas carreiras em um
mundo extremamente competitivo. O problema começa com a profissionalização da
filosofia. Habilidades precisam ser desenvolvidas. Mas, ela sublinha, precisam
ser desenvolvidas as HABILIDADES CORRETAS, o que pode muito bem não estar sendo
o caso em diferentes domínios.
Ela cita as palavras perturbadoras de Michael
Polainy, segundo o qual:
É
comum o charlatanismo seguro desenvolvido pelo professor universitário, na
medida em que não existirem meios de se detectar facilmente o que é feito de
errado. Só a lealdade a objetivos honestos impede isso.
Ela nota que o filósofo
amador está fazendo algo pelo simples prazer, enquanto o profissional busca
sucesso. Isso deveria interessar pessoas seriamente comprometidas com seus
ideais, ter uma carreira na qual obtivessem ambas as coisas.
Mas
não é isso o que acontece. Em circunstâncias nas quais o oportunismo
profissional prevalece o labor filosófico se torna na realidade
contra-produtivo.
Haack
acha também que demasiada ênfase é dada à quantidade de bolsas oferecidas,
número de citações, prestígio dos jornais onde se publica, coisa que vale para
a ciência em boa medida, mas muito menos em filosofia.
Para Haack a filosofia avança através de FISSÃO
e FUSÃO. Fissão tem a ver com DIVISÃO EXPONTÂNEA E ANALITICIDADE. Ela admite
isso. Mas pensa que no momento presente a fusão tem sido esquecida ou mesmo
obstaculizada. A palavra de ordem é DIVIDIR PARA CONQUISTAR, mas a divisão
excessiva leva à DESINTEGRAÇÃO.
Quando só há FISSÃO e se
rejeita as vantagens da consiliência o resultado são sub-teorias ALTAMENTE
ESPECULATIVAS E SELVAGEMENTE IMPLAUSÍVEIS.
A hiper-especialização
precoce da filosofia IMPEDE O PROGRESSO ao invés de INCENTIVÁ-LO. Problemas de NICHO
não resistem às MAL-COZIDAS (half-backed) teorias que os originaram. Um exemplo
é o programa de Davidson de explicar o significado na linguagem natural em
termos de condições de verdade tarskianas, do qual, como previa Tarski, nada
resultou.
Quando a especialização
prematura se torna lugar comum o resultado é que as pessoas discutem problemas
por anos sem resolvê-los, até que o tédio vença fazendo com que elas procurem
outros problemas novos sem ter resolvido os primeiros, assim continuando
indefinidamente.
Para ela fragmentação,
hermeticismo e a-historicismo se juntam em uma síndrome de decadência
intelectual.
Os interesses demasiado
humanos são aqui preponderantes e até certo ponto compreensíveis, interesses
humanos no sentido VULGAR da palavra: prestígio, status, sucesso de público e
principalmente dinheiro. Para ela esses podem ser PODEROSOS INCENTIVOS
PERVERSOS NA ORGANIZAÇÃO DA PROFISSÃO.
Já se pensou que só se
tem o direito de se publicar quando se tem algo de importante a dizer. Mas em
nossos tempos do ETHOS DO PUBLIQUE OU MORRA, muitos logo descobrem que a única
maneira de sobreviver na profissão é encontrar ALGUM NICHO, ALGUMA CLIQUE,
ALGUM CARTEL onde usando o jargão da moda e citando as pessoas certas se
consiga algo como UMA POSIÇÃO SEGURA NO MEIO ACADÊMICO dentro dos interesses artificialmente
restringidos de certos círculos. Como aconselhou um professor a uma aluna: “publique
tanto quanto for possível e tão rápido quanto possível.”
II
O
CAMINHO DA REINTEGRAÇÃO:
Na parte final do artigo
Susan Haack procura uma solução para o problema.
Não se trata de sugerir
que todos procurem alcançar uma visão de mundo abrangente, o que parece
impossível, a não ser na produção de lixo diletante.
O que ela sugere é a
aventura de Locke no oceano do conhecimento: adquirir cultura, ler novelas,
jornais, biografias, tudo além do escopo estreito da área da filosofia.
Aprender história da filosofia. Ouvir pessoas de outras áreas.
Trabalhar com filosofia é
como tentar solucionar um enorme jogo de palavras cruzadas no qual uma coisa
conduz a outra, um insight pode ser frutífero na produção de outros.
Ser construtivo e não
somente engenhoso. Ver a filosofia como um empreendimento construtivo no
sentido de se obter APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS.
Integridade intelectual e
suspeição com relação a autoridades também são coisas importantes.
Esse é um resumo das
soluções sugeridas, mesmo que pareçam já de início muito difíceis de serem
postas em prática no contexto atual.
III
OBSERVAÇÕES
Finalmente quero adicionar
algumas observações de vinte centavos ao que Susan Haack escreveu.
Primeiro, o antônimo de
REINTEGRAÇÃO é DESINTEGRAÇÃO. Ao menos em boa medida a filosofia contemporânea
sofre um processo AUTOFÁGICO DE DESINTEGRAÇÃO ao abandonar tentativas de
compreensão do todo. Dia virá no qual a irrelevância de todo esse esforço se
tornará evidente a todos.
Resumindo o principal: A
filosofia é atualmente tratada na academia como se fosse ciência. Como
consequência, ela deve produzir algo sob os mesmos parâmetros de avaliação em
um mundo no qual a ciência domina cada vez mais os afazeres humanos. Mas tais
parâmetros lhe são inadequados. A única maneira de se conseguir seguir tais
parâmetros, ao menos na aparência, é através de um procedimento falso, que a
autora chama de fragmentação.
As teorias da filosofia
fragmentada partem de pressupostos altamente questionáveis, quase evidentemente
falsos, adquiridos através de argumentos falaciosos que passam a ser aceitos
dogmaticamente por aqueles que decidem segui-los, pois lhes permite a produção
intelectual academicamente requerida, mesmo que com resultados meramente
ilusórios. Esse dogmatismo significa na prática colocar entre parênteses as
possíveis relações da teoria com os campos subjacentes que a tornam
implausível. Ou seja, a teoria filosófica e toda a discussão que a cerca
permanecem INTERNAMENTE CONSISTENTES, MAS SÃO EXTERNAMENTE INCONSISTENTES. Elas
se demonstram irrelevantes se opostas a ideias constitutivas de outros domínios
do saber, sejam pertencentes à própria filosofia, às ciências ou ao senso
comum.
Não se trata apenas de ignorar o princípio da
consiliência. Trata-se de CONTRADIZER A CONSILIÊNCIA. Nós sentimos o desacordo
entre a teoria e o todo. Sentimos que a filosofia analítica foi corrompida pela
ciência, tal como a filosofia francesa foi corrompida pela literatura. Trata-se
de uma forma contemporânea de procedimento sofista que infelizmente infecta muito
da academia.
Existem alguns poucos
pontos nos quais discordo com a autora. A filosofia da consciência, por
exemplo, é constituída de múltiplas teorias, mas algumas delas são extremamente
interessantes. Essas teorias deverão constituir um todo, mas trata-se de um
caso no qual a fissão não foi infrutífera.
A autora rejeita também a
teoria dos tropos, sem conhecê-la. Mas essa teoria ontológica uni-categorial ao
menos na forma sugerida por seu originador Donald Williams possui um objetivo
de FUSÃO, sendo extremamente abrangente, caso possa ser desenvolvida, mas
permanece com o seu potencial inaproveitado precisamente pelas razões aduzidas
por Susan Haack.
Em terceiro lugar temos a possibilidade da filosofia abrangente ser desenvolvida com um ou dois pés fora da academia. A internet pode tornar isso possível. Na história da filosofia filósofos continentais de Descartes a Leibniz não pertenciam à academia, o mesmo acontecendo com os empiristas ingleses. Nada garante que a filosofia não possa voltar a ser feita de outra forma.