Publicado na ANPOF
AUTISMO,
CNPq, E A DEMERITOCRACIA
Enquanto é fácil
identificar uma pessoa com alguma deficiência física, não é assim tão fácil
identificar uma pessoa que possui autismo leve ou síndrome de Asperger. Uma
razão é que o autista é uma pessoa que geralmente faz o possível para mimetizar
um comportamento normal. Mas, como percebeu Hans Asperger, uma gota de autismo
é até mesmo necessária ao pesquisador: para que a pessoa se concentre por
muitos anos no estudo de um assunto específico e para que ela faça seu trabalho
com independência intelectual, alguns traços autistas são exigidos. No meu caso
o autismo facilita o trabalho: passo quase todo meu tempo disponível envolvido
em minha pesquisa. Mas ele dificulta imensamente a divulgação do que faço
devido à ansiedade social que produz. Não conheço pessoas influentes, não
participo de grupos, não tenho vida social, não sou capaz de promover
verbalmente meu trabalho; meu único contato humano é com minha esposa, além do
contato formal com estudantes ao ministrar cursos.
Os avaliadores do CNPq parecem pensar que as
pessoas foram fabricadas em série. Há pouco tempo fiz um pedido de bolsa PQ.
Como tenho limitação ergonômica na UFRN por autismo diagnosticado eu não
oriento, concentro-me full time na pesquisa e no ensino. Junto ao meu
pedido estava o de que a exigência de que o candidato à bolsa tivesse
orientandos fosse suspensa no meu caso, por não conseguir conciliar
pesquisa com o trabalho de orientação. Além disso observei que a exigência é na
verdade apenas um estímulo suplementar, pois orientação não tem nada a ver com
pesquisa, ao menos em filosofia. Bons filósofos como Searle e Kripke preferem
usar seu precioso tempo pesquisando e não orientando; outros como Lewis e
Carnap tiveram alguns (excelentes) orientandos. As duas coisas geralmente não
se somam e frequentemente se opõem.
O avaliador deu um parecer positivo,
sugerindo que se releve os efeitos do autismo. Eis a sua conclusão final:
O
proponente tem uma produção consistente nos últimos anos, certamente acima da
média nacional na área, demonstrando completa dedicação à atividade cientifica
de pesquisa. Sua atividade do ponto de vista de formação e participação, pelos
motivos expostos, é bastante restrita. Tendo em vista a longa atividades de
pesquisa consistente e levando em consideração a seriedade da proposta e
relevância dos temas tratados, considero que o CNPq deveria seriamente
considerar reconhecer o valor da proposta conceder o mérito de uma bolsa PQ.
Com efeito, tendo
publicado um número de artigos revistas internacionais (4 artigos só em Ratio),
tendo publicado 4 livros em inglês, o último pela De Gruyter
(considerado “excelent and outstanding” pelo editor e, certamente, também na review
anônima[1]), tendo realizado 6
pós-doutorados em centros de excelência no exterior junto a grandes pesquisadores
(Konstanz, junto a Spohn, Munique, junto a Ricken, Berkeley junto a Searle,
Oxford junto a Swinburne, Göteborg junto a Maurin, INS junto a Recanati),
saindo todos os anos para congressos na Europa, torna-se claro que poucos devem
ter mais direito a uma bolsa de pesquisa individual em filosofia do que eu!
O parecer final da CA, contudo, foi
negativo, aferrando-se ao item da exigência de orientação. Ei-lo:
Proponente
e parecerista ad hoc sugerem que o CA leve em conta dificuldade de docência em
função da informação de diagnóstico médico. No entanto, extrapola a competência
do CA determinar em que condições e sob quais comprovações o CA poderia
legalmente não aplicar as exigências mínimas do edital tal como publicado,
sendo uma delas a de orientação (exigência que pode de resto ter levado outros
candidatos que não satisfazem essa condição a sequer se candidatarem).
Independente desse pertinente ponto que caberia discutir em outras instâncias,
observa-se que a limitação em questão não explica a dificuldade de publicação
dos resultados da pesquisa em revistas referência na área e causa estranhamento
a informação do Lattes de publicações como artigos em periódicos.[2] Por essas razões,
inobstante o reconhecimento da trajetória do pesquisador, levando em conta
ausência de orientação e a análise comparativa das publicações, não é possível
recomendar a proposta.
O parecer final não só
demonstra desconhecimento do que seja autismo, mas faz observações
não-pertinentes que denunciam má vontade. Eu nunca disse que tenho dificuldades
para dar aulas (são excelentes quando bem preparadas) ou que não consigo
publicar artigos no exterior. Apenas que desde 2012 me concentro em escrever
livros, pouco me importando com artigos. Como minha dedicação à pesquisa é full
time e a orientação interfere negativamente com o trabalho de pesquisa,
muito devido ao meu autismo, prefiro não orientar. Afora isso é estranho que eu
deva perder para alguém na análise comparativa de publicações: só o feito de
publicar um livro em 2023 pela De Gruyter (uma editora acadêmica
extremamente exigente) me põe à frente de quase todos os pesquisadores
brasileiros, sem falar no livro de 2022 intitulado Cognitivismo semântico (Appris
350 págs.), que para variar passou em branco.
Não adiantou oferecer essas últimas
justificativas, nem ir à Ouvidoria reclamar que estou sendo discriminado. Estou
certo de que não devo ser o único caso de autista prejudicado nessa profissão.
Finalmente, devo notar que não recebo bolsas
do CNPq desde 2016, quando declinei de minha PQ para pedir uma bolsa para a
Suécia que por razões inexplicáveis não me foi concedida. Passei o primeiro
semestre de 2016 em Göteborg (Junto a Anna-Sofia Maurin) e o segundo na École
Normale Supérieure (junto a François Recanati) por conta própria. Me
pergunto quantos bolsistas tiveram o mesmo rendimento.
Uma causa de problemas profissionais que na
verdade não deveriam existir consiste em minha necessidade de trabalhar e viver
em isolamento. Assim, apesar de ter passado em um concurso para professor de
epistemologia no IFCS em 2012, acabei desistindo de ir para o Rio, uma vez que
me sinto intelectualmente e pessoalmente mais livre na UFRN. Obviamente, devido
ao autismo eu não transito em nenhum grupo de poder e influência. Será que
essas coisas tem algo a ver com o fato de eu não mais receber bolsas de
pesquisa?
Parece que por causa do autismo, embora faça
o pão, não tenho como vendê-lo. Sem fazer apresentações orais, sem contatos,
sem ter qualquer influência, trabalhando longe dos grandes centros, tornei-me uma espécie de pesquisador invisível.
Poderia inventar a teoria da relatividade e ninguém se daria conta.
[1] Há uma
espécie de monopólios de mercado por parte das grandes editoras
anglo-americanas, como a OUP, a CUP, a MIT-Press e mesmo Routledge. O problema
é que essas editoras não aceitam sequer avaliar manuscritos enviados por verdadeiros
outsiders como é o meu caso. Livros publicados por editoras menos estabelecidas
na área (como a De Gruyter ou a UPA) ou que não fazem review (como a CSP) são
rejeitados por bibliotecas universitárias e mesmo por especialistas, uma vez
que a quantidade de publicações é imensa e há um imenso número de trabalhos sem
importância real sendo publicados. O resultado é a quase invisibilidade de meus textos, ao menos no que interessa, que é na questão de seu impacto na comunidade especializada.