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segunda-feira, 8 de abril de 2024

IDEALISMO ALEMÃO: FICHTE E SCHELLING (draft para texto introdutório)

 DRAFT PARA UM LIVRO...                                                                         


                                                                            XIII

O IDEALISMO ALEMÃO

 

A revolução cartesiana esgotou-se com o iluminismo alemão representado por Kant. Do iluminismo, com a sua crença nos poderes ilimitados da razão, resultaram a revolução francesa, o reino do terror e as guerras napoleônicas. De seu esgotamento veio o reestabelecimento das monarquias europeias, mesmo admitindo a ascensão da classe burguesa. O romantismo veio como reação ao iluminismo, revalorizando a tradição, a confiança nos instintos, nas paixões, na vida interior e na imaginação. Junto a ele surgiu em filosofia o idealismo alemão, instaurando uma filosofia extremamente especulativa de inspiração teológica. Através dele o paradigma cartesiano, centrado na epistemologia, cedeu lugar a um idealismo que permitia aos filósofos se concentrarem diretamente em questões de filosofia prática, dando opiniões filosóficas sobre praticamente o que quiserem, graças às artimanhas da dialética. Os principais filósofos desse período foram Fichte, Schelling e Hegel. Quero me concentrar em uma exposição de Hegel, o mais importante filósofo do idealismo alemão. Mas para melhor compreendê-lo será necessário um breve excurso sobre o pensamento de Fichte e Schelling, sem os quais Hegel não teria existido.

 

Fichte. A ideia originadora do idealismo alemão foi apresentada por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Ele encontrou uma inconsistência fundamental no sistema kantiano, que dizia respeito à coisa-em-si, ao mundo noumênico. A coisa-em-si é o que deve permanecer inacessível ao entendimento, desconhecido. Deve ser assim porque ela está além do alcance da intuição sensível e das categorias do entendimento, que nos permitem ter acesso cognitivo ao mundo empírico. Contudo, a coisa-em-si é o que determina o mundo fenomênico, justificando assim a sua existência exterior e independente de nós. O problema encontrado por Fichte é que se a coisa-em-si determina o mundo fenomênico, ela só pode fazê-lo causalmente, e se nós sabemos disso é porque aplicamos a categoria de causalidade à coisa em si. Ora, ao fazermos isso estamos aplicando as categorias para além do domínio dos fenômenos, o que é proibido pelo sistema da crítica da razão pura. Trata-se de uma inconsistência fundamental.

   Fichte encontrou-se com Kant para discutir o assunto, mas não sabemos do conteúdo dessa conversação. Tudo o que sabemos é que a sua solução foi livrar-se da coisa-em-si. Para ele a coisa-em-si era uma suposição desnecessária, uma bagagem dispensável, e por assumir sua existência o sistema kantiano era dogmático. A solução seria aceitar o que ficou sendo chamado de idealismo absoluto: a inteira realidade objetiva passou a ser entendida como sendo mental. O idealismo absoluto passou a ser o nome dado ao movimento filosófico que teve como principais atores Fichte, Schelling e Hegel.

   Embora Fichte rejeitasse a coisa-em-si, ele não rejeitou seu contraponto noumênico, o Eu transcendental. Para Kant existe um eu empírico semelhante ao considerado por Hume, constituído por fenômenos subjetivamente dados. Mas para ele existe também um “eu” do “eu penso”, responsável pela unidade da consciência e inacessível à experiência, parecendo levar ao contraponto subjetivo da coisa-em-si, que é o Eu transcendental dotado de atividade. O que Fichte fez em sua obra A Doutrina da Ciência[1] foi propor que nossa intuição do Eu seja em última análise elevada ao nível transindividual de uma intuição intelectual da atividade criativa do próprio Deus por ele chamado de o Eu puro ou Eu absoluto.

   Se isso for aceito fica aberto o espaço para a construção do sistema de Fichte a partir de um princípio único. O Eu transcendental, o Eu puro ou absoluto é colocado no lugar de Deus. Esse Eu absoluto é reconhecido como pura atividade autoponente, ou seja, como uma atividade que se produz a si mesma em um processo dialético no qual à tese será oposta a uma antítese que, por oposição à tese produz uma síntese. Daí seu primeiro princípio, o princípio absolutamente incondicionado de toda a experiência, que é:

 

TESE: O Eu se põe simplesmente a si mesmo. (Das Ich setzt schlechthin sich selbst).[2]

 

Dizer que o Eu puro se põe a si mesmo significa aqui dizer que ele toma consciência de si mesmo através de contínua autocriação. Essa autoconsciência que o Eu tem de si é um puro agir. A ação pela qual o Eu se põe constitui-se ela mesma em seu produto: ela é uma ação-feito (Tathandlung). Com efeito, o Eu nada mais é, para Fichte, do que uma infinita atividade autoprodutora.

   Esse princípio de autoponência do Eu é resumido por Fichte nas fórmulas “Eu sou”, “Eu sou Eu” e “Eu = Eu”. Dela decorre, por abstração do conteúdo, o próprio princípio lógico da identidade: “A = A”. O pôr do eu instaura, pois, a própria lógica. Conscientizando-se da realidade formada, o pôr do Eu instaura também a primeira das categorias fichteanas: a categoria da realidade.

   Esse primeiro princípio exprime apenas um aspecto da autoponência, pois ele é uma tese a desdobrar-se necessária e simultaneamente em antítese e síntese. Considerando que a natureza do Eu é um agir, e que todo o agir é um agir sobre algo, a sua autoconsciência só se realizará se ela for ao mesmo tempo oposição a uma alteridade. Para que possa se pôr a si mesmo como Eu, o Eu deve produzir, através da imaginação produtiva irrefletida, o Não-Eu dentro de si mesmo, seu objeto indeterminado. Daí o segundo princípio fichteano, a antítese:

 

ANTÍTESE: O Eu opõe a si um Não-Eu (Das Ich setzt sich schlechthin entgegen ein Nicht-Ich).[3]

 

Nesse princípio, o Não-Eu infinito é inconscientemente posto pelo Eu infinito. Com isso se origina o princípio lógico da contradição: “A ≠ de não-A”, e a categoria aqui instaurada é a da negação.

   Contudo, sendo o Eu e o não-Eu infinitos, essa dupla infinitude deveria fazer com que eles se anulassem um ao outro! Daí que a instabilidade da antítese demanda a sua resolução através de uma síntese, que é apresentada pelo terceiro princípio fichteano:

 

SÍNTESE: Eu oponho no Eu ao Eu divisível o Não-Eu divisível.  (Ich setze im Ich dem teilbaren Ich ein telbares Nicht-Ich entgegen).[4]

 

Para Fichte o Eu e o Não-Eu infinitos se aniquilariam um ao outro se não originassem entidades finitas em seu interior, limitando-se mutuamente. Tratam-se do Eu divisível, ou seja, da subjetividade limitada, fenomenal (na verdade da multiplicidade de nossos eus pessoais) limitado pelo não-Eu divisível, como objetividade limitada, mundo externo, natureza, o qual é limitado pelo Eu divisível.  (O princípio lógico que essa ação-feito exemplifica e instaura é “A = em parte não-A; não-A = em parte A”, e a categoria correspondente é a de limitação.)

    A grande objeção à ideia de que o Eu produz o não-Eu seria a concepção do realismo ingênuo, segundo a qual temos a mais sólida convicção de que os objetos possuem realidade fora de nós mesmos. A resposta – aceitável do ponto de vista especulativo – está na teoria fichteana da imaginação produtiva.[5] Segundo essa teoria, o não-Eu é posto originariamente pela atividade independente da imaginação produtiva, que, ao produzir o objeto, o faz de maneira irrefletida e inconsciente. Disso resulta que a nossa consciência natural e irrefletida apreende o mundo externo como independente do Eu e alheio a ele. Só a reflexão filosófica nos faz compreender que a autoconsciência deve ser o princípio único, e que ela só existe pela produção da alteridade a partir de si mesma, o que nos assegura a falsidade da concepção do realismo ingênuo.

   Lendo-se a Doutrina da Ciência pode-se ter a impressão de que o Eu puro seja de natureza individual, sendo um Eu diferente para cada um de nós. Mas isso não é possível, pois se assim fosse então o Eu de cada sujeito individual produziria um mundo sem comunicação com os outros, o que nos conduziria ao solipsismo. Na verdade, o Eu autoponente de Fichte é um Eu único, ao qual pertence o eu fenomenal de cada sujeito individual. Essa suposição é necessária para garantir a possibilidade de um mundo externo comum, acerca do qual possamos formar juízos sobre cuja verdade sejamos capazes de concordância intersubjetiva: se as pessoas A e B veem uma mesma árvore, ela é a mesma porque o sujeito último que a concebe e conhece, o Eu puro, é um só.

  Toda a ênfase de Fichte está na ação. Para ele, a atividade pela qual o Eu limita, determina o não-Eu, é o agir prático-moral, que é a atividade infinita do sujeito sobre o objeto. Já a atividade pela qual o Eu se deixa determinar pelo Não-Eu é o agir teorético-cognitivo, aquele pelo qual se adquire consciência do objeto produzido. Como para Fichte a essência do sujeito é atividade, e é ele quem produz o não-Eu, torna-se claro porque para ele a razão prática detém o primado sobre a razão teórica.

   Cumpre finalmente assinalar que para Fichte a formação da alteridade desencadeia um movimento recuperador por parte do Eu limitado, no qual ele busca reapropriar-se da identidade originária com o Eu puro em uma tarefa infinita, sendo nisso que consiste também a destinação humana, e, na intensidade do empenho nessa direção, seu valor moral.

   A mais importante consequência histórica do idealismo absoluto proposto por Fichte é que, se tomado a sério, ele põe um ponto final na revolução cartesiana. Para a filosofia moderna de Descartes a Kant (com exceção de Spinoza) há um abismo a ser transposto entre o sujeito e o objeto do conhecimento, uma vez que ambos são heterogêneos. Com a aceitação do idealismo absoluto esse abismo desaparece, uma vez que ambos se tornam homogêneos. Essa concepção irá influir daí para frente naqueles filósofos que aceitarem a cartada radical do idealismo.

   Que dizer da construção intelectual acima resumida? O argumento de Fichte é escassamente inteligível, a começar pelo fato de que termos fundamentais como ‘ponência’ (setzen) não são suficientemente explicados. Contudo, o que ele diz não é totalmente destituído de sentido, é indicativo, sugestivo. Qual é o truque? Trata-se simplesmente do convite a um esforço imaginativo: nós nos colocamos no lugar do Eu absoluto de Fichte e nos concebemos como se fossemos seres todo-poderosos criando o mundo e a nós mesmos a partir do nada. Com isso o que fazemos é magnificar a nossa consciência trivial de que somos seres ativos e que só somos capazes de nos conhecer através da interação com outras pessoas, pois só assim conhecemos nossas potencialidades e limites, etc. Contudo, a sugestão metafisicamente selvagem de que Deus fez o mundo pela imaginação produtiva de modo inconsciente para depois redescobri-lo como parte de si mesmo é ainda muito mais gratuita do que a hipótese da incognoscível coisa em si criticada por Fichte. Para um filósofo criado dentro da atmosfera do romantismo alemão era justo pensar o mundo do ponto de vista do sujeito ativo, atirando-se a ele pela força da paixão, como se ele originariamente lhe pertencesse. Mas essa forma extrema de evasão não demorou muito para deixar de ser sedutora e a afigurar-se como um conto de fadas metafísico.

 

2

 

Eu-comunitário. Segundo consta, uma vez Fichte teria dito aos seus alunos: “Pensem nessa parede; pensem agora em quem pensou essa parede; pensem agora em quem pensou em quem pensou essa parede...” Esse experimento evidencia que o Eu que objetiva encontra-se sempre acima e além de qualquer eu empírico por ele objetivado, não podendo jamais ser alcançado pela experiência. O mesmo fez Wittgenstein ao comparar o olho e o campo visual com o Eu e a experiência que ele é capaz de ter. O Eu se encontra no limite da experiência empírica, assim como o olho se encontra no limite do campo visual.[6] O olho não é capaz de se experienciar, mas somos capazes de saber de sua existência já pela atividade de ver; do mesmo modo, o Eu Fichteano não é capaz de se experienciar, embora sejamos capazes de saber de sua existência pela sua atividade experienciadora do mundo. A conclusão desses filósofos, e mesmo a de Kant, é a de que existe alguma coisa como um Eu transcendental, puro, absoluto, que tudo experiencia, mas que é estruturalmente incapaz de ser experienciado: o correspondente subjetivo da coisa-em-si.

   É possível evidenciar que esse suposto Eu transcendental que paira acima e além da experiência é uma ilusão metafísica. Hume pode aqui ajudar. Ele escreveu sobre o eu empírico como um feixe de perceptos (eventos mentais) que se sucedem uns aos outros com extraordinária rapidez e que é sempre diverso... Mas ele também falou do eu como sendo uma comunidade de perceptos, da qual alguns membros de tempos em tempos saem, enquanto outros entram, mas que mesmo assim pode ser identificada como sendo a mesma. Ora, a questão é se não poderíamos entender esse eu empírico comunitário como sendo o mesmo que é enganosamente tomado como sendo o Eu transcendental? A razão é que esse eu-comunitário, tal como o Eu transcendental, como veremos, não parece poder ser objetivado.

   Podemos elaborar essa ideia do eu-comunitário do seguinte modo. Temos experiências de características de nós mesmos que parecem permanentes. Uma pessoa tem dificuldades para guardar nomes próprios, outra tem facilidade para guardar números. Essas não são características importantes. Mas há disposições emocionais que são identificadoras de uma pessoa, assim como desejos, gostos, capacidades, habilidades, memórias. Uma pessoa pode gostar de matemática, ser passional, ser melancólica, pode saber epistemologia, certamente possui memórias pessoais de sua infância e de experiências marcantes. Somos capazes de ter experiências introspectivas de tudo isso. A experiência que vez que outra temos dessa e daquela característica recorrente de nós mesmos nos permite formar uma auto-imagem de nós como sujeitos psicológicos. Se tais características puderem ser simplificadamente designadas pelo conjunto {C1, C2, C3... Cn}, a auto-imagem ganha pela introspecção dessas características pode ser simplificadamente designada pelas representações correspondentes, digamos: {R1, R2, R3... Rn}.

   Um ponto importante a ser notado é que embora sejamos capazes de ter a experiência de uma ou outra dessas características em diferentes momentos, assim como de suas repetições em contextos experienciais semelhantes, muitas vezes com a mediação das reações de outras pessoas, não somos certamente capazes de ter a experiência do todo. Uma auto-imagem é formada aos poucos, com base na repetição de experiências em contextos similares. Assim, uma pessoa pode ter a experiência de C2 de modo a confirmar a representação R2 de sua auto-imagem {R1, R2, R3... Rn}, mas não será nunca capaz de ter uma representação completa de seu eu-comunitário {C1, C2, C3... Cn}. A razão disso é que as diferentes características que constituem o eu-comunitário se atualizam em ocasiões e contextos diferentes. Em resumo: embora sejamos capazes de atualizar nossa auto-imagem em um esforço no sentido de descrever o eu-comunitário, esse mesmo eu não pode ser como um todo atualizado diante de nós. É impossível para alguém ter a experiência de seu eu-comunitário como um todo em um dado momento, simplesmente pelo fato de que tal experiência exigiria a presença de contextos muito diversos que não podem ser dados simultaneamente. Aqui parece que o eu-comunitário começa a se parecer com o Eu transcendental.

   Alguém poderia agora apresentar a seguinte objeção: Não podemos identificar o eu-comunitário com o Eu transcendental, pois enquanto o eu comunitário pode ser parcialmente experienciado em tempos e contextos diferentes, de modo a que se possa formar uma auto-imagem, o eu transcendental não é capaz de ser experienciado de maneira alguma. O melhor exemplo para demonstrar isso é talvez o do cogito cartesiano. Considere o proferimento “eu penso, eu existo” feito no presente. Quando realizo esse proferimento eu não penso absolutamente nada de minha auto-imagem. Tudo o que possuo é realmente a consciência de mim mesmo como a fonte da atividade de pensar. Do mesmo modo, quando realizo um proferimento qualquer no presente, digamos, “Eu estou vendo um muro”, é óbvio que não faço nenhuma introspecção de características que me são próprias, nem sequer de uma só delas. Logo, o Eu transcendental que um filósofo como Fichte poderia inferir do “eu penso” ou do “eu vejo um muro” não deve ter nada a ver com o eu-comunitário.

   A resposta a essa objeção é que muitas vezes temos a consciência de algo que não atualizamos na consciência, e que esse pode bem ser o caso do “eu” presente no cogito ou em casos similares. Imagine, por exemplo, que alguém tenha convidado seis pessoas para um almoço, mas não seja capaz de se recordar de quem foi a sexta pessoa. Mesmo assim, ela é capaz de se recordar que foram seis pessoas. Uma pessoa pode saber que é capaz de resolver uma equação de segundo grau, o que não faz há anos, mas para isso não precisa atualizar o procedimento de resolução. Os exemplos de casos em que se sabe que se é capaz de atualizar uma experiência, mas que não precisa fazê-lo para saber disso, são muitos. A referência ao sexto convidado, assim como a referência ao procedimento de resolução conhecido é meramente implícita. Essa constatação nos permite fazer a seguinte proposta: uma pessoa não precisa ser capaz de atualizar nada do seu eu-comunitário para saber que está se referindo a ele, logo, pode bem ser que a referência ao eu-comunitário no caso do “eu penso” e em casos similares seja apenas implícita.

   Uma consequência da proposta acima é que uma pessoa irreflexiva que não possui nenhuma auto-imagem também não será capaz de dar sentido a proferimentos nos quais ela usa o pronome “eu”, uma vez que ela não será capaz de fazer referência implícita a qualquer coisa que se assemelhe a um eu-comunitário. Ou seja: é exatamente porque já temos formada alguma ideia de nós mesmos que somos capazes de dar sentido a proferimentos do tipo “eu penso”. Uma criança capaz de utilizar o pronome pessoal “eu” já precisa possuir alguma forma de auto-imagem, caso contrário não seria capaz de dar sentido à palavra.[7] como algo mais do que “o emissor da palavra “eu””.

   Se essa proposta for correta, então o Eu transcendental, o Eu puro, o Eu absoluto, não passam de ilusões metafísicas produzidas pelo desejo de encontrar algo de permanente e imaterial na subjetividade humana, alguma indicação metafísica da existência da alma. A filosofia cristã é uma maneira intelectualizada de reafirmar o ideal ascético.

 

2

 

Schelling. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi colega de Hegel e de Hölderlin no seminário teológico de Tübingen. Ele foi o criador de uma filosofia da natureza de fundo teológico.[8] Seguindo os passos de Fichte ele adotou o idealismo. Mas ao invés de considerar como absoluto o Eu puro, ele decidiu considerá-lo uma instância neutra, que ele chamou de absoluto como indiferença. O absoluto seria a fusão perfeita de todos os opostos, permanecendo homogeneamente subjacente a tudo o que existe. É dessa indiferença que brotam as dualidades. O absoluto só se diferencia a partir do surgimento da consciência. A natureza, por sua vez, é o conjunto das esferas finitas que se formam na esfera infinita do absoluto indiferenciado. A natureza é para ele espírito visível, enquanto o espírito é a natureza invisível.

  Schelling entendeu a natureza como um processo que se desenvolve dialeticamente em direção a uma complexidade cada vez maior e tentou mapeá-lo. A tese é uma infinita expansão, produtora do crescimento e da vida. Ela é seguida de um desequilíbrio que conduz à sua antítese, que é a contração infinita, produtora da decadência e da morte. Desse novo desequilíbrio é gerada a síntese, a maior delas sendo a autoconsciência. Através de movimentos dialéticos a natureza gera a consciência de si própria nos sujeitos humanos. O absoluto primeiro se objetiva na natureza e depois retorna a si mesmo pela razão reflexiva dos seres humanos. Nesse processo, as forças do amor e do ódio demandam especial consideração. A força do amor é a de Eros, da tese, da expansão, enquanto a força do ódio é a da antítese, da contração. O princípio da expansão é, porém, maior que o da contração, caso contrário o universo já teria desaparecido e não estaríamos em um contínuo desenvolvimento em direção à maior complexidade. Daí porque o amor é superior ao ódio. É dessa superioridade do amor sobre o ódio que advém a vida moral. A cultura, a arte, a religião e a mitologia, são expressões do movimento dialético pelo qual a civilização deve emergir como força expansiva. É aqui, aliás, que a cultura alemã emerge como força expansiva, em contraposição à força de contração da cultura inglesa, coarctada da natureza por seu empirismo, utilitarismo e materialismo. (Schelling pode ser situado nos primórdios do nacionalismo germânico.) A natureza deverá no final atingir completa reunificação quando, através de nós, tiver tomado consciência de si mesma como um todo na forma do Eu absoluto.

   Não pretendo me adentrar aqui nos labirínticos meandros da filosofia de Schelling, que construiu um variado e complexo sistema orgânico, no qual buscava considerar tudo em relação a tudo. Apesar de não consiga ver em seu sistema muito mais do que uma embolada poético-argumentativa pré-darwiniana, reconheço a existência de pontos positivos. Um deles foi a ênfase no inconsciente, mas tarde detalhadamente explorado por Freud. Outro foi o de ter salientado a importância do amor como princípio construtivo necessário ao comportamento moral, embora eu prefira desmistificá-lo como dizendo respeito ao Eros freudiano como pulsão de preservação da espécie. Ainda outro ponto positivo foi a ênfase ecológica. Para ele a natureza e a humanidade são um e o mesmo. A ideia de que somos partes da natureza e que uma separação violenta dela pode significar a morte é perfeitamente atual. Fichte pode ser lembrado como um filósofo que tentou mostrar a essencialidade da integração com a natureza como realização de nosso estar no mundo como seres humanos.



[1] J. G. Fichte: Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre, Hamburg 1988 (1794).

[2] J. G. Fichte: Wissenschaftslehre, parte 1, sec. 6.

[3]  J. G. Fichte: Ibid., par. 2, sec 10.

[4]  J. G. Fichte; Ibid., par. 3 sec. D.

[5]  J. G. Fichte, Ibid., Sintese E, p. 66 e ss.

[6]  Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus 5.632-5.6331.

[7] Note-se que a criança pode usar o pronome para se referir apenas ao seu emissor físico, evitando o recurso a um eu subjetivo, como no proferimento “Índio quer apito”.

[8] Schelling escreveu muito, mas seus livros mais infuentes foram Ideen zu einer Philosophie der Natur (1797) e o System des Tranzendentalen Idealismus (1800).