Observação: este é um rascunho rudimentar feito para discussão em sala de aula e com intenções introdutórias (Aulas, curso de graduação, Depto. Filosofia/UFRN)
JOHN RAWLS E O ESTADO JUSTO
Assim como em sua perfeição o
homem é a melhor
das criaturas vivas,
sem lei e sem justiça ele é a pior
de todas.
Aristóteles
Na
competição entre as múltiplas formas de estado, os candidatos mais bem
colocados têm sido o libertarismo
(o estado mínimo, por alguns depreciativamente chamado de capitalismo selvagem)
e o liberalismo igualitarista (o
estado social-democrático, o estado do bem estar social).
O
estado libertarista é o do laissez faire, laissez passê. O seu princípio é o de que o estado
deve respeitar ao máximo a liberdade dos cidadãos, entendida como o direito de
fazerem o que quiserem, conquanto não infrinjam os direitos uns dos outros.
Esse é o chamado estado mínimo,
que deve intervir minimamente nas vidas de seus cidadãos, de modo a preservar
as suas liberdades. Isso faz com que a função do estado não exceda a de
garantir os direitos básicos dos cidadãos, como o direito à vida, à
propriedade, à livre expressão, ou de garantir o cumprimento de contratos. O exemplo
modelar do estado liberal é o do velho oeste norte-americano. Tudo é permitido,
com exceção daquilo que infringe os direitos das outras pessoas, sendo a
principal função a do xerife, que é a de impedir a violência, garantindo que as
leis sejam cumpridas e evitando que bandidos violem os direitos das pessoas ao
tomarem as suas propriedades ou as suas vidas.
O estado libertarista, maximizando a
liberdade dos cidadãos, pode ser excepcionalmente eficaz. Sendo ele um estado
de livre concorrência, nele as pessoas mais hábeis têm a oportunidade de
ascender, enriquecer e produzir riqueza. Como o estado tem muito poucas
obrigações, não precisando gastar para auxiliar os cidadãos menos favorecidos,
ele pode taxar menos, o que facilita ainda mais a produção. Contudo, o estado
libertarista também tem o seu lado obscuro, pois o preço de sua eficácia é a
desigualdade social. Junto aos poucos que conseguem vencer na competição, surge
uma massa de perdedores que caem na pobreza, quer seja por alguma inabilidade
ou simplesmente pela má-sorte. (Os Estados Unidos, como o país que mais bens
produz, mas que ainda assim tem mais de 20 milhões de pessoas vivendo na
pobreza, serve um pouco como um exemplo das vantagens e desvantagens do estado
libertarista.)
A
alternativa razoável para o estado libertarista é o estado
liberal-igualitário ou liberal, que na Europa foi chamado de estado
social-democrata, voltado para o bem-estar dos seus cidadãos. No estado liberal
preza-se a liberdade dos cidadãos, mas não a ponto da indiferença à injustiça
social supostamente resultante da falta de superestrutura reguladora do estado
libertarista. Se a livre competição produz um injusto desnivelamento de
riquezas, o estado liberal-igualitário deve prover uma compensação para isso,
na medida em que protege os mais desfavorecidos, provendo-lhes de auxílio
desemprego, estudo gratuito, assistência de saúde etc. Afora isso, o estado
deve prover igualdade de oportunidade dos mais pobres com os mais ricos,
permitindo aos primeiros, em princípio, ascender socialmente, o que na prática
significa subsidiar as possibilidades de ascensão. Exemplos de estados que se
aproximaram desses ideais liberal-igualitários têm sido os países nórdicos, e o
exemplo modelar – para fazer contraste com a sociedade do velho oeste – é o de
uma comunidade alternativa como a dos Amishes, dentro da qual cada pessoa
divide livremente com outras uma parte dos frutos do seu trabalho.
Obviamente, tal estado não é tão eficaz em
termos de produção quanto o estado liberal. As taxações são altas, o que
encarece a produção. Mas isso não significa que ele não seja idealmente
superior.
O estado justo
Qual é o estado justo? Como legitimá-lo?
Em seu livro intitulado Uma Teoria da Justiça, provavelmente o maior
clássico da filosofia política do século XX, comparável ao Leviatã de Hobbes, John Rawls idealizou uma experiência em
pensamento que parece demonstrar a maior racionalidade da forma
liberal-igualitarista de estado. Ele pensa que quando avaliamos a sociedade a
que gostaríamos de pertencer, nossa preferência se torna pessoal, pois é
influenciada por nossa profissão, nosso status social, nossos
preconceitos, o que nos torna incapazes de escolher uma sociedade justa. Mas há
uma maneira de avaliarmos a sociedade na qual gostaríamos de entrar que ao
mesmo tempo a identifica como sendo justa. Para chegar a isso, Rawls começa
pedindo para nos imaginarmos no que ele chama de uma posição original,
que no caso é aquela em que nos encontramos prestes a entrar em uma sociedade
cobertos pelo que ele chama de “véu da ignorância”. Sob esse véu não sabemos
nem em que situação entraremos na sociedade, nem como seremos quando isso
acontecer. Não sabemos, pois, se nela entraremos ricos ou pobres, homens ou
mulheres, jovens ou velhos, brancos ou negros, inteligentes ou tolos... Nesse
caso – assumindo que preservamos nosso conhecimento da natureza humana e do
mundo social – em que sociedade preferiríamos entrar? A resposta, para Rawls, é
que nesse caso preferiríamos entrar em uma sociedade justa, na qual nossos
ganhos só são maximizados sob o pressuposto de um mínimo de perdas, segundo o
princípio maximin da teoria da
escolha.
A experiência em pensamento de uma escolha
feita a partir da posição original demonstra a sua força quando consideramos os
princípios que Rawls consegue dela deduzir.
O primeiro é o princípio da liberdade:
(1): Cada
pessoa deve ter igual direito ao mais extenso sistema total de liberdades
básicas iguais, compatível com um sistema similar de liberdades para todos.
Em suma: a liberdade de cada indivíduo
deve ser a mais extensa possível, conquanto não haja interferência entre as
suas liberdades, pois, como se costuma dizer, nossa liberdade termina onde
começa a do próximo. Esse princípio garante a liberdade até mesmo de
intolerantes como nazistas e racistas, conquanto eles não comecem a interagir
com as outras pessoas de maneira a diminuir-lhes a liberdade. Ora, aplicando a
experiência em pensamento proposta por Rawls, vemos que o princípio da
liberdade é bem fundado, pois uma pessoa sob o véu da ignorância escolheria
sempre entrar em uma sociedade livre, com receio de vir a pertencer a uma
facção que tivesse direitos diminuídos, que fosse discriminada, ou perseguida.
O segundo princípio de Rawls é concernente
à regulação das desigualdades sociais e econômicas. Ele consiste, na prática,
em dois princípios. O primeiro é o da diferença, que afirma o seguinte:
(2a)
Desigualdades sociais e econômicas devem ser toleradas apenas sob a condição de
trazerem maiores benefícios aos membros mais desfavorecidos da sociedade.
Assim, uma sociedade igualitária que
produz uma população muito pobre, embora igual, não é mais justa do que uma
sociedade desigual, mas que por isso permite que os seus membros mais pobres
sejam menos pobres do que os da primeira (pensar diversamente seria
demonstração de inveja). Também segundo o princípio da diferença, uma pessoa
que possui bens e posição privilegiada só pode ser admitida em uma sociedade
justa se a sua situação reverter em vantagens para os desfavorecidos. Também
parece que, encontrando-nos sob o véu da ignorância, preferiríamos entrar em
uma sociedade na qual esse princípio fosse válido.
O segundo princípio é o da igualdade de oportunidades, dizendo-nos
que:
(2b)
Desigualdades sociais e econômicas associadas a cargos ou funções só podem
existir se eles estiverem abertos a todas as pessoas em condições de honesta
igualdade de oportunidade.
Isso significa, por exemplo, que o estado
deve prover para que alguém que nasceu na favela tenha as mesmas oportunidades
para cursar uma universidade do que pessoas economicamente bem situadas. Claro
que, sob o véu da ignorância, preferiríamos entrar em uma sociedade em que
vigorasse a igualdade de oportunidade, pois poderíamos ter a esperança de mudar
a nossa sorte no caso de começarmos de uma situação socialmente desvantajosa.
Embora a sociedade justa concebida por
Rawls possa não existir de fato, ela pode ser aproximada, parecendo claro que a
sociedade liberal de estrutura social-democrata, na qual o estado regula a
economia no interesse de todos, provê serviços de welfair e tenta
alterar a distribuição de renda em nome da justiça social, é mais propensa a
satisfazer tais princípios do que a sociedade libertarista: sob o véu da
ignorância preferiríamos entrar na sociedade comunitária a entrar na sociedade
do velho oeste. Mas será que todos concordariam? Padrões de racionalidade
diferem, e com eles os da escolha. Como reagiria um apostador, o tipo de pessoa
que não segue o princípio maximin,
não se importando em arriscar alto, mesmo que seja para perder tudo? Uma
resposta é que a escolha feita a partir da posição original é muito mais
decisiva do que as escolhas da vida cotidiana. Ela é única e válida para
sempre. Quem a faz compromete toda a sua vida. Por isso, so um apostador
bastante irracional estaria disposto a correr riscos tão altos. Como a condição
de racionalidade é para ser preservada na posição original, essa possibilidade
fica excluída.
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9, 4.
O princípio maximum minimorum
nos diz que devemos atentar primeiro para o curso de ação que oferece menor
desvantagem e só então, dentro dele, escolher a alternativa mais vantajosa.
Passo por alto a questão de saber em que extensão os princípios são
corretos, passando a pressupô-los no argumento que se segue. Devo lembrar,
porém, que há toda uma literatura crítica acerca disso, a começar pelo seu
contraponto libertarianista, que foi o livro de Robert Nozick Anarchy, State and Utopia.
O próprio Rawls, seguindo Kant, tem reservas sobre a vantagem de um
suposto estado mundial, que para ele seria ou despótico ou frágil demais,
preferindo a idéia de federação. J. Rawls: The
Law of Peoples, p. 36.