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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

JOHN RAWLS E O ESTADO JUSTO (exposição introdutória)


Observação: este é um rascunho rudimentar
 feito para discussão em sala de aula e com intenções introdutórias (Aulas, curso de graduação, Depto. Filosofia/UFRN)



JOHN RAWLS E O ESTADO JUSTO

                         Assim como em sua perfeição o homem é a  melhor
                         das criaturas vivas, sem lei e sem justiça ele é a pior
                         de todas.
                         Aristóteles


     Na competição entre as múltiplas formas de estado, os candidatos mais bem colocados têm sido o libertarismo (o estado mínimo, por alguns depreciativamente chamado de capitalismo selvagem) e o liberalismo igualitarista (o estado social-democrático, o estado do bem estar social).
     O estado libertarista é o do laissez faire, laissez passê. O seu princípio é o de que o estado deve respeitar ao máximo a liberdade dos cidadãos, entendida como o direito de fazerem o que quiserem, conquanto não infrinjam os direitos uns dos outros. Esse é o chamado estado mínimo, que deve intervir minimamente nas vidas de seus cidadãos, de modo a preservar as suas liberdades. Isso faz com que a função do estado não exceda a de garantir os direitos básicos dos cidadãos, como o direito à vida, à propriedade, à livre expressão, ou de garantir o cumprimento de contratos. O exemplo modelar do estado liberal é o do velho oeste norte-americano. Tudo é permitido, com exceção daquilo que infringe os direitos das outras pessoas, sendo a principal função a do xerife, que é a de impedir a violência, garantindo que as leis sejam cumpridas e evitando que bandidos violem os direitos das pessoas ao tomarem as suas propriedades ou as suas vidas.
     O estado libertarista, maximizando a liberdade dos cidadãos, pode ser excepcionalmente eficaz. Sendo ele um estado de livre concorrência, nele as pessoas mais hábeis têm a oportunidade de ascender, enriquecer e produzir riqueza. Como o estado tem muito poucas obrigações, não precisando gastar para auxiliar os cidadãos menos favorecidos, ele pode taxar menos, o que facilita ainda mais a produção. Contudo, o estado libertarista também tem o seu lado obscuro, pois o preço de sua eficácia é a desigualdade social. Junto aos poucos que conseguem vencer na competição, surge uma massa de perdedores que caem na pobreza, quer seja por alguma inabilidade ou simplesmente pela má-sorte. (Os Estados Unidos, como o país que mais bens produz, mas que ainda assim tem mais de 20 milhões de pessoas vivendo na pobreza, serve um pouco como um exemplo das vantagens e desvantagens do estado libertarista.)
     A alternativa razoável para o estado libertarista é o estado liberal-igualitário ou liberal, que na Europa foi chamado de estado social-democrata, voltado para o bem-estar dos seus cidadãos. No estado liberal preza-se a liberdade dos cidadãos, mas não a ponto da indiferença à injustiça social supostamente resultante da falta de superestrutura reguladora do estado libertarista. Se a livre competição produz um injusto desnivelamento de riquezas, o estado liberal-igualitário deve prover uma compensação para isso, na medida em que protege os mais desfavorecidos, provendo-lhes de auxílio desemprego, estudo gratuito, assistência de saúde etc. Afora isso, o estado deve prover igualdade de oportunidade dos mais pobres com os mais ricos, permitindo aos primeiros, em princípio, ascender socialmente, o que na prática significa subsidiar as possibilidades de ascensão. Exemplos de estados que se aproximaram desses ideais liberal-igualitários têm sido os países nórdicos, e o exemplo modelar – para fazer contraste com a sociedade do velho oeste – é o de uma comunidade alternativa como a dos Amishes, dentro da qual cada pessoa divide livremente com outras uma parte dos frutos do seu trabalho.
     Obviamente, tal estado não é tão eficaz em termos de produção quanto o estado liberal. As taxações são altas, o que encarece a produção. Mas isso não significa que ele não seja idealmente superior.

     O estado justo
     Qual é o estado justo? Como legitimá-lo? Em seu livro intitulado Uma Teoria da Justiça, provavelmente o maior clássico da filosofia política do século XX, comparável ao Leviatã de Hobbes, John Rawls idealizou uma experiência em pensamento que parece demonstrar a maior racionalidade da forma liberal-igualitarista de estado. Ele pensa que quando avaliamos a sociedade a que gostaríamos de pertencer, nossa preferência se torna pessoal, pois é influenciada por nossa profissão, nosso status social, nossos preconceitos, o que nos torna incapazes de escolher uma sociedade justa. Mas há uma maneira de avaliarmos a sociedade na qual gostaríamos de entrar que ao mesmo tempo a identifica como sendo justa. Para chegar a isso, Rawls começa pedindo para nos imaginarmos no que ele chama de uma posição original, que no caso é aquela em que nos encontramos prestes a entrar em uma sociedade cobertos pelo que ele chama de “véu da ignorância”. Sob esse véu não sabemos nem em que situação entraremos na sociedade, nem como seremos quando isso acontecer. Não sabemos, pois, se nela entraremos ricos ou pobres, homens ou mulheres, jovens ou velhos, brancos ou negros, inteligentes ou tolos... Nesse caso – assumindo que preservamos nosso conhecimento da natureza humana e do mundo social – em que sociedade preferiríamos entrar? A resposta, para Rawls, é que nesse caso preferiríamos entrar em uma sociedade justa, na qual nossos ganhos só são maximizados sob o pressuposto de um mínimo de perdas, segundo o princípio maximin da teoria da escolha[1].
     A experiência em pensamento de uma escolha feita a partir da posição original demonstra a sua força quando consideramos os princípios que Rawls consegue dela deduzir[2]. O primeiro é o princípio da liberdade:

(1): Cada pessoa deve ter igual direito ao mais extenso sistema total de liberdades básicas iguais, compatível com um sistema similar de liberdades para todos.

      Em suma: a liberdade de cada indivíduo deve ser a mais extensa possível, conquanto não haja interferência entre as suas liberdades, pois, como se costuma dizer, nossa liberdade termina onde começa a do próximo. Esse princípio garante a liberdade até mesmo de intolerantes como nazistas e racistas, conquanto eles não comecem a interagir com as outras pessoas de maneira a diminuir-lhes a liberdade. Ora, aplicando a experiência em pensamento proposta por Rawls, vemos que o princípio da liberdade é bem fundado, pois uma pessoa sob o véu da ignorância escolheria sempre entrar em uma sociedade livre, com receio de vir a pertencer a uma facção que tivesse direitos diminuídos, que fosse discriminada, ou perseguida.
     O segundo princípio de Rawls é concernente à regulação das desigualdades sociais e econômicas. Ele consiste, na prática, em dois princípios. O primeiro é o da diferença, que afirma o seguinte:

(2a) Desigualdades sociais e econômicas devem ser toleradas apenas sob a condição de trazerem maiores benefícios aos membros mais desfavorecidos da sociedade.


     Assim, uma sociedade igualitária que produz uma população muito pobre, embora igual, não é mais justa do que uma sociedade desigual, mas que por isso permite que os seus membros mais pobres sejam menos pobres do que os da primeira (pensar diversamente seria demonstração de inveja). Também segundo o princípio da diferença, uma pessoa que possui bens e posição privilegiada só pode ser admitida em uma sociedade justa se a sua situação reverter em vantagens para os desfavorecidos. Também parece que, encontrando-nos sob o véu da ignorância, preferiríamos entrar em uma sociedade na qual esse princípio fosse válido.
     O segundo princípio é o da igualdade de oportunidades, dizendo-nos que:

(2b) Desigualdades sociais e econômicas associadas a cargos ou funções só podem existir se eles estiverem abertos a todas as pessoas em condições de honesta igualdade de oportunidade.

     Isso significa, por exemplo, que o estado deve prover para que alguém que nasceu na favela tenha as mesmas oportunidades para cursar uma universidade do que pessoas economicamente bem situadas. Claro que, sob o véu da ignorância, preferiríamos entrar em uma sociedade em que vigorasse a igualdade de oportunidade, pois poderíamos ter a esperança de mudar a nossa sorte no caso de começarmos de uma situação socialmente desvantajosa.
     Embora a sociedade justa concebida por Rawls possa não existir de fato, ela pode ser aproximada, parecendo claro que a sociedade liberal de estrutura social-democrata, na qual o estado regula a economia no interesse de todos, provê serviços de welfair e tenta alterar a distribuição de renda em nome da justiça social, é mais propensa a satisfazer tais princípios do que a sociedade libertarista: sob o véu da ignorância preferiríamos entrar na sociedade comunitária a entrar na sociedade do velho oeste. Mas será que todos concordariam? Padrões de racionalidade diferem, e com eles os da escolha. Como reagiria um apostador, o tipo de pessoa que não segue o princípio maximin, não se importando em arriscar alto, mesmo que seja para perder tudo? Uma resposta é que a escolha feita a partir da posição original é muito mais decisiva do que as escolhas da vida cotidiana. Ela é única e válida para sempre. Quem a faz compromete toda a sua vida. Por isso, so um apostador bastante irracional estaria disposto a correr riscos tão altos. Como a condição de racionalidade é para ser preservada na posição original, essa possibilidade fica excluída.



Bibliografia:
Brown, C. (1995): “International Political Theory and the Idea of World Community”, in International Relations Theory Today, K. Booth and S. Smith (eds.) Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press.
Einstein, A. (1946): “Toward a World Government””, in Out of My Later Years: The Scientist, Philosopher and Man Portrayed Through His Own Words, New York: Wings Books (1956).
Habermas, J.(1998): “Kant’s Idea of Perpetual Pace: At Two Hundred Years’ Storical Remove”, in The Inclusion of the Others, C. Cronin e P. De Greiff (eds.), Cambridge Mass: MIT Press.
Hobbes, T. (1651): Leviathan, Markham: Penguin (1986).
Kant, I.(1983): Zum Ewigen Frieden: Ein philosophischen Entwurf  Darmstadt WDB, vol. 9, p. 208 ss, (BA 28-36).
Lu, C.(2006): “World Government”, Stanford Encyclopedia of Philosophy (internet).
Nielsen, K. (1988): “World Government, Security and Global Justice”, in Problems of International Justice, Steven Luper-Foy (ed.), Boulder: Westview, 263-282.
Nozick, R.(1974): Anarchy, State and Utopia New York: Basic Books 1974.
Rawls, J.(1971): A Theory of Justice, Harvard University Press: Cambridge Mass.
Rawls, J. (1998): The Law of Peoples (Harvard University Press: Cambridge Mass.
Young, I. M. (2002): Inclusion and Democracy Oxford: Oxford Universiy Press.
Wendt, A. (2003): “Why is a World State Inevitable? Teleology and the Logic of Anarchy”, European Journal of International Relations, 9, 4.




[1] O princípio maximum minimorum nos diz que devemos atentar primeiro para o curso de ação que oferece menor desvantagem e só então, dentro dele, escolher a alternativa mais vantajosa.
[2] Passo por alto a questão de saber em que extensão os princípios são corretos, passando a pressupô-los no argumento que se segue. Devo lembrar, porém, que há toda uma literatura crítica acerca disso, a começar pelo seu contraponto libertarianista, que foi o livro de Robert Nozick Anarchy, State and Utopia.
 [3] Eis porque Kant rejeitava a idéia de um estado mundial, colocando em seu lugar uma federação de estados livres unidos na preservação da paz. Ver Immanuel Kant: Zum Ewigen Frieden: Ein philosophischen Entwurf, p. 208 ss, (BA 28-36).
[4] O próprio Rawls, seguindo Kant, tem reservas sobre a vantagem de um suposto estado mundial, que para ele seria ou despótico ou frágil demais, preferindo a idéia de federação. J. Rawls: The Law of Peoples, p. 36.



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