CONSERVADORES E
PROGRESSISTAS
Se você acredita que eu penso que é preciso fazer uma opção entre ser de
direita ou de esquerda, devo decepcioná-lo. No que se segue, quero demonstrar
que é desejável a existência de uma saudável dialética entre direita e esquerda
e que ela é intrínseca a um sistema político verdadeiramente democrático.[1] Após a
consideração dos argumentos, essa ideia se torna, me parece, uma quase
obviedade quando aplicada a sistemas democráticos pertencentes ao mundo atual,
não tanto como eles são, mas pelo menos como deveriam ser. Muito da filosofia,
afinal, apenas estabelece associações entre aquilo que já sabemos, mas que pela
falta dessa organização nos conduz a concepções errôneas.
Para começar, quero tirar de
foco aquilo que foge ao escopo de nossa discussão, que são os sistemas
totalitários ou pró-totalitários ditos de esquerda ou de direita. Quero também
excluir deformações sociais demagógico-populistas, como esquerda e direita
ditas regressivas, que não são o que se apresentam como sendo, apontando
para deformações manipuladoras do processo democrático e possuindo em geral um
elemento potencialmente totalitário e economicamente autodestrutivo. Suponho,
como base necessária ao meu argumento, uma sociedade bem formada na qual as
leis sejam cumpridas e onde exista transparência e ‘fairness’
na atividade política, um ideal que na prática nunca chega a ser completamente
realizado. Dito isso, minha intenção é procurar esclarecer os verdadeiros
papéis da esquerda e da direita nessa sociedade legitimamente democrática.
Há uma pluralidade de termos
que apresentam a dicotomia direita-esquerda, ela própria semanticamente
carregada e ambígua. Uma dicotomia pouco usada entre nós é a norte-americana entre
libertarismo (libertarianism, um equivalente para a direita liberal) versus liberalismo igualitário (liberal-igualitarism, um equivalente
para a esquerda democrática). Pessoalmente prefiro os termos conservadorismo versus progressivismo,
menos carregados ideologicamente. Mesmo privilegiando essa última terminologia,
manterei em parte a primeira, pois quero desafiar concepções arraigadas nas
mentes de muitos e que me parecem claramente enganosas. Minha tese é simples: direita
e esquerda, ou seja, conservadorismo e progressivismo, em um sistema
legitimamente democrático no qual existe desenvolvimento econômico, são opostos
dialéticos interdependentes que podem e mesmo devem alternar-se em uma
enriquecedora dinâmica interna. Ou seja, faz parte da dinâmica de um estado
legitimamente democrático em processo de desenvolvimento material um esperado
revezamento entre governos mais voltados para a o conservadorismo e outros mais
voltados para a progressivismo, dado que ambos devem se complementar no intento
de maximizar o bem comum e a justiça social.
Naturalmente, essa tese demanda esclarecimentos. Primeiro é preciso
definir com alguma precisão o que estamos entendendo por conservadorismo e progressivismo,
de modo a expor a razão mesma dessa dicotomia. Depois é necessário esclarecer
por que e de que maneira considero ambas as posições legítimas. Mais além
preciso explicar por que uma alternância entre ambas em um sistema
sócio-político suficientemente desenvolvido costuma ser desejável. Finalmente,
quero testar minhas considerações aplicando o critério de estado justo de John Rawls (1999),
de maneira a mostrar que ele pode se aplicar positivamente a ambos os casos,
uma vez dado o contexto adequado.
I
Vejamos, primeiro, como podemos redefinir o
espectro político que vai da direita conservadora à esquerda progressista de
forma que espero não ser ideologicamente comprometida. Como é sabido, os termos
surgiram no período da Revolução Francesa, a direita se referindo aos
defensores da monarquia e a esquerda aos que a ela se opunham. Mais tarde a
oposição passou a constituir um espectro que vai da extrema-esquerda à esquerda
moderada, ao centrismo, à direita moderada e à extrema-direita. Desse espectro
quero considerar apenas a esquerda e a direita moderadas – entendidas como
conservadorismo versus progressivismo – uma vez que por não serem
autoritárias elas são compatíveis com um sistema democrático suficientemente
desenvolvido e capazes de um diálogo construtivo mútuo, diversamente de posições
extremadas. Começo com uma breve caracterização contrastando as duas posições,
a começar pelo conservadorismo:
Tese A1. O ponto fundamental é o de que o
conservadorismo (vulgo direita) deve, por definição, representar as classes
sociais ditas mais favorecidas ou influentes ou dominantes. Claro
que sob o capitalismo o conservadorismo deve defender a maximização do capital
privado. Ele defende a livre competição da parte da economia privada e a
minimização do papel do estado. A diminuição das taxações decorrentes da
minimização do papel do estado auxilia no crescimento econômico porque em um
sistema regido pela lei comum e livre de distorções, no qual o estado é o menor
possível e taxa minimamente, as empresas se tornam muito mais capazes de
competir umas com as outras. A livre competição, por sua vez, faz com que as
empresas mais eficazes e criativas predominem, enquanto as menos competitivas
vão à falência, o que desde Adam Smith sabemos que serve como o principal
instrumento para o enriquecimento de uma nação (1776). Trata-se de uma espécie
de darwinismo econômico. O melhor exemplo disso foi o do desenvolvimento dos
Estados Unidos na última metade do século XIX, notado pelo economista Milton
Friedman (1990). O governo taxava os cidadãos entre 3% a 5%, restringindo-se ao
papel de manter a lei e a ordem, além da defesa. Praticamente tudo era privado.
Como havia, por exemplo, competição entre as diversas companhias ferroviárias,
o preço das viagens era minimizado, facilitando a vida do cidadão. O resultado
dessa política econômica foi um crescimento econômico exponencial que já no
início do século XX fazia os Estados Unidos ultrapassarem a Europa em termos de
riqueza, o que explica a imigração de mais de quarenta milhões de Europeus para
os Estados Unidos na primeira metade do século.
Mas essa forma radical de
capitalismo não acontece sem um preço, dado que os perdedores da competição
pelo capital caem na miséria, seja por incapacidade ou por simples má-sorte,
passando a depender da caridade dos mais afortunados. Há também a ansiedade social,
bem como um ethos social gerado pelo sistema.
Por si mesma, a mentalidade competitiva não parece algo extremamente saudável.[2] Os
muitos casos de assassinatos em massa nos Estados Unidos testemunham esse ponto.
A palavra ‘perdedor’ (loser) é tipicamente
norte-americana. O pecado capital da direita, visível no que já foi apelidado
de “capitalismo selvagem”, é o da ganância.
Vejamos
agora, como contraste, características econômicas do progressivismo:
Tese A2. Aqui o ponto fundamental é o de que o progressivismo deve representar as classes ditas menos
favorecidas, ou, para usar outra expressão, classes subordinadas na ordem
social. Economicamente, a esquerda moderada deve defender a
maior medida possível de socialismo democrático. Uma maneira de se tentar
alcançar esse objetivo é através de uma maior intervenção estatal na economia,
pois geralmente o estado é quem é capaz de redistribuir riquezas que tendem a
se acumular nas mãos de alguns poucos. Essa é uma inevitável tendência no
domínio da economia privada: dinheiro gera dinheiro. Um exemplo trivial para
evidenciar esse ponto: um fazendeiro que possui 50 hectares pode investir suas
economias comprando o dobro do que tem. Nesse caso conseguirá adquirir 100
hectares. Já se um pequeno produtor que possui 5 hectares investir suas
economias comprando o dobro do que possui, conseguirá no final obter 10
hectares. Na comparação, o primeiro ganhará 50 hectares a mais, enquanto o
segundo apenas 5, ou seja, o primeiro dez vezes mais do que o segundo. O fato
de o capital tender a se concentrar nas mãos de uns poucos pode não ser mal do
ponto de vista meramente econômico (o dinheiro em excesso é reinvestido ou vai
para os bancos onde é emprestado), mas os poucos possuidores de mais recursos
tendem a possuir maior poder, o que usualmente os permite introduzir distorções
a seu favor, distorções capazes de produzir danos colaterais indesejáveis como
a falta de igualdade de oportunidades. Como notou um jornalista de esquerda,
nos Estados Unidos a maioria das pessoas tem alguma chance uma vez na vida, mas
aqueles que pertencem a famílias ricas e influentes tem inúmeras chances que se
sucedem umas às outras. Isso contribui para limitar a mobilidade social e
debilitar a meritocracia.
Considerando o seu compromisso
de aumentar a qualidade de vida das classes ditas subordinadas, a esquerda
democrática deve, por princípio, buscar diminuir desigualdades. É aí que entra
o papel redistributivista do Estado. A melhor maneira de assegurar a
redistribuição é agregar valor humano às pessoas, o que se faz pela educação, a
começar pela educação básica. O próprio Marx acreditava que um engenheiro merece
ganhar mais, uma vez que (segundo o seu raciocínio) foi investido trabalho na
sua formação, o que o valoriza. Certamente, apenas isso não basta. O estado do
bem-estar social (o welfair-state) foi
uma conquista da civilização, protegendo os menos favorecidos. Que as pessoas
possam de forma gratuita ter educação básica de qualidade, saúde, alimentação e
moradia garantidas em caso de desemprego, deveria passar à condição de direito
humano. Mas não podemos nos esquecer que esses direitos só existem sob o
pressuposto de uma estrutura econômica suficientemente robusta. Se a economia
regredisse à Idade Média esses direitos deixariam de existir. Eles são
dependentes da realidade econômica, o que foi claramente percebido por Marx.
O óbvio problema causado pela
introdução de medidas de auxílio social é que elas causam um aumento na
taxação, diminuindo a competitividade da economia privada. A economia privada –
o livre mercado – é, como já notei, o principal motor do desenvolvimento: o
próprio estado se sustenta sobre ela. Essa tese fundamental de Adam Smith vale
ainda hoje. O que enriquece uma nação é a livre competição entre os agentes
econômicos; uma livre competição sem monopólios ou cartéis ou ajuda do estado e
sob o controle de leis igualmente aceitas e aplicáveis a todos, ainda que esse ideal
de “bom capitalismo” seja apenas limitadamente realizado. Trata-se aqui do que
Smith chamou de a “mão invisível” do mercado através da qual cada agente
econômico, movido pelo interesse pessoal, busca vencer na livre competição do
mercado, acabando por produzir mercadorias melhores e mais baratas, o que acaba
por promover um bem maior para todos.
O risco envolvido na busca do
estado do bem-estar social está no enrijecimento da mão invisível. É o caso de
erros estratégicos por vezes grosseiros conduzidos pelo Estado (vide a presente
distopia na política europeia) ou (no caso típico do Brasil) o crescimento
excessivo de um Estado ineficiente e corrupto a ponto de esmagar a economia
privada, produzindo estagnação ao matar o “espírito animal” do
empreendedorismo. O Estado, como todos sabem, não tem competidores e é por essa
razão pouco eficiente. A intervenção estatal pode até certo ponto auxiliar no
desenvolvimento, mas os limites são bem definidos e culturalmente dependentes.
Como a Escola Austríaca demonstrou, a economia planejada, tentada por estados
totalitários de esquerda, destruía a informação econômica necessária para que o
mercado operasse satisfatoriamente, pois não era capaz de prever as
necessidades de milhões de atores econômicos (Mises 1999, II, 4). Ou seja, uma
economia socialista totalitária não tem como dar certo e uma economia capitalista
democrática com maior intervenção do estado possui limites economicamente e
culturalmente variáveis. A experiência social-democrática mais bem-sucedida, a
dos países nórdicos (Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca) foi na verdade um
desejável subproduto de um livre mercado altamente desenvolvido em países onde
fatores culturais reduziam a corrupção ao mínimo.
A falência
de sistemas totalitários de esquerda como a URSS e a China de Mao, para citar
dois exemplos entre muitos, é uma prova irrefutável do que escrevi acima. Esses
sistemas baseados no assim chamado capitalismo de estado só funcionaram sob as
mãos de ferro de ditadores e, mesmo assim, dando algum espaço não-oficial ao mercado
negro. O pecado capital da esquerda, claramente visível em estados comunistas,
sempre foi o da inveja.
Tese B1. O conservadorismo deve estar comprometido com uma defesa
racional das classes dominantes, geralmente sob alguma justificação de fundo
meritocrático. Para Rawls, os membros dessas classes merecerão mais na medida
em que forem capazes de produzir um bem comum maior (Digamos, Henry Ford ao
produzir carros populares na década de 20, ou Bill Gates por ter fundado
a Microsoft).
Tese B2. O progressivismo deve estar comprometido
com um estado capaz de produzir um redistributivismo razoável com relação às
classes menos favorecidas e com a minimização de desigualdades econômicas, que
podem facilmente se tornar injustas. Mas isso só é possível pelo
desenvolvimento econômico. Não se pode imaginar social-democracia na Idade
Média e devemos pensar nisso quando consideramos as diferenças entre os estados
contemporâneos.
Tese A3. O conservadorismo costuma estar
comprometido com a conservação dos valores tradicionais, com a resistência à
velocidade da transformação ou mesmo com o retorno à ordem antes estabelecida,
mesmo que alterada. Mas qual a razão disso? Esse é um ponto crucial a ser considerado
no curso desse artigo.
Tese B3. O progressivismo deve estar mais
comprometido com a mudança social sob o suposto (inevitável) de um contínuo
progresso econômico. A razão da oposição entre A3 e B3 é simples: uma sociedade
é um todo dinâmico, geralmente em desenvolvimento, necessitando acomodações nas
relações entre classes. Só o aumento da riqueza permite uma melhoria na
condição econômica das classes ditas subordinadas. Por isso, é o progressivismo
de esquerda que costuma demandar mudanças, até o limite onde elas possam se
tornar excessivas. Um exemplo disso foi a Revolução Francesa antes da vinda de
Napoleão, até sua degradação absolutista, seguida da reação que conservadora
vinda após sua derrota.
II
Muitos pensaram, influenciados pelo marxismo, que a direita e a esquerda
devessem ser posições políticas incompatíveis, a primeira delas defendendo a
justiça social e a outra não. Para a esquerda influenciada pelo
marxismo-leninismo, as classes menos favorecidas são socialmente exploradas e
injustiçadas. Esse ponto valeu para certos momentos da história, como os abusos
iniciais da Revolução Industrial, tão bem retratados por Marx (1867 III, 8).
Mas não pode ser de modo algum generalizado. Já a direita, influenciada por
conservadores como Edmund Burke, defende que os mais abastados formam uma elite
preservadora da tradição conquistada pela experiência de séculos, sendo no
final das contas, em geral, aqueles que se demonstraram os mais preparados e
que por isso merecem preservar o que conquistaram, preservando assim o que foi
bem sucedido em uma sociedade. Em termos individuais esse raciocínio pode ser
claramente falacioso. Mas não em termos coletivos. Se considerarmos a maneira
como o estado sempre funcionou, há uma certa lógica em se pensar assim. Por
exemplo: os que pertencem à classe dominante tem mais acesso à educação, tem
meios de conhecer os mecanismos concretos do poder e são capazes de passar sua
experiência para os que pertencem ao mesmo grupo social. Em princípio, ao menos
– pressupondo legalidade e a ausência de corrupção – seriam mais capazes de
gerir o estado de modo a maximizar o bem comum.
Quero defender aqui algo diverso disso, pois penso que ao menos quando
consideramos formas moderadas de conservadorismo e progressivismo representadas
em um sistema verdadeiramente democrático de governo em que a corrupção é
minimizada e as leis são reconhecidas e seguidas, ambas as posições são
complementares e capazes de uma interação enriquecedora capaz de beneficiar a
todos. John Searle devia ter algo assim em mente quando notou que o
bipartidarismo americano é uma forma de sabedoria política.
Quero examinar a questão da
justiça social, mas antes disso pretendo considerar a questão das classes
sociais. A existência de diferentes classes sociais é algo absolutamente indispensável
a sociedades desenvolvidas. Sem elas não existe civilização. Elas praticamente
não existem em tribos indígenas onde mais ou menos tudo é de todos, onde
existem em geral duas classes equiparadas: a dos homens, dedicados à caça e
eventualmente a guerra, e a das mulheres, dedicadas aos afazeres domésticos e
ao cuidado dos filhos. Mas desde os impérios da antiguidade a existência de
classes sociais se tornou um fato social cuja necessidade é indiscutível. A
existência de classes sociais não significa, inevitavelmente, injustiça social,
como erroneamente pensava Marx. A história não é “a história das lutas de
classe”, mas a história dos compromissos entre
as classes, e a própria ideia de consciência de classe é pouco
mais do que um mito.[3] Quanto a última sabemos, por exemplo, que
escravos negros foram enviados dos Estados Unidos de volta para a África, onde
fizeram o que aprenderam com os seus senhores: escravizaram as pessoas
pertencentes a seu próprio povo. Um óbvia contraprova da teoria. Quanto à luta
de classes, um legionário romano sentia-se honrado em servir ao César, apesar
da realidade brutal de sua vida. A vida no mundo antigo era brutal e ninguém
mais do que eles sabia disso. Os moradores atuais do Butão prezam o seu rei a
ponto de terem se sentido indignados diante da sugestão de avaliá-lo pelo voto;
estariam eles sendo explorados? Seriam eles alienados felizes? E falando do
mundo contemporâneo, basta considerar estados social-democráticos muito
desenvolvidos para que o compromisso entre classes se torna claro. Uma pessoa
rica na Finlândia tem encargos sociais muito elevados, estabelecidos pelo
Estado do bem-estar social e a sua maior riqueza e maior status social deve ser justificada por maiores deveres
e responsabilidades sociais, ou seja, pelo que ela é capaz de retornar para a
sociedade. Um milionário de Helsinski, dono de uma cadeia de restaurantes,
notou em entrevista que, para ele, os deveres sociais são tamanhos que quase
não vale a pena ser rico. Isso nos faz passar à questão da justiça social.
É importante notar que tanto um
estado de esquerda quanto um estado de direita podem ser socialmente injustos.
Não é somente a classe dominante que pode ser injusta com a classe subordinada,
mas o contrário também é possível. Considerando estados de direita, quero
exemplificar meu ponto considerando o estado francês pouco antes da Revolução
Francesa. Os custos do governo monárquico absolutista eram imensos, junto às
suas dívidas, enquanto o povo passava fome. Aqui temos um exemplo da direita
injusta e exploradora. Se quiserem um exemplo atual, basta falar do Chile. As
demonstrações de 2019 agruparam mais de um milhão de pessoas contra as
injustiças sociais do sistema econômico liberal-conservador, resultando em
cerca de 20 mortes. O estado pequeno que permitiu o desenvolvimento econômico
do Chile desde Pinochet teve um lado negativo, caracterizado por uma grande
concentração de renda e relativo empobrecimento da maioria da população. O
programa de capitalização no qual 10% do salário do trabalhador é dado para ser
administrado por um oligopólio de empresas privadas terminou por produzir uma
massa de aposentados entre pobres e miseráveis, sem direito a nenhuma forma de
atendimento médico gratuito e outras benesses que no Brasil bem ou mal ainda
existem. Nos Estados Unidos o trabalhador contribui com 7% do seu salário para
a capitalização privada e mais 7% para o governo, que serve como garantia para
que as coisas não terminem mal, o que já faz uma diferença em um país rico. O
resultado disso tudo, mesmo com o desenvolvimento econômico, acabou sendo uma
indisfarçável injustiça social por parte da parte da direita. Exploração
capitalista existe.
Passemos agora ao caso oposto,
o do comunismo soviético da época de Stalin. Nesse tempo uma pessoa que tivesse
pertencido à nobreza corria risco de vida. Seu próprio modo de falar poderia
denunciá-la, fazendo com que fosse acusada de traição ao regime por qualquer
razão banal ou inventada, sendo então julgada e executada.[4] Fidel Castro e Che Guevara mandaram
fuzilar milhares de pessoas após a revolução cubana, muitas vezes gente
completamente inocente em julgamentos de fachada, só para dar à população a
impressão de que a justiça contra os opressores burgueses estava sendo feita, e,
certamente, para atemorizar quem tivesse dúvidas. Esses são dois dentre os muitos
exemplos de injustiça da esquerda no poder. Um exemplo bárbaro foi o dos
exageros que se seguiram à Revolução Francesa, como a indiscriminada condenação
à morte de parte do clero (na região bretã foram assassinados cerca de 120.000
católicos por motivos religiosos).
Mas o ponto crucial a ser
notado é que a distância entre classes dominantes e classes subordinadas, em
termos de liberdade ou de satisfação de necessidades relevantes à vida humana
(e não necessidades artificialmente criadas) tende a diminuir com o progresso
econômico. Considere, por exemplo, a sociedade da Grécia antiga. Dois terços da
população da polis era escravo e a distância entre a vida de um escravo e a
vida de um cidadão grego devia ser considerável. Essa distância era imensa em
Esparta, onde a população autóctone (cerca de 90%) havia sido escravizada, o
que fez com que a classe dominante fosse educada de modo a se tornar extremamente
rigorosa e violenta, de modo a ser capaz de reprimir qualquer possibilidade de
revolta (matar um escravo era parte do ritual de iniciação de um jovem
espartano). Essa distância continuou com os romanos, mas diminuiu muito com o
cristianismo e o consequente desaparecimento da escravidão na Europa durante a
Idade Média. Ainda assim, a distância entre os servos da Gleba e o príncipe e
membros das cortes era muito grande. Essa distância certamente diminuiu após o
Renascimento e diminuiu ainda muito mais depois que as revoluções industriais
se sedimentaram. A distância entre pobres e ricos em um país como a Finlândia,
em termos de satisfação de necessidades básicas, sem um surplus hedonista ou de status é muito
menor do que entre os escravos e nobres na Roma antiga. E a razão disso é que o
desenvolvimento econômico e a tecnologia permitem uma produção de bens que é
mais do que suficiente para a satisfação dessas necessidades humanas
fundamentais. Sob tais circunstâncias a disposição para uma mais equitativa
divisão de bens fundamentais deve se tornar muito mais aceitável. O papel do
progressivismo é o de diminuir essa distância, na medida em que o
desenvolvimento econômico-tecnológico torna isso possível. Essa distância pode
ser diminuída na medida em que as necessidades que o ser humano precisa
satisfazer para o seu bem-estar básico são limitadas e que o desenvolvimento da
tecnologia permite provê-las para um número cada vez maior de pessoas. Contudo,
é um erro grosseiro se diante desses acontecimentos formos induzidos a pensar
que em qualquer momento histórico a distância econômica entre as classes tenha
sido desnecessária. A natureza humana não mudou, as circunstâncias da vida
humana é que mudaram. Se os escravos romanos pudessem dominar o Estado, eles
não poderiam ter feito outra coisa senão escravizar os seus antigos donos. Um
fenômeno desse tipo aconteceu, como notei, quando escravos nos Estados Unidos
foram enviados de volta para a África, com o resultado que eles passaram a
escravizar os habitantes locais.
É impossível aplicar esse
argumento nos casos de totalitarismos de extrema-esquerda ou direita, pois eles
deixam de representar realmente a população, uma vez que a oligarquia dominante
com poder absoluto se corrompe e passa a ter sobre ela controle físico e
mental. Considere a anomalia trágica que foi o Kmehr Vermelho que liderou o
Camboja de 1975 a 1979. A ideia absurda pela qual se guiavam os seus líderes
era a de que o Estado ideal seria o de camponeses autossuficientes. Todos foram
forçados a se tornarem agricultores do dia para noite. O resultado é que quase
um terço da população do país, talvez mais de dois milhões de pessoas, foi
morta em um período de pouco mais de três anos, de fome, de doenças, ou
executados sob qualquer suspeita. Qualquer pessoa que fosse educada, não
tivesse calos nas mãos, ou conhecesse outro idioma, era executada. A capital
Pohn Penh, de um milhão e meio de habitantes, foi esvaziada em poucas semanas e
seus habitantes – mesmo os velhos e doentes – precisaram marchar a pé para os
campos para trabalharem em grandes fazendas coletivas. E quem não sobrevivesse
é porque não seria digno do comunismo idealizado por PolPot e alguns outros.
Algo não tão diverso ocorre hoje no regime de extrema-esquerda da Coréia do
Norte. Lá o povo camponês vive em extrema miséria. Comer grama não é coisa
impossível, dada a escassez de alimentos. Estima-se em 150 mil o número de
prisioneiros em campos de concentração, vulgo campos de extermínio. Kim
Jong-un, entretanto, vive na opulência junto aos que se corromperam de modo a
poderem pertencer ao governo. Não sei se é possível classificar essa anomalia
como sendo um governo de progressivo ou a sua degradação final pela manipulação
totalitária, mas esse sistema, como outros – da URSS à Cuba – se tornou terrivelmente
injusto para o povo a quem supostamente deveria beneficiar. O idealismo
simplista ingenuamente cercado de oportunismo e sociopatia, que nega fatos
econômicos inalteráveis, percebidos desde Adam Smith, cede lugar ao despotismo
e se volta contra o próprio povo que, no início, ao menos em tese, objetivava
proteger. (Temos um bom exemplo disso se compararmos Cuba com Porto Rico. A
ilha de Porto Rico foi adquirida da Espanha no final do século XIX pelos
Estados Unidos. Hoje ela tem uma renda per capita de cerca de US$ 30.000,00. A
renda per capita de Cuba é de cerca de US$ 20.000,00. Os habitantes de Porto
Rico querem agora que a ilha se torne um novo Estado dos Estados Unidos. Cuba,
que já foi um país quase rico antes de Fidel Castro, pagou e ainda paga um
preço altíssimo ao ter sua população como que escravizada na fazenda da família
Castro e de seus feitores – os membros do partido.)
Considere agora o nazisfascismo. Eram ditaduras
com objetivos socializantes, mas que ao mesmo tempo admitiam um grau suficiente
de capitalismo, o que não nos permite considerarmos um regime de
extrema-esquerda, mas também não propriamente de direita no sentido em que
estamos considerando, que tem como principal elemento caracterizador a admissão
da democracia. Isso nos faz lembrar do caso da China contemporânea. Embora
herdeira do comunismo ela só pode ser explicada como uma forma de fascismo
plutocrático, ou seja, um regime totalitário que admite o capitalismo como
parte integrante; o mesmo, eu diria, da Rússia conteporânea – no final das
contas um fascismo autocrático, que substituiu o czar por Putin. Nenhuma dessas
aberrações totalitárias se enquadra em minha tentativa de compreensão das
razões do espectro sócio-político. Elas merecem um estudo à parte.
III
Quero aplicar agora o teste de John Rawls para a justiça social. Para
Rawls, existe um teste para se saber qual é o Estado justo, ainda
que a sua aplicação concreta não possa ser mais do que rudimentar. Trata-se de
se perguntar em que sistema político você preferiria viver se você caísse nele
sob o véu da ignorância. O véu da ignorância é aquele no qual uma pessoa,
embora sabendo como funcionam os sistemas político-econômicos, devendo escolher
um deles, não sabe como nele cairá, se rico ou pobre, homem ou mulher, saudável
ou doente, heterossexual ou não, hábil ou inábil, etc. Sob tais condições a
pessoa tenderá a escolher o Estado justo, pois é
nele que ela terá mais chances de ser tratada de forma justa. Mesmo um jogador
disposto a correr riscos tenderá a escolher o Estado justo, uma
vez que se trata de uma escolha única e definitiva.
Rawls estava pensando no
sistema de bem-estar social ao formular sua teoria. Mas é interessante perceber
que a melhor escolha pode se dar tanto com relação a um sistema de esquerda
quanto em relação a um sistema de direita. Por exemplo: um sistema direitista
justo como o da Singapura, que é governado por um único partido desde a sua
libertação da Inglaterra (o Partido da Ação Popular) e que possui algumas características
autoritárias, mas privilegia a meritocracia, é ainda assim um lugar ao qual
preferiríamos pertencer se a escolha fosse entre ele e a vizinha Birmânia, pois
está mais próximo de um sistema social justo. Um sistema com viés de esquerda
progressista e democrático, como o da Finlândia, também é algo que sob o véu da
ignorância seria de nossa escolha. Não escolheríamos anomalias econômico-sociais
como a Rússia e muito menos Cuba ou a Coréia do Norte. Assim, tanto um governo
considerado conservador quanto um governo considerado progressista pode ser
aproximar de um sistema socialmente justo.
Finalmente, as circunstâncias
de uma sociedade são mutáveis. Um governo de esquerda ou de direita moderado
pode levar longe demais suas intenções, tornando-se facilmente injusto. Ele
pode facilmente aplicar políticas que se tornem inapropriadas. Esse parece ser
o caso da Suécia contemporânea. A admissão descontrolada de imigrantes acabou
por formar mais de trinta “no go zones”, algo
que lembra as favelas brasileiras, onde as pessoas, embora recebendo auxílio
governamental, reforçam-se em seus valores próprios e não se dispõem a se
integrar culturalmente e economicamente ao país onde se encontram, passando
facilmente à criminalidade. Com isso um Estado social-democrático exemplar
corre o risco de se perder. O exemplo contrário é o de uma direita como a
mexicana atual, que privilegia uma minoria de governantes que certamente não
conquistaram o poder por méritos próprios, dificultando a mobilidade social.
Pelas informações que tive, o governo mexicano em 2016 secretamente dirigia o
narcotráfico, privatizando empresas entre amigos. Não pode haver muito lugar para
um livre mercado não distorcido e para a meritocracia em governos dessa
espécie.
Vejamos finalmente as vantagens
da alternância de poder entre conservadorismo e progressivismo. Aqui outra vez
os Estados Unidos servem como exemplo: em princípio, ao menos, o partido
democrata exemplifica a esquerda moderada (libertarian-igualitarism),
enquanto, em princípio, o partido republicano exemplifica a direita moderada (libertarianism). O governo republicano de George Bush
cometeu um grave erro tático e humanitário na política externa, que foi a
invasão do Iraque. Já na época especialistas advertiam que o preço daquela
intervenção militar seria a guerra civil, dado que o Iraque é uma colcha de
retalhos cultural, herança do colonialismo, unificado apenas pelas mãos de
ferro de Saddam Hussein. O resultado da ação americana foi um conflito com um
preço humano extremamente alto: fala-se de mais de cem mil vítimas civis.
O contraponto disso foi o
governo esquerdizante liberal de Barack Obama. Ele conseguiu conter a crise
econômica, mas foi além do razoável, do possível e mesmo do justo na
implementação de políticas de auxílio social com intenções supostamente
populistas. Dessa maneira foram cometidos erros memoráveis, como a aceitação
indiscriminada de imigrantes, o aumento na taxação de indústrias produzindo
fuga de capital, a desastrosa Obamacare, a
suspensão do embargo a uma ditadura sanguinária como a de Cuba. Um exemplo de
apoio ingênuo a ditaduras foi o acordo para a utilização pacífica da energia
nuclear, que liberou o estado totalitário que é o Irã para, após dez anos,
produzir uma bomba nuclear, o que inevitavelmente deverá provocar uma corrida
armamentista no Oriente Médio, uma vez que a Arábia Saudita, como a maioria dos
países da região, é sunita e não xiita (84% dos muçulmanos são sunitas e não
xiitas, mas o Irã é xiita). Finalmente, como é frequente nas esquerdas, Obama
gastou mais do que podia: a dívida norte-americana saltou de 8 trilhões de
dólares para mais de 20 trilhões, pondo em risco a estabilidade econômica do
país, além de uma política econômica externa enfraquecedora da indústria
nacional. A continuação dessa política significaria um fracasso econômico. Ou
seja: a esquerda foi longe demais e cometeu talvez tantos erros quanto a
direita antes dela.
O contraponto disso veio com a
eleição do governo conservador de Donald Trump, que diminuiu a taxação das
empresas, facilitando o seu retorno ao país, que por tais meios diminuiu o
desemprego e colocou o país outra vez na rota do crescimento econômico.
Uma oscilação semelhante
aconteceu no Brasil dos últimos 60 anos, embora de forma muito mais dramática.
Primeiro tivemos um governo militar autoritário e conservador, opondo-se a um
outro extremo, que defendia, pela luta armada, um totalitarismo de esquerda.
Depois veio a democracia de esquerda para compensar, mas com uma ideia pouco
realista de estado grande que estava acima da realidade do país. O estado, que
já vinha aumentando com a ditadura de direita, aumentou desproporcionalmente
aliado à corrupção, à concessão indébita de monopólios e a má alocação de
recursos, acabando por engolir a economia privada de modo a produzir uma
profunda crise econômica. Como remédio voltamos ironicamente a um governo
conservador, voltado para a diminuição do estado e em grande parte formado por
militares, mas eleito de forma democrática.
O conjunto
das considerações acima justifica a meu ver a tese inicial. Tanto o
progressivismo característico da esquerda – em princípio devendo fazer ouvir os
interesses das classes ditas subordinadas – como o conservadorismo – devendo em
princípio privilegiar os interesses das classes dominantes – tem o seu lugar e
razão de ser quando a questão é o bem geral. Uma alternância dialética de poder
entre uma coisa e outra – entre direita e esquerda vegetarianas – é algo
saudável e plenamente compatível com uma sociedade legitimamente democrática em
desenvolvimento.
Referências:
Burke, Edmund 1943 (1790). Reflections on the Revolution in France.
Yale: Yale University. Press.
Friedman, Milton (com Rose Friedman) 1990. Free to Choose: A Personal
Statement. Mariner Books.
Hayek, F. A. 1944. The Road to Serfdom. Routledge & Sons.
Marx, Karl & Engels, Friedrich 2015. The Communist Manifesto. Createspace.
Marx, Karl 1867 Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie,
vol. 1. Hamburg Verlag von Otto Meissner.
Rawls, John 1999. A Theory of Justice, Harvard:
Belknap Press, 2. Ed.
Scruton, Roger 2006. A Political Philosophy: Arguments for
Conservatism.
Smith, Adam 2018 (1776). The Wealth of Nations. Createspace.
[1] Mesmo
sendo um ideal irrealizado enquanto tal, uma democracia só possui legitimidade
na medida em que se aproxima suficientemente desse ideal.
[2] Um
bom exemplo disso, eu penso, seria um país pobre como o Butão, que tem
conseguido priorizar uma bem formada estrutura social e a manutenção de sua
cultura milenar acima das benesses do capitalismo.
[4] Como é sabido,
Stalin fazia listas de pessoas que eram arbitrariamente escolhidas para serem
acusadas e executadas com o objetivo de manter a população aterrorizada.
A REVOLUÇÃO “POLÍTICO-DIGITAL”
NA DEMOCRACIA
Democracia é a escolha dos
mandatários de uma nação pelo povo e para o povo, assim aprendemos. O que nem
todos sabem é o quão pouco democrática a democracia sempre foi. Isso foi notado
por muitos intelectuais, de Noam Chomsky a Jürgen Habermas. E. S. Herman e
Chomsky defenderam que as escolhas das pessoas são em boa medida manipuladas
pela mídia, mas que por detrás da mídia estão lobistas e donos de grandes
fortunas almejando a defesa de seus interesses particulares (1988). Em sua tese
de habilitação (1962) Habermas defendeu que um traço característico da contemporaneidade
é o seu déficit democrático. Como modelo de comparação ele considerou a espécie
de compartilhamento de informação que existiu nos salões do iluminismo francês,
nas sociedades de mesa (Tischgesellschaften) alemãs e nos Cofee-Shops
ingleses por volta do século XVIII, onde frequentadores cultos podiam discutir
livremente os mais variados temas. Em Paris circulavam dezenas de pequenos
jornais expressando as opiniões de redatores que frequentavam os próprios salões.
Tratava-se de uma relação horizontal entre os participantes da discussão. Em
meados do século XIX essa situação se transformou. Surgiram grandes jornais cujos
editores se tornaram desconhecidos daqueles que os liam. A relação entre eles
se tornou vertical. Interesses escusos das novas elites resultantes da
revolução industrial começaram a prevalecer. A democracia perdeu a partir daí
cada vez mais a sua transparência, devido à complexidade cada vez maior das
escolhas econômico-sociais e à força de uma mídia que havia escapado ao
controle de seus consumidores.
Em tais circunstâncias, os meios de comunicação servem aos interesses
daqueles que os possuem, os quais servem aos interesses de quem os paga, em
geral uma elite formada por pessoas possuidoras de dinheiro e influência,
quando não pertencentes ao próprio governo. Todos sabem que um jornalista não
pode se opor à orientação política dos donos do jornal, sob a certeza de perder
seus empregos. Os intelectuais, que antes eram livres, passaram à condição de
servos auxiliares. Me lembro de um jornalista brasileiro ter se gabado de seu
jornal ter ajudado a eleger um governador. A mídia dos jornais e mais tarde do
rádio e da televisão tornou-se como que o que tem sido chamado de o quarto
poder. Contudo, os efeitos desse controle ideológico da opinião pública por uma
mídia comprometida com a elite do dinheiro e do poder podem ter efeitos
colaterais altamente contraproducentes. Os nazistas se alçaram ao poder com
auxílio da propaganda, apoiados pelos magnatas da indústria que temiam o
comunismo e que pensavam que poderiam controlar Hitler. Enganaram-se.
Seja como for, é um fato indiscutível que por razões várias a democracia
em quase todo lugar, sempre foi restringida ou distorcida de maneira
subliminar. Sempre foi comum que notícias fossem filtradas, distorcidas,
exageradas e até mesmo inventadas de maneira a satisfazer os interesses de
políticos e donos do poder. A política sempre jogou com estratégias que tinham
por finalidade, em maior ou menor medida, fazer uso dessa democracia manqué
influenciada pela mídia para manipular a população.
Desde os tempos do império o Brasil foi no que concerne às distorções da
democracia um exemplo modelar, daí eu tomar nossos presentes acontecimentos
políticos como exemplo, mesmo sabendo de seu caráter polêmico. Quem fazia
política no Brasil deveria em geral ter dinheiro, fazer parte da elite patrimonialista,
geralmente acompanhada de uma arrogante vocação para o blefe, quase sempre
estampada pelo tempo no rosto, nas atitudes, na maneira de discursar da maioria
dos políticos tradicionais. Era parte do jogo. Quem em interesse próprio e de
seus apaniguados manipulasse de maneira mais eficaz conquistaria os louros da
vitória. Daí a importância do uso do dinheiro para a autopromoção e a
habilidade de discursar e convencer as massas da retidão de uma ou de outra
ideologia populista, fosse de direita, como no peronismo argentino, fosse de
esquerda, como no petismo brasileiro. Juan Domingo Perón foi eleito em 1946
devido ao domínio que a casta militar à qual ele pertencia tinha do rádio. Na
eleição de Luis Inácio Lula da Silva para a presidência em 2002, a habilidade
dos marqueteiros foi crucial. Sua função era a de ler a mente do povo e
orientar políticos a vender uma ideologia sedutora de compreensão fácil, no
caso, a promessa da redistribuição da riqueza como uma maneira de promover
justiça social dentro das regras do estado democrático de direito.
Por trás dos panos, porém, a
estória era outra. Um comentarista político, Olavo de Carvalho, notou que se as
reuniões do Foro de São Paulo, onde Lula era peça chave, tivesse sido exposta
pelos meios de comunicação, ele não teria conseguido vencer as eleições em 2002.
O Foro de São Paulo, para quem não sabe, constituía-se de uma reunião anual de
representantes da esquerda latino-americana. Ele foi inaugurado por Lula em
1990 como alternativa ao fim da URSS, para juntar os membros dos mais diversos
países da América Latina no objetivo de a longo prazo implantar o socialismo na
região. O Foro apoiava a ditadura cubana e recebia auxílio das FARC, uma
organização colombiana paramilitar de inspiração comunista sustentada pelo
narcotráfico. Assisti em um vídeo o término de uma reunião no qual eles cantavam
a Internacional Comunista.[1] A
ideia de fundo marxista que norteava o movimento era a de que a pobreza
latino-americana existe devido à exploração capitalista interna e externa,
ainda que evidências históricas de países saídos da pobreza demonstrem
repetidamente que a principal causa da pobreza esteja em fatores culturais e na
maneira como países são dirigidos política e economicamente (exploração da mão
de obra barata existe sim, mas muito mais como um efeito do que como causa). De
democracia vimos até agora não muito!
Socialismo, se diz, há de dois tipos: o vegetariano e o carnívoro.
O socialismo vegetariano é a social-democracia encontrada em países como a
Finlândia. Ele é um subproduto do capitalismo avançado, da educação e cultura
de um povo, requerendo suficiente desenvolvimento humano e homogeneidade de
valores. Ele deve respeitar a democracia e a propriedade privada tendo
funcionado relativamente bem nos países nórdicos. Em momento algum ele põe em
questão a economia privada: a liberdade econômica nos países nórdicos é muito alta,
comparável a da Inglaterra e do Canadá, opostamente a do Brasil, que se
aproxima da liberdade econômica do Afeganistão e da República do Congo. Ele foi
antecedido de um mais ou menos longo período de capitalismo libertarista até
alcançar as condições econômicas e socio-culturais possibilitadoras do welfaire-state.
O socialismo carnívoro ignora a importância mediadora da democracia. Ele
objetiva a abolição do capitalismo e da propriedade privada já defendida por
Marx, não mais como resultado de uma revolução mundial, mas na forma de
marxismo-leninismo, que adapta Marx a países subdesenvolvidos, como foi o caso
da Rússia de Lenin. Dele resulta em uma forma totalitárisa do que membros da
Escola de Frankfurt chamaram de um capitalismo de estado, que do ponto
de vista econômico, tendo abolido a lei da oferta e procura, tenta algo que
economistas da Escola Austríaca demonstraram ser impraticável pelo fato de que
governo algum é capaz de avaliar por si próprio os sinais de oferta e demanda emitidos
por uma infinidade de atores econômicos. Mais importante ainda do que essa
constatação é talvez a de que o capitalismo de estado, que o reduz a uma “única
grande empresa”, fica destituído de concorrentes, falhando em satisfazer a vantagem
básica da competição, que consiste em induzir as empresas a produzir melhores
produtos pelo menor preço (imagine que todos os restaurantes fossem geridos
pelo estado; que variedade de escolhas você imagina que teria?). Contrariando
esse mais fundamental princípio econômico, o capitalismo de estado empobrece o
país e, mesmo que tenha iniciado como resultado de escolha democrática, para
sobreviver, acaba sendo conduzido, quando possível, por seus líderes ao totalitarismo e a uma
brutal censura de informações, acabando por degenerar-se na produção de uma
população de escravos pobres forçados ao trabalho por uma elite totalitária
coberta de privilégios. (Cf. Hayeck 1944) Por razões tais, o socialismo carnívoro
foi desastroso em qualquer lugar no qual tenha se instalado. União Soviética, a
China de Mao, o Vietnam do pós-guerra, o Laos do Kmehr Vermelho, a Coréia do
Norte, Cuba e Venezuela, são alguns exemplos. O socialismo carnívoro é auto-contraditório:
objetivando em princípio libertar o que chamava de classe trabalhadora, que
considera explorada pelos donos do capital, acaba por escravizá-la na prisão
impiedosa de um estado totalitário anti-meritocrático. Não é possível contar o
número de mortes causadas pelo socialismo carnívoro, mas foram seguramente
superiores a 50 milhões.
Como os principais membros do PT haviam sido treinados em Cuba,
tratava-se em suas raízes de um socialismo de fundo carnívoro, mesmo que travestido
de socialismo vegetariano, com o fito de vencer eleições. Tanto pela ideologia
quanto pela lógica acima exposta, um esforço na direção de um capitalismo de
estado supostamente social-democrático a ser implantado em um país econômica e
culturalmente subdesenvolvido e altamente corrupto é um projeto altamente
utópico. Ele teria um curso natural, que seria o da escolha entre a aviltante
auto-esfacelamento e o totalitarismo de esquerda, recurso último para impedir a
derrota econômica inevitável, único meio de garantir a permanência no poder sem
mais precisar do apoio popular não-manipulado, o que pressuporia um paulatino desmantelamento
do estado democrático de direito, a ser desfeito de várias maneiras, desde a
censura à imprensa até a compra de políticos e ao aparelhamento do judiciário e
do alto comando militar. Conseguiu-se isso na Venezuela, como todos sabemos,
pelo fato de que foram os próprios militares que tomaram o poder em nome do
povo. No Brasil a crise econômica chegou antes e os militares se mantiveram
independentes.
Ao oferecer
esses exemplos conhecidos de todos, não estou defendendo a direita, como deve
ter ficado claro pelo artigo anterior. Não sou um conservador, mas nem por isso
acho que deva desconsiderar os argumentos conservadores em contextos nos quais
eles são apropriadamente aplicáveis. Sou, pelo menos em matéria de princípio,
alguém que acredita na social-democracia como um ideal que só pode ser conquistado
paulatinamente, como efeito do desenvolvimento econômico e civilizatório do
qual o Brasil, um país mal saído de uma economia proto-capitalista de tradição
mercantilista, se encontra infelizmente ainda muito distante. Mais além, me
parece claro que um papel do estado deveria ser a sua função redistributivista,
na medida em que isso for economicamente possível e benéfico para a sociedade
como um todo – mas apenas nessa medida. O fato é que o pano de fundo que no
Brasil foi escondido do povo era outro. Nele se encontravam honestos esquerdistas
com ideologias jurássicas (marxista-leninistas) junto com arrivistas
retoricamente brilhantes e pouco escrupulosos, cuja ambição oculta era a do
poder e enriquecimento a qualquer preço. Os últimos, como sempre mais hábeis e
menos honestos, acabariam por liderar e, para garantir-se no poder, se
conseguissem, conduzir o país inevitavelmente – por força da intransigência das
leis econômicas – aos poucos, a uma miserável ditadura de esquerda.
O que disse até
agora foi somente a título de exemplo, para mostrar como a democracia pode ser
subvertida pela propaganda política e pelos meios de comunicação, coisa que não
é fenômeno restrito à esquerda, mas que se estende também à direita, como a
propaganda nazi-fascista bem exemplificou.
O fenômeno que
quero apontar é outro. Trata-se de algo cujo prenúncio vimos acontecer com a
inesperada eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e com a ainda muito mais
inesperada eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Trata-se de uma mudança no
paradigma do embate político. Diversamente dos outros, Bolsonaro nem é (a
despeito do enorme esforço que tem sido feito para se provar o contrário)
pessoalmente corrupto, nem está disposto a tergiversar com a corrupção, como
aconteceu com todos os governos anteriores pós-ditadura, a exemplo de FHC. Ele
ganhou uma eleição não só como Trump, inovando ao dizer honestamente o que
acreditava ser a verdade de forma nua e crua e sem recorrer a marqueteiros, sem
debates televisivos, sem gastar dinheiro, sem sequer ser um grande orador. Em
ambos, o que há de comum é o contraste com a maneira politicamente correta de se
fazer política, que se torna cúmplice do embuste, pois ao fazer de conta que
leva o oponente moralmente a sério lhe outorga o direito à dissimulação.
Em que pesem questões discutíveis, que junto ao todo minimamente importam,
o projeto de Bolsonaro é politicamente e economicamente progressista, tomando o
lugar de grande parte das aspirações da esquerda. Do ponto de vista político
ele consiste em fazer prevalecer um novo ethos: em instaurar a
honestidade no exercício do poder e nas relações entre os poderes, perseguir a
corrupção. Do ponto de vista econômico ele consiste em arrumar a economia, desburocratizar,
diminuir o tamanho excessivo do estado e seu peso sobre o contribuinte, de modo
a incentivar a iniciativa privada... Essas coisas são essenciais ao desenvolvimento,
dependendo a sua realização da habilidade política do executivo. O objetivo é
instaurar aqui um governo capaz de funcionar segundo o modelo responsável de um
país capitalista desenvolvido; transformar a república das bananas em um país
razoavelmente honesto. E é aí que a porca torce o rabo.
Mas ainda não é
esse o ponto que desejo considerar e sim o de que a possibilidade de uma
relação mais honesta – e portanto mais democrática – entre os poderes da república
e o povo só foi aberta pelo desenvolvimento cada vez maior da internet. A
internet livre transformou-se no que tem sido chamado de um quinto poder,
que substitui cada vez mais o quarto poder, que é o da grande mídia. A internet
permite que as pessoas se defrontem vis-à-vis com a informação e com os
fatos que a geram, sem que ela tenha sido antes manipulada por interesses
escusos. O que elegeu Bolsonaro foram as redes sociais, os blogs dentro e fora
do Youtube e coisas do gênero. Antes mesmo das eleições, os melhores
jornalistas do país já haviam migrado para o Youtube, onde podiam opinar sem
serem forçados a se manter em sintonia com os interesses financeiros ou ideológicos
de seus patrões. Há também o papel de jovens inteligentes, como os membros do Brasil
Paralelo, que tentam refazer a politicamente a um tanto distorcida história “oficial”
do país. O Youtube e o Facebook, meios nos quais cada cidadão pode emitir seus
próprios grunhidos, esclareceu aqueles que tinham algum entendimento de como o
mecanismo funciona, e esse conhecimento se replicou de modo que um número cada
vez maior de pessoas acabou por se convencer.
Claro que há uma estória anterior a essa que precisa ser lembrada, que
foi a do desmascaramento de uma esquerda pseudo-vegetariana que se perdeu
qualquer senso de proporção. A autorização dada pela presidente Dilma Rousseff
à polícia federal para investigar a corrupção (que era esperada como se
restringindo a casos externos ao governo) saiu do controle e acabou resultando
em um tiro no pé, escancarando as entranhas do esquerdismo tupiniquim e
revelando, escândalo atrás de escândalo, desde a exploração de estatais para
fins escusos até os monopólios dados a empreiteiras dispostas a dar propina ao
governo, como nos empréstimos oferecidos pelo BNDS a ditaduras sem
transparência mundo à fora a preço de banana, onde tais empreiteiras iriam
operar, tudo isso exposto pela grande mídia que o PT não conseguia mais
silenciar. A crise financeira – o fator indispensável – causada por essas
formas de corrupção, pela incompetência econômica e pelo agigantamento do
estado, cuja sede de impostos destruiu o espírito animal dos empreendedores,
agora incapazes de sustentá-lo, acabou por produzir uma revolta surda, sem o
entendimento claro das causas, de parte da maioria da população, que se voltou
contra o governo. O resultado, como todos sabem, foi o impeachment, um mecanismo
que se auto-valida sempre que reflete a vontade popular.
Mas notem que todo esse movimento em direção a uma política mais
virtuosa teria sido impossível sem o quinto poder representado pela mídia
digital mostrando os fatos analisado por jornalistas independentes das mais
diversas posições. Sem a mídia digital quem tomaria o poder continuariam sendo os
caciques da velha política, os mesmos que haviam sido abalroados e comprados pelo
PT, que agora estavam sendo apoiados pela grande mídia e contra os quais
Bolsonaro não teria tido a menor chance. Não é difícil prever que essa mídia
digital em um futuro próximo ela se tornará o primeiro poder no sentido de
refletir de forma mais direta as aspirações populares e, no caso, o seu
contraste com a velha maneira de fazer política. Se é possível uma forma mais
transparente de democracia, ela irá vir da mídia digital.
Um fator suplementar que deve ter contribuído no Brasil deve ter sido a
nossa famosa cultura oral. Vivemos em um país indiscreto e opinioso, no qual
todos falam de tudo o tempo inteiro. Não se escreve nem se lê muito, mas
fala-se. Conversar diante de um WhatsApp se tornou para muitos um modo de vida.
O resultado do embate entre a grande mídia e a internet foi a guerra da
informação. Ondas de informação circulam, verdades e falsidades, revelações
contundentes aflorando em um terreno povoado por um gigantesco amontoado de distorções
e de escabrosas fake-News, que em conjunto parecem produzir universos paralelos
nas visões políticas alimentadas por diferentes grupamentos sociais, mas que
não resistem a uma investigação comparativa, paciente e atenta. Com efeito,
basta um pouco de bom senso, isenção, experiência, adicionada a algum lastro
cultural para, por exemplo, assistindo os mais diferentes canais do Youtube,
uma pessoa ser capaz de aos poucos encontrar um caminho que a leve mais próximo
da verdade – a menos que a pessoa esteja aprisionada por vivências passadas das
quais não é mais capaz de se libertar (penso em pessoas inteligentes como Chico
Buarque e Paulo Coelho). A despeito do ceticismo pessoal de Habermas sobre a
questão, temos no interior do “ciberespaço” cada vez mais uma réplica da
sociedade de diálogo horizontal e livre de pressões, que ele qualificou como uma
situação na qual a transparência democrática poderia ser vista em sua forma
própria.
Os governos anteriores ajudavam a grande mídia para que ela não contasse
tudo o que sabia, pelo menos não o principal. Me lembro de uma reclamação de
Mino Carta, dono da revista Carta Capital, observando que de todos os
veículos de comunicação a sua revista era a que menos ajuda do governo recebia.
Claro: uma revista que apoiava incondicionalmente o governo não precisava de seu
apoio financeiro. A isso se adicionou a decisão de Bolsonaro de não apoiar mais
com dinheiro do contribuinte a grande mídia. Como o governo não pratica mais em
seus altos escalões corrupção, a grande mídia perdeu o seu poder de barganha. O
executivo não precisa mais comprá-la e ela perde sempre mais espaço para o que
já foi chamado de quinto poder: os bloggers da internet. O resultado foi que a
grande mídia, ao ver seu papel de quarto poder reduzido, revoltou-se: isso
aconteceu com as revistas Veja, Isto É, Globo, UOL e mesmo jornais como a Folha
de São Paulo (uma vez considerado o mais prestigioso hebdomadário do país), que
foram rebaixados de formadores de opinião para a condição de “extrema mídia”.
Esses acontecimentos estão sendo de imensa importância para o estabelecimento
de uma democracia mais transparente, ainda que conturbada, mais do que a
bagunça criativa que lhe é comum. Afinal, como notou Heráclito, é da luta entre
os opostos que nasce a mais bela harmonia...
Creio que possa
e deva ser assim, pois, como também notou Heráclito, a razão é comum a todos e
em uma situação em que informações circulam livremente a verdade tende a
prevalescer. Conversei com um taxista e com um marceneiro que entendiam
claramente, mesmo que de modo intuitivo, o que estava acontecendo. Pessoas
razoáveis. Gente da pequena classe média que vive e sofre o dia-a-dia. Muitos
sentem-se simplesmente confusos diante da avalanche de informações
contraditórias e não conseguem mais se nortear. Mas reagem por instinto, e
Bolsonaro, apesar de seus deslizes, tem sido até agora suficientemente clarividente
e intuitivo para geralmente reagir da maneira apropriada (o homem do destino, diria
Hegel, é confinado ao Zeitgeist dentro do qual ele atua). O mesmo eu não vi acontecer com pessoas de
classe média, que tinham mais acesso e confiança na grande mídia, a qual passou
em sua maior parte a perseguir Bolsonaro, em maior parte por perder o dinheiro
antes destinado a silenciá-la, em menor parte devido ao esquerdismo encalacrado
nas cabeças de jornalistas de mente simplória (afinal, a estrutura econômica é
que em geral manda na superestrutura ideológica).
Trata-se a meu ver de um processo gradativo, mas inevitável: a
instituição de um novo ethos na política, o necessário compromisso com o
ajuste das contas públicas, a desburocratização, a queda da taxa de juros e por
consequência a libertação da escravidão dos gastos com a dívida pública, a
perda do poder político ludibriador da grande mídia. Com o constante
crescimento da mídia digital não haverá mais como se voltar à velha política.
Algumas batalhas continuam sendo por ela ganhas, mas a guerra está perdida. A
grande mídia tem tido dificuldade em aprender a lidar com o inevitável. Começou
com Fake-News durante a campanha; agora usa mais de omissão, da
parcialização das informações. Por exemplo: ao invés de dizer que o acordo
Mercosul-Europa foi barrado pelos governos de esquerda, diz que ele levou vinte
anos para se concretizar (um acordo que irá proporcionar aos cofres públicos
mais de 200 bilhões por ano e que se deve ao simples fato de Bolsonaro ter
escolhido uma equipe de ministros com base na competência disponível e não mais
no comprometimento fisiológico com uma política perversa, agora já praticamente
livre da esquerda jurássica.) Esses acontecimentos podem ser a longo prazo
revolucionários para um país que tem ficado para trás na corrida
desenvolvimentista. Paradoxalmente, aqui estamos nós: governados outra vez por
uma elite militar, sem ter havido um golpe militar, mas como resultado da
eleição democrática mais transparente da história recente do país – ironia das
ironias. (Como não temos nenhuma École Normale Supérieure, que já elegeu mais
de um presidente francês, o que nos resta é a Academia das Agulhas Negras.)
Há, finalmente,
o caso mais entristecedor dos professores universitários. O plano do PT era
fazer jorrar dinheiro para as universidades, esquecendo dos cursos básicos: 70%
para as universidades e 30% para os cursos básicos, quando a proporção deveria
ser inversa. Pode ter havido um elemento de ingenuidade nisso: o salto quântico
do analfabeto ao doutor! Nem estou afirmando que os resultados foram de todo
negativos; a descentralização universitária foi democratizante, o nível das
universidades públicas tornou-se menos baixo. Mas também provável é que tenha
havido o objetivo subliminar de comprar a consciência política dos professores.
Afinal, professor universitário tem influência formadora nos alunos que já têm
idade para votar. Crianças, por sua vez, não podem votar e é melhor que não
desenvolvam mesmo nenhum pensamento crítico. A ideologia marxista-leninista é
sedutora, simplista, de fácil assimilação: qualquer idiota a compreende.
Professores universitários vivem e convivem entre si em uma redoma de cristal,
sem perceber que fora de suas especialidades podem ser até mais limitados do
que o comum dos mortais, dado que a muitos falta a experiência da vida como ela
é. Daí serem mais susceptíveis às meias-verdades da ingênua e simplificadora visão
do mundo que é a visão sócio-político-econômica de raiz marxista. Não sabem
economia (ou não sabem distingui-la dos embustes ideológicos frequentes na área),
não são conhecedores do quão complexos são os bastidores da política a ponto de
perceberem os reais interesses envolvidos, menos ainda os seus insipientes
alunos. Confusos, ansiosos, para se acalmarem eles ligam a televisão, e pronto:
acabaram de se tornar vítimas passivas do poder relaxante da desinformação
sistemática do quarto poder. O resultado é que a universidade se transformou,
pelo menos no presente momento, em um reduto do atraso político e de uma
inabalável cegueira com relação à revolução no modo de se fazer política que
está apenas começando.
Há uma outra
razão que creio importante, que é a projeção que intelectuais tendem a fazer de
seus valores no homem comum. A maioria deles costuma ter prazer na atividade
intelectual, desde a leitura de um bom livro à apreciação de uma obra de arte.
Já o homem comum tem maior prazer no convívio social, no entretenimento, em
realizações práticas. Daí que assim como vender coco na praia ou possuir um
restaurante (como atividades produtivas) e fazer pesca submarina ou esquiar na
neve (como entretenimento) podem ser grande prazeres para os homens comuns, essas
coisas podem ser vistas como uma dispersão tola para o intelectual. O erro elitista
que muitos cometem – e penso que este é um erro profundo em Marx, que foi
levado adiante por membros da Escola de Frankfurt como Adorno (2007) e Marcuse
(1991) – foi o de interpretar esses valores como formas de alienação, supondo
que o homem comum devesse adquirir os gostos e valores do intelectual e
renunciar aos prazeres supérfluos nos quais a indústria cultural do capitalismo
os mantinha aprisionados. Nada disso! A submissão tem sido mais do que
voluntária, sem falar do fato de que ela acaba por ser uma necessidade indispensável
à divisão de trabalho social. Como J. L. Borges notou, não há uma só natureza
humana, mas muitas. Trata-se, pois, de uma diferença de natureza modelada pelo
hábito. E trata-se também de uma diferença no modo de vida. O intelectual é,
enquanto tal, um ser voltado à vida contemplativa. O homem comum é um homem de
ação, cujos objetivos são práticos e imediatos. Pode-se construir uma ponte de
bom senso entre as duas naturezas e modos de vida, mas não se pode impor aqui pressões
resultantes de juízos de valor. A dignidade humana não se altera. Não há como
desvalorizar o homem comum nem o homem de ação, a menos que por um complexo
travestido de arrogância. Gente como o general G. S. Patton, entre inúmeros
outros, demonstrou que pode haver muita inteligência envolvida na ação, e cientistas
como o pobre Jean-Baptiste Lamarck (entre inúmeros outros) provaram que pode
haver um alto grau de tolice envolvida no exercício do pensamento. Isso sem descer
aos burocratas do saber, com suas sabedorias de fichinhas.
Sou otimista em
crer que a universidade irá aprender, assim como a própria grande mídia, pois
estou convencido de que a democracia irá gamhar aos poucos uma transparência
sem precedentes, alcançando algo que nunca teve antes – um relacionamento
direto e verdadeiro entre o político e o cidadão – e que um país como o nosso,
viciado nas distorções advindas do colonialismo, terá tudo a ganhar com o
processo. Não sou contra a direita nem contra a esquerda, conquanto não sejam
jurássicas. A esquerda após a queda se apequenou a ponto de se tornar
balbuciante. Tudo o que conseguem fazer é repetir o ridículo mantra do
“racista-fascista-homofóbico-misógino-xenofóbo”, o que entre o exagerado e o
falso é pouco demais para qualquer programa político. Mas isso não significa
que ela nunca possa ter razão, nem que não possa um dia reinventar-se de modo a
desenvolver seu potencial de sublevar autenticamente o status quo.
A existência do zig-zag político que há tanto tempo tem funcionado
proficuamente no bipartidarismo americano, entre situação e oposição, é algo
esperado e salutar dentro do processo democrático. Mas nesse zig-zag, o momento
atual (estou escrevendo isso em 2020) é o da assim chamada direita liberal,
democrática e conservadora – necessária para contrabalançar os excessos
contraproducentes esquerdismos utópico, primários e pervertidos – os quais,
movidos por suas próprias ilusões, passaram cerca de trinta anos obstruindo o
desenvolvimento do país e que, para a sorte de todos, não chegaram ao seu destino
final. Não digo que as circunstâncias presentes sejam ideais, posto que ainda
nos encontramos longe demais disso – mas é o que nos é dado.
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Karl 2015 (1945). The Open Society and its Enemies. Princeton: Princeton University
Press.
[1] Uma das passagens do hino: “Ó parasitas deixai
o mundo/Ó parasitas que se nutrem/do nosso sangue a gotejar/Se nos faltarem
tais abutres/Não deixará o sol de fulgurar!”
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