DRAFT
F
COGNITIVISMO SEMÂNTICO:
COMO TERMOS REFERENCIAIS REFEREM
------------
Por uma concepção neo-descritivista da referência
(contracapa)
NESSE LIVRO É DESENVOLVIDA UMA CONCEPÇÃO FILOSÓFICA INOVADORA
DOS MECANISMOS DE REFERÊNCIA DOS TERMOS SINGULARES E GERAIS EM FILOSOFIA DA
LINGUAGEM. TRATA-SE DE UMA TEORIA BASICAMENTE NEODESCRITIVISTA, CAPAZ DE SER VANTAJOSAMENTE
CONTRAPOSTA TANTO ÀS VELHAS TEORIAS DESCRITIVISTAS QUANTO ÀS MAIS NOVAS TEORIAS
CAUSAIS-HISTÓRICAS, COM RESULTADOS BEM MAIS PROMISSORES.
O AUTOR É DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE DE
KONSTANZ E PROFESSOR TITULAR NA UFRN, TENDO REALIZADO ESTUDOS PÓS-DOUTORAIS EM MUNIQUE,
BERKELEY, OXFORD, GÖTEBORG E NA ÉCOLE NORMALE SUPÉRIEURE. SEUS PRINCIPAIS
LIVROS ENCONTRAM-SE EM INGLÊS, SOB OS TÍTULOS DE THE PHILOSOPHICAL INQUIRY
(2002) LINES OF THOUGHT (2014) E PHILOSOPHICAL SEMANTICS
(2018).
Probleme
kann man nicht mit derseben Denkweise lösen, durch die sie entstanden sind. [Problemas não podem ser
resolvidos pela mesma maneira de pensar que os produziu.]
Einstein
SUMÁRIO
PRÓLOGO
PARTE I: TERMOS SINGULARES
1. CLASSIFICANDO OS TERMOS
SINGULARES
2. TERMOS INDEXICAIS
3. DESCRIÇÕES DEFINIDAS
4. NOMES PRÓPRIOS (I): DESCRITIVISMO
5. NOMES PRÓPRIOS (II): CAUSALISMO
EFERENCIAL
6. NOMES PRÓPRIOS (III):
METADESCRITIVISMO
PARTE II: TERMOS GERAIS
7. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
8. PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
9. IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
PRÓLOGO
Meu primeiro encontro com as teorias filosóficas dos nomes próprios aconteceu
há mais de trinta anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese sobre
a concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein. Como seria de
se esperar de um neófito recém-convertido, a melhor resposta parecia-me ser a teoria
do feixe de descrições definidas, tal como fora comentada pelo próprio
Wittgenstein na seção 79 de suas Investigações
Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção
causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Saul Kripke me
deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais externas soava-me
como uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade com
a teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma ordem ao
apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe e que isso só poderia
ser feito pelo recurso a alguma regra de ordem superior, capaz de estabelecer o
papel e o valor das descrições a ele pertencentes. Mas logo me esqueci do
assunto.
Só voltei a me interessar pela
questão dos nomes próprios em 2006, por razões meramente acidentais. Lembrei-me
então de meu antigo projeto. Escrevi um breve esboço no qual enfatizava o fato
de que as descrições definidas pertencentes ao feixe deveriam ser interpretadas
como expressões de regras de conexão do nome próprio com o seu objeto de
referência. Mais do que isso, me pareceu que em seu aparato cognitivo qualquer
falante competente deveria possuir de forma implícita uma regra de ordem
superior, uma regra meta-descritiva para nomes próprios, capaz de
conferir papel e valor aos diversos tipos de regra-descrição constitutivos de
cada feixe de descrições associado a cada nome próprio. Tal regra
meta-descritiva se aplicaria sobretudo a regras-descrições espaciotemporalmente
localizadoras e caracterizadoras da razão pela qual o portador de um nome
próprio é por nós referido.
Apresentei meu esboço em várias ocasiões,
sempre surpreso com a forte reação adversa da maioria dos ouvintes. Contudo, como
ninguém me apontava um erro sério e como um pouco de reflexão me mostrava que
as objeções poderiam ser facilmente respondidas, prossegui. A teoria metadescritivista
dos nomes próprios daí resultante encontra-se exposta no capítulo 6 do presente
livro, sendo o que ele tem de mais interessante a oferecer. Embora essa teoria não
deixe de incorporar intuições provenientes da concepção causal-histórica, ela as
condiciona a ideias de fundo claramente descritivista, o que faz com que se
deixe melhor classificar como uma elaboração muito mais satisfatória da velha
teoria do feixe de descrições.
A teoria metadescritivista dos
nomes próprios tem a sua maior complexidade justificada por sua coerência
interna, além da posse de um poder explicativo claramente superior ao das
teorias anteriores. Entre os bons atributos que a recomendam encontram-se: (i)
ser capaz de explicar adequadamente como e por que o conteúdo cognitivo
(sentido) do nome próprio pode contribuir para a identificação de seu portador
(objeto ou referência); (ii) ser capaz de gerar a ideia de que nomes próprios
são designadores rígidos do próprio interior do descritivismo; (iii) ser capaz de
explicar, sob uma perspectiva descritivista, como e por que se dá o contraste entre
a rigidez dos nomes próprios e a acidentalidade das descrições definidas e, finalmente,
(iv) ser capaz de responder de forma muito mais convincente aos mais importantes
exemplos já levantados contra a teoria do feixe.
A resposta à questão da
natureza do nome próprio é uma pedra angular da filosofia da linguagem. Se ela for
alterada, tudo se altera. A teoria causal-histórica dos nomes próprios,
advogada por Saul Kripke, Keith Donnellan e outros, produziu uma verdadeira revolução
na maneira como entendemos outras expressões referenciais fundamentais, que são
as descrições definidas, os indexicais, os termos gerais e mesmo os enunciados,
inaugurando uma nova ortodoxia causalista e externalista em filosofia da
linguagem. Se proponho uma teoria neodescritivista (metadescritivista) dos
nomes próprios que se revele verdadeiramente convincente, o que estou sugerindo
trás em seu cerne uma contra-revolução de fundo descritivista-cognitivista, que
promete responder de modo mais satisfatório aos problemas que a nova ortodoxia
tem gerado desde a década de 1970. Essa é, creio eu, a explicação última da
reação de rejeição de parte de ouvintes diante da proposta de uma teoria metadescritivista
dos nomes próprios: ela demanda uma inversão da perspectiva hoje mais comum.
Isso também explica as direções que minha
pesquisa precisou tomar em seguida. Uma vez que me encontrava investigando a
função dos nomes próprios, meu interesse teve de se alargar para a história das
teorias descritivistas e também para a necessidade de alcançar um entendimento
crítico da concepção causal-histórica que fizesse justiça ao trabalho exponencial
de Kripke.
A investigação do
funcionamento dos nomes próprios inevitavelmente me levou a considerar outras
expressões referenciais, como descrições definidas, termos indexicais e mesmo
termos gerais, onde a mesma disputa entre a nova ortodoxia do referencialismo causal-externalista
e a velha ortodoxia do cognitivismo descritivista-internalista é mantida. Minha
pergunta foi irreprimível. Se havia obtido tão bons resultados defendendo uma
espécie de cognitivismo metadescritivista essencialmente internalista para o
caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira de ver não seria capaz de
produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada a outras
expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição era boa, de
modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era duplo. De um
lado, queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas-externalistas
aplicadas a outros termos referenciais; de outro, considerando as objeções, queria
desenvolver explicações basicamente cognitivistas-internalistas mais
convincentes para os modos como descrições definidas, indexicais e termos gerais
referem, mesmo que ainda incompletas.
Alguns resultados podem ser de
interesse. Entre eles está a compatibilização do descritivismo de “Russell” com
o de “Frege”; uma defesa neofregeana da irrelevância das incongruências não-convencionais
em um resgate descritivista do conteúdo semântico fregeano dos indexicais, por
oposição à tese de John Perry da essencialidade do indexical; a tese da plasticidade
do pensamento; uma crítica linguística detalhada à teoria externalista do
significado de Putnam e, em complemento a isso, a proposta da existência de
regras meta-descritivas por vezes análogas às dos termos singulares na
constituição de regras de atribuição de termos gerais.
Trata-se, como creio, de algo
que nos aproxima um pouco mais de um conhecimento apto a obter consenso; mais aproximado,
portanto, daquilo que em um linguajar genérico chamamos de ciência. Ainda
assim, boa parte do que aqui se encontra escrito não vai muito além de esboços
rudimentares, que lanço na espectativa de que possam ser melhor desenvolvidos
por outros. Assim deve poder ser, dado que filosofia é work in progress por definição.
Ao trabalhar com essas
questões percebi, em retrospecto, que aquilo que estava tentando fazer poderia
ser entendido como a retomada de um programa especulativamente desenvolvido por
Ernst Tugendhat na década de 1970 em seu clássico livro Vorlesungen zur einführung in die sprachanalytische Philosophie (Lições
introdutórias à filosofia analítica da linguagem) – um programa que pode ser considerado o canto de cisne da
velha ortodoxia em filosofia da linguagem. Essa velha ortodoxia teve seus
inícios com Frege e Wittgenstein, tendo sido fortemente influente até a década
de 1980, pelo menos. Contudo, ela acabou perdendo sua força, à sombra do
domínio sempre crescente das concepções externalistas e não-descritivistas do
acesso à referência – a nova ortodoxia comandada por filósofos como Saul Kripke,
Hilary Putnam e David Kaplan.
Retomando de forma mais clara uma ideia já
defendida na interpretação que Michael Dummett fez de Frege, Tugendhat sugeriu em
seu livro que se entendesse o programa da velha ortodoxia como sendo, para o
caso fundamental da frase enunciativa predicativa singular, o de analisar o sentido
cognitivo (Sinn) do termo singular
como sendo a sua regra de identificação
(Identifikationsregel), o sentido
cognitivo do termo geral como sendo a sua regra
de aplicação (Verwendungsregel) –
que prefiro chamar de regra de atribuição – e o sentido cognitivo ou epistêmico
(epistemisches Gehalt) da frase enunciativa predicativa singular completa como sendo
a sua regra de verificação (Verifikationsregel). Essa última regra
seria a resultante da aplicação combinada das duas primeiras (da regra de
identificação, que identificaria o objeto ao qual se aplicaria a regra de atribuição),
o que foi concebido por Tugendhat como uma maneira analiticamente aprofundada
de se falar da verificação em termos de significado e, ultimadamente, da
verdade no sentido tradicional de correspondência (nada a ver aqui com as
objeções feitas à espécie de verificacionismo dos positivistas lógicos). Ora,
meu objetivo deixa-se também explicar como sendo o de justificar e analisar em algum
detalhe cada uma dessas regras em sua natureza, estrutura, subdivisões e
relações, além de tentar esclarecer seu status ontológico, assim como atributos
a elas relacionados, como os de existência e verdade.
Essas são as estações do
presente texto, que foi escrito na intenção de ser entendido por leitores que, apesar
de versados em filosofia, não precisassem possuir conhecimento especializado de
filosofia da linguagem.
Em
adição, devo observar que o trabalho com esse livro foi interrompido em 2011
para que fosse possível escrever dois livros em inglês: Lines of Thought: Rethinking philosophical assumptions (2014) e Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy (2018). Os conteúdos dos três livros são
parcialmente inclusivos e complementares. Estou convencido de que juntos eles
oferecem uma chave sistemática mais plausível para a solução de alguns
problemas fundamentais da filosofia linguístico-analítica contemporânea,
baseada simplesmente na escolha de variedade de pressupostos teóricos prima facie mais plausíveis (daí o
grande número de referências cruzadas no presente texto).
Um único exemplo para ilustrar
a complementariedade em questão: foi só no livro Philosophical Semantics que tratei do enunciado completo, que não
deixa de ser um caso especial de expressão referencial. O significado cognitivo
do enunciado foi lá analisado em termos de regras verificacionais, o que foi
feito juntamente com uma crítica a entendimentos formalistas seriamente equivocados
que filósofos do Positivismo Lógico e sua descendência (que vem pelo menos de W.
V. Quine a Saul Kripke, passando por Donald Davidson) tiveram do
verificacionismo semântico originariamente proposto por Wittgenstein. Esses
entendimentos equivocados geraram críticas igualmente equivocadas e, no final
das contas, uma rejeição enganosa, posto que bloqueadora dos caminhos da
investigação concernentes ao modo mais natural e potencialmente frutífero – creio
que na verdade o único – de se analisar significados cognitivos de sentenças
assertivas sem ter de reaplicar o próprio conceito de significado. Finalmente, também
no livro Philosophical Semantics foi esboçada uma versão genuinamente abrangente
da teoria correspondencial da verdade que se demonstrava compatível com o
verificacionismo semântico. Tugendhat, acreditando nessa mesma compatibilidade,
demonstrou-se mais uma vez presciente.
Por fim, devo fazer uma
advertência. Esse livro é como a proposta de solução de um quebra-cabeças que
desafia muito da mainstream
contemporânea – um quebra cabeças no qual as muitas peças precisam se encaixar
perfeitamente umas às outras. Não se pode solucionar um quebra-cabeças
considerando encaixes isolados. Por ser assim, cada capítulo, especialmente os
mais importantes (capítulos 6 e 8), só adquire credibilidade quando visto como constituindo
um argumento complexo, que precisa ser seguido com certo cuidado, podendo essa
consideração ser estendida mesmo ao livro como um todo. É desejável, pois, que
o leitor suspenda o juízo até ter compreendido como os sub-argumentos se
combinam entre si de modo a constituirem um “modo de se ver o problema” – um todo
complexo cuja plausibilidade se deve ao poder explicativo originado de sua
coerência interna.
Konstanz, 2021
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer aos editores da revista Dissertatio pela
permissão para republicar conteúdo inicialmente publicado sob forma de artigos
naquela revista. Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de pós-doutorado
na Universidade de Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci
no período de 2008 a 2010 e onde pude desenvolver as primeiras versões do
presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especial
gostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo uma
versão inicial de minhas ideias sobre como nomes próprios referem. Também
gostaria de agradecer ao professor João Branquinho pelas discussões sobre nomes
próprios nos colóquios da Universidade de Lisboa, além da professora Anna-Sofia
Maurin e a seus bem preparados alunos da Universidade de Göteborg em 2016/1.
Outras pessoas a quem sou grato são o professor Manuel Garcia-Carpintero, que em
2006 me incentivou a dar início a essa pesquisa, assim como aos professores Richard
Swinburne, Peter Stemmer, Marco Antônio Caron Ruffino, Guido Imaguire, Daniel
Durante, Ethel Rocha, Cinara Nahra, André Leclerc e Nelson Gomes, por objeções
e estímulos. Sou também grato a François Recanati pela gentileza de me ter
aceito para um pós-doutorado na École
Normale Supérieure em 2016/2, quando tive a oportunidade de assistir seu excelente
curso de filosofia da linguagem. Finalmente, devo manifestar meus
agradecimentos aos meus ex-colegas Fernando Rodrigues e Fernando Fleck, além
dos professores Raul Landim e Guido Antônio de Almeida, através dos quais há
muitos anos descobri a importância das Vorlesungen de Ernst Tugendhat.
SUMÁRIO
PRÓLOGO
PARTE I: TERMOS SINGULARES
10. CLASSIFICANDO OS TERMOS
SINGULARES
11. TERMOS INDEXICAIS
12. DESCRIÇÕES DEFINIDAS
13. NOMES PRÓPRIOS (I): DESCRITIVISMO
14. NOMES PRÓPRIOS (II): REFERENCIALISMO
CAUSAL
15. NOMES PRÓPRIOS (III): METADESCRITIVISMO
PARTE II: TERMOS GERAIS
16. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
17. PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
18. IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
PARTE I: TERMOS SINGULARES
1
CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES
Quero começar mapeando brevemente o território a ser explorado ao expor
a classificação tradicional dos termos singulares.
Tipos de termos singulares
Um termo singular é aquele que é usado para identificar um único
objeto (um particular, um indivíduo), ao distingui-lo de uma
multiplicidade de outros objetos.[1] Nas
línguas européias, o termo singular costuma ser claramente divisível em indexical, descrição definida e
nome próprio.
Comecemos com os assim chamados termos indexicais.[2] Eles
podem ser definidos como sendo aqueles termos singulares cuja referência costuma
variar a cada diferente contexto de proferimento. Esse é o caso dos pronomes
demonstrativos, como ‘esse’ e ‘aquele’, e pronomes pessoais, como ‘eu’ e ‘ela’.
Podemos distinguir entre indexicais demonstrativos e puros.[3] Os primeiros
são basicamente pronomes demonstrativos e possessivos como ‘esse’, ‘essa’,
‘isso’, ‘aquilo’, ‘ele’, ‘ela’, ‘meu’ ‘seu’, ‘sua’.[4] Eles
precisam vir acompanhados de algo mais para poderem selecionar seus objetos de
referência. Esse algo mais, além de ser interiormente uma intenção referencial,
deve ser exteriormente algo que a demonstra, que pode ser um gesto de ostensão
(ex: aponta-se para um objeto), quando não algum pressuposto contextual (ex: um
raio visivel a todos caiu em uma região próxima) ou algum elemento descritivo complementar
desambiguador capaz de esclarecer o que o falante intenciona referir (ex.:
expressões como ‘essa bola’ ou ‘aquele livro de capa azul na estante’). Já os
indexicais puros são aqueles cuja referência é automática, não dependendo nem
de ações nem de intenções. Eles se exemplificam basicamente pelo pronome
pessoal ‘eu’ e por advérbios como ‘aqui’, ‘agora’, ‘hoje’, ‘amanhã’...
Há muitas outras expressões cujo conteúdo, em maior ou menor medida, depende
do contexto. Como John Searle percebeu, é até mesmo razoável pensar que todos
os nossos enunciados empíricos possuem algum traço de indexicalidade.[5] Considere,
por exemplo, o enunciado singular “Galileu foi o primeiro a expor claramente a
lei da inércia” e o enunciado universal “Todos os corpos materiais tem força
gravitacional”. Parece claro que com o enunciado sobre a descoberta da lei da
inércia estamos nos referindo indexicalmente a um acontecimento no planeta Terra
no século XVII. Se em algum outro planeta habitado de outra galáxia alguém
descobriu a lei da inércia há milhões de anos, isso não afetará a verdade desse
enunciado, uma vez que ele foi indexado à história do desenvolvimento
científico em nosso planeta. Quanto ao enunciado sobre a universalidade da “força”
gravitacional, ele é considerado verdadeiro em relação ao nosso universo. Se existir
um universo paralelo cujos corpos massivos não curvam o espaço-tempo ao seu
redor de modo a produzir o que chamamos de gravidade, o enunciado não deixará por
isso de ser verdadeiro, posto que a universalidade em questão é indexada ao
nosso universo.
Não obstante, mesmo que a
maioria de nossos enunciados considerados não-indexicais contenha um elemento
indexical oculto em seu pano de fundo contextual, isso não destrói nosso
entendimento dos indexicais, pois ao falarmos de termos indexicais no sentido
próprio estamos fazendo um uso muito mais restritivo da ideia em questão. Nós
queremos nos limitar às expressões que, embora variem as suas referências com a
variação do contexto de proferimento, fazem isso com a função prescípua de designar referentes em sua relação espaciotemporal
interna ao contexto do proferimento (exs.: ‘isso’, ‘aquilo’, ‘eu’, ‘tu’,
‘agora’) ou ao menos proximamente
associada a ele (exs: ‘acolá’, ‘amanhã’, ‘depois-de-amanhã’, ‘ontem’, ‘antes-de-ontem’,
‘na semana passada’...).
Quando a relação espaciotemporal se encontra
muito distante desse “aqui e agora” do proferimento do falante, o usual é que
deixe de ser intuitiva a consideração do proferimento como propriamente indexical.
Considere os proferimentos: “A Próxima do Centauro está a 4,243 anos luz de
distância” e “Os estromatólitos viveram há 3,45 bilhões de anos atrás”. Expressões
como ‘a 4,243 anos luz de distância’ e ‘há 3,45 bilhões de anos atrás” não são,
pela caracterização acima, indexicais como ‘lá’ e ‘ontem’, posto que seus
referentes estão respectivamente no espaço e no tempo demasiado distantes do
contexto do proferimento (limites são aqui inevitavelmente vagos e outros
fatores podem entrar em consideração).
Passemos agora às descrições definidas. Elas são complexos nominais
geralmente iniciados com um artigo definido no singular. Exemplos são ‘a dama
das camélias’, ‘o marechal de ferro’, ‘a cidade luz’. Embora estandartizáveis
sob essa forma, as descrições definidas nem sempre se apresentam assim: ao
invés de ‘a avó que eu tenho’ costumo dizer ‘minha avó’. O que caracteriza as
descrições definidas mais propriamente é que elas sejam capazes de representar
ou conotar, através de seu sentido, propriedades distintivas do objeto ao qual
se referem. Assim, a descrição ‘o pai de do filósofo Aristóteles’ é referencial
por representar uma propriedade distintiva de uma pessoa de ser o pai de Aristóteles.
Algo assim se aplica a outras descrições definidas listadas acima, capazes de
conotar respectivamente as propriedades distintivas de gostar de camélias, de
ser de uma dureza impiedosa, de ser uma cidade extraordinariamente bela. Por
outro lado, uma expressão como ‘O Sacro Império Romano’ (o qual, como notou
Voltaire, não era nem sacro nem império nem romano) não é uma descrição
definida, mas um nome próprio (recebendo por isso iniciais maiúsculas), posto
que não conota propriedades do objeto referido.
As descrições definidas fazem contraste com as
descrições indefinidas, que costumam começar com artigo indefinido como, por
exemplo, ‘uma mulher’, ‘um terno azul’. Essas últimas nos permitem apenas falar
de algum objeto qualquer pertencente a uma classe de objetos, mas sem demandar
sua identificação. Por serem incapazes de identificar um único objeto específico
distinto de todos os outros, elas não são termos singulares.
Os nomes próprios, por fim, são expressões geralmente
destituídas de complexidade sintática, ainda assim mantendo a função de
designar um certo objeto singular na independência do contexto do proferimento.[6]
Diversamente das descrições definidas, nomes próprios não exprimem um sentido único
relacionado à identificação da referência. Por isso o filósofo J.S. Mill
sugeriu que eles não conotam propriedades específicas do objeto referido; eles
apenas o denotam. Mesmo quando eles possuem alguma complexidade sintática, como
é o caso do nome ‘Touro Sentado’, ela geralmente de nada serve à referência.
Nomes próprios são classificados nos livros escolares
como nomes de pessoas, objetos ou lugares. Mas essa é uma classificação simplificadora
se considerarmos a grande variedade de objetos particulares que podem ser
referidos por eles. Além de nomes de pessoas e animais, há nomes de construções
humanas como cidades, de objetos geológicos como montanhas e rios, de objetos
astronômicos como planetas e nebulosas, de fenômenos naturais como furacões e
vulcões, de regiões geográficas e de instituições financeiras, além de nomes de
objetos abstratos como números.
Relações entre os tipos de termos singulares
Faz parte da concepção essencialmente cognitivista-descritivista a ser defendida
nesse livro a sugestão de que não deve haver uma fronteira nítida a separar os indexicais
de descrições definidas e essas últimas dos nomes próprios. Uma descrição
definida como ‘o homem que está discursando naquele palanque’, por exemplo, é
conotativa, mas contém o demonstrativo ‘naquele’ com função indexical. Nesse
sentido ela não é uma descrição definida tão exclusiva quanto, digamos, ‘o sapo
barbudo’. Considere agora um termo singular como ‘o Cristo Redentor’. Vindo antecedido
de artigo definido, ele conota descritivamente a propriedade identificadora da
estátua, que é a de ser uma homenagem ao Deus cristão. Ele contém, pois,
elementos de descrição definida. Contudo, ele também possui alguns traços de
nome próprio, na medida em que ao usá-lo não costumamos ter em mente apenas a
homenagem ao filho do Deus cristão, mas à própria estátua do Cristo situada no
alto do Corcovado. Assim, a expressão ‘o Cristo Redentor’ parece estar a meio
caminho entre uma descrição definida e um nome próprio. Muito diferente é o
caso de um nome próprio típico como ‘Machado de Assis’, referente ao grande
escritor carioca. Mesmo que ‘machado’ conote uma ferramenta e ‘Assis’ uma
cidade, esses elementos descritivos não tem nenhuma função identificadora, pois
o escritor nem era um machado nem nasceu na cidade de Assis.
Há uma hipótese vislumbrada
por filósofos como P.F. Strawson[7], que ajuda
a explicar a ausência de fronteiras nítidas entre indexicais, descrições
definidas e nomes próprios. Queria expô-la como contendo a sugestão de que deve
haver uma progressão genético-estrutural, que vai dos indexicais para as
descrições definidas e delas para os nomes próprios.[8] Os
indexicais parecem ter de algum modo prioridade como fontes originadoras da
referência. Afinal, a maneira pela qual crianças aprendem a identificar objetos
nos estágios iniciais do aprendizado da linguagem é por intermédio de atos de chamar
a atenção e apontar por parte parte dos adultos que se encontram à volta. Como
veremos, é bem razoável pensar que com base nesse uso indexical da linguagem por
outros nós assimilamos regras de identificação, as quais podem mais tarde ser
expressas por meio de descrições definidas que, diversamente dos indexicais,
podem ser usadas para a comunicação mesmo na ausência dos objetos por elas
referidos. Essa é a vantagem da constância
presente nas descrições definidas e ausente nos indexicais. Finalmente, como as
maneiras de se identificar um mesmo objeto, assim como as descrições
correspondentes, podem se diversificar cada vez mais, aprendemos a colocar um
nome próprio no lugar de toda a variedade de descrições definidas que podem ser
usadas para designar um mesmo objeto, usando esse nome indistintamente para
significar essa ou aquela descrição ou conjunção de descrições identificadoras.[9] Com
isso podemos nos comunicar sobre objetos sem precisarmos nos preocupar com o
compartilhamento dos conteúdos de todas as múltiplas descrições específicas. Ganham
assim os nomes próprios, além da vantagem da constância, típica das descrições
definidas, também a vantagem da flexibilidade.
Essa progressão é sugestiva de nossa hipótese de trabalho e indicadora de um itinerário
a ser seguido.
[1] Tugendhat 1976, p. 425 ss.
[2] A palavra ‘indexical’ vem da noção de índice
de C.S. Peirce. Outros termos usados no mesmo sentido são particulares egocêntricos
(Russell), termos token-reflexivos (Hans Reichenbach), indicadores (Nelson Goodman, W.V.
Quine), demonstrativos (John Perry) e
dêiticos (Ernst Tugendhat, John
Lyons, S.C. Levinson).
[3] Sigo aqui a proposta original
de David Kaplan in 1989, pp. 490-491.
[4] Note-se que nem sempre esses termos funcionam como
indexicais. Considere: (i) “Todo adolescente pensa que ele é um adulto”
(ocorrência como variável ligada), (ii) “Maria teve um filho; ela está
muito feliz” (ocorrência anafórica). Contudo, esses pronomes podem ser
excluídos sem prejuízo do significado como em: (i’) “Todo adolescente pensa que
é adulto” e (ii’) “Maria está muito feliz por ter tido um filho”. Isso indica
que eles tem aqui uma função derivada, diversamente de suas funções indexicais
primárias.
[5] Searle 1983, p. 221.
[6] Nomes próprios de pessoas costumam ser em sua
expressão fonética e ortográfica multiplamente ambíguos, de modo que a
unicidade de sua designação acaba por depender do contexto em que são usados.
Contudo, esse fato não nos leva a confundir nomes próprios com indexicais, pois
o contexto desambiguador do nome próprio não é o do proferimento, mas o de uma
pluralidade de crenças interligadas conectadas ao contexto do proferimento, as
quais, como veremos, fazem valer um certo domínio de objetos que contém aquele
a ser selecionado por uma específica regra de identificação para o nome. (Cf.
capítulo 6.)
[7] 1959, parte I.
[8] Mesmo admitindo que o indexical dependa do
uso de conceitos para ser capaz de identificar algo, parece claro que o
indexical deve ter um papel fundamental no aprendizado inicial de novos
conceitos.
[9] Estou considerando esse
processo em termos tendenciais. Naturalmente, um nome próprio também pode gerar
uma descrição definida, como no caso da descrição laudatória ‘o mestre dos que
sabem’ usada por Dante para se referir a Aristóteles.