Draft
8
PUTNAM, A TERRA-GÊMEA E A FALÁCIA EXTERNALISTA
A
teoria causal dos termos de espécie natural está intimamante associada ao externalismo
semântico defendido por Hilary Putnam e outros. No que se segue quero expor criticamente
os argumentos externalistas desse autor ao mesmo tempo que, em contraposição, desenvolver
uma explicação descritivista neo-fregeana e basicamente internalista do significado
do conceito de água, capaz de melhor responder aos problemas por ele
levantados. Para reforçar esse ponto de vista terminarei fazendo uma rápida crítica
à idéia em meu juizo incorreta de que o enunciado “Água é H2O” é
necessário e a posteriori e ao externalismo de Tyler Burge.
O
externalismo semântico de Putnam
Putnam
usa como instrumento para demonstrar o seu externalismo semântico a sua famosa
fantasia da Terra-Gêmea.[1] Considero
essa fantasia bastante original, engenhosa, estimulante e indubitavelmente falsa.
Acho mesmo difícil compreender como ela possa ter se afigurado convincente a várias
gerações de filósofos. A meu ver o argumento de Putnam não deve ser tomado em
sua face de valor. Vejo-o como um exemplo de metafísica revisionária, como os que
encontramos em uma tradição que vem de Berkeley a Hume, de Bradley e MacTaggart
e a W. V. Quine. Esse argumento pode ser negativamente avaliado, como uma
falácia enganosa, resultante de um entendimento sistematicamente inadequado e
no final das contas perverso dos significados que os termos ganham em seus usos
ordinários, reclamando uma terapia à la Wittgenstein. Mas ele também
pode ser positivamente avaliado, como um desafio dialeticamente importante,
posto que (como Wittgenstein também teria admitido) é pela dissolução das tensões
causadas por confusões profundas que costuma advir um avanço em nossa compreensão
das questões filosóficas. Em qualquer dos casos, vale a pena um exame cuidadoso
de seus detalhes..
Vale lembrar que o suposto entendimento perverso
de nuances nos sentidos ordinários das palavras parece aqui ao menos em parte
originado pelo que podemos chamar (seguindo Searle, Strawson e antes deles
Wittgenstein) de cientismo. No caso específico,
ele aparece como uma tentativa de imitar em filosofia da linguagem o que acontece
em ciências como a física ou a matemática, nas quais têm sido feitas descobertas
desconcertantes, que parecem contradizer frontalmente nossas intuições de senso
comum. Como escreveu ele já no início de de seu artigo “The Meaning of ‘Meaning’” [2]:
De fato a conclusão de nossa discussão será a de que os
significados não existem exatamente como pensamos que existem. Mas elétrons também
não existem da maneira que Bohr pensou que existiam.
A
diferença é que essas ciências produzem descobertas que nos parecem contra-intuitivas
em domínios muito distantes daqueles de nossa experiência cotidiana, enquanto a
filosofia da linguagem pretende analisar conceitos que nos são demasiado
familiares, como os de referência, significado, verdade... sendo nesse terreno muito
difícil ser espetacular sem ser falacioso.
Desconstruindo
o argumento da Terra -Gêmea
No
que se segue pretendo começar com uma exposição do argumento de Putnam, seguida
de comentários críticos. Tais comentários mostrarão que uma abordagem cognitivista-descritivista
neo-fregeana é capaz de resolver com vantagens os problemas por ele colocados.
Depois disso pretendo fazer uma análise neodescritivista mais aprofundada do
conceito de ‘água’ envolvido na fantasia de Putnam, explicando em algum detalhe
como as coisas realmente acontecem. Essa explicação mostrará que se tomado em
sua face de valor, o externalismo semântico por ele proposto é indefensável,
ainda que contenha desafios dialeticamente relevantes.
Exposição: Putnam começa considerando duas
teses: (I) o significado (intensão, sentido) determina a extensão, (II) os estados
psicológicos (de entendimento) fixam o significado. As duas teses devem ser aceitas
pelo descritivismo tradicional. Mesmo que se acredite, como Frege o fez, que o
significado seja uma entidade abstrata, é preciso admitir que nós apreendemos
psicologicamente o significado, devendo uma diferença no significado
corresponder a uma diferença no estado psicológico de quem o apreende. A consequência
da aceitação de (I) e (II) é que devemos assumir que estados psicológicos fixam significados, os quais por sua vez determinam
as suas referências.
Para Putnam, o que a fantasia da Terra-Gêmea
demonstra é que é possível a um mesmo termo ter extensões diferentes, mesmo sendo
os estados psicológicos exatamente os mesmos. Assim, uma das duas teses deve estar
errada. A solução de Putnam é rejeitar a tese (II): estados psicológicos não fixam
o significado. E isso acontece porque o significado não está, no essencial, em
nossas cabeças, mas de algum modo no domínio externo da própria referência. Quanto
à tese (I), ela pode ser mantida: o significado determina a extensão, mesmo que
de modo não-fregeano, como veremos, por intermediação da seleção demonstrativa de
exemplares que tipicamente satisfazem as propriedades de superfície constitutivas
do que ele irá chamar de estereótipo.
Para chegar a essa conclusão Putnam imagina
um planeta que ele chama de Terra-Gêmea, no qual tudo existe e acontece tal como
na Terra, exceto pelo fato de que os seus rios, lagos e mares se encontram cheios
de um líquido que em condições normais de temperatura e pressão é indistinguível
da água, saciando a sede quando bebido, caindo sob a forma de chuva, apagando o
fogo etc. Esse líquido só difere da água pelo fato de que a sua composição
química não é H2O, mas algo muito diverso, que pode ser abreviado
como XYZ.[3] Ele
então imagina que uma nave espacial da Terra visite a Terra-Gêmea. A princípio
os astronautas pensarão que ‘água’ tem o mesmo significado (meaning) na Terra e na Terra-Gêmea. Mas,
observa Putnam:
Se uma espaçonave da Terra visita a Terra-Gêmea,
então a suposição inicial será de que ‘água’ tem o mesmo sentido (meaning). Essa suposição será corrigida
quando for descoberto que ‘água’ na Terra-Gêmea é XYZ e que a espaçonave da Terra
irá reportar algo como “Na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ quer dizer (means) XYZ”. (...) Simetricamente (...)
a espaçonave da Terra-Gêmea irá reportar: “Na Terra a palavra ‘água’ quer dizer
(means) H2O”.[4]
O que
Putnam está querendo introduzir é a sugestão de que em tais casos a palavra
‘água’ significa ou “quer dizer” (means)
duas coisas. Na Terra ela quer dizer (means)
água-t, uma vez que diz respeito à extensão do composto H2O, enquanto
na Terra-Gêmea ela quer dizer (means)
água-g, posto que diz respeito à extensão do composto XYZ. Putnam interpreta a
sua fantasia como tendo demonstrado que a palavra ‘água’ tem e de fato sempre teve esses dois significados, independentemente
do que possa passar ou ter passado pela cabeça dos habitantes da Terra ou da Terra-Gêmea,
devendo-se essa diferença de significado à constituição essencial do líquido apontado
com o nome de ‘água’ em cada planeta. O que a palavra ‘água’ quer dizer independe
do que passa pelas cabeças das pessoas que usam o termo, sendo externamente
determinado por sua referência.
Comentário: Já agora, ante essas considerações
iniciais de Putnam, quero introduzir minha objeção central, fundada na consideração
de nossos usos ordinários das palavras. Parece claro que na base do que Putnam
procura fazer há uma sutil confusão entre o nível do sentido/significado-intensão
e o nível da referência-extensão.[5] A palavra
‘mean’ usada por Putnam em inglês, assim como seus correspondentes ‘Bedeuten’
em alemão e ‘querer dizer’ ou ‘significar’ em português, possuem uma espécie enganadora
de ambigüidade, que chamarei de uso semântico intralinguístico e uso
referencial intralinguístico. Normalmente e em seu sentido próprio e relevante,
a palavra ‘significado’ tem o que pode ser chamado de um uso semântico intralinguístico, que é
o de indicar o “conteúdo semântico de um signo lingüístico, acepção, sentido,
significação, conceito, noção” (dicionário Houaiss), a saber, indicar o sentido
convencionalmente fundado da expressão a que se reporta. Esse sentido
intralingüístico, que inclui o sentido (Sinn)
fregeano, é o sentido central da palavra ‘significado’ na linguagem,
estendendo-se essa distinção à expressão ‘querer dizer’. Tal sentido é exemplificado
em proferimentos como:
(a-i) A
palavra ‘cadeira’ significa (quer dizer) banco não-veicular com encosto feito
para
uma só pessoa sentar de cada vez.[6]
(a-ii) A frase “O gato foi pro mato” significa (quer dizer)
grosso modo o mesmo que a
frase “O felídeo doméstico enveredou-se pelo
matagal”.
Contudo,
a palavra ‘significa’ (assim como ‘means’) também pode ser usada como uma maneira
linguística de apontar para a referência,
ou seja, para a entidade referida, no que pode ser chamado de o seu uso referencial intralinguístico. Etimologicamente,
a palavra ‘significado’ vem do latim ‘significare’, que quer dizer “dar a
entender por sinais, indicar, mostrar, dar a conhecer, fazer compreender” (no
inglês ‘mean’ também significa ‘to convey, show or indicate’ e no alemão ‘bedeutet’
também significa ‘heisst’ ou ‘bezeichnet’, respectivamente
‘querer dizer’ e ‘designar’). Nesse uso estendido da palavra, ‘significar’
ou ‘querer dizer’ são sinônimos de ‘indicar’, ‘designar’ e ‘referir’, podendo
ser facilmente – ainda que inapropriadamente – extrapolados de modo a designar aquilo
mesmo que é indicado, o designatum,
a referência (como veremos, Frege fez isso ao propor o termo ‘Bedeutung’
para nomear o próprio objeto de referência). É no uso referencial intralinguístico
que os verbos ‘significar’ e ‘querer dizer’ aparecem em proferimentos demonstrativos
como
(b-i) A palavra
‘cadeira’ significa (means) coisas como aquilo que está ali.
(b-ii) A frase “o
gato foi pro mato” quer dizer (means) que o gato realmente
foi
para o mato.
As
frases (b-i) e (b-ii) são aceitáveis. A primeira é aceitável quando usada por um
adulto para explicar a uma criança o significado de palavras como ‘cadeira’, enquanto
a segunda é aceitável por expor a relação entre uma frase e um fato correspondente.
A proximidade
semântica do verbo ‘significar’ em seu uso referencial intralinguístico com a palavra
‘referência’ está ligada ao que já vimos ser uma concepção referencialista do significado.
O erro dessa concepção consiste em transformar proximidade semântica em promiscuidade
semântica, confundindo significado com referência ou extensão.
De fato, a confusão é mais antiga. Há ecos de
referencialismo semântico no próprio Frege quando ele decidiu usar a palavra
‘Bedeutung’ no sentido técnico de ‘referência’ ao substantivar o verbo ‘bedeuten’,
usado no sentido de ‘referir’, como ‘Bedeutung’,
entendido como a referência. Trata-se
aqui da invenção de um uso referencial extralinguistico:
uma estensão que extrapola os significados próprio e estendido da palavra significado.
Também deve ser notado que a palavra ‘sentido’
(assim como o equivalente inglês ‘sense’
e o equivalente alemão ‘Sinn’) resiste
às ambiguidades apontadas com relação ao ‘significar’ e ao ‘querer dizer’. A palavra
‘sentido’ não possui usos referenciais. Ela possui apenas um uso semântico intralinguístico,
que é o de indicar os sentidos convencionalmente fundados das expressões a que
se reporta. Assim, no dicionário Houaiss
‘sentido’ significa simplesmente “cada um dos significados de uma palavra ou locução”.
Por isso, ao usarmos as palavras ‘significado’ e ‘querer dizer’ de modo
intralinguístico podemos facilmente substituí-las pela palavra ‘sentido’,
enquanto o mesmo não é possível quando essas palavras ganham usos referenciais.
Posso dizer, por exemplo:
(a-i’)
O sentido (significado) da palavra ‘cadeira’ é o de
‘banco
não-veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez’.
(a-ii’) O sentido
(significado) da frase ‘O gato foi
para o mato’ é grosso modo o mesmo
que “O felídeo
doméstico enveredou-se pelo matagal”.
Isso
é correto, afinal, pois a palavra ‘significado’ em (a-i) e (a-ii) tem um uso semântico
intralinguístico. Mas soaria muito estranho dizer
(b-i’) A palavra
‘cadeira’ tem o sentido de (significa) coisas
como aquilo que está ali.
(b-ii’) O sentido
(significado) da frase “O gato foi pro
mato” é
que
o gato realmente foi pro mato.
A razão
da estranheza é que em (b-i’) e (b-ii’) a palavra ‘sentido’ demonstra claramente
a sua incapacidade de adquirir um uso referencial extralingüístico. A estranheza
na substituição se repete com os equivalentes da palavra ‘sentido’ em outras línguas,
como ‘sense’ no inglês, ‘Sinn’ no alemão e ‘sens’ no francês. Podemos resumir nossos
resultados no seguinte quadro:
Uso semântico Usos referenciais
intralinguístico intralinguístico extralinguístico
Sentido
SIM NÃO NÃO
(Sinn,
sense)
Significado SIM
SIM SIM
(Bedeutung,
meaning)
O quadro
mostra claramente que o que importa semanticamente é o uso semântico intralinguístico,
pois nele se aplicam tanto as palavras sentido quanto significado. Menos
importância tem o uso referencial intralinguístico, no qual a palavra ‘significado’
recebe um uso estendido. Menor importância ainda é o uso referencial
extralinguístico, que é uma extrapolação indébita da palavra ‘significado’ na
qual ela é usada no sentido de referência, objeto referido, extensão – um uso
filosófico no mau sentido da palavra.
Minha conclusão é a de que Putnam joga com
essa ambiguidade da palavra ‘significa’/‘quer dizer’ (means), entendendo o uso semântico intralinguístico (que é central)
como um uso referencial intralinguístico do conceito de significado – no sentido de ‘querer dizer’ (mean), (que já
é derivado) – sugerindo então a extrapolação indébita que constitui o seu uso
referencial extralinguístico, como se esssas fossem continuações inocentes do
seu uso intralinguístico. Quando o astronauta diz
(c) Na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ significa/quer
dizer (means) e sempre significou/quis
dizer (meant) XYZ,
ele
está usando a palavra ‘significa’ no sentido inócuo de ‘se refere a’, e o que ele
quer dizer é simplesmente que na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ denota e sempre
denotou XYZ (isso fica mais fácil em inglês, onde ‘means’ significa mais propriamente
‘querer dizer’). Mas isso não é nenhuma descoberta espetacular e sim mera
trivialidade! A palavra ‘água’ obviamente se refere a XYZ na Terra-Gêmea, posto
que nesse planeta o objeto da referência é e sempre foi esse mesmo stoff extralingüístico. E não há nada de
especial nisso, posto que por definição a referência
ou denotação é coisa extra-lingüística,
em nada dependendo de estados psicológicos ou cerebrais. Assim, ao
desconsiderar a ambiguidade da palavra ‘significa’ ou ‘quer dizer’ (mean) Putnam produz um equívoco sutil, que
é o de deixar a significação ser contaminada pela referência. Ele quer nos fazer
crer que existe algum sentido referencial ou extensional da palavra ‘significado’
(meaning) a ser resgatado; mas esse sentido é uma persistente quimera
filosófica, a mesma que motivou o referencialismo semântico já há muito tempo criticado
por Gilbert Ryle e por outros. Essa impossibilidade demonstra-se quando substituímos
em (c) a palavra ‘significa’ pela expressão ‘tem o sentido de’. Nesse caso
temos:
(c’) Na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ tem e
sempre teve o sentido (sense) de XYZ.
Essa
frase soa claramente falsa, posto ser intuitivo que antes da descoberta da
fórmula química a palavra não tinha esse sentido (sense). Com efeito, a substituição de (c) por (c’) é um caso similar
ao da substituição das expressões do grupo (b) pelas do grupo (b’), as quais sugerem
a inexistência de um uso referencial da palavra ‘significado’ que seja capaz de
preservar qualquer coisa do sentido próprio e peculiar da palavra – o sentido no
qual ela se torna sinônima da palavra ‘sentido’.
Exposição: Na continuação do seu texto, Putnam
repete o argumento de um modo mais elaborado e eficaz ao situar a aplicação do termo
‘água’ em 1750, quando a sua estrutura atômica ainda era completamente desconhecida.
Imagine que por essa época o Oscar-1 da Terra diga algo como “Isso é água”, referindo-se
ao líquido inodoro, insípido e transparente que vê dentro de um copo, o qual realmente
contém H2O. Ao mesmo tempo que isso acontece, o seu Doppelgänger na Terra-Gêmea, Oscar-2, também
diz “Isso é água” apontando para o conteúdo de um copo contendo XYZ. Os estados
psicológicos (e cerebrais) de Oscar-1 e de Oscar-2 são absolutamente idênticos.
Ambos têm as mesmas cognições de estarem diante do mesmo líquido transparente,
insípido e inodoro. Mesmo assim, pensa Putnam, Oscar-1 está se referindo a H2O,
enquanto Oscar-2 está se referindo a XYZ – afinal, o que causa a experiência perceptual
de Oscar-1 na Terra é o H2O, enquanto o que causa a experiência
perceptual de Oscar-2 na Terra-Gêmea é o XYZ. Até aqui tudo é perfeitamente plausível.
Mas a conclusão que Putnam tira dessas constatações é um surpreendente murro no
estômago de nossas intuições semânticas mais elementares:
Oscar-1 e Oscar-2 entenderam
(understood) o termo ‘água’ diferentemente em 1750, embora eles
estivessem no mesmo estado psicológico, e embora, dado o estado de desenvolvimento
da ciência da época, a comunidade científica devesse levar ainda cerca de 50 anos
para descobrir que eles entenderam (understood)
o termo ‘água’ diferentemente. Assim, a extensão
(extension) do termo ‘água’ (e, de fato, o seu ‘significado’ (meaning) no uso pré-analítico intuitivo do
termo) não é função do estado psicológico do falante. (grifos meus)[7]
Em
outras palavras: primeiro Putnam constata que a referência e a extensão da
palavra ‘água’ usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes, pois o primeiro
se referia ao líquido H2O encontrado na Terra, enquanto o segundo se
referia ao líquido XYZ da Terra-Gêmea. Ora, se as referências e extensões eram
diferentes, pensa ele, então os significados determinadores dessas referências e
extensões – também eram diferentes. Mas como os estados psicológicos de Oscar-1
e Oscar-2 eram idênticos, então os significados, sendo diferentes, não poderiam
se encontrar em suas cabeças!
Posteriormente,
sob as influências de Tyler Burge e de John McDowell, Putnam ampliou as conclusões
de sua surpreendente descoberta: não só significados e entendimentos, mas
também estados mentais (pensamentos, crenças, intenções) e mesmo as próprias
mentes, em um sentido amplo, encontram-se fora de nossas cabeças, posto que as
últimas são os loci da manipulação do significado.[8] Considero
essas ampliações um reductio ad absurdum
da tese original.
Comentário: Quero evidenciar que é possível
produzir uma interpretação descritivista ou neofregeana mais satisfatória para
o que acontece na fantasia putnamiana. Para tornar isso claro, considere a
pergunta: qual a referência e a extensão da palavra ‘água’, quando usada por Oscar-1
e Oscar-2 em 1750? Duas respostas conflitantes parecem intuitivamente aceitáveis,
produzindo um dilema amplamente discutido na literatura:
(a) A primeira resposta intuitivamente aceitável (que
costuma ser a escolhida por críticos descritivistas de Putnam como A. J. Ayer) é
a de que a referência e a extensão eram na verdade as mesmas. Como os Oscares
tinham em mente o mesmo líquido transparente e inodoro... a palavra ‘água’ no caso
cobriria tanto a água da Terra quanto a da Terra-Gêmea. Afinal, se os dois Oscares
pudessem na época se encontrar, uma vez que não tinham ganho nenhum conhecimento
da estrutura molecular dos compostos apontados, eles certamente concordariam
que estavam se referindo à mesma coisa e que a extensão do conceito de água abrange
tanto a água da Terra quanto a da Terra-Gêmea. Mesmo após se ter descoberto a
diferença na estrutura química da água da Terra e da água da Terra-Gêmea é
possível sugerir que a referência e a extensão eram as mesmas, pois se trata de
uma mesma coisa perceptível que, dependendo do lugar onde é encontrada, é diferentemente
constituida. Essa mesma coisa perceptível possui inclusive as mesmas virtualidades
causais ao produzir os mesmos estados mentais nos Oscares etc.
(b) A segunda resposta intuitivamente
aceitável (a defendida por Putnam e seus adeptos) é a de que os Oscares estavam
se referindo a coisas diferentes com extensões diferentes. Oscar-1 estava se
referindo a um líquido aquoso cuja estrutura é H2O e cuja extensão
não inclui a água da Terra-Gêmea. Já Oscar-2 estava apontando para um composto cuja
estrutura é XYZ e cuja extensão se limita ao líquido aquoso da Terra-Gêmea. Idênticos
estados mentais são causados por líquidos de estrutura química muito diferente.
Com efeito, se os dois Oscares pudessem ser trazidos pela máquina do tempo até
nossa época e aprendessem um pouco de química, eles certamente concordariam com
a nossa afirmação de que estavam se referindo a substâncias diferentes com
extensões muito diferentes...
A interpretação
de Putnam dá conta da intuição que conduz à segunda resposta, rejeitando a primeira.
Já a interpretação descritivista tradicional (que reduz o sentido da palavra água
à descrição ‘líquido transparente inodoro etc.’) dá conta da primeira intuição,
mas não da segunda. Contudo, quero no que se segue mostrar como uma interpretação
neodescritivista ou neofregeana mais sofisticada nos possibilita entender a
palavra ‘água’ como potencialmente ambígua. Essa interpretação é capaz de dar conta
das duas intuições conflitantes, ao fazê-las resultar de dois parâmetros diferentes
de avaliação do elemento referencial. Isso é possível porque, sendo a referência
e a extensão pertencentes à realidade extra-lingüística, elas podem ser determinadas
sob diferentes perspectivas, que são variantes dependentes do sujeito epistêmico
que as considera e do sentido cognitivo através do qual esse sujeito decide ter
acesso a ela.
Vejamos como uma interpretação neodescritivista
minimamente sofisticada explica a resposta (a). Ela segue a intuição de que as
referências e extensões consideradas pelos Oscares em 1750 eram as mesmas. Essa
primeira intuição se explica quando tomamos como parâmetro de avaliação do elemento
referencial a sua determinação pelos sentidos-significados (ou modos de
apresentação) dados pelos Oscares à palavra ‘água’ em 1750. Com efeito, se
considerarmos que eles tinham em suas cabeças os mesmos estados psicológicos e
que, por conseguinte, os sentidos que eles davam à palavra ‘água’ eram os mesmos,
a saber, algo como ‘líquido transparente, inodoro e insípido, que sacia a sede
e cai sob a forma de chuva...’, e como o sentido determina a referência, as
referências só poderiam ser de um mesmo tipo, sendo a extensão da palavra ‘água’
a mesma, cobrindo tanto o líquido aquoso da Terra quanto o da Terra-Gêmea. Obviamente,
tudo isso é compatível com a idéia de que os significados estão em nossas cabeças:
os estados psicológico-cerebrais de Oscar-1 e Oscar-2 são iguais e por isso os sentidos
que eles deram à palavra ‘água’ são iguais; por consequência o tipo de referência
é o mesmo e a extensão uma única, abrangendo tanto a água da Terra quanto a da
Terra-Gêmea.
Mesmo para nós hoje, se preferirmos considerar
o significado da palavra ‘água’ em termos de uma mera descrição de propriedades
superficiais, tal sugestão não é contra-intuitiva[9]: é possível
afirmar que os dois Oscares estavam se referindo a uma mesma coisa com a mesma extensão,
assim como nós mesmos, e que o que eles tinham na cabeça, e mesmo nós agora, era
essa mesma coisa, o mesmo líquido transparente, inodoro etc. Tudo aqui é bem fregeano:
o sentido (modo de apresentação) pensado determina referência e extensão.
Contudo, como interpretar descritivamente a
intuição que conduz à resposta (b), segundo a qual em 1750 os Oscares, mesmo tendo
os mesmos estados psicológicos (e supostamente os mesmos tipos de estados cerebrais[10]) correspondentes,
estavam se referindo a coisas diferentes com extensões diferentes? Para Putnam
isso é impossível. Para mim, ao contrário, há uma boa resposta que se encontra
à mão e que é perfeitamente natural, embora pareça ter passado desapercebida mesmo
aos críticos de Putnam. Para chegar a ela devemos primeiro notar que não há nada que nos impeça de entender fórmulas
como H2O e XYZ em termos de descrições, sentidos, modos de apresentação
fregeanos.
Explicando
mais detidamente:
do ponto de vista neofregeano é natural sugerir que o termo ‘água’ entendido
como a água da Terra ou ‘água-t’ inclui em seu sentido (modo de apresentação) a
descrição ‘volume líquido de estrutura molecular H2O’, enquanto que o
mesmo termo entendido como a água da Terra-Gêmea ou ‘água-g’ inclui em seu
sentido (modo de apresentação) a descrição ‘volume líquido de estrutura molecular
XYZ’. Afinal, trata-se de mero preconceito pensar que, enquanto descritivistas,
devemos restringir os sentidos ou modos de apresentação dos termos gerais a descrições
de superfície, a estereótipos que se apresentam diretamente aos sentidos. Esse
ponto foi comprovado por Stroll por apelo ao que dicionários modernos apresentam
como o sentido-significado da palavra ‘água’.[11] Eis
um exemplo que retiro do Merriam Webster Dictionary:
Água = o líquido que desce das núvens como chuva,
forma correntes, lagos e mares, é um constituinte maior de toda a matéria viva sendo
quando puro sem odor nem gosto, sendo muito pouco compressível e formado de
óxido de hidrogênio ou H2O, aparecendo azulado quando em grande
quatidade, congelando-se a 0o C e fervendo a 100o C, tendo
sua densidade máxima a 4°C, sendo fracamente ionizado por ions de hidrogênio e hidroxila, um condutor
pobre de eletricidade quando em estado puro e um bom solvente.
Para
nós hoje tudo isso é o que Frege chamaria de “modo de apresentação” (Sinn)
da água. Mas se hoje a microestrutura faz parte do modo de apresentação da água,
devemos chamar atenção para o seguinte fato: como esses elementos microestruturais
de referência e extensão se encontram no mundo externo, não tendo nada a ver com
o que possa ter passado pelas mentes dos Oscares em 1750, é razoável que inadvertidamente
e de maneira perfeitamente natural nós tomemos como parâmetros de avaliação desses
elementos referenciais, não o que possa ter sido intencionado pelos Oscares em
1750, mas o que nós mesmos hoje temos em
mente com a palavra ‘água’. Ou seja: nós consideramos a questão da referência
e extensão sob nossos próprios critérios de sentido, isto é, sob a perspectiva
de sujeitos epistêmicos que (na estória imaginada) já sabem que a água da
Terra é descrita como possuindo a estrutura química H2O, enquanto que
a água da Terra-Gêmea é descrita como possuindo a estrutura química XYZ. É
óbvio que sob tal perspectiva nós diremos que o tipo de referência e extensão da
palavra ‘água’ usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes; afinal, Oscar-1
estava apontando para H2O, cuja extensão exclui a XYZ da Terra-Gêmea,
o que vale mutatis mutandis para Oscar-2. Para chegarmos a
isso, porém, tudo o que precisamos fazer é tacitamente
projetar os nossos próprios modos de apresentação descritivos da natureza da água
nas circunstâncias indexicais dos proferimentos dos Oscares em 1750. Melhor
dizendo, o que inadvertidamente fazemos é:
usar os proferimentos dos Oscares como instrumentos
indexicais para uma determinação da referência, a qual é feita através de
nossos próprios sentidos descritivos instanciados em nossos próprios estados psicológico-cerebrais, os quais são, como seria de se esperar,
diferentes para cada caso, disso resultando
a determinação de referências e extensões diferentes.
Por
meio dessa projeção, ao considerarmos “Isso é água” ditos por Oscar-1 e por
Oscar-2, associamos a palavra ‘água’ a sentidos diferentes na determinação de
referências e extensões diferentes. Mas como esses sentidos ou significados
diferentes encontram-se em nossas próprias cabeças e não nas cabeças dos Oscares,
eles são perfeitamente compatíveis com os diferentes estados psicológicos que realmente
temos, posto que eles não tem nada a ver com os estados psicológicos idênticos
dos Oscares de 1750. Ao pensarmos no sentido-significado não pensamos realmente
no que os Oscares entenderam por ‘água’ em 1750, mas no que nós entendemos por ‘água’
hoje. O que Putnam produz é um elaborado passe de mágica semântico, que uma vez
desfeito deixa de nos impelir à idéia de que os significados se encontram fora de
nossas cabeças.
A dupla resposta neofregeana que acabo de
sugerir continua sendo baseada na idéia de que estados mentais fixam o sentido
ou significado, o qual determina a referência. Essa maneira mais refinada de
entender o descritivismo resolve o dilema explicando a duplicidade de nossas
próprias intuições sobre a referência e a extensão da palavra ‘água’ dita pelos
Oscares, o que nem a explicação descritivista tradicional nem a explicação de
Putnam é capaz de fazer.
E quanto
ao significado (meaning)? Como é possível
que em 1750 Oscar-1 e Oscar-2 possam ter pensado o mesmo, mas entendido coisas diferentes com a
palavra ‘água’, como sugere Putnam? Não parece incoerente? A solução consiste simplesmente
em recorrer às distinções semânticas já feitas anteriormente de modo a drenar o
pântano da confusão linguística criado pelo filósofo. No mais apropriado uso semântico
intralinguístico da palavra ‘significado’ devemos concordar que Oscar-1 e Oscar-2
atribuíam exatamente os mesmos significados – os mesmos sentidos – à palavra
‘água’ em 1750 e que por causa disso eles tinham exatamente os mesmos estados psicológicos
(e supostamente os mesmos tipos de estados cerebrais subjacentes) correspondentes.
Mas quando fazemos um uso referencial da palavra ‘significado’, ela não indica outra
coisa senão o ato de referir, de apontar (uso referencial intralinguístico), ou
até mesmo aquilo que é referido, apontado, nomeadamente, a própria referência (uso
referencial extralinguístico). É com base nisso que Putnam tem algum sucesso em
sugerir que Oscar-1 significou ou quis dizer (meant) algo diferente de Oscar-2 com a palavra ‘água’. Mas tudo o que
ele pode querer dizer significativamente com isso é que a referência e a
extensão do que eles estavam apontando será diferente se considerada sob a perspectiva
de sujeitos epistêmicos que – como nós mesmos – por conhecerem a diferença de
estrutura química entre a água da Terra e a da Terra-Gêmea, dão por isso sentidos-significados
diferentes à mesma palavra num e noutro caso de sua aplicação. Tudo aqui é (neo)fregeano:
temos em mente sentidos diversos para o que Oscar-1 e Oscar-2 apontam, sendo através
disso que determinamos referências e extensões diferentes para aquilo que eles
disseram. Como eu disse antes: os Oscares não passam de inocentes instrumentos
indexicais para que nossos próprios sentidos diversos ganhem referência diversa
sem que nos apercebamos disso.
Exposição: No último passo de seu argumento, Putnam
começa considerando a objeção de que o termo ‘água’ teria tido em 1750 uma
extensão diversa da extensão que ele passou a ter em 1950 (em ambas as Terras).
Supondo que em 1950 já era sabido que a água da Terra-Gêmea tem microestrutura
XYZ, essa objeção é previsível e correta. Mas ele a considera errônea, pois se
apontamos para um copo de água e dizemos “Isso é água”, escreve ele, estamos apontando
para uma identidade-l (sameness-l) do líquido em questão com a maior parte do stuff que nós e
nossa comunidade linguística em outras ocasiões chamamos de água, devendo ser a
natureza desse stuff determinada por testes
de senso comum ou pela ciência. Assim, se apontamos para um copo de gim pensando
que é água, alguns poucos testes mostrarão que ele não tem a identidade-l com o
restante do stuff que chamamos de água.
Além disso, nota ele, a identidade-l é uma relação teorética que pode ser sempre
derrotada (defeated) por uma nova concepção
do que ela seja, resultante da investigação científica.
Por
esse meio ele prossegue tentando nos convencer de que a palavra ‘água’ não mudou o seu significado de 1750 para
cá, posto que a relação de identidade-l sempre foi a mesma. Ou seja: o significado da palavra deve ser atrelado a
uma relação de identidade-l com a essência do que é apontado, mesmo que tal
essência ainda não tenha sido descoberta. Por isso, não só a extensão e a
referência, mas também o que se quer dizer com a palavra, o que chamamos de o
seu significado, e mesmo o entendimento da palavra ‘água’ nos proferimentos de
Oscar-1 e de Oscar-2, foram para Putnam diferentes, mesmo que eles tenham ocorrido
em 1750, quando não era possível ter acesso experiencial às propriedades microestruturais
da água. Ora, como os estados psicológicos (e tipos de estados cerebrais correspondentes)
de Oscar-1 e de Oscar-2 eram exatamente os mesmos, o conteúdo semântico precisa
ir além desses estados, sendo mais uma vez forçoso reconhecer que os significados,
os entendimentos etc. de Oscar-1 e de Oscar-2, naquilo que é relevante para a determinação
da referência e extensão, não se encontram em suas cabeças, mas no mundo, pois se
deixam determinar pelos fatores causais diversos, diferentes identidades-l, que
produziram a mesma experiência cognitivo-perceptual. É a própria presença causal
externa de substratos diferentes – H2O na Terra e XYZ na Terra-Gêmea
– que produz a diferença nos conteúdos semânticos. Ou ainda, na conclusão triunfante
de Putnam: “divida-se o bolo como quiser, os significados simplesmente não
estão na cabeça”.[12]
Comentário: Contra essa resposta podemos objetar
que a noção de identidade-l, tal como é usada por Putnam, nada tem a ver com o significado
no sentido próprio de uso semântico intralingüístico – o de sentido (Sinn) – o único relevante. A
identidade-l tem a ver com a medida da extensão da aplicação de um conceito,
que não precisa ser sequer conhecida para que possamos aplicá-lo
significativamente. Introduzir essa identidade para esclarecer o significado é
cair na mesma confusão de pensar que o uso referencial extralinguístico de palavras
como ‘significar’ e ‘querer dizer’ tem algo ver com o significado em qualquer acepção
relevante do termo.
É verdade que, como Putnam observou, embora
em 1750 os Oscares não pudessem conhecer a essência microestrutural subjacente ao
que estavam chamando de ‘água’, eles já dispunham (supondo serem pessoas instruídas)
da idéia de uma essência subjacente e de uma identidade-l microestrutural ainda
desconhecida. Mas teria essa idéia alguma relevância semântica? O que dizer dos
Oscares das cavernas, há 20.000 anos atrás? Será que ao dizerem “Vamos procurar
água” eles estariam querendo se referir a alguma essência microestrutural subjacente
desconhecida? Creio que não. Contudo, Putnam deve admitir que mesmo nos casos dos
Oscares das cavernas, as referências e extensões enquanto tais sempre foram diversas,
uma vez que se trata de coisas extralingüísticas: uma era a referência e
extensão de H2O, outra a de XYZ.
Contra
essa implausível resposta, a melhor explicação continua sendo a de que essas
variações só são determinadas através de diferentes estados psicológicos
contemporâneos nossos, os quais instanciam
sentidos descritivos diferentes, que determinam, ao modo fregeano, referências
e extensões diferentes. Repetindo o que escrevi antes, parece evidente que nada
mais fazemos do que projetar nos proferimentos dos Oscares nossas próprias
instanciações cognitivas de sentidos diversos, usando esses proferimentos como
instrumentos indexicais para a determinação das referências diversas baseadas
em nossa própria diversidade de sentidos. De outra forma teremos de sustentar
aberrações semânticas, como a de que os Oscares das cavernas teriam de dar diferentes
sentidos à palavra água e mesmo compreendê-la de modo diverso, o que conduz a aberrações
suplementares, como a de que os pensamentos e as próprias mentes dos Oscares das
cavernas não estavam em suas cabeças quando eles realizaram esses proferimentos...
Exposição: No final de seu artigo Putnam resume
e qualifica mais claramente a sua posição. Ele admite que descrições de superfície
desempenhem algum papel na constituição do significado de termos como os de
espécies naturais. O significado passa a ser constituído por quatro componentes:
(i) marcadores sintáticos e (ii) marcadores
semânticos, que no caso da palavra ‘água’ são respectivamente o seu uso como
um nome de massa concreto e como nome de uma espécie natural (um líquido). Depois
há (iii) o que ele chama de estereótipos,
que já vimos serem as descrições de superfície, no caso da água, o líquido transparente,
insípido, inodoro etc. Ele admite que tanto marcadores quanto estereótipos
fazem parte da competência do falante e têm instanciação interna, psicológica. Contudo,
o componente mais importante do significado, aquele que determina a referência
e a extensão, não é psicológico, mas externo. Ele é o sentido extensional, que no caso da água é determinado pelos volumes
líquidos que compartilham da mesma constituição essencial de H2O. Embora
possamos descrever esse componente através da linguagem, ele deve ser entendido
como “a extensão em si mesma (conjunto), e não como uma descrição da extensão”.[13] O
significado como extensão torna-se de algum modo aquilo que determina a referência.
Essa conclusão
externalista é mais cautelosamente colocada por Putnam mais tarde em seu livro Representation and Reality, onde ele se
limita a dizer que a extensão em grande parte fixa o significado.[14] Contudo,
que espécie de fixação é essa? Não é pela segregação de um hormônio etéreo que chamamos
de significado, nem pela formação de fogos fátuos semânticos. Aqui o risco de
recairmos outra vez no internalismo é grande, pois só ele parece permitir uma
explicação coerente do que possa vir a ser tal “fixação so significado”. A
linha divisória entre o equívoco sutil e o modo como as coisas realmente são se
torna ameaçadoramente tênue. Uma tentativa de dar sentido a essa ideia sem
recair no internalismo é dizer que essa fixação se constitui ou resulta de cadeias
causais externas que devem se formar a partir da identificação do stoff com a microestrutura H2O,
terminando por produzir o proferimento da palavra ‘água’ (Searle exprimiu essa
ideia dizendo que para Putnam o significado está na causação externa de nosso proferimento).
Comentário: Nada disso altera significativamente
nem a posição de Putnam nem minha crítica ao seu argumento. Contra minha análise,
é possível que um defensor de Putnam venha a argumentar que o uso referencial extralingüístico
da palavra ‘significado’ tem uma valiosa razão de ser, qual seja, a de apontar
para a grande descoberta de Putnam, que foi a do “significado referencial” – do
significado extensional ou causal que está fora da cabeça.
Contudo,
as lacunas explicativas na teoria de Putnam tornam bem mais plausível a admissão
de que ele procede uma enganosamente sutil inversão dos valores. Ele quer nos convencer
que aquilo que é fundamental é um suposto uso referencial extra-linguístico da
palavra ‘significado’, relativo a extensões semânticas, enquanto o uso semântico
intralinguístico é que lhe é parasitário, dizendo respeito somente aos estereótipos
etc. Não obstante, pelas razões já aduzidas, penso ter ficado claro que o sentido
relevante da palavra ‘significado’ o de ‘sentido’ relativo ao uso semântico
intralinguístico. Trata-se aqui da função semântica de reportar-se a algum conteúdo
cognitivo-informacional convencionalmente fundado (i.e., geralmente resultante
da combinação de convenções semânticas fundamentadoras), enquanto o uso referencial
extralingüístico da palavra é apenas uma extensão indébita, posto que na verdade
não tem mais nada a ver com o significado, mas só com referência e extensão. Nesse
último sentido, dizer que o “significado” está fora da cabeça torna-se inofensivo,
pois redunda na trivialidade de se dizer que coisas como a referência e a extensão
de um termo conceitual se encontram fora da cabeça. Não precisamos de nenhuma
teoria do significado para convencer-nos disso. Ademais, a teoria dos tropos
explicaria plausivelmente as moléculas de H2O como arranjos qualitativamente
idênticos de propriedades singularizadas externas compresentes (espacio-temporalmente
co-localizadas) referidas pelo conteúdo conceitual cognitivamente instanciado do
termo ‘óxido de hidrogênio’ (o seu sentido ou significado).
Trata-se,
para sumarizar, de uma falácia genética extraordinariamente bem articulada.
Pelo fato de que referências e extensões em última análise acabam por nos
conduzir causalmente à produção de significados, elas passam a ser consideradas
os próprios significados. A falácia reside na confusão da gênese causal com o
seu efeito. O melhor que podemos fazer aqui é dizer que certas referências e
extensões são “significativas”, mas em um sentido meramente estendido e analógico
da palavra. Dizemos que a queda de Roma foi o episódio mais significativo a marcar
a decadência do império, ou que a vinda do messias foi o acontecimento mais significativo
da cristandade. Mas nesses casos a palavra ‘significativo’ está apenas substituindo
palavras mais apropriadas como ‘marcante’, ‘relevante’, ‘importante’.
Análise
neodescritivista do significado da palavra ‘água’
Quero
agora explicar a maneira como um filósofo descritivista mais refinado, disposto
a por algum tempo ignorar todo o maquinário de argumentos externalistas, analisaria
a estrutura e o funcionamento do conceito de água. Depois disso irei opor esses
resultados ao argumento de Putnam, o que espero servir como golpe de misericórdia.
O que nosso descritivista mais refinado diria?
Primeiro, ele não consideraria marcadores sintáticos e semânticos como fazendo
parte relevante do significado. Que ‘água’, por exemplo, seja um nome de massa,
e que esse nome designe uma espécie natural, isso já lhe outorga uma função classificatória.
Essa regra classificatória, contudo, não é capaz de individuar o uso da palavra.
Afinal, ‘ouro’ e ‘oxigênio’ também são termos de massa que designam espécies
naturais. E uma determinação semântica incapaz de diferenciar água de ouro ou
de oxigênio deve ser bem pouco útil como componente constitutivo do significado
da palavra ‘água’. A regra semântica que realmente interessa precisa ser no caso
aquela capaz de individuar o uso referencial da palavra, distinguindo-o dos usos
de outras palavras da mesma espécie.
Mas o que nosso descritivista refinado diria das
descrições que formam o estereótipo? Penso que ele poderia razoavelmente admitir
que o significado do termo geral ‘água’ é pelo menos em parte dado por um feixe
cumulativo de regras-descrições. Mas também aqui esse feixe não é desorganizado.
Ele se constitui muitas vezes de aglomerados descritivos de valores diversos.
Além disso ele não precisa ser estático, se não pode tornar-se inteiramente outro,
pode ampliar-se. Tal como acontece com muitos, o conceito de água sofreu uma evolução
histórica expressa pelo gradual acúmulo de descrições que o exprimem. Há primeiro
um significado originário, expresso pela seguinte descrição de características de
superfície geralmente fenomenais:
Ds: Líquido transparente, insípido, inodoro, que serve
para matar a sede, apagar o fogo, lavar, que enche os rios, lagos e mares, que
cai sob forma de chuva, que entra em ebulição quando fervido e que se congela quando
faz frio...
Ds é
o núcleo descritivo do senso comum, certamente conhecido desde o tempo do homem
das cavernas, o qual não poderia sequer suspeitar da existência de uma microestrutura
subjacente única e mais fundamental. Por esses tempos a palavra ‘água’ não significava
mais do que Ds, que servia de base para se determinar a referência e a extensão.
A própria causa de nossa percepção da presença de água, dentro do sistema de linguagem
disponível, só poderia ser identificada com o próprio líquido, que em estado puro
é transparente, insípido e inodoro.
Com o
passar de milênios, porém, novas descrições foram sendo adicionadas. Aprendeu-se
mais sobre a água. Aprendeu-se que ela é um bom solvente, que ela não se mistura
com óleos, que é um mau condutor de eletricidade quando em estado puro... Podemos
chamar essas e outras descrições adicionais de descrições disposicionais, funcionais
ou dinâmicas, formadoras de um sub-núcleo
adicional de descrições. Eis algumas delas, já conhecidas cerca de três séculos
atrás:
Dsd: um líquido que é bom solvente, não se mistura com
óleos, em estado puro é mau condutor de eletricidade, produz ferrugem (oxidação)
quando em contato com ferro...
Adicionando-se
agora Dsd ao núcleo original, temos um núcleo mais amplo de descrições de
superfície. Podemos simbolizar as descrições que exprimem esse primeiro núcleo semântico,
o núcleo do senso comum informado, como:
<Ds + Dsd>
Esse
já seria, digamos, o sentido da palavra ‘água’ reconhecido por pessoas bem informadas
por volta de 1750, talvez Oscar-1. Podemos chamá-lo de sentido popular da palavra.
Contudo,
algo extraordinário aconteceu no curso da evolução do sentido da palavra ‘água’.
Em 1768 Lavoisieur colocou hidrogênio e oxigênio em um balão de vidro e aqueceu
a mistura. O resultado foi uma explosão que liberou gás e água. Através dessa e
de outras experiências ele acabou por concluir que a água é composta de duas porções
de hidrogênio e uma de oxigênio. Em 1781 Cavendish realizou na Inglaterra experiências
semelhantes usando faíscas elétricas. Em 1783 Lavoisier realizou o procedimento
inverso, decompondo água em oxigênio e hidrogênio. Em 1800 Nicholson and Carlisle
conseguiram os mesmos resultados usando a eletricidade de uma “pilha voltaica”,
em um processo que ficou conhecido como o da eletrólise. Em 1811, baseado em
sua lei dos gazes e na eletrólise, Avogadro estabeleceu a composição atômica da
água como sendo HO1/2 , um resultado que foi corrigido em 1821 por
Berzelius, que finalmente estabeleceu a fórmula H2O...[15] Chegou-se
assim ao estabelecimento de uma nova descrição, a descrição de profundidade da
água como ‘líquido constituido por moléculas de óxido de hidrogênio ou H2O’,
que não é em nada menos descritiva do que ‘líquido transparente insípido e
inodoro’, posto que a possibilidade de descrição perceptual do último caso não
é nenhum critério essencial do descrever (é mero preconceito achar que só é possível
descrever o que é diretamente visível e não aquilo que é somente inferido).
É importante
perceber, porém, que as descrições de superfície concernentes às próprias experiências
referidas por Lavoisieur, Cavendish, Avogadro, Berzelius e ainda outros formam
um grupo à parte de descrições, que por vários caminhos permitem inferir a estrutura
essencial subjacente das massas de água. Mais além, o conhecimento da estrutura
molecular da água, em adição ao sistema teórico-conceitual da química, leva-nos
a fazer inferências teóricas ao nível microestrutural, como a de que 2H2O
+ O2 = 2H2O2. Finalmente, tal conhecimento da estrutura
profunda subjacente nos permite ainda fazer inferências de novas descrições de
superfície, como as que exprimem propriedades como a da alta tensão superficial,
da ação capilar e da boa solvência de açúcares e sais, que se deixam explicar pela
coesão entre os dipolos positivo e negativo das moléculas de H2O.
O que tudo isso acabou por produzir foi um novo
núcleo de significado para a palavra ‘água’. Esse novo núcleo semântico é expresso
primariamente pela descrição da microestrutura profunda das massas de água, à qual
podem ser adicionadas ainda propriedades e relações químicas:
Dp: Volume constituído por moléculas formadas por dois
átomos de hidrogênio e por um átomo de oxigênio (e também um composto dipolar
que tende a formar cadeias isoméricas etc.)
Não creio,
porém, que seja assim tão simples. Como vimos acima, Dp se encontra ladeada por
dois grupos de descrições de superfície a ela inferencialmente ligadas e que também
são expressivas do novo núcleo semântico. De um lado elas constituem o que chamo
de Dsp, o conjunto das descrições de superfície como sendo tudo aquilo de observável
que permite ao químico inferir a estrutura química da água, entre elas as descrições
de experiências como as de Lavoisieur, Cavendish e Avogadro. De outro lado, as
descrições constitutivas do que chamo de Dps, a saber, o conjunto das descrições
das propriedades superficiais que se deixam inferir de nosso conhecimento da microestrutura
subjacente das massas de água, como, por exemplo, a propriedade de, diversamente
de outros casos semelhantes, manter-se em estado líquido a temperaturas ambientes
(o que também se deixa explicar a partir da forte coesão das moléculas dipolares
de H2O).
Chegamos com isso a um núcleo semântico constituído
por três subnúcleos semânticos inferencialmente interligados, um formado por descrições
da microestrutura subjacente junto ao que lhe é diretamente relacionado e dois
formados por descrições de superfície. Eis como podemos simbolizar esse novo conjunto
de descrições:
<Dsp + /Dp/ + Dps>
Quero
sugerir que esse último núcleo de significação constitui o sentido científico da palavra
‘água’, um sentido que só é muito esquematicamente conhecido por quase todos nós.
Esse sentido descritivo foi negligenciado pelas teorias descritivistas tradicionais
dos termos gerais, como a de Locke. Mas ele é perfeitamente legítimo no interior
de um descritivismo mais sofisticado, que não encontra razão alguma para ficar
restrito a descrições de superfície.
Há aqui
a seguinte objeção a ser considerada: o número de inferências relacionadas à estrutura
química H2O é indeterminado, o que torna os limites do significado vagos
e indefiníveis. Uma primeira reação seria delimitar-se à descrição “Líquido com
estrutura química H2O”, como a única capaz de delimitar precisamente
o núcleo semântico científico. Embora reconhecendo a centralidade desse núcleo
semântico, essa resposta não é a mais apropriada, mesmo que sirva como uma
simplificação útil.
A
resposta que prefiro é a de que as fronteiras de significado entre um termo e
outro são na verdade fato graduais, e que as inferências mais e menos relacionadas
à estrutura química da água proporcionam um bom exemplo de como isso funciona. Considere,
por exemplo: “2H2O → 2H2 + O2”. Essa é uma inferência
interna, no sentido de que os conceitos que a compõem são constitutivos da própria
fórmula química. Compreendê-la faz parte da compreensão do conteúdo semântico de
‘H2O’, que em geral só os químicos possuem de modo mais completo. Considere,
em contraposição, as seguintes fórmulas:
1) 2Na
+ 2H2O → 2NaOH + H2
2) 2H2O
+ 2O2 → 2H2O2
3) 2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2
A reação
(1) diz respeito à formação de soda cáustica (2NaOH), sendo a sua contribuição
semântica muito menos para o conteúdo informativo daquilo que um químico sabe
sobre a água e muito mais sobre o conteúdo informativo do que ele sabe sobre a
soda cáustica. Mas parece razoável pensar que também essa fórmula ainda tem
algo a ver com o esclarecimento semântico do primeiro conceito. A equação (2) concerne
à formação de água oxigenada (H2O2), enquanto a equação (3)
à formação de ferrugem (Fe(OH)2). Claro que essas reações não contribuem
para o nosso entendimento do que há de essencial ao significado científico de ‘água’
(óxido de hidrogênio). Afinal, elas são respectivamente constitutivas dos
significados de água oxigenada e ferrugem, da mesma forma que “2H2O
→ 2H2 + O2” é constitutiva do significado de ‘água’. Mas
não parece que a estória termine aqui, pois parece relevante saber que a água entra
na constituição da água oxigenada e que seja capaz de produzir ferrugem; e de
alguma relevância para nosso próprio entendimento do conceito de água. Daí que
parece razoável pensar em um certo grau de interpenetração semântica, ou
seja: que essas inferências para o conteúdo informativo do que o químico entende
com o conceito de água como óxido de hidrogênio se ampliem indefinidamente de
modo cada vez menos relevante, mesmo no interior do que concerne a reações
químicas que definem essencialmente outros compostos, como água oxigenada e
ferrugem, o mesmo valendo, certamente, para o caso de outros compostos. Isso
nos permite responder à questão inicial: embora o número de inferências constitutivas
do conteúdo semântico seja indeterminado, os limites de sua contribuição para o
significado da palavra-conceito em questão é imprecisamente determinado pela
contribuição que as relações inferenciais possam oferecer ao significado de
outras palavras-conceito. As contribuições que as relações inferenciais dão para
o significado de uma palavra-conceito podem ser aqui internas ou externas,
diminuindo as últimas gradualmente na medida em que aumenta a suas contribuição
para o significado de outros conceitos. Com isso se evitaria o holismo semântico
do qual resultaria a ideia de que por qualquer coisa significar tudo mais, tudo
significaria qualquer coisa. A explicação acima sugerida do significado de um
conceito como o de água pode ser entendida, no final das contas, como aplicação
prática daquilo que filósofos tem chamado de inferencialismo semântico.[16]
Uma alternativa curiosa, mas a meu ver
falsa, estaria na adoção de uma posição estritamente fenomenalista: considerar
Dp como uma construção, se não supérflua, meramente convencional, ou seja, defender
que podemos passar apenas com Dsp e Dps. Aqui prefiro colocar-me ao lado de Kripke
e Putnam. Pois é preciso notar que a estrutura química H2O,
essencialmente presente em Dp, é essencial por duas razões: primeiro, ela porque
pode ser acessada e referida através de uma multiplicidade de descrições de inferências
constituitivas de Dsp, que se constitui como um conjunto aberto de descrições.
Essa mesma estrutura, por sua vez, permite a inferência de uma diversidade também
indeterminada de descrições constitutivas de Dps, as quais também formam um conjunto
aberto. A estrutura química é, pois, como um ponto de cruzamento inevitável
entre uma multiplicidade de caminhos inferenciais, não decorrendo necessariamente
de nenhum deles, embora todos decorram necessariamente dela. É essa centralidade
que faz da descrição da estrutura química o que eu ainda preferiria classificar,
senão como mais uma “essência nominal”, como uma “essência real” suposta.[17]
Os dois núcleos semânticos, o núcleo
expresso pelas descrições que nos dão o componente ordinário ou popular do sentido
da palavra ‘água’, e o núcleo expresso pelas descrições associadas à sua essência
subjacente, o qual nos dá o componente científico do sentido da palavra, podem ser
simbolizados em conjunto como:
____Np___ ______Nc______
<Ds + Dsd> + <Dsp + /Dp/ + Dps>
Temos
aqui, sinopticamente apresentado, o completo conjunto de descrições que
exprimem as regras semânticas que contribuem para o sentido cognitivo da
palavra ‘água’ como um todo. Trata-se do conjunto de descrições inter-relacionadas
capaz de exprimir o sentido ou conteúdo significativo mais completo da palavra
‘água’, tal como ela é capaz de ser entendida hoje. Avrum Stroll percebeu
corretamente que Putnam e Kripke produziram
uma falsa dicotomia entre propriedades fenomenais e a microestrutura, como se elas
fossem alternativas competidoras: “Uma explicação correta do que é a água”, escreveu
ele, “não irá mencionar apenas as suas propriedades fenomenais, mas também aquelas
que não são imediatamente acessíveis.” [18]
Ainda uma
objeção poderia ser a de que o sentido completo acima apontado está longe de
ser em seus detalhes conhecido da maioria dos falantes. Mas isso em nada importa.
Em geral sabemos muito pouco do completo conteúdo semântico de termos relevantes
pertencentes a ciências desenvolvidas e mesmo esse pouco nós só conhecemos genericamente.
Contudo, esse conhecimento genérico e frequentemente parcial (todos conhecem em
medida razoável o núcleo popular, muito poucos conhecem bem o núcleo científico)
já é suficientemente compartilhado pelos interlocutores para permitir a comunicação.
Finalmente, o elemento causal precisa ser
considerado. Nosso conhecimento da existência de exemplares de massas de água
depende de elas próprias o terem causado ou pelo menos de elas potencialmente o
causarem. Contudo, o significado da palavra tem a ver aqui não propriamente com
uma cadeia causal originada de um batismo, mas sim com uma regra conceitual
capaz de pressupô-la, daí porque o significado da palavra ‘água’ pode em princípio
ser independente da existência efetiva de massas de água, a saber, da efetiva
aplicabilidade da regra conceitual. Só o conhecimento da referência depende da
existência da essência exemplificada pelas massas de água.
A
regra de aplicação para o termo geral ‘água’ em seu sentido genérico
Estamos
agora preparados para construir uma regra de aplicação que estabeleça um limite
mínimo de satisfação das regras-descrições superficiais e profundas até aqui consideradas
para que a palavra ‘água’ se torne aplicável. Eis como a regra de aplicação
para o termo geral ‘água’ ou RA-‘água’ em seu sentido mais genérico poderia ser
exposta:
RA-‘água’:
O termo geral ‘água’ refere-se à propriedade
particularizada (tropo) em qualquer instanciação de uma substância química em algum
objeto x (identificável por um termo singular)
see
(i)
x satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular
<Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp>
associado à palavra e
(ii)
em medida
no todo suficiente.
(Assumindo-se a satisfação de uma condição do tipo Cc.)[19]
Nesse
caso particular, a regra conceptual detém certa analogia com a regra de identificação
do nome próprio, com a importante diferença de que a condição (iii) – a condição
de predominância – se encontra ausente. A razão disso é simples: ao contrário dos
nomes próprios, não precisamos aqui de nenhuma condição individuadora, posto
que o termo geral é para poder ser aplicado a um número indefinido de objetos (i.e.,
propriedades dos mesmos objetos). O termo singular associado já se encarrega de
individuar o objeto portador da propriedade em questão.
Sugiro que a regra de aplicação acima
constitua o que mais propriamente podemos chamar de o conceito de água. Essa regra requer clarificações. Primeiro há a
assunção de que a água é uma substância química, limitando o domínio da
definição (estabelecendo o equivalente a um genus
proximum). Um segundo ponto diz respeito
ao elemento causal implícito. Um termo geral funciona de modo muito diferente
de um nome próprio. No caso do nome próprio há somente um portador do nome, o que
explica a importância da função causal do portador em atos de batismo. Mas o termo
geral não é vinculado a nenhum portador originário, mas sim a qualquer portador
que compartilhe da propriedade singularizada que ele é capaz de designar. Essa
é a razão pela qual a importância da relação causal entre objetos e termos gerais
tem sido debalde questionada.[20] Ainda outro ponto é que, como
vimos, no caso da frase singular o portador precisa ser antes identificado pela
regra de identificação do termo singular, para só depois disso ser classificado
pela regra de aplicação do termo geral, o que faz com que a regra de aplicação
do termo geral deva se aplicar em combinação com a regra de identificação do
termo singular. Essa é a razão pela qual insisto em fazer menção a um objeto x, que no caso costuma ser um volume de
água ocupando uma região espacio-temporal.
Consideremos agora em separado cada uma das duas
condições da regra de aplicação que se seguem após o see. A condição (i) pode ser chamada de condição de significação, pois envolve o significado como conteúdo
informativo mais próprio da palavra ‘água’, aquele que encontramos em dicionários;
de um modo amplo, saber o significado da palavra ‘água’ é conhecer essa regra
parcial, que conecta os dois componentes de significado – popular e científico
– por meio de uma disjunção inclusiva (que nada tem a ver, aliás, com a
disjunção encontrada na regra de identificação de nomes próprios). De acordo
com essa condição, podemos chamar um líquido de ‘água’ quando ele tem as
propriedades fenomenais da água, mesmo que ele não possua a correspondente estrutura
subjacente e vice-versa. À primeira vista essa pode parecer uma maneira excessivamente
liberal de se entender o significado da palavra ‘água’. Mas a uma consideração
mais detida percebemos que isso pode ser mera impressão, uma vez que a palavra ‘água’
pode ser usada em contextos que restringem o seu significado em uma ou em outra
direção. A condição (i) tem a virtude de ampliar a aplicabilidade do conceito
na medida do que ordinariamente entendemos como sendo sua extensão máxima, exprimindo
assim o único significado que faz juz a toda a flexibilidade dos modos como
somos capazes de usar a palavra. Finalmente, se o conceito de água é a regra
RA-‘água’ fica claro que o significado da palavra, sendo restrito à condição
(i), se torna mais precisamente delimitado como parte do conceito e não como o
seu todo. Isso talvez explique porque é permitido falar de um sentido ou significado
ou conteúdo do conceito, ao invés de identificá-los
diretamente com o conceito, não nos sendo permitido falar, inversamente, do
conceito do significado.
A
condição (ii) é o que chamamos de condição
de suficiência, de acordo com a qual descrições de (i) não precisam ser completamente
satisfeitas, mas – se tomadas como um todo (ou seja, na soma de seus valores) –
apenas suficientemente satisfeitas. O grau de satisfação das condições necessário
para preencher o requerimento de suficiência fica aqui também inespecificado,
como parte da vaguidade do conceito (um líquido composto apenas em sua maior
parte por H2O, que não é transparente nem insípido, pode facilmente
ser chamado de água).
A mais
interessante diferença com relação à regra de identificação de nomes próprios
aparece quando refletimos sobre a ausência da condição (iii). Como estamos lembrados,
no caso dos nomes próprios a terceira condição seria individuadora. Daí ser possível
que um mesmo objeto seja capaz de satisfazer diferentes regras de identificação,
amalgamando diferentes grupos de descrições em um único (ex: Bacon poderia ser
também Shakespeare), conquanto a regra considerada certa se aplique mais a um
certo objeto do que a qualquer outro, o que o individua. Mas no caso da regra de
aplicação de um termo geral, não faz sentido termos uma regra individuadora,
pois fica sempre indeterminado o número de objetos
capazes de satisfazê-la.
Exemplos
de emprego da regra de aplicação do termo ‘água’
Sem qualquer
intenção de ser exaustivo, quero agora considerar alguns exemplos elucidativos
do funcionamento da regra de aplicação do termo geral ‘água’. Se colhermos uma
amostra da água de um pântano, ela pode não ser transparente, nem insípida, nem
inodora, não servindo para beber nem para lavar... A amostra será de água com muita
impureza. Mesmo assim a amostra será de água, uma vez que é quase toda de um líquido
com estrutura química H2O, satisfazendo com isso as condições (i) e
(ii) (essa água pode conter óxido de ferro, mas a regra de aplicação do óxido de
ferro não precisa ser considerada, uma vez que a quantidade é irrelevante). Assim,
podemos estar certos de que se trata de água. Em contraste, suponha que temos
diante de nós um líquido viscoso e de gosto amargo. Esse líquido é capaz de reagir
com cobre entrando em combustão, daí resultando água e oxigênio. A sua constituição
química não é H2O, mas em sua maior parte H2O2.
Embora esse composto tenha possa estar misturado com alguma água, em si mesmo ele
nada tem a ver com água porque a regra de aplicação pela qual o identificamos é
a de peróxido de oxigênio, que em alta concentração (~90%) se torna um líquido
esplosivo que foi usado para propelir foguetes alemães durante Segunda Guerra
Mundial. (É interessante notar que a água oxigenada que compramos na
farmácia é realmente água, pois 97% dela é constituída de H2O e apenas
3% é H2O2 ou peróxido de oxigênio. A expressão ‘água oxigenada’
é, pois, perfeitamente apropriada. Ela é água porque a regra de identificação
do termos geral ‘água’ se lhe aplica mais do que a de qualquer outro conceito
do mesmo gênero; é água contendo H2O2. Que dizer então da
chamada água sanitária? Ora, ela é uma mistura tóxica e corrosiva de hipoclorito
de sódio NaClO com H2O. Como o hipoclorito representa apenas 3% a 5%
da mistura, trata-se também nesse caso essencialmente de água, de modo que é também
adequado o uso que fazemos da palavra ‘água’ em sua denominação.)
Eis mais um exemplo: suponha que você faça
uma sobremesa de gelatina. Você usa dois copos de água e um envelope de
gelatina em pó. Embora a gelatina não satisfaça as descrições de superfície
para a identificação da água (não é líquida, não é transparente, não mata a sede,
não apaga o fogo), ela ainda assim satisfaz descrições de estrutura subjacente,
pois é óbvio que ela é em sua maior parte constituída de H2O. A identificação
da sobremeza de gelatina é feita por um termo singular: “Essa sobremeza de gelatina”
através de uma regra de aplicação. Esse é o que distinguimos como um objeto ‘x’.
Podemos então complementar com a predicação de modo a produzir um enunciado
completo: “Essa sobremeza de gelatina é em sua maior parte constituida de
água”, uma vez que x também satisfaz a regra de aplicação da palavra-conceitual
‘água’ no que concerne à microestrutura.
Quero agora considerar um problema relacinado,
aventado por Avrum Stroll: se Putnam está certo e “Água = H2O”,
escreveu ele, então certamente “gelo = H2O”, e “vapor de água = H2O”.
Mas se é assim, pela transitividade da identidade, então “água = gelo”, e “vapor de água = gelo”. Mas
essa é uma conclusão insólita, que se fosse verdadeira me permitiria pedir dois
cubos de água no lugar do gelo e dizer que a água (o gelo) flutua na água e que
o vapor de água é sólido. Gelo não parece ser o mesmo que água e menos ainda
que vapor de água, o que leva Stroll a concluir que o ‘é’ de “Água é H2O” é um
é de composição e não da identidade.[21] Com efeito,
podemos dizer que o gelo é feito de água. Contudo, o mesmo Stroll introduz
uma contra-objeção que parece de algum modo limitar o que ele está dizendo: é
possível dizer que o gelo é a mesma coisa que “água sob forma sólida” e que vapor
de água é a mesma coisa que “água sob a forma de vapor”. Por consequência, gelo
e vapor de água são variantes de uma mesma coisa, qual seja, água no sentido mais
amplo da palavra.
Uma
comparação entre as regras de aplicação desses termos gerais com base na RA-‘água’
desfaz essa contradição no dizer. Os núcleos populares fenomenais dos sentidos
das palavras ‘água’, ‘gelo’ e ‘vapor de água’ são bastante diversos: a água é
líquida e transparente, o gelo é sólido e opaco, o vapor de água se dissipa no ar...
As coisas denotadas por esses termos só são semanticamente similares no que concerne
ao núcleo microestrutural científico de sentido, particularmente Dp (ignorando
diferenças na organização das moléculas que compõem as amostras). Temos, pois, a
derivação de regras de aplicação algo mais específicas, que são RA-‘gelo’ (onde
as descrições de superfície indicam algo sólido, esbranquiçado etc.) e RA-‘vapor
de água’ (onde as descrições de superfície indicam um vapor quente etc.). Como
consequência, o que temos aqui são dois temos hipônimos de água no sentido amplo
(RA-‘água’), que diferem no que concerne ao sentido popular. Assim, a razão
pela qual chamamos um objeto x de
“gelo” e não “água” é que x é sólido,
opaco, frio, satisfazendo mais as descrições do hipônimo RA-‘gelo’ do que do hiperônimo
RA-‘água’, satisfazendo por isso a condição de predominância para o termo geral
‘gelo’ quando a palavra é usada em um enunciado como “Esse cubo de gelo é feito
de água”. Algo semelhante acontece quando chamamos um objeto x de vapor de
água. Com efeito, como RA-‘gelo’ é algo mais específico do que RA-‘água’, os
sentidos das palavras ‘gelo’ e ‘água’ são diferentes. Mesmo assim, esses
sentidos são semelhantes, pois
a Dp do núcleo de significação científico continua sendo essencialmente a mesma,
satisfazendo por isso a disjunção constitutiva de RA-‘água’. Essa é a razão pela
qual podemos dizer que o gelo e o vapor de água são constituidos de água, que o
gelo é água solidificada e que o vapor de água é água evaporada: pelo fato de
que a condição essencial de RA-‘água’, que é a disjunção (i), estar sendo em
cada caso suficientemente satisfeita, permitindo o emprego da regra de aplicação
para a palavra ‘água’ no sentido de ser um constituinte do objeto de referência.
É possível considerar o ‘é’ de “Água é H2O”
como um ‘é’ de identidade: podemos entender essa frase como uma forma elíptica
de “Água é (=) um volume considerável de moléculas de H2O”. Mas Stroll
não deixa de ter razão ao sugerir que o ‘é’ de “Água é H2O” é geralmente
um é de composição. Trata-se de um ‘é’ de composição ou constituição, na medida
em que a RA-‘água’ contém a regra de aplicação para o óxido de hidrogênio ou
RA-‘H2O’ (se essa segunda regra é empregada, a primeira também o é).
E também compreendemos porque ao falarmos de água não estamos querendo dizer propriamente
nem gelo nem vapor de água: porque RA-‘água’, RA-‘gelo’ e RA-‘vapor de água’
competem entre si pela satisfação da condição de suficiência.
Stroll também pensa que uma coisa é falar do
significado da palavra ‘água’ e que outra coisa é falar daquilo que a água é.
Contudo, essas me parecem ser duas faces da mesma moeda, pois aquilo que consideramos
em termos de sentido pode ser materialmente parafraseado em termos daquilo que
as coisas são. Isso se demonstra no fato de que ao invés de falarmos das regras
de aplicação em sua efetiva aplicabilidade a propriedades, enfatizando assim o
sentido, podemos falar das propriedades mesmas que satisfazem essa regra, enfatizando
assim as próprias coisas ou aspectos delas. Consequentemente, dizer que um
certo volume de água é composto de H2O é o mesmo que afirmar que ele
possui certas propriedades descritas por RA-‘água’, implicando que enquanto essa
regra for efetivamente aplicável ele compõe-se das propriedades microestruturais
também descritas por RA-H2O.
Cumpre, finalmente, notar que o modo de ver
que acabamos de expor faz jus a algumas idéias familiares aos semanticistas. Primeiro,
o sentido de um termo geral como água é vago. Depois, ele tem se alterado. Como
acontece com muitos conceitos, ele cresceu e se ramificou com o tempo. A maioria
de nós fica conhecendo apenas uma parte mais ou menos genérica dele, fundamental
ou não, mas suficiente para a comunicação. Muitas vezes só os especialistas ou
usuários privilegiados da palavra conhecem o significado completo de um termo
geral. Há casos em que o especialista só conhece o núcleo científico especializado
do significado, ignorando outras coisas por vezes mais importantes. Há casos em
que cada especialista conhece completamente apenas parte do significado do termo.
Segundo consta, a teoria das cordas possui tantas sub-teorias que sequer os
especialistas as conhecem por completo. E certamente há casos em que somente a
memória de computadores ou documentos são capazes de conter todas as informações
relevantes. Contudo, é de se supor que essas informações só se tornam significativas,
só ganham realidade, na medida em que são suficientemente interpretadas por seres
humanos que participam de nossa forma de vida. No entendimento de como os termos
gerais referem, assim como de toda a linguagem significativa, parece
inextrincável a existência de um elemento biológico-cognitivista irredutível.
Comparando
as duas análises
No
que se segue quero demonstrar que a recém-sugerida análise neodescritivista do conceito
de água explica as nossas intuições relativas à fantasia da Terra gêmea de forma
mais convincente do que a muito imaginativa embora artificiosa teoria de Putnam.
Como já vimos é muito difícil duvidar que o significado
de nossas expressões linguísticas seja convencionalmente fundado: ele deve constituir-se
de regras ou combinações de regras semanticamente relevantes, por nós mesmos estabelecidas,
ainda que de modo certamente não-arbitrário. Quando elas constituem os significados
dos termos gerais, elas costumam ser exprimíveis por meio de descrições
indefinidas. Até mesmo a essência subjacente da água pode ser apresentada por
regras de aplicação expressas por descrições, as quais são simbolicamente resumidas
por Dp. Além disso, não há como se livrar das descrições de superfície, uma vez
que Dp só faz sentido por ter sido inferido de Dsp e por conduzir inferencialmente
a Dps. Ou seja: mesmo que estejamos dispostos a conceder que a descrição fundamental
seja a da essência subjacente, ela acaba por depender epistemicamente de descrições
de propriedades de superfície, nem mais nem menos fenomenais do que as
descrições dadas à água pelo homem das cavernas, embora mais complexas e exigentes
em seu recurso a elementos funcionais.
A questão agora fica sendo: como a recém-exposta
explicação do sentido ou significado intralinguístico da palavra ‘água’ explica
nossas intuições relativas a Oscar-1 e Oscar-2 ao dizerem “Isso é água” em 1750?
O resultado é pouco mais do que uma tediosa repetição do que já foi dito e
redito em minha resposta neodescritivista a Putnam.
Consideremos primeiro o significado em seu
sentido próprio, o sentido de ‘sentido’. Em 1750, ele era para ambos os Oscares
o de um líquido transparente etc., ou seja: <Ds + Dsd>. A isso eles podem
ter acrescentado no máximo a hipótese da existência de alguma microestrutura fundamental
desconhecida x. Mas como não havia sentidos
expressos pelas descrições ‘líquido de estrutura molecular H2O’ ou ‘líquido
de estrutura molecular XYZ’, não era esse x
que eles poderiam ter em
mente. Assim , se os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2
eram os mesmos, isso não importa, posto que os sentidos também eram os mesmos. Tratava-se
dos sentidos populares. Instanciados nas cognições ou disposições cognitivas, os
sentidos da água como <Ds + Dsd> estavam no todo ou em parte nas cabeças
dos Oscares.
Consideremos
agora a referência e a extensão. Aqui, como já vimos, a resposta pode variar! Ela
depende de quem estamos considerando
como o sujeito que através do significado-como-sentido identifica a referência
e calcula a extensão. Os próprios Oscares em 1750 podem ser considerados os sujeitos.
Mas também podem ser sujeitos esclarecidos de uma época posterior, como nós mesmos
2050, reportando-nos aos proferimentos dos Oscares, após nos termos tornado conscientes
da diferente estrutura química dos líquidos apontados por eles em 1750.
Vejamos o primeiro caso. Para Oscar-1 e
Oscar-2 em 1750 fica muito claro que a referência da palavra ‘água’ é apenas o
líquido <Ds + Dsd> e no máximo algum x
desconhecido. Também fica claro que essas referências são do mesmo tipo.
Afinal, a referência é determinada pelo sentido, que é o mesmo (não há razão alguma
para se complicar a questão pensando que o substrato que estaria no lugar do x na Terra seja diferente daquele que
estaria no lugar do x na Terra-Gêmea, posto que não havia nada na experiência
disponível que levasse à constatação de uma diferença). E a extensão também é a
mesma; ela é em 1750 a
mesma do líquido transparente, insípido etc. que inclui tanto a água da Terra quanto
a da Terra-gêmea. Assim, se em 1750 Oscar-1 e Oscar-2 pudessem trocar informações
sobre o preenchimento de seus critérios de aplicação do termo geral ‘água’ em ambos
os planetas, sem dúvida eles concluiriam que, sendo ambos satisfeitos de modo
idêntico (ambos são transparentes, insípidos, aplacam a sede, extinguem o fogo etc.),
a extensão da palavra ‘água’ é a mesma, dado que ela estava sendo estabelecida pelas
descrições das propriedades de superfície. Eles concordariam inclusive que a própria
causa de suas percepções do líquido que ambos chamam ‘água’ é a mesma, pois essa
causa é relatada como sendo o mesmo líquido transparente, que aplaca a sede e extingue
o fogo etc. Afinal, isso é tudo o que as pessoas em 1750 poderiam identificar como
sendo causa eficiente de suas constatações. No máximo eles poderiam identificar
a causa com alguma estrutura subjacente x,
mas pelo princípio de que ao mesmo efeito geralmente subjaz à mesma causa, eles
teriam boas razões para supor que também a estrutura subjacente da água é a mesma
tanto na Terra quanto na Terra-Gêmea. Essa igualdade causal é, aliás,
particularmente clara quando pensamos nos Oscares neandertais, vivendo há 30.000
anos atrás: parece que eles diriam que a causa de nossa percepção da água que molha
é o próprio líquido transparente que cai das núvens, pois os seu sistema de explicação
causal baseado no senso comum seria mais simples que o nosso, recorrendo somente
a eventos de superfície como fatores causais. Pode-se aventar um substrato substancial
único, mas mesmo um tal substrato único pode ser ilusório, como no caso do ar,
que é composto de vários gazes, ou no da urina, ou no da poeira.
Consideremos agora como sujeitos cognitivos as
pessoas que sabem que a água da Terra tem a estrutura química H2O,
enquanto a água da Terra-Gêmea tem a estrutura química XYZ. Digamos que nós em 2050
(após viagens espaciais até a Terra-Gêmea etc.) saibamos bem disso. Nesse caso,
ao considerarmos as afirmações de Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, nós poderemos dizer que em seus proferimentos
eles estavam se referindo a coisas diferentes com extensões diferentes: Oscar-1
se referia a volumes constituidos de moléculas de H2O e Oscar-2 a volumes constituidos de
moléculas de XYZ. Mas, como já notei, ao dizermos isso, o que estaremos fazendo
será identificar as referências apontadas por Oscar-1 e Oscar-2 por meio
de nossas próprias cognições, a saber, por meio dos sentidos
diversos que estaremos dando à palavra ‘água’, como intérpretes do proferimento
“Isso é água” aplicado ao líquido da nossa Terra e ao da Terra-Gêmea.
Nesse pontoé importante notar que o sentido
que Putnam dá à palavra ‘água’ é mais restritivo do que o sentido capturado
pela regra geral RA-‘água’, uma vez que essa regra se aplica tanto à água da
Terra quanto à água da Terra-Gêmea, posto que ambas satisfazem sua condição
disjuntiva. Para Putnam o significado-sentido de nossa água será o de água-t ou
óxido de hidrogênio, alguma coisa como (<Dsp-H2O + /Dp-H2O/
+ Dps-H2O>). Já o significado-sentido para a água da Terra-Gêmea por
ele considerado também será mais restritivo que RA-‘água’, ou seja, água-g, algo
que pode ser resumido como (<Dsp-XYZ + /Dp-XYZ/ + Dps-XYZ>). Esses são sub-sentidos
perfeitamente admissíveis e utilizáveis de RA-água. Mas nesse caso, as referências
e extensões terão de ser diversas, pois como também já vimos, elas resultam de uma
mera projeção de nossas regras semânticas
diversas na situação indexical em que os Oscares fizeram as suas referências,
de modo que os proferimentos dos Oscares são irrefletidamente interpretados como
instrumentos indexicais para a referência de nossos próprios pensamentos.
Uma consequência disso é que para nós a extensão da água apontada por Oscar-1
em 1750 é, como água-t ou óxido de hidrogênio, apenas a do líquido de estrutura
H2O, restringindo-se à Terra, enquanto a extensão da palavra ‘água’ apontada
por Oscar-2, como água-g, se restringe ao líquido da Terra-Gêmea. Sob essa perspectiva
torna-se um rudimentar equívoco fazermos de conta que eram os próprios Oscares
que estavam “querendo dizer” ou “entendendo” por ‘água’ microestruturas químicas
diferentes.
O que
torna possível a variação do que é apontado como a referência e a extensão? Como
também já notei, referência e extensão são por definição extramentais e extralingüísticas.
No entanto elas dependem, para serem identificadas, dos sujeitos cognitivos e
dos sentidos fregeanos que esses sujeitos dão à palavra, podendo variar com o contexto
indexical no qual esses sujeitos se encontram. A mesma palavra ‘água’ identificada
por Oscar-1 e Oscar-2 como tendo uma mesma referência pode ser identificada por
nós como tendo uma referência diferente, posto que a ela integramos núcleos
semânticos diversos. Assim, se astronautas visitam a Terra-Gêmea e descobrem que
o líquido que lá é denominado ‘água’ tem a estrutura XYZ, podemos concluir que
os habitantes da Terra-Gêmea sempre se referiram a XYZ e que a extensão da palavra
‘água’ é bem outra. Mas não podemos esquecer que somos nós mesmos que estamos fazendo
isso, com base em nosso conhecimento de essências subjacentes diversas, ou seja,
com base em sub-sentidos diversos – um relativo à água-H2O e outro
relativo à água-XYZ – instanciados em nossos próprios estados psicológicos correspondentes.
Podemos ainda imaginar que Oscar-1 e Oscar-2
sejam trazidos pela máquina do tempo até nós e que façam um curso intensivo de
química, aprendendo que a estrutura molecular da água é H2O na Terra
e XYZ na Terra-Gêmea. Por conta desses diferentes núcleos científicos de significação
da palavra eles chegam então a concordar conosco admitindo, enfim, que em 1750
eles estavam “querendo dizer” (meaning)
coisas diferentes. Oscar-1 estava se referindo à água-t e Oscar-2 estava se referindo
à água-g. Mas isso envolveria estados psicológico-cerebrais diversos na determinação
projetiva de referências e extensões diversas, redundando no fato de que eles
estariam usando a eles mesmos no passado como seus próprios instrumentos indexicais
para apontar as diferenças. Lembremo-nos que isso só é possível porque referência
e extensão são entidades extralinguísticas e extramentais, sendo apenas em sua apreensão
determinadas pelo sentido (psicologicamente instanciado) expresso pela palavra,
o qual pode variar com a informação acessível ao sujeito epistêmico. Nesse caso,
porém, os Oscares estão apenas admitindo que aquilo que eles significavam ou queriam dizer (meant) em 1750, a
saber, as referências extralinguísticas, era diferente, e não que os significados
(sentidos) que eles haviam dado às palavras era diferente. Eles se fiam em seus
estados psicológico-cerebrais atuais,
que não são menos diversos do que os sentidos. A conclusão é, em qualquer dos casos,
anti-putnamiana: significados são sentidos; sentidos determinam referências; sentidos
nunca estão fora das cabeças.
É possível conceber muitos casos análogos
aos dos Oscares, que são facilmente explicáveis por uma adequada aplicação da concepção
neodescritivista do significado da palavra ‘água’ recém exposta.
Suponhamos,
em um exemplo fantasioso, que Lúcia tem dois gatos. Um gato branco, que é um
felino normal e um gato preto que é um ser extra-terrestre que descobriu uma
maneira de viver bem adotando a forma de um gato doméstico. Mas Lúcia não sabe
disso. Contudo, se isso é um fato e se no futuro ela vier a descobrir que isso
é verdade, então ela não concluirá
que no passado, ao falar de seu gato preto ela estava entendendo ou querendo dizer
(mean) com isso a referência a um ser
extra-terrestre, nem que ela sempre colocou em consideração uma futura relação
de identidade-l com as propriedades de um ser extraterrestre, como a teoria de
Putnam pretende. Lúcia dirá que aquilo a que se referia como sendo o seu gato doméstico
preto pode ser agora concebido por ela
como tendo tendo sido sempre como objeto de referência um ser extraterrestre, ou
até mesmo que ela sempre teria em princípio tido por aceitável colocar em
consideração alguma futura relação de identidade-l que ela não tinha como saber,
mas que se revelou uma identidade com as propriedades essenciais de um ser extra-terrestre.
Em resumo: como no caso com os gatos domésticos, os dois Oscares em 1750 se
referiam ao composto químico que tinham diante de si tanto quanto, digamos, Chapeuzinho
Vermelho se referia ao lobo travestido de avó quando ele lhe fez as conhecidas perguntas.
O mesmo ponto pode ser também demonstrado com
o auxílio de um exemplo mais realista, o do ouro branco, que é uma mistura de
75% de ouro de 24 quilates com 25% de níquel e paládio, o que lhe dá a cor branca.
Suponhamos que uma pessoa que não sabe identificar ouro branco aponta para um
anel de ouro branco e diz por brincadeira “Isso é feito de ouro”. Para Putnam,
essa pessoa deveria estar realmente querendo dizer (meaning) que o anel é de ouro, mesmo que não tenha a menor consciência
disso. Afinal, a relação de identidade-l essencial é com a propriedade intrínseca
de conter 75% do elemento químico de número 79. Na verdade, tudo o que podemos dizer
é que uma pessoa que desconhece o ouro branco ao apontar para ele estava se referindo
a algo cuja estrutura subjacente é sistematicamente referida por nós
mesmos como contendo o elemento de número atômico 79 em maior proporção. Se
quisermos ser generosos, poderemos até mesmo dizer que a pessoa potencialmente se referia ao elemento 79
e em seguida usaremos o proferimento dessa pessoa como um instrumento indexical
para o que propriamente temos em
mente. Nós podemos até mesmo inventar um conceito extravagante
de referência potencial, sugerindo então que a pessoa fez uma referência potencial
ao elemento 79, a
qual será resgatada por qualquer um que saiba identificar o ouro branco através
dessa extensão do sentido da palavra. Mas nada disso resulta no mesmo que dizer
que a pessoa enquanto falante de fato se referia à estrutura ou essência
subjacente, muito menos que ele significava, queria dizer, entendia, pensava ou
intencionava tal referência.
Como se deixa entrever, a teoria de Putnam demanda
que já sejamos capazes de entender, no sentido amplo, o significado de certas
palavras nos sentidos que elas têm para outros, ou até mesmo nos sentidos que
elas terão um dia, muito depois de termos desaparecido, o que é uma consequência
bastante absurda. Além disso, já foi notado que a teoria de Putnam torna o nosso
conhecimento do significado meramente especulativo. Ela nos faz suspeitar que só
daqui a muitos anos, ou talvez mesmo nunca, chegaremos a conhecer os significados
que damos a termos conceituais que usamos diariamente! Pois nunca poderemos
saber que realmente chegamos a conhecer o significado; afinal, como podemos saber
de modo indubitável que a essência subjacente última foi realmente descoberta? A
dúvida paira devido à falibilidade do conhecimento. Nada nos garante que
nosso conhecimento científico seja mais garantido que um saber derivado de convenções
empiricamente bem fundamentadas.[22]
Repetindo
o que já dissemos antes: o principal equívoco inerente ao argumento de Putnam é
que ele passa sub-repticiamente do extensional para o intensional, da conclusão
de que a referência e a extensão eram diferentes daquilo que os Oscares
pensavam (o que é o óbvio, posto que a natureza da referência no mundo externo é
por definição extra-lingüística e extra-mental) para a conclusão de que o
significado ou sentido e o seu entendimento sempre foram diferentes. Mas isso não
pode ser verdadeiro, pois a natureza do sentido-significado, bem como a
natureza do que entendemos com a palavra ‘água’, depende de convenções intralingüísticas
de instanciação intramental, que em 1750 eram iguais para ambos os Oscares. Os
nossos sentidos-significados são dependentes de convenções linguísticas
geralmente muito bem fundamentadas. Já nossas referências e extensões dizem respeito
ao modo como o mundo é ou foi ou será, podendo ser diversamente acessadas por
linguagens ou sistemas de convenções diferentes. Tudo o que Putnam realmente
poderia concluir de sua experiência em pensamento é que referência e extensão se
encontram fora de nossas cabeças. Mas com essa trivialidade todos concordam.
Revendo
o conceito de identidade-l
O que
dizer da explicação do assim chamado significado extensional do termo por meio
da relação teorética a ser descoberta pela ciência de uma identidade-l entre a
estrutura essencial do exemplar apontado e a dos outros exemplares encontrados?
Um problema é que uma identidade-l que seja resultado final da pesquisa científica
parece ser em última análise incoerente, posto que nunca poderemos ter absoluta
certeza de que qualquer identidade que venhamos a alcançar seja realmente o
resultado final da pesquisa científica. A alternativa razoável é a de restringirmos
a noção de identidade-l, entendendo-a de um modo puramente extensional, extralinguístico
e extramental: trata-se simplesmente do que consideramos como sendo a identidade
qualitativa de essência que os exemplares da extensão de um termo devem manter
entre si para constituirem a sua extensão. A identidade-l dos exemplares de quantidades
de água hoje, por exemplo, é estabelecida pelo compartilhamento da estrutura química
H2O. Com base nisso, quando consideramos os exemplares de água apontados
por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, diremos que a identidade-l apontada por Oscar-1
era a existente entre volumes de H2O, enquanto a identidade-l apontada
por Oscar-2 era a existente entre volumes de XYZ, disso resultando extensões
diversas. Mas é preciso lembrar que usamos nossas próprias cabeças para estabelecer
essas extensões e não as cabeças de Oscar-1 e Oscar-2, que são irrelevantes
para o caso. Pois o que estamos fazendo é, outra vez, usar os Oscares como instrumentos
indexicais de modo a projetar o nosso sentido da expressão ‘a extensão da aplicação
da palavra ‘água’’ na determinação da substância subjacente que cada um dos Oscares
aponta e, usando-o como modelo, estabelecer extensões. Se eles pudessem se
comunicar, mantendo o insuficiente conhecimento de química de sua época, eles poderiam
até mesmo supor (aplicando o princípio de que os mesmos efeitos resultam das
mesmas causas) que a estrutura subjacente seria mesma, que os substratos x de porções de água da Terra e da Terra-Gêmea,
com base no conhecimento alcançado na época, devem manter identidade-l entre si,
devendo a extensão ser a mesma. E quanto à identidade-l a ser suposta pelos Oscares
da idade da pedra lascada há 30.000 anos a.C.? A resposta provável é que para
os homens do período paleolítico não havia identidade-l à vista. A palavra ‘água’
não poderia naquela época apontar mais para uma essência microestrutural comum do
que as palavras ‘ar’, ‘pó’, ‘óleo’ e ‘urina’, que são capazes de denotar estruturas
subjacentes mistas e muito variadas.
Podemos
agora comparar a concepção da relação de identidade-l de Putnam com a nossa. Eis
como seria o esquema proposto por Putnam da evolução do significado da palavra ‘água’
na Terra, limitando-o a estereótipos e à relação de identidade-l:
Significado:
1. 30.000 a .C.: água = (<Ds>...) + identidade-l com
referências de Dp.
2. 1750: água = (<Ds+
Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.
3. 1850:
água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com
referências de Dp.
Enquanto o nosso esquema é:
Significado:
1. 30.000 a .C.: água = <Ds>.
2. 1750: água = <Ds + Dsd> + x>.
3. 1850:
água
= <Ds + Dsd> + <Dsp + Dps + /Dp/>.
Temos
aqui o contraste entre um primeiro esquema, altamente implausível, e um segundo
esquema naturalmente convincente e razoavelmente aceitável. Só o último esquema
permite explicar satisfatoriamente a duplicidade de nossas intuições semânticas
sobre a referência e a extensão daquilo que foi apontado pelos Oscares em 1750.
Só ele é que explica nossa intuição de que sempre tivemos conhecimento do que queremos
dizer com a palavra ‘água’ e que esse significado se desenvolveu com o tempo, que
ele foi e é real, que não é uma mera hipótese, que acreditamos firmemente que a
ciência já o tenha resgatado, mas que talvez não, e que talvez permaneça para
todo o sempre desconhecido...
O resultado para o qual nossas considerações
apontam é, por conseguinte, o de que o esclarecimento do significado dos termos
de espécie natural de nosso descritivista refinado se ajusta bem melhor aos fatos
linguísticos do que aquele que Putnam tem a oferecer, devendo por isso ser preferido.
Descritivismo
e o dilema de aplicação do conceito de água
A explicação
basicamente neodescritivista do significado de termos de espécie natural recém-sugerida
também nos permite resolver um conhecido dilema concernente à aplicação do
conceito de água – um conflito conceitual que nem a teoria descritivista tradicional
nem a teoria causal-essencialista de Putnam/Kripke têm condições de resolver.
A questão que gera o dilema nasce de uma separação
entre propriedades superficiais e estrutura subjacente, envolvendo duas suposições:
(a) Imagine que em algum lugar do mundo se descubra um
líquido inodoro, transparente etc. que possui todas as propriedades superficiais
da água (serve para beber, apaga o fogo, etc.), mas cuja estrutura subjacente é
completamente diferente, digamos, XYZ. Podemos ou não dizer que esse líquido é
água?
(b) Imagine agora que em algum outro lugar do mundo sejam
encontradas rochas sólidas, escuras como carvão, que não possuem nenhuma propriedade
superficial da água (não servem para beber, não apagam o fogo...), mas que, acreditem
ou não, são constituídas de H2O. Podemos dizer que essas rochas são feitas
de água?
Descritivistas
e causalistas responderão opostamente a essas questões.
Vejamos primeiro a resposta de filósofos
defensores da concepção causal da referência de termos de espécie natural, como
Kripke e Putnam.[23]
Para esses filósofos, a microestrutura essencial da água descrita por Dp tem predominância
sobre todo o resto. Por isso eles responderiam negativamente à questão (a): se
encontrarmos um líquido com todas as propriedades superficiais da água, mas que
não possui a estrutura molecular H2O, esse líquido não pode ser água.
E quanto à questão (b), a resposta seria afirmativa: mesmo que a substância não
apresente nenhuma das propriedades superficiais da água, como essa substância é
feita de H2O, ela precisa ser feita de água.
Filósofos descritivistas, como A.J. Ayer e outros
críticos de Putnam, privilegiaram as estruturas de superfície e se apegaram às
intuições opostas: o que vale são as propriedades fenomenais e não a estrutura química
subjacente.[24]
Por isso eles responderiam afirmativamente à questão (a): se em algum lugar da Terra
encontrarmos um líquido com a estrutura superficial da água, mas com estrutura
química XYZ, nós não deixaremos de classificá-lo como sendo água; nós diremos apenas
que é água de um outro tipo. Quanto à questão (b), eles a responderiam
negativamente, dizendo que mesmo que as rochas tenham a estrutura molecular H2O,
elas não podem ser água, pois em nada se aparentam com o líquido transparente,
insípido e inodoro com o qual estamos acostumados.
Quem
estará certo? O causalista ou o descritivista? Parece haver aqui um conflito de
intuições. Se pensarmos como o causalista a resposta será não para (a) e sim para (b).
Se pensarmos como o descritivista, a resposta será sim para (a) e não para
(b).
Ora, a
versão mais complexa de descritivismo que propomos permite desfazer o conflito
de intuições, revelando-o como meramente aparente. Ela nos permite dizer que esse
choque resulta tão somente do fato de a palavra ‘água’ ter dois núcleos diferentes
de significado, parcialmente distinguíveis entre si, que são <Ds + Dsd>,
o núcleo popular, e <Dsp + /Dp/ + Dps>, o núcleo científico. A disjunção
de condições da regra de aplicação genérica RA-‘água’ da palavra conceitual é
inclusiva (e/ou), o que significa que a palavra ‘água’ pode ser predicada tanto
no caso (a) quanto no caso (b). Mesmo que outros termos gerais possam ser aplicados
às entidades designadas pela palavra ‘água’ nesses casos, por exemplo, ‘algo com
estrutura XYZ’ no caso (a) e ‘algo parecido com carvão’ no caso (b), isso não
faz diferença, uma vez que uma mesma coisa pode ser objeto de uma multiplicidade
de termos predicativos.
Essa é uma possibilidade. Mas na prática não
precisa ser assim. Parece claro que o peso de cada núcleo semântico é capaz de sofrer
variações de acordo com o que poderíamos chamar de contexto de interesses associado ao proferimento.
Chamo ‘contexto de interesse de um termo’
o contexto que eleva o valor de aspectos do significado que são de importância pragmática para as pessoas que estão
a usá-lo. Imagine que se trate de um contexto de científico, envolvendo falantes
versados em química, que se encontram em um laboratório e objetivam fazer experimentos
separando os gases que compõem amostras de água. Nesse caso, o interesse é
científico e o núcleo semântico científico é privilegiado. A palavra ‘água’ está
sendo usada no mesmo sentido de expressões como ‘óxido de hidrogênio’ ou ‘monóxido
de dihidrogênio’, termos científicos que têm como função semântica exclusiva exprimir
o núcleo semântico <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>
na referência a amostras de líquidos com estrutura química H2O.
Nesse caso se preferirá dizer que o líquido transparente etc. de estrutura química
XYZ decididamente não é água e, no esforço de tirar água (H2O) das pedras,
os químicos dirão que as rochas com aparência de carvão são rochas de água.
Considere
agora, para contrastar, um contexto de interesses da vida cotidiana. Digamos que
o falante pertença a uma remota comunidade de pescadores que tem como objetivo cavar
um poço para obter água para beber, lavar, tomar banho. Para esse grupo, tanto
faz se a estrutura química efetiva do composto é H2O ou XYZ, conquanto
ele sirva aos devidos fins. Nesse caso, o velho núcleo semântico da linguagem popular
pode ser considerado o mais importante, pois mesmo que informados de que a
estrutura química do que eles estão usando não é H2O (e que os
efeitos são exatamente os mesmos), eles não encontrarão nenhuma razão para deixarem
de aplicar o termo no sentido considerado.[25] Já se
as propriedades fenomenais se alterassem, deixando a substância de cumprir com
as suas funções usuais, como no caso das pedras com estrutura química H2O,
a tendência será concluir que elas não tem nada a ver com água por não terem nada
a ver com o que eles esperam obter.
O
mesmo se daria com uma ‘água’ como a encontrada na Terra-Gêmea. Se o contexto de
interesses for o de uma discussão entre cientistas sobre a natureza do composto,
pode ser vantajoso que se privilegie <Dsp-H2O + /Dp-H2O/
+ Dps-H2O>, entendendo-se por ‘água’ o mesmo que óxido de hidrogênio
e concluindo-se que XYZ não é água, tal como Putnam sugeriu. Já no contexto de
interesses ordinários pode valer mais a pena privilegiar <Ds + Dsd>, concluindo
daí que se trata apenas de uma outra espécie de água, tal como sugeriram os críticos
de Putnam. A melhor resposta para o dilema, pois, é que a semântica da palavra
‘água’ é suficientemente flexível para nos permitir escolher o corno do dilema que
preferirmos segurar. E o corno preferido é sempre a descrição, o disjunto da
regra de aplicação que as condições práticas do contexto de interesses nos levam
a valorizar.
Quero
repetir aqui o que já observei antes. O equívoco semântico produzido pela fantasia
da Terra-Gêmea, como o externalismo em geral, envolve uma falácia genética. É óbvio que se o mundo
não possuísse elementos quaisquer que nos permitissem chegar ao conceito de água,
não teríamos acesso ao sentido do termo. Nesse sentido trivial, o significado se
encontra na dependência da constituição externa das coisas, sendo causalmente determinado
por elas. O mundo funciona apenas como um elemento causal externo, que de
formas frequentemente muito indiretas acaba por determinar a formação de nossas
convenções semânticas em instanciações mentais que podem ser entendidas em
termos de significados. Não obstante, não é por isso que o mundo externo deve
se tornar um constituinte do significado, nem de nosso pensamento e entendimento
das coisas que o constituem. Essa é uma forma extremamente fraca de externalismo,
com a qual qualquer internalista sensato haverá de concordar.[26]
O externalismo semântico consequente é,
pois, o que se alimenta dessa falácia genética,
que consiste em confundir as causas últimas de nossas intuições semânticas,
quando essas são externas, com os seus efeitos, que são estados mentais representacionais
internos, instanciadores de um conteúdo semântico psicológico que por essência
é repetível e que se encontra diversamente distribuído nas mentes dos falantes.
Se o efeito é uma representação, essa representação não depende necessariamente,
para a sua existência, da existência daquilo que representa. Afinal, a representação
pode resultar de uma combinação de elementos causais os mais diversos, como
demonstra a enorme variedade de produções ficcionais que nossa imaginação é capaz
de produzir. Devido à imensa flexibilidade dos mecanismos representacionais linguisticamente
refletidos, nossas representações podem apresentar uma relação muito remota com
as suas causas.
Como
o termo geral ‘água’ pode se tornar um designador rígido
Devemos
notar que também aqui podemos utilizar instrumentos lógicos derivados da teoria
das descrições para formalizar regras de aplicação do termo geral. Tendo em
mente RA-‘água’, uma maneira de fazermos isso é introduzindo os seguintes
predicados: F = ‘...substância química que satisfaz suficientemente as regras
de caracterização expressas pelas <Ds + Dsd> para o conceito de água’, G
= ‘...substância química que satisfaz suficientemente as regras de caracterização
expressas pelas <Dps + /Dp/ + Dsp> para o conceito de água’ e A = ‘...é água’.
A regra geral de aplicação para a palavra ‘água’ pode ser então formulada como:
∃x(Ax) ↔ ∃x (Fx ˅ Gx)
Considerando
essa equivalência podemos também explicar como o termo geral ‘água’ pode ser entendido
como um designador rígido. Assumindo que os designata
próprios do termo geral sejam propriedades particularizadas (tropos ou sistemas
de tropos) podemos dizer que o termo geral ‘água’ é um designador rígido secundariamente
à rigidez de termos singulares a ele associados. Ele é rígido no sentido de que
em qualquer mundo possível no qual um mesmo objeto referido por um certo termo singular
existe, se podemos usar o termo geral ‘água’ predicando-o desse objeto, então
RI-‘água’ se aplica a esse mesmo objeto, permitindo-nos dizer que ∃x (Ax) ↔ (Fx ˅ Gx). Ou seja: o termo geral ‘água’ é um
designador rígido porque sua regra geral se deixa aplicar a amostras de água em
todos os mundos possíveis nos quais elas existem.
Isso se verifica também na observação de que
RC-‘água’ nos permite formar uma sentença analítico-conceitual necessária,
posto que verdadeira em todos os mundos possíveis, qual seja:
Um termo geral ‘água’ se refere a qualquer composto
químico que estiver na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de
que ele satisfaz de modo em seu todo suficiente as condições <Ds + Dsp>
e/ou <Dps + /Dp/ + Dsp> para a sua aplicação.
Como
no caso dos nomes próprios, o termo geral é rígido em contraste com termos
gerais descritivos ou entendidos como tais. Considere, por exemplo, o termo
geral ‘água’ no sentido genérico associado a RA-‘água’, oposto à descrição indefinida
‘um líquido transparente, inodoro e insípido’, usada para designar água. A
descrição não se aplica em todos os mundos possíveis nos quais predicamos o termo
geral ‘água’ no sentido genérico de um mesmo objeto, sendo por comparação flácida,
o mesmo acontecendo com o uso do termo geral ‘água’ no sentido popular. E a razão
é análoga a do caso dos nomes próprios. As descrições indefinidas em questão são
sintomas, encontrando-se apenas frouxamente associadas à regra de aplicação do
termo geral.
Identidade
de espécies naturais
Uma
questão que pode agora ser colocada é sobre o comportamento epistêmico de
identidades de espécies naturais como “Água é H2O” e “Ouro é o elemento
de peso atômico 76” .
Consideremos o primeiro enunciado. Para os descritivistas tradicionais ele
exprimiria uma proposição a posteriori
(posto que sua verdade é derivada da experiência) e também contingente (posto que a água, descrita como ‘líquido transparente,
inodoro etc. poderia não ter a composição química H2O, mas alguma
outra). Já para causalistas-essencialistas como Kripke devemos antes ter em
conta que os termos ‘água’ e ‘H2O’ são designadores rígidos. Eles se
referem ao mesmo tipo de coisa em qualquer mundo possível, daí resultando que
embora o enunciado “Água é (=) H2O” seja a posteriori (posto que a sua verdade é derivada da experiência),
ele é necessário (pois ambos os
termos designam a mesma essência microestrutural em qualquer mundo possível). Trata-se
de uma necessidade metafísica.
Abro aqui um parêntesis para relembrar que
Avrum Stroll havia sugerido que “Água é H2O” não é realmente uma
sentença de identidade, pois o ‘é’ não é o da identidade, mas o de constituição, querendo dizer “A água é feita de H2O”. Mesmo que
esse resultado seja suportado tanto intuitivamente quanto pelas nossas análises
da regra de aplicação da palavra ‘água’ e ‘H2O’, a flexibilidade da
linguagem nos permite também dizer que “(Quantidade de) Água = (quantidade de)
H2O”, interpretando “Água é H2O” como uma frase de identidade.
Contudo, parece que em qualquer dos casos a oposição de opiniões persiste, pois
enquanto descritivistas dirão que “A água é constituída de H2O” é uma descoberta contingente a posteriori, causalistas-essencialistas
insistirão que esse enunciado é necessário a
posteriori, pois H2O é a essência constitutiva da água em qualquer
mundo possível.
Quem estaria certo? Embora a posição causal-histórica
tenha suas razões, contra ela pesa a objeção básica contra o conceito de
necessário a posteriori: como é possível
a uma proposição seja verdadeira em todos os mundos possíveis sem que ela seja
priori?
Ao menos no caso da sentença “Água é H2O”
(e receio que também em outros) a resposta neodescritivista me parece a mais
adequada. O neodescritivista dirá que a sugestão de que o enunciado “Água é H2O”
é metafisicamente necessário por ser necessário a posteriori é uma confusão resultante
de uma ambiguidade que já foi de algum modo constatada pelas semânticas bidimensionalistas
e que pode ser apontada aqui de um modo mais intuitivo. O que podemos querer
dizer com a palavra ‘água’ varia de acordo com o contexto, havendo ao menos
três possibilidades à disposição:
(i)
Em um contexto suficientemente vago inclinamo-nos a considerar o significado
mais amplo ou genérico da palavra ‘água’. Nesse contexto amplo o ‘é’ de “Água é
H2O” é o da constituição e a proposição é contingente e a
posteriori. Para evidenciá-lo, basta comparar as regras de aplicação constitutivas
dos conceitos de água e H2O. A regra de aplicação para ‘água’ em
geral, RA-‘água’, pode ser explicitada pela seguinte frase analítica:
Usamos o termo geral ‘água’ – para nos referirmos a exemplares
de uma substância química contida em x see
ela pode nos fazer conscientes de que (i) ela satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo
semântico popular <Ds + Dsp> e/ou
pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra e
(ii) em medida no todo suficiente.
Enquanto
a regra de aplicação para o termo geral ‘H2O’ (óxido de hidrogênio),
RA-‘H2O’, é mais restrita:
Usamos o termo geral ‘H2O’ para nos referirmos
a exemplares de uma substância química contida em x see isso pode nos fazer conscientes de que (i) x satisfaz as regras de caracterização
expressas pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à
palavra e (ii) em medida no suficiente.
A frase
“Água é H2O” quer dizer que se acredita que a tudo a que aplicamos a
segunda regra aplicamos também a primeira. A experiência nos mostra que de fato
tem sido assim... Mas a tudo o que aplicamos a primeira regra não precisamos
aplicar a segunda! Afinal, RA-‘água’ contém uma disjunção inclusiva cujo
primeiro termo permite que a água seja identificada como sendo água apenas com base
em suas características de superfície, não demandando que a microestrutura seja
H2O. Por isso no sentido mais geral “Água é H2O” é uma
verdade contingente, baseada na experiência e em princípio falseável através
dela. Isso vale tanto para a interpretação como sentença de identidade (Kripke)
quanto para a de sentença de constituição (Stroll).
Mas o que queremos dizer com a palavra ‘água’
pode mudar com o contexto. Daí que há outras duas interpretações alternativas
de “Água é H2O”, nas quais o entendimento do termo ‘água’ sofre alterações
devidas a contextos de interesse
diversos. Ei-las:
(ii)
Se o contexto de interesse nos restringir às necessidades cotidianas, o que se
sobressai é o sentido mais popular da palavra ‘água’. Nesse caso a palavra ‘água’
passa a significar RA-‘líquido aquoso’:
Usamos o termo geral ‘água’ no contexto cotidiano para
nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see
isso pode nos fazer conscientes de que (i) x satisfaz as regras de caracterização
expressas pelo núcleo semântico popular associado à palavra <Ds + Dsp>
associado à palavra e (ii) em medida suficiente.
Tratamos
aqui tão somente do líquido transparente, insípido e inodoro, que aplaca a sede
e apaga o fogo. Nesse caso, a frase “Água é (constituída de) H2O” e
mesmo a frase “(Quantidade de) água = (quantidade de) H2O” serão verdadeiras,
mas contingentes e a posteriori.
(iii)
Terceira possibilidade é a de que o contexto seja o do interesse científico
estabelecido a partir da primeira metade do século XIX. Nesse caso teremos o
que foi pensado por Kripke e por Putnam, exemplos em que o termo ‘água’ passa a
significar o mesmo que volumes de H2O. ‘Água’ significa aqui o mesmo
que as expressões ‘óxido de hidrogênio’ ou ‘monóxido de di-hidrogênio’. Nesse
caso a regra RA-‘água’ será a mesma que RA-‘H2O’, donde resulta que
“Água é H2O” (interpretando-se o ‘é’ tanto como sendo de identidade
ou de constituição) se torna uma frase necessária e obviamente a priori,
posto que a sua verdade pode ser sabida independentemente da experiência. Essa
conclusão torna-se mais clara quando substituímos a palavra ‘água’ por óxido de
hidrogênio, que é o que essa palavra significa nesse contexto restritivo, daí resultando
a frase “óxido de hidrogênio é H2O”, que é necessária e a priori, pois
a regra de aplicação de ambas é a mesma. É, pois, com pesar que sou levado a informar
que nenhum traço do necessário a posteriori foi encontrado por essas paragens.
Podemos agora expor a razão da mescla de
insight e erro contida na sugestão de Kripke ao sugerir que “Água é H2O”
é uma proposição necessária a posteriori. Ele confundiu os dois últimos
sentidos da palavra ‘água’ ao analisar a frase “Água é H2O”, usando
o entendimento popular da palavra ‘água’ para dizer que essa é uma verdade a posteriori
e usando o entendimento científico da mesma palavra para dizer que essa é uma verdade
necessária. Mas “Água é H2O” é uma frase ambígua. Ela pode ser
entendida como contingente e a posteriori ou como necessária a priori. O que
não é possível é que ela seja entendida como sendo metafisicamente necessária e
a posteriori. A existência de necessidades metafísicas é suspeita, posto que se
trata de necessidades inverifiáveis, diversamente do caso de necessidades convencionadas
e auto-verificáveis.
O
elemento social do externalismo de Putnam
Antes
de terminarmos, precisamos ainda considerar rapidamente dois outros exemplos de
Putnam.
No primeiro
ele supõe que alumínio e molibdênio só sejam distinguíveis entre si por metalúrgicos
e que a Terra-Gêmea esteja cheia de molibdênio, metal raro na Terra. Além disso,
ele imagina que os habitantes da Terra-Gêmea chamem o molibdênio de alumínio e que
vice-versa. Nesse caso, certamente, a palavra ‘alumínio’ dita por Oscar-1 terá uma
extensão diferente da palavra ‘alumínio’ dita por Oscar-2, de modo que eles querem
dizer (mean) coisas diferentes com a mesma
palavra. Mas como eles não são metalúrgicos, eles têm os mesmos estados psicológicos.
Logo, o significado é externo ao que acontece em suas cabeças.
No segundo exemplo Putnam considera a diferença
entre olmos e faias. A maioria de nós não sabe distinguir olmos de faias em uma
floresta. Contudo, mesmo assim somos capazes de usar essas palavras sem que as
suas extensões deixem de ser diferentes: olmos são olmos e faias são faias. Assim,
o que queremos dizer com essas palavras, os significados que a elas atribuímos,
são diferentes, mesmo que essa diferença não esteja em nossas mentes.
Putnam tira uma conclusão surpreendente desses
casos imaginários: assim como no caso da água da Terra-Gêmea o significado está
no mundo físico externo, nos casos recém-expostos ele se encontra também na
sociedade. Para esclarecer essa tese, ele introduz a importante idéia da divisão de trabalho da linguagem.
As palavras requerem a atividade cooperativa de um número de pessoas para poderem
ser efetivamente usadas. Não sabemos distinguir alumínio de molibdênio, nem
olmos de faias. Mas isso não importa, pois o meio social é capaz de distingui-los
por nós. Há em nossa comunidade lingüística especialistas e outros falantes com
a habilidade de reconhecer por nós as espécies naturais pelas suas características
essenciais. Pelo simples fato de pertencermos a essa comunidade, mesmo não
sabendo quais são as propriedades distintivas da maioria das espécies naturais,
mesmo não reconhecendo as suas essências causais, somos capazes de usar palavras
como ‘alumínio’ e ‘molibdênio’, ‘olmo’ e ‘faia’, no sentido que elas têm e referir-nos
às suas extensões. Como Putnam corretamente conclui:
O estado psicológico do indivíduo não fixa a
extensão; somente o estado sociolinguístico do corpo linguístico coletivo ao
qual o falante pertence é que fixa a extensão.[27]
Essa sugestão é importante. Incorreta é apenas a interpretação externalista
que lhe é impingida. Como já consideramos ao discutirmos a divisão de trabalho da
linguagem com respeito ao nosso conhecimento do conteúdo de nomes próprios, Putnam
não foi o primeiro a apontar para a existência de uma divisão de trabalho da linguagem;
isso já foi feito por outros filósofos antes dele, como é o caso de Locke, que
o fez dentro do contexto de sua teoria descritivista e internalista do significado
como idéia mental, ou mesmo de C.S. Peirce, sem apelo ao externalismo. E a razão
disso é que, como já notamos, a hipótese da divisão do trabalho linguístico é perfeitamente
compatível com uma perspectiva cognitivista-descritivista ou neofregeana.[28] É
verdade que podemos usar palavras como ‘molibdênio, ‘olmo’ e ‘faia’, sem quase saber
o que elas significam, sem a habilidade de reconhecer as suas referências. E
também é verdade que nos fiamos nos especialistas (metalúrgicos, botânicos...),
a saber, nos usuários privilegiados dessas palavras na comunidade
lingüística como garantia de uma identificação efetiva. Mas o fato é que sempre
sabemos alguma coisa mais ou menos genérica sobre os significados dessas palavras,
por exemplo, quando conhecemos somente os seus marcadores sintáticos ou
semânticos. Por isso precisamos distinguir entre o conhecimento suficiente e o conhecimento insuficiente do significado de um termo,
ainda que possa não haver uma separação rigorosa entre as duas coisas. O
conhecimento suficiente é o que faz possível a referência identificadora no seu
sentido próprio, podendo ser expresso por descrições das regras que exprimem a
condição de aplicação no caso do termo geral. Já o conhecimento insuficiente é
o que apenas possibilita uma inserção adequada da palavra em um dado contexto
discursivo, como é o caso do conhecimento do gênero ao qual pertence o termo ou
do que Putnam chamou de marcadores sintáticos e semânticos. Com exceção das
palavras mais usuais, nosso conhecimento do significado tende a ser
insuficiente. Há muitas palavras com relação às quais todos nós temos conhecimento
suficiente do que elas querem dizer. Por exemplo: todos sabemos, mesmo que tacitamente,
que a palavra ‘cadeira’ significa ‘banco não-veicular com encosto feito para
uma só pessoa se sentar de cada vez’. Mas esse não costuma ser o caso de termos
científicos e técnicos. Temos conhecimento insuficiente do significado das palavras
‘molibdênio’ e ‘olmo’ – às quais sou capaz apenas de associar respectivamente
as descrições ‘um metal’ e ‘um tipo de árvore’. Putnam nota corretamente que a
representação mental que nos fazemos ao pensar em olmos e em faias não difere,
pois tudo o que pensamos do olmo é que ele é uma árvore (supostamente) diferente
da faia e da faia que ela é uma árvore (supostamente) diferente do olmo, mas
que, sendo simétricas, essas representações não se distinguem entre si.[29] Isso
é correto, mas insuficiente. Na verdade, elas se distinguem quanto à palavra a
que se associam: a representação de árvore associada à palavra ‘olmo’ e à
palavra ‘faia’, de modo que a descrição “uma árvore de nome ‘faia’” só se aplica
a faias e não a olmos, sob a suposição bem plausível de que não são sinônimos,
baseada apenas na diversidade morfológica das palavras e em português de gênero.
Eis porque não ficaríamos sequer muito surpreendidos se fossemos informado de que
olmos são a mesma coisa que faias. Afora isso, quando alguém se pergunta pela
diferença entre olmos e faias, a informação de que realmente há uma diferença conceitual
vem pressuposta na própria pergunta. Assim, meu conhecimento insuficiente da
referência já me permite, por exemplo, saber outras coisas, como que olmos e faias
não são feitas de molibdênio e que uma panela de metal não pertence à classe dos
olmos e mesmo – se alguém me perguntar – que não devem ser nomes diferentes para
a mesma espécie de árvore. Com isso já posso entender proferimentos com essas
palavras e mesmo empregá-las corretamente na linguagem em contextos bem pouco
exigentes. Posso fazer isso porque tenho consciência da insuficiência de meu
conhecimento e porque usualmente os ouvintes precisam e esperam apenas a informação
vaga e incompleta e porque nos fiamos na existência do conhecimento suficiente
do sentido dessas palavras a serem encontrados nas mentes dos seus usuários
privilegiados, como é o caso do metalúrgico e do botânico.
O que
Putnam falha em considerar aqui (movido pelo seu compromisso externalista) é apenas
o fato de que uma sociedade linguística não seria capaz de fazer referência às
espécies naturais de coisas se em algum momento não emergisse um elemento
cognitivo capaz de nos permitir aplicar os critérios de identificação necessários.
Assim, embora o que determina a referência não precise ser um adequado estado
psicológico do falante, para que a referência seja determinada ela precisará
depender de estados psicológicos de membros autorizados do corpo linguístico coletivo;
e tais estados psicológicos instanciam sentidos descritivos que por sua vez
determinam as extensões.[30] Mesmo
que o conteúdo informativo esteja diversamente dividido entre os usuário privilegiados
da linguagem, esses conteúdos se complementarão permitindo a caracterização. Podemos
até imaginar que certos termos tenham o seu conteúdo armazenado em
computadores, ou que autômatos sejam capazes de aplicá-los para nós e que as
regras de identificação sejam automaticamente geradas por eles, de modo que nenhum
ser humano precise conhecê-las. Mas nesse caso já admitimos que essas regras
potencialmente existem, pois ao virem inscritas em computadores e autômatos
identificadores, torna-se possível para nós resgatá-las cognitivamente ao menos
em seus princípios. Podemos dizer que uma palavra cuja regra de aplicação tenha
sido gerada em seu conteúdo expressivo por um computador, ou que seja aplicável
por um autômato identificador, ela seria em sua significatividade e
referencialidade sempre dependente, em última análise, de intérpretes humanos, os
únicos capazes de lhes doar significado, sendo por isso apenas potencialmente significativa.
Ou seja: mesmo nesses casos extremos, a significação e o ato de referir são
fenômenos antropomórficos que em algum momento demandam ou pressupõem cognição.
Imagine, por exemplo, que a colisão de um
grande asteróide com a terrra fizesse desaparecerem todos os cientistas e todos
os meios de acesso à ciência, restando apenas uma pequena comunidade isolada de
pessoas sem qualquer conhecimento científico. Nesse caso, termos da física como
‘quark’, ‘neutrino’, ‘força forte’ e ‘supercorda’ não seriam mais capazes de
denotar mais coisa alguma, mesmo que elas ainda pudessem ser lembradas ou lidas
em algum lugar. Afinal, dizer que leigos – sem a possível orientação de especialistas
– se referem a algo com essas palavras é pouco mais do que um simples modo de falar.
De fato, dizer que pessoas sem conhecimento profundo de física sabem o que essas palavras significam (no
sentido fregeano de conteúdo informativo) não passa de um grande exagero. O
conhecimento que a mairia de nós tem dos sentidos dessas palavras é por demais
genérico e insuficiente quando reduzido a si mesmo.
O problema é que Putnam hipostasia o uso correto
que fazemos das palavras, mesmo sem conhecimento suficiente do significado e da
referência, como se através dele já significássemos e referíssemos plenamente, como
se isso se devesse a um efeito mágico de cadeias causais externas que se
combinam na divisão do trabalho da linguagem. O falante que conhece insuficientemente
o significado de uma palavra que usa não a usa referencialmente sozinho; as
suas palavras têm na melhor das hipóteses o que já chamamos de uma referência potencial, na medida em que ele (sob a condição e ser consciente de
sua própria falta de domínio das regras) seja ao menos capaz de inseri-las corretamente
no discurso. Pois ao fazer isso ele comunica as esperadas vaguidades semânticas
que permeiam nossa compreensão cotidiana das palavras sob o suposto de que
existem falantes mais competentes, capazes de lhes atribuir os sentidos adequados
e torná-las referencialmente eficazes. Tais palavras são como notas promissórias
de seus significados e referências. Elas como que as tomam de empréstimo. Nós apenas
confiamos na existência de usuários com conhecimento suficiente dos seus
sentidos para serem capazes de resgatá-las.
O significado só existe enquanto se encontra
na mente das pessoas, pois mesmo que a regra ou a combinação de regras que o
constituem esteja, digamos, inscrita nos caracteres de um livro, ou guardada na
memória de computadores, mesmo que ela seja aplicada por um autômato, ela não é
enquanto tal significativa no sentido próprio da palavra. Ela só se torna
verdadeiramente uma regra semântica enquanto interpretada por um agente humano.
Uma expressão de regra só será apta a alcançar consenso se emergir de uma forma
de vida construida sobre aquilo que há de homogêneo na natureza humana.
A conclusão de toda essa discussão é que em
momento algum o significado existe fora das cabeças, mesmo que ele venha
diversamente distribuído nas cabeças dos membros da comunidade lingüística. Divida-se
o bolo como se quiser, o significado não está nem na natureza externa nem no
corpo linguístico coletivo externamente observável; ele há de estar sempre em mentes
particulares, sejam elas a do falante ou a do intérprete, a do leigo ou a do especialista,
mesmo que desigualmente dividido entre os componentes formadores da comunidade linguística
e mesmo apto a ser conservado na memória artificial de documentos ou computadores,
na medida em que formos capazes de interpretá-la.
Tyler
Burge e o externalismo do pensamento
Há
uma experiência em pensamento complementar à de Putnam, que foi imaginada por Tyler
Burge com respeito ao conceito de artrite. O que Burge pretendeu foi, para além
de Putnam, mostrar que não só o significado deve ser entendido de maneira
extensional, mas que as crenças, ou seja, os próprios conteúdos de
pensamento, estão fora da cabeça. Quero resumir o argumento de Burge e em
seguida mostrar que há uma explicação internalista muito mais plausível para o
que acontece.[31]
Embora
Burge exponha o seu argumento imaginando uma situação contra-factual, podemos
torná-lo mais claro imaginando que uma pessoa de nome Oscar sinta dor na coxa e
procure um médico dizendo:
Acho que tenho artrite na coxa.
Como
artrite é entendida como uma inflamação dolorosa e deformante das juntas, o médico
lhe explica que a sua crença é falsa, que ele não pode ter artrite na coxa. Imagine
agora que Oscar viaje para uma região do país na qual seja costume usar a palavra
‘artrite’ de um modo muito mais amplo, para se referir a toda e qualquer
inflamação. Chamemos a comunidade linguística dessa última região de B e chamemos
a comunidade linguística da primeira região de A. Suponha que, uma vez tendo
chegado à região da comunidade linguística B, o desmemoriado Oscar procure um
médico com a mesma queixa “Acho que tenho artrite na coxa”. Nesse lugar, como
seria de se esperar, o médico irá confirmar a suspeita, concordando com a verdade
de sua crença.
Com
base nesse exemplo, o raciocínio de Burge é o seguinte. Sem dúvida, os estados
psicológicos de Oscar ao dizer que acredita ter artrite na coxa na primeira e na
segunda vez são exatamente os mesmos, assim como o seu comportamento. Mas as
crenças, os pensamentos expressos nos proferimentos, precisam ser diferentes, posto
que o pensamento expresso pelo primeiro proferimento é falso, enquanto o pensamento
expresso pelo segundo proferimento é verdadeiro e um mesmo pensamento não pode
ser falso e verdadeiro. Podemos até marcar o significado diverso da palavra ‘artrite’
no segundo proferimento com uma nova palavra, ‘cotrite’ (thartritis). A surpreendente conclusão do argumento é que o conteúdo
de pensamento não pode ser algo meramente psicológico. Esse conteúdo deve pertencer
também ao mundo externo, às relações sociais da comunidade que envolve o falante.
Contra essa conclusão é possível encontrar
uma explicação internalista e descritivista para o que acontece. Para o internalismo
a palavra ‘artrite’ deve exprimir um complexo de regras-descrições
constitutivas de seu significado. Uma delas, ‘uma inflamação que ocorre na coxa’,
faz parte do sentido da palavra para a comunidade linguística da região B, mas
não para a comunidade linguística da região A. Assim, embora o conteúdo de
pensamento expresso pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”, dito por Oscar
nas regiões A e B possa ser considerado exatamente o mesmo, há uma diferença
que foi justamente lembrada por John Searle em uma objeção que vai ao cerne da
questão:
É uma pressuposição de pano-de-fundo por trás
do nosso uso social das palavras que nós compartilhamos significados comuns com
outras pessoas em nossa comunidade.[32]
Ou
seja: quando Oscar diz ao primeiro médico “Creio que tenho artrite na coxa”,
ele está pressupondo que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ pertence
à linguagem que ele está usando, ou seja, que os outros falantes competentes da
linguagem a consideram convencionalmente aplicável. O que ele tem em mente ao
proferir sua frase diante do primeiro médico poderia ser mais completamente apresentado
como:
(a) Tenho artrite
na coxa (e a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta
pelos falantes da comunidade linguística A, à qual pertence o meu interlocutor).
Essa
é uma frase falsa porque a segunda sentença da conjunção é falsa. Vejamos agora
como fica a explicitação daquilo que Oscar tem em mente quando diz ao segundo
médico que acha que está com artrite na coxa:
(b) Tenho artrite
na coxa (e a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta
pelos falantes da comunidade linguística B, a qual pertence o meu interlocutor).
A frase (b) é verdadeira porque exprime uma
conjunção verdadeira. E a diferença de sentido entre os significados das frases
(a) e (b) é evidente, pois enquanto (a) está indexicalmente associada à comunidade
linguística A, que a torna falsa, (b) está indexicalmente associada à comunidade
linguística B, que a torna verdadeira. Pode ser verdade que se nos restringirmos
ao conteúdo expresso, os pensamentos de Oscar ao proferir a mesma frase nas
regiões A e B sejam idênticos. Mas o que eles efetivamente têm em mente com os proferimentos – o conteúdo completo de seus
pensamentos – é mais do que isso, pois há uma assunção disposicional que
envolve a situação indexical do falante, cujo valor-verdade varia com a comunidade
linguística envolvida, sendo diferente para cada proferimento. Trata-se, como Searle
notou, de uma assunção discursiva indispensável: a de que as regras verificacionais
constitutivas do pensamento devam estar em conformidade com as convenções da comunidade
linguística na qual ele é expresso. Essa assunção é transgredida por Oscar quando
ele fala com o médico da comunidade A, mas ela não é transgredida quando ele
fala com o médico da comunidade B. É isso o que explica porque o pensamento de
Oscar em A é falso, enquanto o pensamento de Oscar em B é verdadeiro. O
pressuposto de que o pensamento expresso deve estar em conformidade com as regras
da linguagem em que o proferimento ocorre não é, porém, externo ao falante. Ele
é um elemento psicológico de ordem disposicional, que completa o conteúdo de pensamento
e que pode ser explicitado por Oscar sempre que isso for requerido.
Burge chamou-nos
atenção para uma coisa importante: que a verdade ou a falsidade do pensamento completo
pode depender da comunidade linguística que envolve a pessoa que o profere. Contudo,
diversamente do que ele pensa, essa dependência não é externa no sentido de o pensamento
não ser psicológico, encontrando-se como que disperso nos interstícios do meio
social. A dependência social pode residir exclusivamente em uma comunidade linguística
satisfazer ou não uma condição de verdade interna ao pensamento no sentido
amplo, no caso considerado, a condição de que a regra de aplicação do termo ‘artrite’
usada pelo falante seja uma regra fundamentada nas convenções linguísticas mentalmente
compartilhadas entre os membros da comunidade linguística com a qual ele se comunica.
Finalmente, a explicação dada nos permite
parafrasear em termos internalistas a distinção entre conteúdo estreito (narrow content) e conteúdo amplo (wide content). Para o externalista, o conteúdo
estreito é aquele que está na mente do falante, enquanto o conteúdo amplo é
aquele que está lá fora, no mundo ou na sociedade. A análise internalista do exemplo
de Burge nos permite sugerir que o conteúdo estreito de pensamento seja a própria
ocorrência cognitivo-linguística do pensamento (expresso pela frase “Acho que tenho
artrite na coxa”). Já o conteúdo amplo do pensamento é aquele que inclui o que está
sendo assumido pelo que é conscientemente pensado, estando contido na mente do
falante ao menos também como uma disposição cuja existência é certa, dado que uma
vez posta em consideração ela será indiscutivelmente acordada pelos membros de sua
comunidade linguística.
Outro famoso argumento de Putnam que favorece o externalismo é o do cérebro
na cuba (ver 1981, cap. 1). Esse último argumento objetiva demonstrar que a hipótese
cética de que talvez sejamos cérebros imersos em cubas, com os agregados neuronais
aferentes e eferentes ligados a um supercomputador que produz em nós uma permanente
alucinação de interação com o mundo externo é factualmente impossível. Segundo Kripke,
cérebros em cubas não podem pensar que são cérebros em cubas; como podemos pensar
que somos cérebros em cubas, não podemos ser cérebros em cubas. Ele sustenta esse
argumento com a idéia de que cérebros em cubas não podem ter pensamentos sobre coisas
reais como água, cuba, cérebro... porque não podem ter qualquer contato causal com essas coisas reais ou com os
seus componentes.
Devo notar,
porém, que o argumento de Putnam é controverso. A idéia subjacente ao argumento
é a de que cérebros na cuba não podem ter pensamentos sobre coisas reais como árvore,
água, cuba, cérebro... porque eles não têm nenhum contato causal com essas coisas ou com os seus componentes. Podemos
imaginar, contudo, que os computadores que interagem com o cérebro na cuba foram
feitos por quem tenha tido contato com árvores, água, cuba, cérebro, refletindo
indiretamente em seus programas essa experiência. Putnam contorna essa possibilidade
imaginando um cérebro na cuba que tenha sido gerado por mera coincidência cósmica,
sem a existência sequer de programadores que pudessem ter tido contato causal
com água, cuba, cérebro... e que pudessem passar essas informações para o
programa. Nesse caso, pensa ele, as referências do cérebro na cuba seriam tão ilusórias
quanto a palavra Churchill casualmente escrita por uma formiga ao andar de
forma errante na areia... Como nós temos pensamentos sobre árvores, água, cérebros,
cubas, nós não podemos ser realmente cérebros
em cubas resultantes de um acaso cósmico.
Uma objeção básica já feita ao
argumento é que nele Putnam ignora a flexibilidade
da linguagem. Mais além, por que em um cérebro na cuba, mesmo naquele gerado
por acaso cósmico, as representações de árvores, água, cérebros não podem ser de
fato causadas por estímulos que sejam, digamos, meras imagens eletrônicas de
árvores, água, cérebros, acessadas pelo cérebro na cuba em meio a uma práxis lingüística
intersubjetiva, também ela meramente ficcional, também constituida de meras
imagens eletrônicas de pessoas, vozes etc.? Por que não seria aqui possível uma
geração causal de representações a partir dessas imagens, que seja coincidentalmente
igual à geração de representações causadas a partir das próprias coisas realmente
pertencentes ao mundo real? Sob essa perspectiva não parece haver nada de verdadeiramente
convincente no argumento. Putnam responderia que essa objeção ignora o seu
externalismo semântico, mas como este último será devastado no curso desse capítulo,
tenho o direito de mantê-la.
[3] Vários filósofos notaram que não parece nomologicamente
possível que um líquido com as mesmas propriedades da água tenha uma fórmula química
muito diversa. Mas não é necessário à fantasia de Putnam que todas as propriedades
superficiais de H2O e XYZ sejam idênticas. Mais do que isso, podemos substituir
a palavra ‘água’ pelo nome de pedras preciosas como topázio e citrino, que são
aparentemente iguais, mas que de fato possuem fórmula química muito diversa. Cf.
Segal 2000, pp. 25-26.
[5] Putnam chega a divisar a dificuldade quando,
em um longo parênteses, tenta explicar porque a palavra ‘mean’ não pode ser substituida
por ‘the meaning of’ nas frases citadas.
[6] Digo não-veicular porque assentos
de carros, ônibus, aviões, não são chamados de cadeiras. Ver justificação mais
detalhada em Costa 2018, pp. 62-65.
[8] Ver introdução de Putnam em Pessin & Goldberg
1996, p. xviii. Ver
também Burge 1979 e McDowell 1992.
[10] Qualifico como um mesmo tipo de estado
para possibitar a razoável admissão de uma múltipla realizabilidade do mesmo
estado psicológico em estados cerebrais diversos. Uma vez pertencentes a um
mesmo tipo, eles se tornam de um modo ou de outro equivalentes.
[11] 1996, p. 71.
[12] John Searle rejeitou essa conclusão sugerindo
que mesmo sendo os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2 idênticos, eles determinam
diferentes condições de satisfação e diferentes conteúdos intencionais, os quais
são internos e intrínsecos aos estados psicológicos. Mas como é implausível a
idéia de que um mesmo estado psicológico possa ter conteúdos diferentes, essa
resposta acaba adicionando mais lenha à fogueira do externalismo. Cf. Searle 1983, pp. 206-7. Ver a
resposta de Putnam na introdução de Pessin & Goldberg (eds.) 1996.
[15] Ball, cap. 5.
[17] Muitos, creio que o próprio Locke, a classificariam
como uma “essência real”, mas uma tal essência real última (e não suposta) demandaria
um critério absoluto que não parecemos ser capazes de possuir.
[18] Stroll 1996, pp. 56-57.
Não obstante, por razões sistemáticas Stroll prefere não
considerar a última um aspecto do significado.
[19] Também
aqui e em outros casos de termos gerais podemos formular a regra de aplicação de
modo a satisfazer a condição Cc demandada pelo que chamamos de referência causal.
Basta para tal demandarmos que a substância em questão esteja atualmente ou potencialmente
na origem causal de nossa consciência de que as condições (i) e (ii) estejam sendo
satisfeitas.
[20] Essa é também a razão pela qual a questão de
saber se os termos gerais são designadores rígidos é hoje em dia geralmente considerara
um problema irresolvido pela maioria dos defensores do externalismo causal.
[21] Stroll 2000, pp. 233-234.
[22] Para considerações semelhantes,
ver Zemach 1996, p. 66.
[24] Ayer 1982, p. 270. Ver Dupré 2000, p. 318. Ver também Eddy Zemach 1986, pp.
61-62 e Mellor 1977, p. 72.
[25] Algo semelhante realmente ocorreu na China com
a palavra ‘jade’. O jade antigo (nefrite) acabou sendo em sua maior parte substituído
por uma pedra aparentemente idêntica, mas com estrutura química muito diferente
(jadeíte). Ainda assim, o mesmo nome permaneceu sendo aplicado também à segunda
pedra. Ver LaPorte
2004 p. 96.
[26] Em geral me refiro a externalismos
semânticos em um sentido inevitavelmente forte da expressão. Se enfraquecermos
o externalismo dizendo que para termos o significado precisamos de “alguma
determinação externa”, trata-se de algo que qualquer pessoa de bom senso –
qualquer internalista – deve aceitar. Afinal, é óbvio que se nossos termos são sobre
o mundo externo, então algum input qualquer
do mundo externo deve estar sendo subsumido. Uma mais recente estratégia
externalista consiste em enfatizar a vaguidade do termo de modo a deixar em aberto
esses limites (e.g., Kallestrup 2012).
[30] De resto, como notou Searle, “a tese de que o
sentido determina a referência dificilmente pode ser refutada pela consideração
de casos de falantes que sequer conhecem o significado ou que o conhecem só imperfeitamente”
(1983, p. 201).
Nenhum comentário:
Postar um comentário