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NOMES PRÓPRIOS (III): METADESCRITIVISMO
Ermanno
Bencivenga uma vez notou que nossas convicções filosóficas comportam-se por vezes
como pêndulos, que primeiro oscilam para um lado e depois para o outro.[1] Um resultado
disso é que, quando consideradas por um período demasiado breve, elas nos oferecem
a ilusória impressão de que continuarão para sempre seguindo a mesma direção. A
teoria da referência direta dos nomes próprios alegadamente proposta por Stuart
Mill não teve uma vida longa. Ela caiu por Terra com o aparecimento das teorias
descritivistas de Frege, Russell, Wittgenstein, Strawson, Searle e ainda outros.
Parecia então que a verdadeira teoria da referência dos nomes próprios havia sido,
enfim, ao menos delineada. Contudo, o que ninguém seria capaz de prever é que
algo semelhante à teoria milliana iria renascer, metamorfoseado na forma da teoria
causal-histórica dos nomes próprios defendida por Saul Kripke, Keith Donnellan
e ainda outros, em um movimento que ainda hoje persiste. Como tentei mostrar no
capítulo anterior, não é nem um pouco certo que esse movimento seja definitivo.
Com efeito, meu objetivo no presente capítulo é o de inverter a direção do pêndulo
na direção de uma teoria essencialmente descritivista, mesmo que preservando algumas
consequências imprescindíveis de toda a reflexão produzida pela concepção causal-histórica.
Minha hipótese
de trabalho sobre as teorias descritivistas dos nomes próprios é a de que elas falham
por “falta de estrutura”. Um nome próprio não pode estar no lugar de um simples
amontoado fortuito de descrições, como pretenderam descritivistas de Frege a Searle.
As descrições que compõem o feixe devem ser submetidas a algum princípio estruturador.
Por não dar conta da organização interna do feixe, a versão searleana da teoria
do feixe perde em poder explicativo, dando a impressão de que as teorias causais-históricas
constituem uma opção mais plausível.
Por
força dessa hipótese de trabalho, meu objetivo será mostrar que as descrições
constitutivas do significado dos nomes próprios devem satisfazer uma regra mais
geral, capaz de lhes hierarquizar valorativamente. As descrições constitutivas
do feixe são de fato regras-descrições, ou seja, expressões de regras semântico-cognitivas,
as quais devem servir para de algum modo conectar o nome próprio com o seu objeto
de referência. A suposta regra estruturadora do feixe de descrições deve ser uma
regra de regras, a saber, uma regra de ordem superior, uma meta-regra exprimível
por meio de uma meta-descrição. Por isso chamo a versão do descritivismo que irei
propor de uma teoria meta-descritivista dos nomes próprios (em alguma medida também
um metadescritivismo causal, dado que um indispensável elemento causal acabará sendo
a ela implicitamente integrado[2].)
Há também diferenças de abordagem. Quero começar
investigando sistematicamente os tipos de descrições pertencentes ao feixe. Os filósofos
que investigaram nomes próprios sempre tomaram como exemplos descrições
substitutivas aleatoriamente escolhidas. Quero mostrar que precisamente por
serem arbitrariamente escolhidas, tais descrições eram muitas vezes destituidas
de qualquer importância real para a identificação do objeto a ser referido pelo
nome próprio. Frege, por exemplo, sugeriu que o nome ‘Aristóteles’ pudesse estar
no lugar das descrições ‘o maior discípulo de Platão’ e ‘o tutor estagirita de Alexandre
o Grande’. E Wittgenstein sugeriu que o nome ‘Moisés’ pudesse estar no lugar da
descrição ‘o homem que quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Mas,
como veremos, nenhuma dessas quase folclóricas descrições desempenha um papel fundamentador
na identificação das pessoas por elas indicadas.
Regras-descrições
fundamentais
Há sem
dúvida descrições mais e menos importantes associadas ao nome próprio. Considere,
por exemplo, o nome ‘Moisés’. A descrição ‘o homem que guiou os israelitas até a
Terra prometida’ parece bem mais importante do que ‘o homem que quando bebê foi
retirado do Nilo pela filha do faraó’. Afinal, a falsidade da última descrição
traria muito menos consequências que a falsidade da primeira.
Com o
fito de hierarquizar as regras-descrições, quero distinguir três grupos de descrições
definidas atributivas capazes de exprimir partes do conteúdo informativo dos nomes
próprios: os grupos A e B, contendo o que chamarei de descrições fundamentais, e
o grupo C, contendo aquilo que chamarei de descrições
auxiliares. Quero evidenciar que os grupos A e B são os das descrições realmente
relevantes para a identificação do objeto, enquanto o grupo C é o das descrições
que, embora frequentemente exemplificadas e de maior ou menor valia para a conexão
com o objeto, não chegam a desempenhar um papel realmente importante, ainda que
por vezes pareçam. Quero começar procedendo de modo meramente classificatório.
Vejamos
primeiro o que chamei de descrições fundamentais. Para encontrá-las gostaria de
proceder atentando para a sua relevância na linguagem. Mas como fazê-lo? J.L.
Austin, o filósofo da linguagem ordinária, aconselhava que ao fazermos filosofia
tivéssemos à mão o Oxford English Dictionary.
Contudo, não podemos buscar aí os tipos de descrição mais importantes associados
aos nomes próprios, posto que nomes próprios não se encontram, em geral, dicionarizados.
Mas isso não nos deve desanimar. Pois se os nomes próprios não se encontram em
geral dicionarizados, pelo menos muitos deles se encontram “enciclopedizados”. Daí
o conselho: Se quiseres encontrar as descrições que importam a um certo nome próprio,
hás de começar consultando o cabeçalho do seu respectivo verbete nas enciclopédias!
Vejamos o que podemos encontrar, por exemplo, no verbete ‘Aristóteles’ do meu pequeno
dicionário filosófico da Penguin. Lá está
escrito:
Aristóteles = (384 a .C – 322 a .C.) nascido em Estagira,
no norte da Grécia, Aristóteles produziu o maior sistema filosófico da
antiguidade. (Segue-se uma lista das principais obras de Aristóteles.)
Quando
examinamos esse e outros verbetes do gênero para o nome ‘Aristóteles’, o que depreendemos
é que eles abreviam especialmente duas regras-descrições, uma estabelecendo o
lugar e o tempo de seu nascimento e morte (ao que se adicionam etapas de sua carreira
espaciotemporal), a outra estabelecendo as propriedades mais importantes de Aristóteles,
aquelas que constituem a razão mesma
pela qual aplicamos o nome. Essas propriedades são sobretudo as idéias e argumentos
apresentados no opus aristotélico.
Podemos agora abstrair desse caso concreto dois
tipos de regras-descrições fundamentais próprias dos grupos A e B respectivamente:
A) Regra
localizadora = expressa pela descrição
que estabelece o que consideramos localização e carreira espaciotemporal do objeto[3].
B) Regra
caracterizadora = expressa pela
descrição que estabelece o que consideramos as propriedades mais relevantes do
objeto – aquelas que constituem a própria razão pela qual o nomeamos.
Consideremos
agora as regras-descrições localizadora e caracterizadora de Aristóteles, separando-as
de modo mais explícito. Elas podem ser brevemente resumidas como se segue:
(a) Descrição localizadora do nome ‘Aristóteles’
= a pessoa que nasceu em Estagira em 384 a .C., filho do médico da corte, que viveu a
maior parte de sua vida em Atenas, teve de fugir para Assos, retornou a Atenas,
mas acabou tendo de fugir para Chalkis, onde morreu em 322 a .C.
(b) Descrição caracterizadora do nome ‘Aristóteles’
= o autor das doutrinas filosóficas relevantes expostas na Metafísica, na Física, na
Ética a Nicômano, no Organon, nos Tópicos e nas demais obras que compõem o opus aristotélico.
Tais
regras fundamentais podem ser mais e mais descritivamente detalhadas. No caso
de Aristóteles elas ultimadamente se justificam pelos testemunhos históricos.
Além disso, parece que a regra caracterizadora é nesse caso algo mais relevante,
tendo no final maior peso.
Para evidenciar a importância das regras-descrições
fundamentais, eis alguns exemplos de descrições definidas do grupo A, que retiro
diretamente do cabeçalho de verbetes da Wikipedia.[4] Eles
apresentam como condições de identificação propriedades localizadoras de objetos
referidos por nomes próprios:
1. Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = a pessoa que
nasceu na cidade de Três Corações em 1940 e que hoje vive em Santos e nos EUA.
2. Taj Mahal = um mausaléu construído de 1630 a 1652 perto da cidade
de Agra, na Índia, existindo até os dias atuais.
3. Paris = cidade de mais de dez milhões de habitantes
situada no centro norte da França, às margens do rio Sena. Seu surgimento como
cidade remonta ao século IX.
4. Amazonas = o rio que nasce nas montanhas do
Peru e desagua no atlântico, seguindo a linha do equador. Junto aos seus afluentes
ele forma a maior bacia hidrográfica do mundo. Existe desde tempos imemoriais...
É
preciso notar que a descrição localizadora possui ao menos um elemento caracterizador,
que consiste na discriminação do tipo de objeto a ser referido. Assim,
Pelé é discriminado como sendo uma pessoa, o Taj Mahal como um mausaléu, Paris
como uma cidade, o Amazonas como um rio, Vênus como um planeta... Esse mínimo de
caracterização é indispensável para que a descrição localizadora chegue a fazer
sentido.
Que as regras-descrições do grupo B também são
fundamentais você também pode comprovar consultando os cabeçalhos dos mesmos verbetes
em enciclopédias em geral. Na mesma ordem, eis o que eles resumidamente dizem:
1. Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = o mais famoso
jogador de futebol de todos os tempos.
2. Taj Mahal = o belíssimo mausaléu de mármore feito
pelo imperador Shah Johan para a sua esposa favorita, Aryumand Bam Began...
3. Paris = a capital da França, centro econômico e
turístico do país e uma das mais belas cidades do mundo.
4. Amazonas = o mais caudaloso e provavelmente
também o mais longo rio do mundo, responsável por 1/5 da água doce que desagua
nos oceanos.
É basicamente
em razão da importância das propriedades denotadas por tais descrições definidas
que esses nomes são usados por nós. Elas podem ser consideradas de essencial
importância na medida em que resultam da concordância entre usuários privilegiados
acerca do que seriam as propriedades objetivas mais fundamentais associadas aos
respectivos nomes.
Regras-descrições
auxiliares
Quero
agora considerar as descrições definidas que ficaram de fora, a saber, as descrições
auxiliares, pertencentes ao grupo C. Elas constituem um grande número de descrições
que por vezes no quotidiano usamos no lugar do nome. Por isso mesmo, como já sugeri,
elas por vezes confundiram os filósofos dificultando a detecção do que é mais importante.
No que se segue apresento uma classificação que, apesar de assistemática, pode ser
útil.
(1) Um
primeiro caso do grupo C é o de descrições que podem ser chamadas de metafóricas, frequentemente usadas no lugar
do nome próprio. Exemplos são descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘a águia
de Haia’, ‘a cidade luz’, ‘a dama das camélias’. As propriedades que elas aludem
não são, em geral, as que chamam atenção por sua peculiaridade. Mas elas nos chamam
atenção como sugestivos e pitorescos artifícios mnemônicos. Assim, ‘o marechal de
ferro’ chama atenção por apontar para uma característica marcante do marechal Floriano
Peixoto, que foi o seu caráter autoritário e intransigente. Mas isso é de pouca
monta no sentido de nos permitir identificar univocamente Floriano Peixoto, pois
existiram muitos outros marechais com traços de caráter semelhantes. O que mais
propriamente nos permite identificar Floriano Peixoto é, certamente, saber que
ele satisfaz a descrição localizadora (a) de ter sido ‘a pessoa nascida em Joazeiro
em 1839, que esteve na guerra do Paraguai e no Acre e que veio a falecer em Barra Mansa em 1895’, além
da descrição caracterizadora (b) de ter sido ‘o segundo presidente e o primeiro
vice-presidente do Brasil, responsável pelos atos de repressão que consolidaram
a república’, ambas encontradas em enciclopédias.
(2) Há
também regras-descrições auxiliares não-metafóricas, que podemos classificar como
acidentais, apesar de bem conhecidas.
Exemplos de descrições acidentais bem conhecidas são ‘o homem que em criança foi
retirado do Nilo pela filha do faraó’ e ‘o tutor de Alexandre o Grande’. Essas descrições
são conhecidas pela maioria das pessoas que sabem os significados dos respectivos
nomes ‘Moisés’ e ‘Aristóteles’. Mesmo assim são acidentais, pois certamente nem
Moisés nem Aristóteles deixariam de ser quem se acredita que foram se elas fossem
descobertas falsas.
A esse tipo pertence também uma descrição muito
peculiar, que é aquela da forma ‘o portador do nome ‘N’’, por exemplo, ‘o portador
do nome ‘Aristóteles’’. Embora conhecidas e exploradas em implausíveis teorias
metalinguísticas dos nomes próprios, as descrições dessa forma são acidentais, pois
ninguém deixaria de ser quem é, nem de ser identificável como quem é, se tivesse
recebido um nome diferente ou se tivesse mudado seu nome. Com efeito, é um mero
acidente que Aristóteles tenha sido batizado com o nome ‘Aristóteles’, enquanto
não parece ter sido igualmente acidental para nós o fato de ele ter escrito o opus aristotélico ou de ser um filósofo
antigo. Se em um mundo possível Nicômaco, o médico da corte de Felipe, ao invés
de ter batizado o filho nascido em Estagira em 384 a .C. de ‘Aristóteles’, o
tivesse batizado com o nome de ‘Pitacus’, e se Pitacus tivesse estudado com Platão,
escrito todo o opus aristotélico e
tido exatamente o mesmo curso de vida de Aristóteles, nós não hesitaríamos em
dizer que nesse mundo possível Pitacus teria sido o nosso Aristóteles.[5] Que a regra-descrição
da forma ‘o portador do nome ‘N’’ não é fundamental para a identificação de um
objeto particular se deixa comprovar pelo fato de que podemos utilizar um nome próprio
e, após descobrirmos que ele é incorreto, substituí-lo pelo nome correto da mesma
pessoa. Além disso, podemos saber quem é uma pessoa – onde e quando encontrá-la
e saber o que é importante acerca dela – sem nos recordarmos ou sem sequer sabermos
como ela se chama. Parece, pois, que o nome próprio entendido como uma marca
sensível é como o rótulo de um fichário que contém as regras-descrições mais e
menos relevantes; podemos trocar o rótulo, mas o que realmente importa é o conteúdo
do fichário (mesmo que alguma marca sensível seja necessária para dizermos qual
o fichário que estamos considerando, ela é no final das contas contingente).
Essas
considerações nos levam a uma conclusão curiosa. Se admitirmos que em nossas reflexões
sobre a linguagem uma explicação filosoficamente relevante é aquela que tem um
importe epistemológico ou metafísico[6], então
uma teoria filosófica da semântica dos nomes próprios não é uma teoria sobre
aquilo que chamamos de nome próprio na linguagem corrente, que é a marca sensível
do nome, a sua expressão fonética ou ortográfica, o que podemos chamar de expressão simbólica do nome. Essa expressão é aquilo que faz com
que, por exemplo, a palavra ‘Köln’ possa ser tida como um nome diferente de ‘Colônia’.
Uma teoria filosoficamente relevante dos nomes próprios precisa ser uma teoria
dos conteúdos semânticos constitutivos dos nomes próprios, capaz de
explicitar os mecanismos de referência contidos nas regras-descrições relevantes
associadas aos nomes como marcas sensíveis; ela é uma teoria do fichário e não do
seu rótulo, que embora requerido é enquanto tal contingente, pois pode variar[7].
Podemos
fazer aqui uma distinção paralela a que já vimos entre o sentido lexical e o conteúdo
semântico dos indexicais. O sentido lexical do nome próprio é o de um termo usado
para nomear um objeto particular; esse sentido pode ser indicado por descrições
do tipo ‘o portador do nome ‘N’’. Uma teoria do sentido lexical do nome próprio
é possível, mas lhe faltará importe epistêmico, posto que ela não nos permitirá
distinguir qual é o portador do nome. Uma teoria do conteúdo semântico do nome
próprio, por sua vez, será uma teoria da sua significação cognitiva, dos seus
sentidos fregeanos, daquilo que há de comum entre as regras estabelecedoras dos
critérios de identificação de seus portadores. Só semelhante teoria terá força
explicativa para esclarecer a relação epistêmica entre o nome próprio e o seu
objeto. Mas por isso mesmo para ela a marca sensível de um nome próprio torna-se,
no final das contas algo acidental, pois se admite que um conjunto de marcas
sensíveis diversas possa convencionalmente exprimir um idêntico ou similar
conteúdo semântico sem com isso deixar de produzir um ato de nomeação do mesmo
objeto. Nesse caso sim, chamamos essas marcas sensíveis de ‘expressões simbólicas’
do nome próprio. Por isso para nós o nome próprio é um conteúdo semântico
identificador acrescido de alguma marca sensível convencionada que torne esse
conteúdo comunicável.[8]
(3) Há
também regras-descrições acidentais e geralmente
desconhecidas. Exemplos são ‘o marido de Pitias’, ‘o amante de Herphylis’,
‘o neto de Achaeon’. Poucos sabem que essas descrições se associam todas ao nome
‘Aristóteles’. Tais descrições definidas podem, naturalmente, ser multiplicadas
à vontade, sendo encontradas aos montes em biografias. Considere, por exemplo,
a descrição definida: ‘o filósofo austríaco que ao se engajar como soldado na Primeira
Guerra Mundial ameaçou suicidar-se caso seus superiores não o enviassem a lugares
realmente perigosos’, que faz parte da biografia de Ludwig Wittgenstein.[9] Por serem
conhecidas de alguns poucos, elas não têm função relevante em sua associação com
o nome próprio. Imagine que tudo o que um falante sabe de Aristóteles é que ele
foi o neto de Achaeon. Ele não será capaz de fazer uso desse nome de modo a comunicar-se
com outras pessoas em geral, pois a falta de compartilhamento da descrição não
auxilia as pessoas a reconhecerem no nome ‘Aristóteles’ por ele usado o filósofo
grego ao invés de, digamos, o milionário grego Aristóteles Onassis.[10]
(4) Finalmente,
há descrições auxiliares adventícias,
como a expressa pela descrição ‘o filósofo mencionado pelo professor’ ou ‘a senhora
que nos foi apresentada na reunião’. As regras aqui expressas associam o nome ao
contexto no qual foi propriamente usado. Elas são provisórias. Elas costumam ser
constituidas, usadas por algum tempo e depois abandonadas e esquecidas, não sendo
por isso constituintes semânticos permanentes e característicos do nome. Contudo,
por se reportarem a um contexto conhecido por um grupo de falantes em um certo período
de tempo, tais regras podem bastar para que um falante seja capaz de usar o
nome próprio em conversação de modo que ele seja univocamente reconhecido pelos
seus interlocutores, com a possibilidade de subsequente troca de informações sobre
o seu portador.
Nesse ponto poderia ser feita a seguinte objeção.
Afora o fato de constarem nos cabeçalhos dos verbetes das enciclopédias, não parece
haver maiores razões para se privilegiar as descrições ditas fundamentais. Afinal,
do mesmo modo como as descrições auxiliares são contingentes, o mesmo pode acontecer
com as próprias descrições fundamentais: é perfeitamente possível que Aristóteles
não tivesse escrito suas obras filosóficas, que Pelé não tivesse se tornado
jogador de futebol, que o Taj Mahal não tivesse sido construído perto de Agra!
Podemos, afinal, imaginar mundos possíveis nos quais nada disso seja o caso,
mas onde mesmo assim atribuimos existência a Aristóteles, Pelé e o Taj Mahal. As
descrições fundamentais não designam, pois, uma essência necessária ao portador
do nome próprio. Em contrapartida, podemos identificar um único objeto por meio
de uma descrição auxiliar: para saber que alguém está falando de Aristóteles pode
ser suficiente saber que ele fala do fundador do Liceu, ou do tutor de
Alexandre, ou quem sabe até mesmo do amante de Herphylis.
A única coisa que posso fazer diante dessa objeção
é pedir ao leitor paciência. Só após a introdução de regras de ordem superior capazes
de selecionar as combinações de regras-descrições
de primeira ordem capazes de justificar a aplicação de um nome próprio é que a
importância das descrições dos grupos A e B se tornará iniludível.
A
regra disjuntiva
Cumpre,
pois, antes de tudo, demonstrar que há meios de distinguir quais as combinações
entre as descrições do feixe que licitam a aplicação referencial do nome próprio.
Para tal precisamos buscar uma regra-descrição de segunda ordem capaz de se
aplicar às regras-descrições de primeira ordem associadas a um nome próprio qualquer,
de maneira a selecionar as combinações que tornam a aplicação do nome possível.
Essa regra de regras deve ser, portanto, uma meta-regra, uma regra meta-descritiva aplicável aos feixes de descrições
que associamos a nomes próprios em geral.
Como encontrá-la? Para começar podemos descartar
como insuficientemente relevantes as descrições do grupo C. Elas são identificadoras
apenas no sentido de auxiliar na conexão do falante com o objeto, na medida em que
possibilitam a sua inserção em um meio comunicacional que já tem como pressuposto
que as verdadeiras regras de identificação do objeto capazes de concluir essa
conexão já são conhecidas, senão por todos, ao menos pelos usuários privilegiados
do nome ou pelo conjunto desses usuários privilegiados. A evidência que podemos
oferecer para isso é que as descrições auxiliares podem estar ausentes, mesmo
em seu conjunto: podemos imaginar que Aristóteles não tivesse sido nem o maior
discípulo de Platão, nem o tutor de Alexandre, nem o filho de Nicômano, nem o marido
de Pítias, nem o fundador do Liceu, e que mesmo assim fosse o grande filósofo grego
por nós conhecido. Contudo, o mesmo não pode ser dito das descrições fundamentais.
Não podemos conceber que nem a descrição localizadora nem a descrição caracterizadora
se apliquem; não podemos conceber “~A & ~B”. Para evidenciar isso, basta lembrarmo-nos do exemplo
dado por Searle do especialista em Aristóteles que veio nos informar ter descoberto
que Aristóteles não escreveu nenhuma das obras a ele atribuídas, mas foi na
verdade um ignaro mercador de peixes veneziano do renascimento tardio...[11] Nós responderemos
que na melhor das hipóteses ele poderá estar falando de outra pessoa de nome Aristóteles,
mas que ela não tem nada a ver com a pessoa que temos em mente. E a razão disso é
que nenhuma das regras-descrições fundamentais que associamos ao nome ‘Aristóteles’
está sendo minimamente satisfeita.
Se a regra meta-identificadora exclui “~A
& ~B”, incluiria ela “A & B”? Deveria ela exigir a conjunção da descrição
localizadora com a descrição caracterizadora, ou somente rejeitar a sua disjunção?
Ainda que usualmente os objetos referidos pelos nomes próprios satisfaçam uma
conjunção de condições dos grupos A e B de descrições, é muito fácil conceber
situações e casos incomuns em que o nome se refere sem que a condição pertencente
a um desses dois grupos seja satisfeita.
Para evidenciar
esse ponto considere uma vez mais o nome ‘Aristóteles’. Não é difícil imaginar
mundos possíveis próximos ao nosso, nos quais ele existiu sem satisfazer a conjunção
das regras de localização e de caracterização para Aristóteles. A regra de localização
para Aristóteles não precisa necessariamente se aplicar: podemos perfeitamente conceber
um mundo possível próximo ao nosso no qual Aristóteles escreveu o opus aristotélico, mas nasceu e morreu em
Roma alguns séculos mais tarde, não tendo existido nenhum discípulo de Platão chamado
Aristóteles e nascido em Estagira no século IV a.C. Mesmo assim, não
hesitaremos em reconhecer nele o nosso Aristóteles, posto que ao menos a regra
de caracterização continua sendo satisfeita.
Podemos
também conceber um mundo possível nos qual somente a regra de localização para
Aristóteles é satisfeita, mas não a regra de caracterização, pois nele a filosofia
de Aristóteles nunca existiu. Suponha que nesse mundo Aristóteles tenha nascido
em Estagira em 384 a .C.,
filho de Nicômano, médico da corte de Felipe, e que aos 17 anos ele tenha viajado
para Atenas para estudar com Platão. Infelizmente, pouco após a sua chegada ele
foi acometido de uma febre cerebral que o incapacitou para atividades intelectuais
pelo resto da vida, até a sua morte em Chalkis em 322 a .C. Apesar disso, parece
que temos elementos suficientes para reconhecer nessa pessoa o nosso Aristóteles
“em potência”. Mas aqui só a regra de localização está sendo satisfeita.
Outra evidência de que a satisfação da conjunção
das regras identificadoras não é necessária é que há nomes próprios que por convenção
se referem a um objeto somente através de sua localização ou então somente
através de sua caracterização.
Como exemplo do primeiro tipo, suponhamos que alguém
decida chamar de Z o centro de um
círculo. Esse ponto satisfaz a condição do tipo A de ter localização espaciotemporal
definida, mas para que a identificacão seja feita não é preciso que o ponto possua
nenhuma característica distintiva relevante. Em nosso exemplo ele é apenas um
ponto que uma vez estabelecido pode ser usado, digamos, para que se efetuem
mensurações geométricas.
Outro exemplo
que pode ser nesse contexto lembrado é o do nome ‘Vênus’. A regra de localização
é ‘o segundo planeta do sistema solar, orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra
enquanto tem sido identificado como tal e provavelmente já há milhões de anos’,
enquanto a regra de caracterização é ‘um planeta com um terço da massa da Terra
e densa atmosfera’. Contudo, o que importa aqui é que a regra de localização seja
satisfeita, a regra de caracterização quase nada importando. Se Vênus perdesse
parte de sua massa ou se perdesse a sua atmosfera, que o torna o planeta brilhante
que vemos, conquanto continuasse a ser um planeta (uma demanda já incluída na
regra de localização), ele continuaria a ser Vênus. Podemos imaginar que Vênus
perca tanto de sua massa que se torne do tamanho de um asteróide. Mas nesse
caso ele deixaria de ser um planeta para ser um asteróide, deixando de satisfazer
a própria regra de localização. Podemos ainda imaginar que ele deixe de orbitar
o sol. Mas nesse caso ele não deixará de satisfazer a regra de localização, pois
no tempo em que foi denominado Vênus pelos astrônomos ele ainda orbitava o sol.
Mesmo que seja descoberto que ele não pertenceu ao sistema solar primitivo, tendo
vindo do espaço há um milhão de anos atrás, ainda assim ele satisfará a regra de
localização.
Uma maneira de se parafrasear o que acontece
em tais casos é dizer que neles a regra de caracterização é a própria regra de
localização. Lembremo-nos que a regra de caracterização foi definida como a
razão pela qual escolheu-se usar o nome próprio. Mas no caso do centro Z do círculo
essa razão é a própria localização e no caso de Vênus a regra de localização é a
razão que realmente conta.
Também
existem exemplos que exigem apenas a satisfação da regra de atribuição. Um deles
é oferecido pelo nome ‘Almostásim’, que aparece no conto de Borges intitulado El aciercamento de Almostásim. Almostasim
é um ser, possivelmente uma pessoa, que pelo contato com as outras emana perfeição.
Alguns acreditam que podemos nos aproximar dele pelo contato com outros seres humanos
que tenham se tornado repositórios limitados de sua ilimitada grandeza. Apenas nessas
indicações vagas se constitui a regra caracterizadora desse nome. Mas não há uma
regra identificadora de sua localização espaciotemporal, pois ninguém jamais encontrou
Almostásim e alguns até mesmo negam que ele exista.
Há,
finalmente, um exemplo de nome próprio que por definição não pode ter regra de localização:
trata-se da palavra ‘Universo’ (ou ‘Multiverso’, como alguns preferem). O
objeto referido por esse nome tem regra de caracterização: ele é tudo o que poderia
ser comprovado como empiricamente existente. Mas ele não pode ter regra de localização
espaciotemporal, pois ao conter todo o espaço e todo o tempo, o Universo não pode
estar nem no espaço nem no tempo.[12]
Ora, se excluirmos a possibilidade de “~A & ~B” e a necessidade de “A & B”,
é forçoso que a condição meta-descritiva usual para a aplicação do nome próprio
seja “A ˅ B”, ou seja, uma disjunção inclusiva
das descrições localizadora e caracterizadora. Dessas considerações segue-se
uma primeira e mais rudimentar versão da regra referencial meta-identificadora
para os nomes próprios, a ser aplicada a regras-descrições fundamentais de primeiro
nível pertencentes aos grupos A e B. Chamo-a de regra disjuntiva:
RD:
Um nome próprio ‘N’ refere-se propriamente
a um objeto x pertencente a uma classe
G de objetos
see,
(i-a) x
satisfaz sua regra de localização L
e/ou
(i-b) x
satisfaz sua regra de caracterização C.
(assumindo a satisfação de Cc)
Para
exemplificar: podemos aplicar o nome próprio ‘Aristóteles’ a um objeto da classe
dos seres humanos se e somente se existe um indivíduo que (i-a) satisfaz a regra
de localização para ‘Aristóteles’, que é a de ter nascido em Estagira em 384 a .C. tendo vivido a principal
parte de sua vida em Atenas... e falecido em Chalkis em 322 a .C. e/ou (i-b) satisfaz
a regra de atribuição de ‘Aristóteles’, que é a de ter produzido o conteúdo do opus aristotélico. Essa instanciação de
RD já pode ser considerada uma regra de identificação para o portador do nome ‘Aristóteles’.
Não obstante, uma regra de identificação que tenha essa forma ainda é, como veremos
mais tarde, demasiado rudimentar.
Algumas considerações adicionais sobre RD precisam
ser feitas. A primeira é a de que digo “N refere-se propriamente ao
objeto x” entendendo por isso que a referência feita por um usuário idealizado
do nome que realmente conhece a regra, o que costuma ser somente o caso dos usuários
privilegiados, embora não necessariamente. Trata-se aqui de uma referência própria
no sentido de que é feita com suficiente base cognitiva, o que geralmente não acontece
quando uma pessoa emprega nomes como ‘Murray Gell-Mann’ e ‘Isaac Newton’ sem saber
propriamente sobre quem está falando.
A
segunda consideração adicional é a de que a classe G é algo equivalente ao genus proximum, com a função limitadora
de estabelecer o gênero de coisas mais relevante ao qual x pertence. O recurso à classe G serve para limitar previamente o escopo
da definição, pois sem isso teríamos de escolher um entre todos os objetos do universo,
o que consumiria demasiado tempo. Para o nome ‘Aristóteles’, por exemplo, G
pode designar a classe dos seres humanos. Com isso excluimos de antemão que ‘Aristóteles’
seja o nome de um colégio ou de um programa de computador. Mesmo que em um mundo
possível um programa de computador denominado ‘Aristóteles’ produzisse o opus aristotélico, não teríamos com base
nisso razão para admitir que ele fosse o nosso Aristóteles, até mesmo no caso
em que ele fosse construído por alienígenas no ano 384 a .C. em Estagira, utilizado
por mais de vinte anos em Atenas e finalmente desmantelado em 322 a .C. em Chalkis. Preferiríamos
considerar essa uma coincidência ou uma falsificação. O recurso a uma classe G mais
estrita pode ser particularmente útil para desambiguar os nomes próprios. Se G for
entendida como a classe dos filósofos antigos, fica de antemão excluido que
Aristóteles possa ser um grande armador grego que viveu no século XX ou o nome de
um aluno do curso de filosofia da UFRN.
Aqui
poderia ser feita a seguinte pergunta: em RD as descrições auxiliares
desaparecem; mas então qual é o papel das descrições auxiliares? A resposta começa
a emergir quando nos perguntamos se as descrições auxiliares sozinhas seriam capazes
de identificar o portador de um nome próprio. Suponha que certo objeto satisfaça
muitas ou todas as descrições auxiliares associadas ao seu nome, mas sem satisfazer
nenhuma das descrições fundamentais. Suponha que um certo Aristóteles tenha
vivido no século XVI em Veneza e que ele tenha sido um mercador de peixes intelectualmente
obtuso. Mas suponha que mesmo assim ele satisfaça a maioria as descrições auxiliares
para esse nome. Suponha que ele tenha sido filho de um um homem chamado Nicômaco,
neto de Achaeon, que ele tenha sido marido de Pítias e amante de uma Herphylis
e que tenha fundado um Liceu e ensinado um tal de Alexandre. Ora, por mais notáveis
que fossem essas coincidências, elas não seriam relevantes, pois lhes faltariam
os contextos apropriados de localização e caracterização. Afinal, esse Nicômaco não poderia ser o médico
chamado Nicômano que sabemos ter trabalhado na corte do Felipe da Macedônia, nem
o avô Achaeon pode ser aquele mesmo que viveu no século IV a.C. Nem Pítias nem Herphylis
poderiam ser mulheres da Grécia antiga, apesar dos nomes. O Alexandre que esse falso
Aristóteles ensinou não poderia ter sido o maior conquistador de todos os tempos.
E o Liceu que esse inepto fundou não poderia ter nada a ver com o Liceu que preservou
o aristotelismo antigo. A barafunda conceitual criada na tentativa de se conceber
uma situação na qual só as descrições auxiliares permanecessem as mesmas não é capaz
de produzir mais do que uma série de curiosas e estranhas coincidências, que se
nos apresentam como uma persiflagem incapaz de nos convencer da autenticidade
do Aristóteles proposto. Por mais que se adicionem umas às outras, as
descrições auxiliares sozinhas são incapazes de nos prover de uma verdadeira regra
de identificação do nome próprio.
Regra
meta-identificadora: primeira versão
Embora
a regra disjuntiva seja importante por evidenciar o papel das descrições que realmente
importam, ela não é de modo algum suficiente, pois ela é de um lado estreita demais
e de outro ampla demais. Afinal, logo veremos que há casos de aplicação nos quais
somente uma das regras-descrições fundamentais é apenas parcialmente satisfeita,
enquanto a outra não é satisfeita de modo algum e mesmo assim o nome possui referência.
Pior ainda, podemos imaginar casos de aplicação do nome próprio nos quais ambas
as regras fundamentais são aplicáveis e mesmo assim o nome não possui referência!
Consideremos primeiro um caso que demonstra
a estreiteza da aplicação da regra disjuntiva. Trata-se do caso óbvio no qual a
regra localizadora é mesmo incompletamente satisfeita enquanto a regra caracterizadora
não é nem um pouco satisfeita, mas mesmo assim o nome próprio se aplica. Imagine
um mundo possível próximo ao nosso, uma situação contrafactual na qual não existiu
a filosofia aristotélica, mas no qual existiu um Aristóteles que morreu ainda
jovem, pois o seu navio afundou no mar Egeu quando ele decidiu viajar para Atenas
para estudar com Platão. Mesmo assim, se soubermos que ele nasceu em Estagira
em 384 a .C.,
que foi filho do médico Nicômano da corte de Felipe e que foi enviado pelo avô Achaeon
para Atenas aos 17 anos se tornar discípulo de Platão, não teremos dúvida de
que se trata de nosso Aristóteles “em potência”, mesmo que RD não chegue a ser
satisfeita. A regra localizadora foi parcialmente satisfeita, uma vez que as informações
que temos do curso de vida de Aristóteles depois dos 17 anos desapareceram. Já
a regra caracterizadora não foi em nada satisfeita, visto que esse jovem cuja
vida fora truncada pelo destino nada deixou escrito.
Consideremos agora um caso no qual só a regra
caracterizadora é satisfeita e mesmo assim de modo incompleto. Imagine um mundo
possível próximo ao nosso no qual não existiu nenhum Aristóteles e nenhuma obra
aristotélica no mundo antigo, embora tenha existido Platão e os outros
filósofos gregos. Imagine que nesse mundo, no século XII, em Córdoba, um filósofo
árabe que leu toda a filosofia grega disponível tenha escrito em grego antigo
partes da obra de Aristóteles, incluindo o Organon
e conteúdos da Metafísica e da Ética a Nicômano sob o pseudônimo de ‘Aristóteles’
(ou, se quisermos, que tenha escrito em árabe todo o conteúdo ideativo e
argumentação relevante do opus aristotélico).
Em tal situação, na qual não há nenhum concorrente para o nome, também tenderíamos,
embora com alguma relutância, a reconhecer essa pessoa como o nosso Aristóteles
nesse mundo.
Claro
que há limitações para esse procedimento. Se, em um mundo possível similar ao nosso
no qual a filosofia aristotélica nunca existiu, em 384 a .C. em Estagira o médico
da corte não fosse Nicômano, mas apesar disso ele teve um filho que foi chamado
de Aristóteles, o qual morreu pouco após o seu nascimento, teremos dificuldade
em crer que ele tenha sido o nosso Aristóteles. E se o filósofo árabe de pseudônimo
Aristóteles tivesse escrito apenas a primeira seção do livro Alfa da Metafísica, nós provavelmente não o reconheceríamos
como o nosso Aristóteles. Tais casos tenderiam a ser por nós reconhecidos como estranhas
e inexplicáveis coincidências. Isso nos faz concluir que a regra meta-identificadora
disjuntiva deva ser completada por uma condição exigindo que as regras-descrições
fundamentais sejam apenas suficientemente
satisfeitas de acordo com as circunstâncias
dadas, não precisando, pois, ser completamente
satisfeitas.
Consideremos
agora o caso em que as descrições caracterizadoras são conjuntivamente satisfeitas,
mas apenas de modo parcial. Nesse caso parece que o limite mínimo de satisfação
exigido para cada descrição se tornaria menor do que o limite mínimo para a satisfação
da descrição no caso em que somente uma das regras fundamentais fosse incompletamente,
mas suficientemente satisfeita. Assim, se em um mundo possível tivesse nascido um
único Aristóteles em 384 a .C.,
não em Estagira, mas em Atenas, tivesse estudado com Platão, escrito apenas as Categorias e depois morrido, parece que
isso já seria suficiente para admitirmos que se trata do nosso Aristóteles. Nesse
caso parece que da satisfação insuficiente de cada disjunto resulta uma satisfação
suficiente da regra disjuntiva. Ou seja: a exigência de uma satisfação suficiente
da disjunção inclusiva deve incluir a consideração da soma da satisfação dos
disjuntos.
Uma dúvida
importante que resta é sobre a medida exata do que devemos entender como sendo
suficiente. Não creio que exista uma resposta para isso. Afinal, a linguagem
empírica é inevitavelmente vaga e nossos critérios de aplicação das palavras
não delimitam as suas fronteiras extensionais de maneira cortante. Há sempre casos
incertos, acerca dos quais não sabemos se devemos ou não aplicar nossos
critérios. Importante é que apesar dessa vaguidade de nossa linguagem natural,
somos em geral perfeitamente capazes de nos comunicar sobre os objetos de referência.
Por isso a vaguidade da linguagem natural, que supostamente reflete a vaguidade
própria das divisões da realidade que pretendemos categorizar, não é uma imperfeição
dessa linguagem, mas um fato a ser admitido, sendo frequente que uma linguagem vaga
seja aquela capaz de modular o discurso de maneira mais satisfatória.
Outro ponto é que o Aristóteles
recém-mencionado deixaria de ser o nosso Aristóteles se existisse um ou mais concorrentes
que também satisfizessem a regra disjuntiva. Assim, imagine um mundo possível
no qual Nicômano tivesse como filhos dois gêmeos idênticos batizados ‘Aristóteles’,
que eles fossem estudar com Platão e que tivessem escrito o opus aristotélico a quatro mãos. Embora seja
possível dizer que esse mundo tem dois “Aristóteles”, sob outra perspectiva é
possível dizer que esse mundo não tem nenhum Aristóteles, pois um nome próprio é
um termo singular que por definição só pode se aplicar a apenas um objeto único
e próprio. Essa consideração nos leva a uma nova condição a ser adicionada, que
é a de o nome ter apenas uma única e mesma referência. Precisamos admitir como
condição de aplicação da própria regra meta-referencial identificadora uma condição de unicidade, qual seja, a de
que no domínio considerado somente um único
e mesmo objeto satisfaça a regra disjuntiva.
O principal
caso no qual a condição de unicidade deixa de ser satisfeita é aquele em que a
regra de localização é satisfeita por um objeto enquanto a regra de atribuição
é satisfeita por outro. Este seria o caso em um mundo possível M1 no
qual existiu (a) um Aristóteles grego, filho de Nicômano, que nasceu em Estagira
em 384 a .C.,
mas que contraiu febre cerebral ao chegar a Atenas e não fez coisa alguma em filosofia
até sua morte em Chalkis em 322
a .C., e (b) um filósofo de nome Aristóteles, que escreveu
boa parte do opus aristotélico em Roma
cerca de duzentos e cinquenta anos mais tarde. Nessas circunstâncias, não temos
mais como decidir quem foi o verdadeiro Aristóteles, se o grego ou o romano,
pois as nossas duas regras identificadoras fundamentais entram em conflito uma
com a outra. A alternativa mais natural e imediata é abandonarmos a suposição
de que nosso Aristóteles existe em tal mundo, posto que a condição de unicidade
do objeto não é satisfeita.
Esse caso nos faz lembrar do paradoxo do
navio de Teseu relatado nos manuais de filosofia. Digamos que esse navio tenha
recebido o nome de ‘Calibdus’. No curso dos anos Teseu repôs pouco a pouco as
partes do seu navio até que, no final, todas elas foram substituídas. Contudo,
alguém decidiu então recondicionar as partes antigas que haviam sido guardadas
e com elas construir outro navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém pergunte:
“Qual dos dois navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos ao certo
o que responder. Uma primeira suposição poderia ser a de que ambos são o navio
de Teseu. Mas isso seria contraditório, pois um termo singular não pode se
referir a mais de um objeto. A maioria das pessoas tenderá a dizer que o
verdadeiro navio de Teseu é aquele no qual ele navegou todos aqueles anos, mas
ainda assim restará um desconforto: o segundo navio é o único que é realmente o
mesmo que aquele que foi inicialmente construido! O problema não é irrelevante
pois, como já foi notado, se os dois navios se chocarem e começarem a afundar,
Teseu, que, como todo bom comandante deseja afundar com o seu próprio navio,
terá de decidir se permanecerá no velho ou se não deverá antes tentar saltar
para o novo.
O que consideramos até agora já nos permite
uma resposta mais segura para esse velho paradoxo. A razão da incerteza se
encontra no fato de que percebemos que a questão de saber qual dos dois navios
é Calibdus é capaz de se tornar indecidível devido a um conflito criterial
entre as duas regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio
satisfaz uma regra localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que
foi construído em um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma longa
carreira espaciotemporal sob o comando de Teseu. A segunda regra, satisfeita
pelo segundo navio, pertence ao aspecto caracterizador. Ela nos diz que o navio
de Teseu é aquele que foi construído com um certo material específico.
Percebemos aqui a razão do desconforto.
Nesse ponto alguém poderá, com razão,
objetar que a regra caracterizadora é mais complexa. Ela não diz respeito
apenas a um mesmo material, mas inclui características funcionais e estruturais
que foram preservadas em ambos os navios. Como consequência, parece que o
primeiro navio deve ser o Calibdus comandado por Teseu, pois ele satisfaz mais
completamente as regras-descrições fundamentais. Por isso essa costuma ser a
primeira ideia que nos vem à mente. Contudo, podemos equilibrar essa diferença
aumentando a rapidez da substituição das partes velhas pelas novas, de modo a
encurtar a carreira espaciotemporal do navio até que a substituição das peças
se complete. Imagine que toda a sequência de substituições de partes tivesse
lugar em apenas três meses. Nesse caso começaríamos a ter dúvidas. E se ela
tivesse lugar em uma semana? Imagine agora que o Calíbdus de Teseu seja
construido e batizado com esse nome, mas que ele não seja sequer lançado ao
mar. Horas depois de pronto, os trabalhadores começam a construir um segundo
navio ao lado, mas com peças retiradas do Calibdus, ao mesmo tempo que outras
pessoas enviam peças novas para substituir as peças que o Calibdus havia doado
para o navio ao lado, de modo que após uns três dias teremos dois navios idênticos,
um ao lado do outro. Nesse caso, nossa tendência será a de dizer que o segundo
navio é o verdadeiro Calibdus, pois tudo o que aconteceu foi que ele, por assim
dizer, “mudou de lugar”.
Mas, voltemos à estória de Calibdus como
tendo navegado por um certo tempo sob o comando de Teseu. Como um mesmo nome
próprio não pode nomear mais de um objeto, resta a estratégia de renomear os
navios. Se nos for útil, podemos introduzir nomes próprios substitutivos,
admitindo a existência de dois navios: o Calibdus-1, que satisfaz por completo
a regra de localização e parte da regra de caracterização, e o Calibdus-2, que
embora não satisfazendo a regra de localização, satisfaz por completo a regra
de caracterização, a qual entre outras coisas requer a preservação do mesmo
material do navio desde que ele foi inicialmente construido. Do mesmo modo, no
exemplo anterior podemos propor a existência de dois Aristóteles no mundo
possível M1: o Aristóteles-1, que é o da Grécia antiga e que satisfaz
somente a regra de localização, e o Aristóteles-2, que é apenas o autor de boa
parte do opus aristotélico, e que
satisfaz somente a regra de caracterização. Seria um erro, porém, ver nisso uma
resposta ao mesmo problema. Trata-se simplesmente de um novo lance no jogo de nomear,
uma proposta de novas convenções para novos termos referenciais, a serem usados
no lugar do termo malogrado.
Adicionando as condições de suficiência e
unicidade à regra disjuntiva, chegamos a uma mais apropriada formulação da
regra meta-identificadora reguladora do comportamento semântico das
regras-descrições fundamentais concernentes a cada nome próprio. Eis como ela
pode ser formulada:
RMI1:
Um nome próprio ‘N’ refere-se a um objeto x pertencente
a uma classe G de objetos
see
(i-a) x
satisfaz uma regra de localização L
para N
e/ou
(i-b) x
satisfaz uma regra de caracterização C para
N
e
(ii) a satisfação de L e/ou C por x é em seu todo suficiente e
(iii) unívoca.
(Assumindo a satisfação de
uma condição causal do tipo Cc.)
Chamo
a regra resultante da aplicação da regra meta-identificadora RM1 às
regras-descrições fundamentais de um dado nome próprio de regra
meta-identificadora para as regras-descrições fundamentais desse nome próprio
ou – para evitar a introdução de uma terminologia especiosa – de regra de identificação ou regra definicional desse nome próprio
(essa regra pode também ser vista, se preferirem, como uma simples instanciação
de RMI1 na qual as variáveis ‘N’, G, L, e C são
substituídas por constantes). Lembremo-nos também que a condição (ii), de
suficiência, é para ser aplicada “ao todo”, ou seja, ao somatório da satisfação
de cada disjunto. Isso nos permite resgatar a intuição de que a regra pode ser
aplicada (sendo portanto aplicável) quando cada disjunto isoladamente considerado
é insuficientemente satisfeito. A regra será aplicável se a soma da satisfação
de cada disjunto for suficiente para sua aplicação. Finalmente, nada custa
adicionar (iv): a condição de que haja uma relação causal do tipo Cc entre o
nome e o objeto referido, ainda que essa relação tenha pouco ou nenhum valor
explicativo (veremos que quando elementos dela passam a ter valor explicativo
ela passa a ser explicitada dentro da própria regra disjuntiva).
A regra de identificação para o nome próprio
‘Aristóteles’ pode ser agora abreviadamente expressa como:
RI1-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ refere-se
propriamente a um objeto x pertencente
à classe dos seres humanos
see
(i-a) x
satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a .C., vivido grande parte
de sua vida em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a .C.
e/ou
(i-b) x
satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido o autor das grandes idéias do opus aristotélico
e
(ii) a satisfação da regra de localização e/ou
da regra de aplicação para x é em seu
todo suficiente e
(i)
unívoca.
(Assumindo-se ainda a satisfação de uma
condição causal do tipo Cc.)
O
nome Aristóteles é colocado aqui entre com o imtuito de salientar que como
marca sensível ele não é um componente indispensável: um outro signo poderia
eventualmente satisfazer as mesmas condições.
Regra
meta-identificadora: primeira versão
Embora
a regra disjuntiva seja importante por evidenciar o papel das descrições que
realmente importam, ela não é de modo algum suficiente, pois ela é de um lado
estreita demais e de outro ampla demais. Afinal, logo veremos que há casos de
aplicação nos quais somente uma das regras-descrições fundamentais é apenas
parcialmente, enquanto a outra não é satisfeita de modo algum e mesmo assim o
nome possui referência. Pior ainda, podemos imaginar casos de aplicação do nome
próprio nos quais ambas as regras fundamentais são aplicáveis e mesmo assim o
nome não possui referência!
Consideremos primeiro o caso da estreiteza
da definição. Aqui a regra localizadora pode ser mesmo incompletamente
satisfeita e a regra caracterizadora não é nem um pouco satisfeita. Imagine um
mundo possível próximo ao nosso, uma situação contrafactual na qual não existiu
a filosofia aristotélica, mas no qual existiu um Aristóteles que morreu ainda
jovem, pois o seu navio afundou no mar Egeu quando ele decidiu viajar para
Atenas para estudar com Platão. Mesmo assim, se soubermos que ele nasceu em
Estagira em 384 a .C.,
que foi filho do médico Nicômano da corte de Felipe e que foi enviado pelo avô
Achaeon para Atenas aos 17 anos para estudar com Platão, não teremos dúvida de
que se trata de nosso Aristóteles “em potência”, mesmo que RD não chegue a ser
satisfeita. A regra localizadora foi parcialmente satisfeita, uma vez que as informações
que temos do curso de vida de Aristóteles depois dos 17 anos desapareceram. Já
a regra caracterizadora não foi em nada satisfeita, visto que esse jovem que
teve a vida truncada pelo destino nada escreveu.
Consideremos
agora um caso no qual só a regra caracterizadora é satisfeita e mesmo assim de
modo incompleto. Imagine um mundo possível próximo ao nosso no qual não existiu
nenhum Aristóteles e nenhuma obra aristotélica no mundo antigo, embora tenha
existido Platão e os outros filósofos gregos. Imagine que nesse mundo, no
século XII, em Córdoba, um filósofo árabe que leu toda a filosofia grega
disponível e tenha escrito em grego antigo partes da obra de Aristóteles,
incluindo o Organon e conteúdos da Metafísica e da Ética a Nicômano sob o pseudônimo de ‘Aristóteles’ (ou, se
quisermos, que tenha escrito em árabe todo o conteúdo ideativo relevante do opus aristotélico). Em tal situação, na
qual não há nenhum concorrente para o nome, também tenderíamos, talvez com com
alguma relutância, a reconhecer essa pessoa como o nosso Aristóteles nesse
mundo.
Claro que há limitações para esse
procedimento. Se, em um mundo possível similar ao nosso, no qual a filosofia
aristotélica nunca existiu, em 384
a .C. em Estagira o médico da corte não fosse Nicômano,
mas apesar disso ele teve um filho que foi chamado de Aristóteles, o qual
morreu pouco após o seu nascimento, teremos dificuldade em crer que ele tenha
sido o nosso Aristóteles. E se o filósofo árabe de pseudônimo Aristóteles
tivesse escrito apenas a primeira seção do livro Alfa da Metafísica, nós provavelmente não o reconheceríamos como o nosso
Aristóteles. Tais casos tenderiam a ser por nós reconhecidos como estranhas e
inexplicáveis coincidências. Isso nos faz concluir que a regra meta-identificadora
disjuntiva deva ser completada por uma condição exigindo que as
regras-descrições fundamentais sejam apenas suficientemente
satisfeitas de acordo com as
circunstâncias dadas, não precisando, pois,
ser completamente satisfeitas.
Consideremos agora o caso em que as
descrições caracterizadoras são conjuntivamente satisfeitas, mas apenas de modo
parcial. Nesse caso parece que o limite mínimo de satisfação exigido para cada
descrição se tornaria menor do que o limite mínimo para a satisfação da descrição
no caso em que somente uma das regras fundamentais fosse incompletamente, mas
suficientemente satisfeita. Assim, se em um mundo possível tivesse nascido um
único Aristóteles em 384 a .C.
não em Estagira, mas em Atenas, tivesse estudado com Platão, escrito apenas as Categorias e depois morrido, parece que
isso já seria suficiente para admitirmos que se trata do nosso Aristóteles.
Nesse caso parece que da satisfação insuficiente de cada disjunto resulta uma
satisfação suficiente da regra disjuntiva. Ou seja: a exigência de uma
satisfação suficiente da disjunção inclusiva deve incluir a consideração da
soma da satisfação dos disjuntos.
Uma dúvida importante que resta é sobre a
medida exata do que devemos entender como sendo suficiente. Não creio que exista
uma resposta para isso. Afinal, a linguagem empírica é inevitavelmente vaga e
nossos critérios de aplicação das palavras não delimitam as suas fronteiras
extensionais de maneira cortante. Há sempre casos incertos, acerca dos quais
não sabemos se devemos ou não aplicar nossos critérios. Importante é que apesar
dessa vaguidade de nossa linguagem natural, somos em geral perfeitamente
capazes de nos comunicar sobre os objetos de referência. Por isso a vaguidade
da linguagem natural, que supostamente reflete a vaguidade própria das divisões
da realidade que pretendemos categorizar, não é uma imperfeição dessa
linguagem, mas um fato a ser admitido, sendo admissível pensar que graus de
vaguidade sejam mesmo requeridos para modular o discurso de maneira mais satisfatória.
Outro ponto é que o Aristóteles
recém-mencionado deixaria de ser o nosso Aristóteles se existisse um ou mais
concorrentes que também satisfizessem a regra disjuntiva. Assim, imagine um
mundo possível no qual seja comum que as pessoas tenham duas cabeças. Nesse mundo o médico Nicômano teve um filho de
duas cabeças absolutamente idênticas, ambas batizadas ‘Aristóteles’. Elas foram
estudar com Platão e escreveram o opus aristotélico
conjuntamente. Embora seja possível dizer que esse mundo tem dois “Aristóteles”
(o ‘Aristóteles-da-direita’ e ‘o Aristóteles-da-esquerda’, com cursos de vida
muito próximos embora não idênticos), sob outra perspectiva seria possível se
questionar se esse mundo na verdade não possui nenhum Aristóteles, pois um nome
próprio é um termo singular que por definição só pode se aplicar a um único objeto
distinguível de todos os outros.
Essa
consideração nos sugere uma nova condição a ser adicionada, que é a de o nome
ter apenas uma única e mesma referência. Precisamos admitir como condição de
aplicação da própria regra meta-referencial identificadora uma condição de unicidade, qual seja, a de
que no domínio considerado somente um
único e mesmo objeto satisfaça a regra disjuntiva.
O
principal caso no qual a condição de unicidade deixa de ser satisfeita é aquele
em que a regra de localização é satisfeita por um objeto enquanto a regra de
aplicação é satisfeita por outro. Este seria o caso em um mundo possível M1
no qual existiu (a) um Aristóteles grego, filho de Nicômano, que nasceu em Estagira
em 384 a .C.,
mas que contraiu febre cerebral ao chegar a Atenas e não fez coisa alguma em
filosofia até sua morte em Chalkis em 322 a .C., e (b) um filósofo de nome
Aristóteles, que escreveu boa parte do opus
aristotélico em Roma cerca de duzentos e cinquenta anos mais tarde. Nessas
circunstâncias, não temos mais como decidir quem foi o verdadeiro Aristóteles,
se o grego ou o romano, pois as nossas duas regras identificadoras fundamentais
entram em conflito uma com a outra. A alternativa mais natural e imediata é
abandonarmos a suposição de que nosso Aristóteles existe em tal mundo, posto
que a condição de unicidade do objeto não é satisfeita.
Esse caso é similar ao do paradoxo do navio
de Teseu relatado nos manuais de filosofia. Digamos que esse navio tenha
recebido o nome de ‘Calibdus’. No curso dos anos Teseu repôs pouco a pouco as
partes do seu navio até que, no final, todas elas foram substituídas. Contudo,
alguém decidiu então recondicionar as partes antigas que haviam sido guardadas
e com elas construir outro navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém
pergunte: “Qual dos dois navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos
ao certo o que responder. Uma primeira suposição poderia ser a de que ambos são
o navio de Teseu. Mas isso seria contraditório, pois um termo singular não pode
se referir a mais de um objeto. A maioria das pessoas tenderá a dizer que o
verdadeiro navio de Teseu é aquele no qual ele navegou todos aqueles anos, mas
ainda assim restará um desconforto: o segundo navio é o único que é realmente o
mesmo que aquele que foi inicialmente construido! O problema não é sem
interesse prático, pois, como já se notou, se os dois navios se chocarem e
começarem a afundar, Teseu, que, como todo bom comandante, deseja afundar com o
seu próprio navio, terá de decidir se permanecerá no velho ou se não deverá
antes tentar saltar para o novo.
O que consideramos até agora já nos permite
uma resposta mais segura para esse velho paradoxo. A razão da incerteza se
encontra no fato de que percebemos que a questão de saber qual dos dois navios
é Calibdus é capaz de se tornar indecidível devido a um conflito criterial
entre as duas regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio satisfaz
uma regra localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi
construído em um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma longa
carreira espaciotemporal sob o comando de Teseu. A segunda regra, satisfeita
pelo segundo navio, pertence ao aspecto caracterizador. Ela nos diz que o navio
de Teseu é aquele que foi construído com um certo material específico.
Percebemos aqui a razão do desconforto.
Nesse ponto alguém poderá, com razão,
objetar que a regra caracterizadora é mais complexa. Ela não diz respeito
apenas a um mesmo material, mas inclui características funcionais e estruturais
que foram preservadas em ambos os navios. Como consequência, parece que o
primeiro navio deve ser o Calibdus comandado por Teseu, pois ele satisfaz mais
completamente as regras-descrições fundamentais. Por isso essa costuma ser a
primeira ideia que nos vem à mente. Contudo, podemos equilibrar essa diferença
aumentando a rapidez da substituição das partes velhas pelas novas, de modo a
encurtar a carreira espaciotemporal do navio até que a substituição das peças
se complete. Imagine que toda a sequência de substituições de partes tivesse
lugar em apenas três meses. Nesse caso começaríamos a ter dúvidas. E se ela
tivesse lugar em uma semana? Imagine agora que o Calíbdus de Teseu seja construido
e batizado com esse nome, mas que ele não seja sequer lançado ao mar. Horas
depois de pronto, os trabalhadores começam a construir um segundo navio ao
lado, mas com peças retiradas do Calibdus, ao mesmo tempo que outras pessoas enviam
peças novas para substituir as peças que o Calibdus havia doado para o navio ao
lado, de modo que após uns três dias teremos dois navios idênticos, um ao lado
do outro. Nesse caso, nossa tendência será a de dizer que o segundo navio é o verdadeiro
Calibdus, pois tudo o que aconteceu foi que ele, por assim dizer, “mudou de lugar”.
Mas, voltemos à estória de Calibdus como
tendo navegado por um certo tempo sob o comando de Teseu. Como um mesmo nome
próprio não pode nomear mais de um objeto, resta a estratégia de renomear os
navios. Se nos for útil, podemos introduzir nomes próprios substitutivos,
admitindo a existência de dois navios: o Calibdus-1, que satisfaz por completo
a regra de localização e parte da regra de caracterização, e o Calibdus-2, que embora
não satisfazendo a regra de localização, satisfaz por completo a regra de
caracterização, a qual entre outras coisas requer a preservação do mesmo
material do navio desde que ele foi inicialmente construido. Do mesmo modo, no
exemplo anterior podemos propor a existência de dois Aristóteles no mundo
possível M1: o Aristóteles-1, que é o da Grécia antiga e que
satisfaz somente a regra de localização, e o Aristóteles-2, que é apenas o
autor de boa parte do opus
aristotélico, e que satisfaz somente a regra de caracterização. Seria um erro,
porém, ver nisso uma resposta ao mesmo problema. Trata-se simplesmente de um
novo lance no jogo de nomear, uma proposta de novas convenções para novos
termos referenciais, a serem usados no lugar do termo malogrado.
Adicionando as condições de suficiência e
unicidade à regra disjuntiva, chegamos a uma mais apropriada formulação da
regra meta-identificadora reguladora do comportamento semântico das
regras-descrições fundamentais concernentes a cada nome próprio. Eis como ela
pode ser formulada:
RMI1:
Um nome próprio ‘N’ refere-se a um objeto x pertencente
a uma classe G de objetos
see
(i-a) x
satisfaz uma regra de localização L
para N
e/ou
(i-b) x
satisfaz uma regra de caracterização C para
N
e
(ii) a satisfação de L e/ou C por x é em seu todo suficiente e
(iii) unívoca.
(Assumindo a satisfação de
uma condição causal do tipo Cc.)
Chamo
a regra resultante da aplicação da regra meta-identificadora RM1 às
regras-descrições fundamentais de um dado nome próprio de regra meta-identificadora
para as regras-descrições fundamentais desse nome próprio ou – para evitar a
introdução de uma terminologia especiosa – de regra de identificação ou regra
definicional desse nome próprio (essa regra pode também ser vista, se
preferirem, como uma simples instanciação de RMI1 na qual as
variáveis ‘N’, G, L, e C são substituídas por constantes).
Lembremo-nos também que a condição (ii), de suficiência, é para ser aplicada
“ao todo”, ou seja, ao somatório da satisfação de cada disjunto. Isso nos
permite resgatar a intuição de que a regra pode ser aplicada (sendo portanto
aplicável) quando cada disjunto isoladamente considerado é insuficientemente
satisfeito. A regra será aplicável se a soma da satisfação de cada disjunto for
suficiente para sua aplicação. Finalmente, nada custa adicionar (iv): a
condição de que haja uma relação causal do tipo Cc entre o nome e o objeto
referido, ainda que essa relação tenha pouco ou nenhum valor explicativo
(veremos que quando elementos dela passam a ter valor explicativo ela passa a
ser explicitada dentro da própria regra disjuntiva).
A regra de identificação para o nome próprio
‘Aristóteles’ pode ser agora abreviadamente expressa como:
RI1-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ refere-se
propriamente a um objeto x pertencente
à classe dos seres humanos
see
(i-a) x
satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a .C., vivido grande parte
de sua vida em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a .C.
e/ou
(i-b) x
satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido o autor das grandes idéias do opus aristotélico
e
(ii) a satisfação da regra de localização e/ou
da regra de aplicação para x é em seu
todo suficiente e
(ii)
unívoca.
(Assumindo-se ainda a satisfação de uma
condição causal do tipo Cc.)
O nome
Aristóteles é colocado aqui entre com o imtuito de salientar que como marca
sensível ele não é um componente indispensável: um outro nome poderia
eventualmente satisfazer as mesmas condições.
Regra
meta-identificadora: segunda e última versão
Embora
RMI1 já seja uma regra bastante satisfatória, explicando a maioria
dos casos de aplicação de nomes próprios, ela resulta de uma análise ainda
incompleta. Afinal, não é difícil demonstrar que a condição de unicidade é
derivada e que RMI1 não dá conta de contra-exemplos que dependem de
um estágio anterior a essa derivação. Para tal quero examinar dois
contra-exemplos.
Um primeiro contra-exemplo vale-se da
fantasia da Terra-Gêmea. Uma Terra-Gêmea deve ser como a nossa. Nela tudo
existe e acontece de forma idêntica (ou quase idêntica) ao que existe e
acontece em nossa
Terra. Assim , o que se aplica a um objeto na Terra deve se
aplicar ao seu Doppelgänger na
distante Terra-Gêmea. Não obstante, mesmo que soubéssemos da existência de uma
Terra-Gêmea, nós continuaríamos tendo uma forte intuição de que ao
pronunciarmos o nome ‘Aristóteles’ estamos a nos referir ao nosso Aristóteles e não ao Aristóteles
da Terra-Gêmea. Contudo, se considerarmos nossa primeira formulação da regra de
identificação para Aristóteles, ela não parece mais aplicável, pois tanto o
Aristóteles da nossa Terra quanto o da Terra-gêmea parecem satisfazer
suficientemente a regra disjuntiva. De um lado, ambos parecem satisfazer a
regra de localização espaciotemporal, pois ambos nasceram em 384 a .C. em Estagira, etc.
Além disso, ambos os Aristóteles satisfazem a regra de caracterização: ambos escreveram
o opus aristotélico até a sua última
vírgula. Ora, como basta a satisfação suficiente da condição disjuntiva “(i-a)
˅ (i-b)”, os dois Aristóteles satisfazem a regra de identificação para o nome
‘Aristóteles’. Mas se é assim, a condição de unicidade deixa de ser satisfeita,
disso resultando a conclusão contra-intuitiva de que Aristóteles não existe.
Mas certamente ele existe e ele é o nosso Aristóteles e não o da Terra-Gêmea!
Contra-exemplos com mundos possíveis também
podem ser facilmente imaginados. Digamos que em um mundo possível M2
em Estagira em 384 a .C.
Nicômano, o médico da corte, tenha sido pai de dois gêmeos, ambos tendo sido
batizados com o nome ‘Aristóteles’. O primeiro tornou-se médico como o pai,
tendo se alistado no exército de Alexandre e morrido de sede na travessia do
deserto ao retornar do oriente. O segundo acabou indo para Atenas, onde conheceu
Platão e escreveu todo o opus aristotélico.
Como ambos satisfazem suficientemente a regra de localização, ambos satisfazem
suficientemente a condição disjuntiva “(i-a) ˅ (i-b)” exigida pela regra de
identificação. O resultado disso é que a condição (iii) de unicidade deixa de
ser satisfeita, deixando a regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’
insatisfeita e levando à conclusão de que Aristóteles não existe. Mas tal
resultado é contra-intuitivo. Não há dúvida que para nós existe um único
verdadeiro Aristóteles em M2 e que ele é o segundo Aristóteles e não
o primeiro. Só em um mundo possível M3, que diferisse de M2
apenas pelo fato de o segundo Aristóteles não ter chegado a nascer, nós
seríamos induzidos a considerar o primeiro deles o nosso Aristóteles “em
potência”, mesmo que muito mal-orientado.[13]
A
pergunta a ser feita aqui é: o que nos leva a no primeiro contra-exemplo escolhermos
o Aristóteles da Terra ao invés do Aristóteles da Terra-Gêmea e no segundo escolhermos
o Aristóteles que escreveu o opus aristotélico
ao invés daquele que se tornou médico? A resposta só pode ser uma: a satisfação
das regras-descrições identificadoras de certo nome por mais de um objeto
elimina da competição pelo direito ao nome o objeto que as satisfaz menos. A
solução, portanto, é estabelecer o que poderia ser chamado de condição de predominância: a condição
de que no caso de mais de um objeto satisfazer
a regra disjuntiva de um nome próprio, o portador do nome deve ser o objeto que
mais completamente a satisfaz.
Quero agora sugerir uma última e mais
aprimorada formulação da regra meta-identificadora, que incorpora em si essa
última condição. Ei-la:
RMI2:
Um nome próprio N refere-se propriamente
a um objeto x
pertencente
a uma classe G
see
(i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N
e/ou
(i-b) x satisfaz uma regra de atribuição C para N,
(ii) x satisfaz
L e/ou C em medida no todo suficiente e
(iii) x
satisfaz L e/ou C mais do que qualquer outro objeto
pertencente
à classe G.
(Assumindo-se a satisfação de uma condição
causal do tipo Cc.)
Substituímos
aqui como condição (iii) a condição de unicidade pela condição de predominância,
que é anterior à da unicidade, posto que serve para garanti-la. A condição de
predominância é aplicada de modo a selecionar o objeto que satisfaz suficientemente
a disjunção inclusiva dos disjuntos mais do que qualquer outro objeto da mesma
classe que também a satisfaça, disso resultando a identificação unívoca do objeto
de referência do nome próprio.
Do mesmo
modo que no caso anterior, quando a regra de regras RMI2 é aplicada
às regras-descrições fundamentais de um nome próprio qualquer (ou quando as suas
variáveis formais forem instanciadas), ela produz uma regra de identificação ou regra definicional para o nome próprio. Eis como essa regra se
afigura para o nome ‘Aristóteles’:
O nome
próprio ‘Aristóteles’ refere-se propriamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanos
see
(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de
ter nascido em Estagira em 384
a .C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido
em Chalkis em 322 a .C.
e/ou
(i-b) x satisfaz a sua regra de atribuição de
ter sido a pessoa que produziu o conteúdo relevante do opus aristotélico e
(ii) x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) em
medida no todo suficiente e
(i)
x satisfaz a disjunção (i-a)
ou (i-b) mais do que qualquer outro ser humano.
(Assumindo-se
junto a isso a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)
A
regra de identificação resultante da aplicação de RMI2 às duas descrições
fundamentais de Aristóteles nos dá uma resposta intuitiva ao problema do Aristóteles
da Terra-Gêmea. Pois segundo ela, embora tanto o Aristóteles da nossa Terra quanto
o da Terra-Gêmea satisfaçam a regra disjuntiva em medida suficiente, o Aristóteles
da nossa Terra é o único que verdadeiramente satisfaz a regra de localização espaciotemporal;
afinal, só ele existe em nossa região
espaciotemporal, sendo a essa região que a regra foi feita para se aplicar – a
essa região específica do espaço único que inclui ambas as Terras – e não à
região espacial análoga situada na distante Terra-Gêmea. Assim, o Aristóteles
da nossa Terra satisfaz mais completamente a condição disjuntiva “(i-a) ˅ (i-b)”
do que o Aristóteles da Terra gêmea. Ao fazer isso ele preenche a condição de
predominância da regra identificadora para Aristóteles resultante da aplicação de
RMI2 às regras-descrições fundamentais associadas a esse nome, o que
se encontra em pleno acordo com a nossa intuição de que é ao Aristóteles da
nossa Terra que estamos a nos referir.
A aplicação de RI2-‘Aristóteles’ também
resolve o problema dos dois Aristóteles gêmeos que em M2 satisfazem
a regra disjuntiva. O primeiro (que foi para a Índia com Alexandre) satisfaz apenas
em sua infância o suficiente da regra localizadora, nada satisfazendo da regra
caracterizadora. Mas o segundo (que foi para Atenas e escreveu o opus aristotélico) satisfaz não só de
modo totalmente suficientemente a regra localizadora, mas também completamente a
regra caracterizadora. Por isso, pela grande predominância na satisfação da regra
disjuntiva, o último Aristóteles passa a ser escolhido por nós como sendo o verdadeiro,
o que também se conforma às nossas intuições. Em um mundo no qual o segundo
Aristóteles nunca tivesse existido, mas só o primeiro, nos escolheríamos o
primeiro como sendo o nosso Aristóteles, infelizmente desviado de seu mais desejado
destino.
Voltando a RMI2, resta uma questão
a ser respondida. Imagine que outros nomes para o mesmo objeto, com regras de identificação
próprias, viessem a competir com a regra de identificação do nome que estamos
considerando. Assim, se feixes de descrições diversos associados aos nomes
próprios diversos N1... Nn satisfazem RMI2 para um mesmo objeto, ou
seja, se regras de identificação diferentes são satisfeitas, parece que deveria
haver uma condição para se saber qual dos nomes próprios verdadeiramente se
refere a esse objeto. Não seria necessária
uma condição de predominância de regra
exigindo que um objeto, para poder ser referido, devesse satisfazer a regra disjuntiva de identificação para o nome em questão
mais do que qualquer outra regra de identificação de outro nome que também se refira
a ele?
Felizmente,
não parece que no caso dos nomes próprios essa condição adicional precise ser
introduzida, pois a identidade de objeto faz com que essas regras identificadoras
se somem ao invés de se excluir, ao menos no que concerne às descrições caracterizadoras,
uma vez que não podemos ter duas descrições localizadoras diferentes para um
mesmo objeto. Para evidenciá-lo, consideremos um exemplo. Suponha que venha a
ser descoberto, como já se pretendeu, que Lord Bacon tenha sido o verdadeiro autor
das obras de Shakespeare e que não existiu nenhum Shakespeare com a carreira espaciotemporal
que a ele atribuímos. Nesse caso parece que as regras de identificação de Bacon
e Shakespeare deveriam competir. Contudo, isso não precisa acontecer. Não nos encontramos
realmente forçados a escolher entre Bacon ser Bacon e Bacon ser Shakespeare.
Nesse caso nós estenderemos os atributos de uma mesma pessoa de modo a abranger
os nomes de Bacon e Shakespeare, dizendo que Bacon, além de ser o cientista,
filósofo e diplomata que foi, também escreveu anonimamente as obras de
Shakespeare. E quanto ao Shakespeare nascido em Stratford-upon-Avon em 1564, que
se casou com Anne Hathaway? Ora, esse é agora outra pessoa, outro objeto, para
cuja identificação deve haver uma outra regra. O importante a ser notado é que algo
que ninguém nega: que no caso, o mais importante é a satisfação das condições
caracterizadoras, além do fato de Bacon ter vivido em Londres nessa mesma época,
satisfazendo assim alguma coisa da condição localizadora. Vários enunciados poderiam
resumir nossas reações: não só “Bacon foi o verdadeiro Shakespeare” e “Shakespeare
não foi Shakespeare”, mas também “Bacon foi o grande dramaturgo; Shakespeare foi
apenas um diretor teatral conterrâneo”.
O
significado do nome próprio
Vejamos
agora a questão do significado do nome próprio. Para chegarmos a uma resposta,
basta nos recordarmos do argumento apresentado no capítulo introdutório sugerindo
que o significado – entendido aqui como o sentido fregeano (Sinn) do termo singular – se deixa plausivelmente
esclarecer em termos de regras ou de combinações de regras que possibilitam a
efetiva aplicação das expressões.[14] A
razão me parece simples. Regras são a fonte originária do que chamamos de significado,
posto que regras são significativas per se. Seguir uma regra é o mesmo
que dar um significado ao ato. Se “&%” parece menos significativo
que “à$” é porque estamos
acostumados a ver uma seta como uma regra indicadora de direção. Onde há regra
há significação de algum tipo, mesmo que geralmente não do tipo que possa interessar.
Assim, assumindo o dictum wittgensteiniano
de que “o significado é aquilo que a explicação do significado explica”,[15] parece
claro que quando falamos do significado de uma expressão linguística geralmente
estamos considerando mais propriamente as regras que expomos na explicação daquilo
que queremos dizer com a expressão. A conclusão inevitável disso é que uma teoria
neodescritivista dos nomes próprios, sendo uma teoria das regras semânticas
expressas pelas descrições que ele substitui, não é mais nem menos do que uma
teoria do significado referencial ou cognitivo dos nomes próprios.
Esse ponto de vista contrasta fortemente com
a opinião daqueles que defenderam que nomes próprios são destituídos de
sentido.[16]
As razões por eles apresentadas são conhecidas: se nos perguntam pelo significado
de um nome próprio, ficamos sem saber o que responder... Além disso, como já
notamos, os nomes próprios geralmente não se encontram dicionarizados; e como a
finalidade dos dicionários é esclarecer os significados das palavras, tem-se aqui
uma razão adicional para se rejeitar que nomes próprios tenham significado.[17]
Contudo, essa tese não resiste à reflexão.
Certamente, o nome próprio tem significado no sentido de ter a função lexical
do nome próprio, que é a de identificar um objeto singular como sendo o seu portador.
Mas ele também tem significado no sentido mais substantivo de ter um conteúdo semântico. Que nomes próprios devem ter significado nesse último sentido
fica logo claro quando consideramos sentenças de identidade entre nomes. A
frase “Dr. Jeckill é Mr. Hide”, por exemplo, deveria ser tautológica e não-informativa
se os nomes próprios ‘Jeckill’ e ‘Hide’ não quisessem dizer coisas bastante contrastantes,
se eles não tivessem conteúdos semânticos diversos. Além disso, se admitirmos o
entendimento fregeano do conteúdo semântico, ele se explica como sentido (Sinn), que é um conteúdo informativo (informatives Gehalt), e começa a ficar
claro que nesse aspecto os nomes próprios não devem ser carentes, mas, pelo
contrário, repletos de significado. Afinal, parece que muitos deles são repositórios
de uma massa difusa de conteúdo informacional variadamente acessado. Considere,
por exemplo, a imensa carga de conteúdo informacional que podemos associar ao
nome do conquistador Napoleão ou do filósofo Bertrand Russell. A extensa autobiografia
de Russell está repleta de conteúdo informativo acerca dele mesmo. Sob tal perspectiva,
a questão não é tanto que o nome próprio contenha significado de menos, mas
demais. E tanto é assim que o lugar reservado para a exposição do significado de
certos nomes próprios não é o dicionário, mas a enciclopédia. E em alguns casos,
mais do que a enciclopédia, o lugar onde encontramos o significado mais
detalhado e completo de um nome próprio é a biografia. Biografias como as de
Napoleão, autobiografias como a de Russell, são os lugares nos quais podemos
encontrar uma pormenorizada exposição do conteúdo informacional associado a esses
nomes próprios, o qual pode ser facilmente transformado em descrições definidas.
E as regras de localização e caracterização não são em tal caso apresentadas em
uma forma abreviada, como temos feito, mas em forma muito mais detalhada e
completa.
Mas por que então alguns sustentaram que nomes
próprios são vazios de significado? Uma resposta emerge do fato de que quando acidentalmente
usamos um nome próprio, tudo o que costumamos saber dele são aspectos geralmente
vagos e variáveis de seu significado, partes restritas de seu conteúdo informacional,
cujo domínio em geral varia de falante para falante. O que (ao menos
disposicionalmente) temos em mente ao usar um nome próprio é geralmente alguma
parcela do seu significado, não todo ele; e uma parcela que varia de pessoa para
pessoa, de ocasião para ocasião, dado que o conteúdo completo de muitos nomes
próprios é conhecido por poucos e se tomado estritamente por ninguém em particular. Devido
a isso, quando contrastamos esse estado de coisas com o significado permanente,
distinto e universalmente compartilhado dos predicados mais simples (como,
digamos ‘...é vermelho’, ‘...é redondo’), temos a impressão de que por não
serem capazes de significar nada de específico os nomes próprios não são
capazes de significar coisa alguma. Nomes próprios tem tanto significado que
parecem não ter nenhum.
Identificando
o sentido com regras, consideremos agora a questão do sentido dos nomes
próprios tendo em vista as expressões descritivas das regras já consideradas. Quais
seriam as de maior valor semântico? Uma primeira regra a ser excluída é a própria
regra meta-identificadora do tipo RMI: o núcleo semântico distintivo de um nome
próprio não pode ser por ela
constituído, pois ela não é mais do que uma simples forma compartilhada pelas regras de identificação dos mais diversos
nomes próprios, enquanto o que mais importa para o significado de um termo é
aquilo que o distingue de outros termos da mesma espécie. O significado também
não deve ser relevantemente constituído pelas regras auxiliares expressas pelas
descrições do grupo C, dado que elas são acidentais em relação à aplicação do
nome, ainda que delas se espere que em alguma medida contribuam para o seu
conteúdo informativo. Restam, pois, as regras fundamentais de localização e/ou
caracterização, expressas respectivamente pelas descrições dos grupos A e B. Com
efeito, só podem ser essas últimas as que constituem de modo relevante o significado
de um nome próprio. Se nos perguntarmos, por exemplo, quais as descrições que expressam
o âmago do que se pode querer dizer com o nome próprio ‘Aristóteles’, a resposta
mais natural parece vir através das descrições fundamentais concernentes a um filósofo
que nasceu em Estagira em 394 a.C., que estudou com Platão em Atenas... e que
desenvolveu as idéias que influenciaram profundamente o curso da filosofia
ocidental; ideias expostas em obras como a Metafísica,
a Ética a Nicômano e o Organon. E quando tudo o que uma pessoa
é capaz de dizer de Aristóteles é que ele foi ‘um grande filósofo grego’, ela
está dizendo algo que já está sendo implicado pelas descrições fundamentais. As
regras-descrições fundamentais exprimem o conteúdo informativo indispensável
constitutivo do núcleo central de significação desse nome próprio.
Afora esse núcleo semântico central, podemos
admitir, há um halo de significação secundário em geral expresso pelas regras-descrições
auxiliares. Assim, a descrição auxiliar metafórica ‘o mestre dos que sabem’,
feita para conotar Aristóteles, também contribui para a massa de conteúdo informativo
que constitui o significado total desse nome próprio, da mesma forma que descrições
acidentais mais bem conhecidas, como ‘o maior discípulo de Platão’, ‘o tutor de
Alexandre’, ‘o fundador do Liceu’... posto que quem as conhece já é capaz de
dar um sentido convergente qualquer a esse nome. Nem todas as regras auxiliares,
contudo, contribuem para enriquecer o conteúdo informativo do nome próprio. As
regras-descrições acidentais ignoradas, como ‘o neto de Achaeon’, certamente
não contribuem de modo relevante. E as regras-descrições adventícias, como ‘o
filósofo mencionado pelo professor na sala de aula’, por sua natureza circunstancial
em nada contribuem para o conteúdo informativo permanente do nome próprio, não sendo
por isso encontradas nem em enciclopédias nem em biografias.[18]
Apesar disso, pode-se dizer que essas últimas regras ainda expressam um sentido
ocasional, que está sendo intencionado
pelo usuário do nome, quando este o emprega, e compreendido pelos seus ouvintes.
Para
evitar confusão é sempre indispensável distinguir entre o significado completo e o significado intencionado do nome próprio. Comecemos pelo significado
intencionado. Ele é aquele conteúdo variável que diferentes pessoas e inclusive
a mesma pessoa em tempos diferentes tem em mente ao empregar o nome próprio. Podemos
dizer que ele consiste naquilo que é, se
não atualmente, ao menos disposicionalmente
intencionado pelo falante quando ele pensa ou profere o nome. Ele é aquilo
que Russell chamou de “descrição em nossas mentes”.[19] Digo
que este significado é ao menos disposicionalmente intencionado porque aquilo
que é intencionado em termos de regras-descrições – que tanto podem ser fundamentais
quanto auxiliares – não precisa ser reflexivamente considerado no momento da aplicação
do nome, embora determine o uso do nome pelo falante e possa em princípio ser tornada
consciente. É comum que conheçamos muito pouco dos significados dos nomes próprios
que usamos, de modo que o significado intencionado poucas vezes coincide com o
significado completo.
Quanto ao significado completo, ele é constituído
primariamente pelo que podemos chamar de significado
próprio: o conjunto formado pelas regras localizadora e caracterizadora (o
núcleo semântico primário); já secundariamente ele é formado também pelo que poderíamos
chamar de significado auxiliar: as regras
auxiliares (o halo semântico).
O esquema seguinte sumariza as distinções feitas
acima com respeito à significação do nome próprio:
Significado próprio
Significado
completo (núcleo
semântico)
(eventualmente só
Significado conhecido por usuários Significado auxiliar
cognitivo, privilegiados do nome) (halo
semântico)
conteúdo
informativo ou Significado
intencionado do nome próprio
sentido fregeano (identifica-se com o sentido que o usuário
do nome próprio dá ao nome quando o aplica.)
Tendo
esse quadro em mente se torna fácil esclarecer o papel semântico das regras
auxiliares expressas pelas descrições do grupo C. Muitas vezes começamos a conhecer
um nome próprio através de uma regra-descrição auxiliar de conexão com o objeto.
Claramente, uma pessoa que só conhece uma regra-descrição auxiliar ainda não
possui conhecimento relevante do significado do nome próprio. Mas regras-descrições
como ‘o marechal de ferro’, ‘o maior discípulo de Platão’, ou mesmo ‘o filósofo
citado pelo professor’, já podem bastar para permitir ao falante inserir o nome
próprio no discurso de maneira comunicacionalmente eficaz, obtendo sucesso referencial
em um sentido derivado da palavra. Na verdade, para que o falante entenda essa inserção
insuficiente do termo referencial no discurso público é desejável que ele reconheça
seu conhecimento insuficiente de seu significado. Afinal, uma pessoa só é capaz
de inserir racionalmente o nome próprio em um discurso, usando-o com intenção
de referir no sentido derivado, fraco, insuficiente, conquanto ela conte com uma
comunidade linguística possuidora de uma adequada divisão do trabalho linguístico
que possua intérpretes capazes de completar o significado e a referência do nome
próprio. Trata-se aqui de um caso típico daquilo que P. F. Strawson já havia
identificado como empréstimo de referência (reference
borrowing).
O
entendimento descritivista da divisão de trabalho da linguagem
Contra
as RMI e as regras de identificação ainda poderia ser oposta a seguinte objeção:
não precisamos conhecer as descrições fundamentais associadas a um nome próprio
para podermos usá-lo corretamente e com ele denotar o seu portador. Talvez a
única coisa que a maioria das pessoas ainda hoje sabe sobre Aristóteles é que ele
satisfaz a descrição indefinida ‘um grande filósofo da Grécia antiga’. Uma
pessoa que conheça apenas isso só saberá generalidades implicadas pelas descrições
caracterizadora e localizadora de Aristóteles. Mesmo assim, costumamos dizer
que essa pessoa é capaz de se referir a Aristóteles. Mais ainda, uma pessoa pode
ser admitida como se referindo a Aristóteles, mesmo associando a este nome uma única
descrição auxiliar como ‘o maior discípulo de Platão’ após ter visto uma foto do
famoso afresco de Rafael, ou associar a esse nome apenas a descrição ‘o tutor
de Alexandre’ após ter assistido um filme sobre as conquistas de Alexandre, ou
até mesmo a uma descrição auxiliar adventícia, como ‘o filósofo mencionado pelo
professor na aula de ontem’. Além disso, para Kripke uma pessoa poderia se referir
a Aristóteles mesmo associando a ele uma descrição errônea, como ‘um filósofo
medieval’ ou ‘um general grego’. Mas como isso é possível?
A resposta
a ser dada a essa última questão vale-se do que poderíamos chamar de um
entendimento descritivista da
hipótese da divisão de trabalho da linguagem. Essa divisão foi proposta por Hilary
Putnam para palavras-conceitos em termos não-descritivistas. Para Putnam, é
comum que uma mesma palavra seja usada por diferentes pessoas de diferentes maneiras,
podendo cada uma delas ter um conhecimento diverso, maior ou menor, mais ou
menos especializado, do que se pode querer dizer com ela. Para ele as palavras
não funcionam apenas como diferentes ferramentas, como pensava Wittgenstein. A
metáfora usada por Putnam, aplicável a muitas palavras de nossa linguagem, é a
de um barco a vapor: diferentes pessoas usam o barco com funções e finalidades
diversas; umas o usam como passageiros que nada fazem além de esperar que o
barco os leve ao seu destino. Outras, como membros da tripulação, tem papéis
mais ativos. Elas podem trabalhar na pilotagem do barco, na casa de máquinas,
no serviço de bordo... Putnam, compromissado com o seu externalismo semântico, considera
essa divisão de trabalho da linguagem sem recorrer a aspectos cognitivo-descritivos.
Contudo, antes dele outros filósofos já haviam admitido como natural entender a
divisão de trabalho da linguagem como uma divisão de conteúdos semânticos entre
diversos níveis de exigência e capacidades cognitivas descritivamente exprimíveis
que os falantes ou grupos de falantes diversos precisam adquirir com relação ao
uso da Palavra.[20]
Afinal, alusões à divisão de trabalho da linguagem podem ser encontradas na
obra de filósofos internalistas bem anteriores a Putnam, começando com o
próprio John Locke, que foi o defensor clássico de uma semântica descritivista em
que os significados são “idéias” psicológicas, ou em C.S. Peirce[21].
É, pois, muito fácil e natural interpretar a divisão
de trabalho da linguagem em termos das variadas capacidades cognitivas na
aplicação de conteúdos semânticos descritivamente exprimíveis que os diversos
falantes são capazes de associar à palavra, no caso presente, ao nome próprio. Com
isso podemos sugerir que ao atribuirmos referência, estamos falando de sucesso referencial, que por sua vez tem ao menos dois sentidos:
(a) o de uma
referência autosuficiente.
(b) o de
uma referência não-autosuficiente.
Consideremos
primeiro o caso da referência autosuficiente. Podemos entendê-lo como sendo o
da referência capaz de por si mesma nos oferecer uma garantida identificação do
objeto como algo existente no mundo. O critério de sucesso referencial para o caso
(a), da referência que chamo de autosuficiente pode ser considerado a aplicação, por parte do falante, da própria
regra de identificação no nome próprio, ou seja, a aplicação de suas regras-descrições
localizadora e/ou caracterizadora, das quais ele tem amplo domínio. Há muitos
nomes próprios, por exemplo, os de nossos familiares, cuja regra de identificação
nos é perfeitamente conhecida. Mas há outros nomes cujo sentido, cujo conteúdo
informativo relevante só é conhecido por um usuário privilegiado do nome, como,
digamos, o especialista, o historiador, a testemunha do batismo... Considere,
por exemplo, os nomes próprios ‘Kublai Khan’, ‘Galáxia de Andrômeda’, ‘Batalha
de Salamina’. A referência autosuficiente dos portadores desses nomes requer nomeadores
que sejam capazes de se referir verdadeiramente aos seus portadores, sendo idealmente
os responsáveis por sua instituição e manutenção: os seus nomeadores
privilegiados.
Contudo, é muito frequente atribuirmos referência
tendo em mente apenas uma referência deficiente, ou seja, incompleta, esquemática,
acessória, ou mesmo errônea, feita por alguém – referências cujo caráter é
derivado. Isso acontece geralmente com o nome ‘Aristóteles’. Afinal, é usual dizermos
das pessoas que conhecem apenas generalidades ou descrições auxiliares associadas
a um nome próprio como ‘Aristóteles’, que elas se referem ao seu
portador. Esse é o caso das pessoas que só sabem de Aristóteles que ele é uma
figura de um afresco de Rafael ou que ele apareceu no filme sobre Alexandre
como o seu tutor. Essas pessoas são capazes de se referir ao filósofo apenas em
um sentido estendido da palavra, no sentido de quee são capazes de inserir o
nome ‘Aristóteles’ em circunstâncias conversacionais pouco exigentes, de modo
que um intérprete que possua maior domínio da regra de identificação desse nome
seja capaz de reconhecer nesse uso uma tentativa de identificação do objeto
verdadeiramente referido pelo nome. Mais do que isso, como notou Kripke, uma
pessoa pode associar um nome próprio a uma descrição indefinida como ‘um grande
físico’ para Richard Feynman e mesmo a uma descrição definida errônea como ‘o
inventor da bomba atômica’ para Einstein.[22] Geralmente
essas pessoas fazem isso conhecendo a
gramática dos nomes próprios (implicitamente conhecendo RMI2) e possuindo
certo pano de fundo informacional, que lhes permite ter consciência daquilo que
podem – e principalmente daquilo que não podem – fazer com a palavra. Isso acontece,
porém, sob o pressuposto de que a comunidade linguística possui nomeadores privilegiados, a saber, pessoas em condições
de completar a referência do nome pelo domínio de sua regra de identificação.
Não obstante, há limites para o erro no uso
do nome próprio. Se alguém usa o nome próprio ‘Aristóteles’ pensando que se
trata de um número primo, se alguém usa o nome ‘Feynman’ pensando que é uma
marca de perfume, ou se alguém usa o nome próprio ‘Einstein’ pensando que se trata
de uma pedra preciosa, trata-se de entendimentos demasiado divergentes desses
nomes. Trata-se de usos nos quais sequer a classe G (dos seres humanos) é
reconhecida. Aqui a pessoa não será mais capaz de inserir corretamente o nome
no discurso e nomeadores privilegiados irão dizer que a pessoa foi incapaz de
fazer um uso referencial desses nomes, mesmo que em um sentido derivado.
Tendo em mente o uso referencial do nome sem
conhecimento adequado de sua regra de identificação, podemos propor um segundo
sentido de sucesso referencial, concernente ao caso (b) das referências que
chamei de não-autosuficientes. Para esse sentido enfraquecido de sucesso referencial
o critério parece-me ser duplo:
(b-1) Condição
de convergência: O uso convergente do nome associado a descrições pertencentes
ao feixe ou ao menos que tenham a ver genericamente com as descrições do feixe.
Entendo por uso convergente aquele no qual a pessoa ao menos classifica corretamente
o objeto referido de modo a torná-lo suficientemente reconhecível para nomeadores
privilegiados (algo que se assemelha ao genus proximum).
(b-2) Condição
de competência linguística: O conhecimento da parte do falante de RMI2.
Isso faz com que a pessoa geralmente saiba que não sabe. (Se tudo o que sei
sobre Aristóteles é que ele foi o preceptor de Alexandre e conheço RMI2,
então sei que não sei quem foi realmente Aristóteles.)
Assim,
uma pessoa é capaz de usar o nome referencialmente, mesmo com conhecimento deficiente,
como no caso em que identifica Feynman com um grande físico, e mesmo com
conhecimento errôneo, quando identifica Einstein com o inventor da bomba atômica.
Importante é o fato de que essas identificações são convergentes, caindo dentro
das classificações gerais de físico e de cientista (satisfação de b-1). Isso é
assim porque somente pelo fato de que ao inserir o nome na linguagem de maneira
convergente a pessoa torna possível a nomeadores privilegiados serem capazes de
reconhecer a inserção do nome próprio no discurso como sendo suficientemente correta
para não obstar a referência mais completa. Mais ainda, pressupõe-se que a
pessoa conheça RMI2, a regra metalinguística para a construção de regras
de identificação de nomes próprios ou (satisfação de b-2). Geralmente isso faz
com que a pessoa tenha consciência de que para usar o nome de modo propriamente
referencial ela precisaria saber muito mais sobre ele.
Nesse
sentido fraco de sucesso referencial emprestado, o que chamamos de “referência”
é pouco mais do que um gesto em direção a um verdadeiro ato de referir. O
falante realiza seu “ato de referência” em um sentido insuficiente, dependente,
apoiado em uma comunidade linguística que ele conta ou que é contada como sendo
capaz de completar a referência para ele. É somente pelo auxílio de uma comunidade linguística constituída falantes melhor
qualificados que se torna possível completar cognitivamente os sentidos das expressões
por ele usadas. Aqui devemos lembrar que embora esse processo seja social, ele não
deixa obviamente de ser interno. O significado do nome próprio, mesmo estando apenas
de modo muito parcial na cabeça do falante, mesmo encontrando-se diversamente
distribuído nas cabeças dos outros falantes – dos potenciais intérpretes de sua
referência – é interno em todos os seus momentos. Retornando à metáfora de
Putnam: uma pessoa é bem sucedida em referir segundo o critério (b) de êxito
referencial concernente a uma referência não-autosuficiente, da mesma maneira que
um passageiro diz que toma um barco para ir até um certo lugar, mesmo sabendo que
é a tripulação que realmente irá conduzi-lo. Esse é um caso diferente daquele de
uma pessoa que é bem sucedida em referir segundo o critério (a) de êxito referencial
como, digamos, o capitão da embarcação, que realmente a usa com a função de
conduzir o barco até o seu destino. Se quisermos ser rigorosos, devemos admitir
que as pessoas que usam um nome próprio sem conhecerem as suas regras-descrições
fundamentais não sabem realmente o que
estão dizendo com o nome: nós só admitimos que elas são capazes de inserir referencialmente
o nome na linguagem porque confiamos na existência de nomeadores privilegiados que
sejam realmente capazes de identificar o seu portador. Finalmente, referências
insuficientes formam um espectro que vai desde o conhecimento de descrições
quase irrelevantes (como ‘um filósofo’, ‘o tutor de Alexandre’...) até o
conhecimento de descrições importantes ou mesmo fundamentais (como ‘o maior aluno
de Platão’ ou ‘o estagirita’...).
Para enfatizar
a dependência social da referência insuficiente podemos imaginar uma situação na
qual, por alguma razão, todos os nomeadores privilegiados desaparecessem. Imagine
uma catástrofe como a guerra atômica ocorresse e que apenas umas poucas pessoas
quase iletradas e reduzidas a um estado quase selvagem sobrevivessem. Imagine que
essas pessoas encontrassem uma descrição auxiliar concernente a Aristóteles, como
“o tutor de Alexandre” e nada mais. Elas seriam capazes, suponhamos, de reconhecer
que Aristóteles é o nome de uma pessoa. Contudo, nesse caso as pessoas em realidade
não seriam capazes de se referir a Aristóteles mesmo no sentido (b) de fazerem
uma referência não-autosuficiente, simplesmente pela falta do suporte de uma
comunidade linguística que incluísse falantes capazes de garantir a referência
e dar-lhe um sentido que fosse. Sem usuários privilegiados capazes de, ao menos
em conjunto, dominar a regra de identificação, a possibilidade de um efetivo uso
referencial do nome próprio entraria em colapso. É como se os passageiros ocupassem
o navio a vapor abandonado pela tripulação sem ter a menor idéia de como fazê-lo
funcionar.
Porque
nomes próprios costumam ser designadores rígidos
As regras
de identificação resultantes da aplicação das RMI mostram o caminho para resolver
um problema que tem assombrado o descritivismo. Trata-se da razão pela qual os nomes
próprios são designadores rígidos. Para responder à questão precisamos atentar
para algumas propriedades semânticas das regras de identificação para nomes próprios.
Uma delas é que essas regras podem ser sempre traduzidas na forma de sentenças
descritivas a serem lidas como definições ou verdades analítico-conceituais. Podemos
tornar isso claro reescrevendo a regra de identificação do nome próprio ‘Aristóteles’
ao modo de uma longa descrição definida como a que se segue:
DD-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ que se refere à pessoa
que estiver na origem causal de nossa consciência de que ela satisfaz de modo
em seu todo suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a .C. filho do médico da
corte, vivido em Atenas e morrido em Chalkis em 322 a .C. e/ou a condição de ter
sido o autor das idéias fundamentais do opus
aristotélico, satisfazendo essa disjunção mais do que qualquer outra pessoa.
Mesmo
que essa longa descrição definida contenha uma disjunção inclusiva e assim elementos
descritivos que individualmente podem se aplicar ou não ao portador do nome, caso
ele exista, como tal ela exprime uma verdade analítico-conceptual necessária, na
medida em que é estabelecida por convenção tácita. Afinal, não há mundo possível
no qual ela possa ser falsa. Não podemos conceber um mundo possível no qual Aristóteles
exista e a descrição acima não se aplique. Ou seja, não podemos conceber um
mundo possível em que Aristóteles exista e a regra de identificação que expressa
por essa descrição não se aplique, uma vez que é essa regra que define quem para
nós é Aristóteles. A aplicabilidade dessa regra-descrição é aquilo mesmo que estabelece
a existência de Aristóteles ou quem pode ou não pode se Aristóteles em qualquer
mundo possível.
Isso
não nos surpreende, aliás, se admitirmos a identificação fregeana da existência
com o cair sob um conceito, ou, como prefiro, como a satisfação ou efetiva aplicabilidade
do conceito entendido agora no sentido não-fregeano de regra conceitual. Pois se
o conceito associado a um nome próprio for, como parece claro, sua própria regra
conceitual de identificação, então a existência, a satisfação do conceito, não
parece ser mais é do que a efetiva e contínua aplicabilidade da regra de identificação
associada ao nome próprio. Isso pode parecer estranho, mas fica mais razoável
se parafrasearmos usando uma linguagem-objeto, ou seja, dizendo que a existência
do objeto reduz-se à meta-propriedade que ele tem de sua regra de identificação
(caso ela exista) lhe ser efetivamente e continuamente aplicável, enquanto que
se o objeto não possui essa meta-propriedade ele não é real, mas meramente
imaginário.[23] Assim, aplicar a regra
de identificação para Aristóteles em um mundo possível é o mesmo que admitir
que Aristóteles existe nesse mundo, não podendo haver nenhuma lacuna entre uma coisa
e outra. Por isso, a efetiva aplicabilidade da regra de identificação é, de algum
modo, “constituidora” do objeto, que só ganha “ser” como aquilo a que a regra (exista
ela ou não) é efetiva e continuamente aplicável.
Essas reflexões nos permitem explicar porque
nomes próprios são designadores rígidos. O designador rígido, no sentido mais razoável
desse conceito, se define como aquele que é aplicável em todos os mundos possíveis
nos quais a sua referência existe. Ora, o nome próprio é um designador rígido
porque a sua regra de identificação é necessariamente aplicável em qualquer mundo
possível no qual a sua referência possa ser dada como existente, o que é refletido
na verdade convencionalmente necessária da frase que exprime a regra de identificação
desse nome.
Podemos nos perguntar agora: mas não existiriam
casos incertos, mundos possíveis nos quais não há como saber se podemos ou não
aplicar a regra, mundos nos quais só existe, digamos, “meio” Aristóteles? A resposta
é afirmativa. Mas isso não tem a menor importância. A vaguidade é uma
característica inexpugnável da linguagem, e uma verdadeira semântica dos mundos
possíveis também precisaria ser adequada a isso. Certamente, há mundos possíveis
nos quais não existe o suficiente de Aristóteles para sabermos se podemos ou não
aplicar a sua regra de identificação. Neles não se há como atribuir nem
existência nem inexistência a Aristóteles; e neles (assumindo a plausível ideia
de que a vaguidade advenha da própria natureza das coisas) Aristóteles realmente
nem existe nem não existe. Isso não significa
que o nome ‘Aristóteles’ não seja um designador rígido, pois fora dessa fronteira
de indeterminação esse nome continua a poder ser garantidamente aplicável ou não.
Há, por conseguinte, uma maneira natural de acomodar
o conceito de designador rígido a tais casos. Basta redefinir mais
adequadamente tal conceito como designando a propriedade de uma expressão referencial
de se aplicar a todos os mundos possíveis nos quais o objeto referido definidamente existe. A rigidez é, em
outras palavras, a propriedade da regra semântica de um termo referencial de
“constituir” a existência do seu objeto em todos os mundos possíveis nos quais essa
regra se revela (via atos verificadores) efetivamente e continuamente aplicável
de uma forma definida, ou seja, sem que pairem dúvidas acerca disso.
Seria ainda possível objetar lembrando o
paradoxo sorites. Se há fronteiras de
indeterminação, onde elas terminam? Se
não há um limite definido para o seu término, o que nos justifica dizer que já chegamos
a uma zona de clareza na aplicação do conceito em que o portador do nome
definidamente existe? Contudo, o sorites pode ser gerado para virtualmente qualquer
termo vago de nossa linguagem sem que o termo deixe de ser na prática aplicável.
Com efeito, mesmo conscientes do sorites, não deixamos de aplicar a palavra
‘calvo’ diante de uma cabeça realmente lisa, nem a palavra ‘monte’ diante de um
monte realmente vultuoso. Não precisamos, pois, solucionar o sorites para aplicarmos a maioria de
nossos predicados. Igualmente, não precisamos fazer desaparecer os casos indecidíveis
para admitirmos que o nome próprio Aristóteles é um designador rígido.
Uma pergunta interessante pode ser ainda colocada:
alterações na regra de identificação são possíveis; mas elas não destruiriam a
rigidez do nome próprio? A resposta resumida é: se a alteração da regra destruir
a rigidez, ela carregará consigo o nome próprio. Mais detidamente diríamos que
como a regra de identificação define o que o nome próprio é capaz de identificar,
as alterações na regra precisam ser limitadas. As regras-descrições auxiliares
podem sem dúvida ser alteradas, uma vez não são elas que decidem a aplicabilidade
do nome próprio: pouco importa se Aristóteles foi ou não tutor de Alexandre. Quanto
às regras-descrições fundamentais, podemos certamente aumentar o número de
detalhes relativos à localização e caracterização. Isso acontece frequentemente
com o aumento das informações obtidas e não altera a referência nem os mundos
possíveis aos quais o nome se aplica. Mas não podemos alterar a regra de
identificação de modo a alterar os mundos possíveis nos quais o nome próprio se
aplica.
Um exemplo
que comprova esse ponto é o caso do nome Madagascar sugerido por Gareth Evans. A
primeira regra de identificação localizava e caracterizava Madagascar como uma
região na costa leste da África. Marco Polo equivocamente entendeu que
Madagascar seria a grande ilha situada próxima da costa leste da África,
alterando assim por completo a regra de identificação. Por causa desse erro a
prática de chamar essa grande ilha de Madagascar tornou-se corrente tendo como
resultado que o nome ‘Madagascar’ passou a ter dois significados correspondentes
a duas regras de identificação para dois objetos diferentes: o do nome antigo
se referindo a uma região costeira da África, que caiu em desuso, e o do nome
dado por Marco Polo, referente à grande ilha.
Porque
descrições definidas não costumam ser designadores rígidos
Já vimos
que uma vantagem da teoria causal-histórica estaria no fato de que ela fornece
uma explicação aceitável para o fato de as descrições definidas serem designadores
acidentais enquanto os nomes próprios são designadores rígidos: por se conectarem
diretamente com o objeto, eles identificam-no em qualquer mundo possível onde ele
exista; já as descrições, por fazerem isso indiretamente, por intermédio do conteúdo
semântico conotado, são capazes de identificar objetos diferentes em diferentes
mundos possíveis.
Essa explicação
é insatisfatória, na medida em que deve recorrer a uma misteriosa “conexão direta
com o objeto” pretensamente possuida pelos nomes próprios. É uma grande
vantagem para a teoria metadescritivista dos nomes próprios que ela possibilite
uma explicação muito mais convincente da diferença de comportamento entre
descrições e nomes próprios. Para chegarmos a essa explicação podemos começar
perguntando: em que casos as descrições definidas se tornam designadores rígidos?
Um caso à parte é aquele no qual elas são artificiosamente usadas de modo rigidificado.
Para tal basta estipular, por exemplo,
que a descrição ‘o último grande filósofo da antiguidade’ se refere necessariamente
a Aristóteles, o que excluirá, por exemplo, que em outro mundo possível um mais
influente filósofo antigo lhe tenha sucedido. Mas não é isso o que quero considerar
aqui. Podemos fazer o que quisermos com a linguagem pela simples estipulação de
novas convenções, sem que isso nos leve a lugar algum. O que quero considerar é
o caso de descrições atributivas perfeitamente normais, que mesmo assim se deixam
naturalmente interpretar como designadores rígidos. Eis alguns exemplos:
(A)
(i)
a raiz
quadrada de nove,
(ii)
o ponto mais
oriental da América Latina,
(iii)
o terceiro
regimento de cavalaria de Sintra.
(iv)
o último período
glacial,
(v)
o assassinato
do arquiduque austríaco Ferdinando em Sarajevo em 1914.
Pela
descrição (i) não estou entendendo o número 3, mas o procedimento de radicação que
o tem como resultado. Essa descrição seria admitida pelo próprio Kripke como um
designador fortemente rígido, posto que o seu caráter formal a torna aplicável
em qualquer mundo possível. Mas não é ela que mais nos interessa aqui e sim as
descrições (ii)-(v), cujo conteúdo é empírico. Considerá-las designadores rígidos
ou não costuma depender da maneira como as interpretamos. Se entendermos a descrição
(ii) como indicando um local geográfico no nordeste brasileiro onde se encontra
a cidade de João Pessoa, que é onde em nosso mundo se situa o ponto mais
oriental da America Latina, então essa descrição será acidental, pois em um mundo
possível no qual a Patagônia fosse embicada em direção à África de modo a ficar
mais ao leste do que João Pessoa a descrição (ii) se referiria a um local
geográfico muito diferente. Comparamos aqui a descrição com a localização da
cidade cujo nome é João Pessoa. Contudo, se definirmos (ii) como indicando simplesmente
qualquer local que venha a se situar no ponto mais ao leste da América Latina, abstraindo
de sua latitude e de qualquer especificação geográfica, então mesmo em um mundo
possível no qual esse ponto esteja muito diversamente localizado, ele continuará
sendo o mesmo ponto, a saber, o ponto mais oriental da América Latina. Nesse entendimento
(ii) será um designador rígido, aplicando-se a qualquer mundo possível no qual
exista uma América Latina e, portanto, a qualquer ponto geográfico que lhe seja
mais oriental. Assim, se em um mundo possível a Patagônia fosse embicada em direção
à África de modo a ficar mais ao leste do que João Pessoa, a descrição (ii) se aplicaria
a algum local da Patagônia, sem deixar de designar um mesmo ponto. O interessante,
nesse caso, é que essa leitura de (ii) como sendo um designador rígido não é nenhuma
imposição estipulativa, mas uma interpretação natural do conteúdo da descrição.
O ponto em questão fica mais claro quando
consideramos outras descrições. Considere (iii): se tivermos em mente somente o
terceiro regimento de cavalaria da cidade de Sintra (posto que há outros), na abstração
dos soldados e cavalos particulares que o constituem (o que é usual), sua
descrição se torna um designador rígido, aplicando-se ao mesmo regimento em qualquer
mundo possível no qual esse regimento exista. As regras-descrições localizadora
(em Sintra...) e caracterizadora (o terceiro regimento de cavalaria) já se encontram
expressas na descrição.
As descrições (iv) e (v) também podem ser
interpretadas como rígidas. A descrição (iv) pode ser entendida como designando
um estado de coisas caracterizado pelo último período de esfriamento da Terra.
Em nosso mundo ele durou de 110.000 até cerca de 12.000 anos atrás, mas em uma
situação contrafactual ele poderia ter ocorrido em um intervalo muito diverso, sem
por isso deixar de ser o último período glacial. A descrição (iv) é um designador
rígido de um duradouro estado de coisas localizado em nosso planeta. A descrição
(v) é de um evento, contendo explicitamente a sua caracterização como sendo o
assassinato do arquiduque Ferdinando. Em nosso mundo deveu-se ao tiro desferido
por Gavrilo Princip, mas em outro mundo possível ele poderia ter sido causado
por envenenamento, por estrangulamento etc. Poderia mesmo não ter sido o
estopim da Primeira Guerra Mundial, conquanto circunstâncias outras fossem mantidas.
Mas nem por isso deixaria de satisfazer a descrição do assassinato; uma descrição
definida rígida, aplicável em todos os mundos possíveis nos quais o arquiduque
foi assassinado.
Vemos,
pois, que existem descrições definidas de pontos, objetos, estados de coisas e mesmo
eventos, os quais são naturalmente interpretáveis como designadores rígidos. Há
alguma característica comum a todos esses casos? Há duas. Uma primeira é que
eles constituem descrições expondo regras fundamentadoras de localização e/ou caracterização
e não regras auxiliares, como no caso de descrições metafóricas ou acidentais. Essas
não são essenciais, pois podemos bem inventar uma descrição metafórica ou
acidental substituindo os casos acima e ela poderá ser rígida. A segunda característica,
contudo, é indispensável: é a de que não existem nomes próprios correspondentes
a nenhuma dessas descrições. Por isso as chamarei de descrições
autônomas. Logo veremos ser esta a marca decisiva.
Para contrastar, consideremos agora exemplos
de descrições definidas atributivas, que se comportam como designadores claramente
acidentais ou flácidos, capazes de se referir a objetos diferentes em diferentes
mundos possíveis. Eis alguns exemplos:
(B)
(i)
a águia
de Haia,
(ii)
o marechal
de ferro,
(iii)
a cidade
luz.
(iv)
o fundador
do Liceu,
(v)
o primeiro
imperador romano.
Essas
descrições são designadores tipicamente acidentais. Contrariamente às descrições
anteriores, rigidificá-las é possível apenas por estipulação. Considere (i): é
natural pensarmos na descrição ‘a águia de Haia’ como uma metáfora laudatória
do poder oratório de Rui Barbosa em sua passagem por Haia em 1907. Mas podemos conceber
um mundo possível no qual o navio que levava Rui Barbosa ao congresso de Haia tenha
naufragado no meio do atlântico e que ele tenha sido substituido por um orador
igualmente excelso, o qual tenha sido cognominado pelos seus compatriotas de ‘a
águia de Haia’. O mesmo vale para qualquer outra descrição do grupo B.
A questão
que se coloca é: o que torna as descrições do grupo B acidentais, em contraste com
as descrições rígidas do grupo A? A resposta não é que as descrições do grupo B
são auxiliares, pois poderíamos adicionar a essa última lista descrições como ‘o
mais famoso jogador de futebol de todos os tempos’, ‘a cidade de mais de dez
milhões de habitantes situada a margem do Sena’, que são fundamentais e mesmo assim
acidentais. A resposta a essa altura bastante óbvia é outra. É que as descrições
do grupo B, diversamente das pertencentes ao grupo A, encontram-se semanticamente associadas a nomes próprios correspondentes,
os quais são, respectivamente, (i) Rui Barbosa, (ii) Floriano Peixoto, (iii) Paris,
(iv) Aristóteles e (v) Júlio Cesar. Apesar de toda a força dessas associações,
essas descrições não precisam ser verdadeiras para o mesmo objeto referido pelo
nome próprio correspondente em todos os mundos possíveis em que esse objeto existe,
pois há mundos possíveis nos quais Rui Barbosa desistiu de realizar missões
diplomáticas, Floriano Peixoto foi um cândido adepto da monarquia, Paris foi destruída
no século XIV antes de se tornar a cidade luz, Aristóteles não fundou nenhum Liceu
e Júlio César defendeu tenazmente a república.
A consideração desse ponto pesa contra
explicações millianas-kripkianas da flacidez das descrições, segundo as quais elas
são acidentais porque denotam indiretamente, com base em propriedades conotadas,
e não diretamente, como é o caso do nome próprio. O que acabamos de evidenciar
é que a descrição definida não é acidental em si mesma. Ela é chamada de acidental
com respeito à associação que ela possui com um nome próprio. Ela se torna
acidental por vir frouxamente, contingentemente,
e não necessariamente associada a um certo nome próprio. Essa é uma
conclusão que vale não somente para as descrições auxiliares como até mesmo para
descrições fundamentais pertencentes a nomes próprios, uma vez que a regra de
identificação admite a possibilidade da dissociação entre a aplicação do nome
próprio e a aplicação isolada de tais descrições.
Podemos
expor essa mesma idéia dizendo que praticamente qualquer descrição pertencente ao
feixe de descrições representado pelo nome próprio possui uma associação semântica contingente com o restante
das regras-descrições constitutivas do conteúdo informativo desse nome. Essa
associação acontece por ser tal descrição por nós considerada como participando do conjunto das descrições
que constituem o conteúdo semântico do nome próprio sem que da aplicação do
nome próprio se siga necessariamente a aplicação da descrição, e sem que da aplicação
da descrição se siga necessariamente à aplicação do nome próprio. Ou seja, a referida
associação semântica é contingente ou acidental no sentido de que ela não é um
traço indispensável à aplicação do nome próprio, de modo que a descrição definida
e o nome próprio ao qual ela se associa apenas tendem a se referir ao mesmo
objeto, não o fazendo necessariamente. Trata-se de uma relação que supomos ser o
caso, apesar de sermos capazes de imaginar situações contrafactuais nas quais
ela não existe. Assim, a descrição auxiliar ‘o amante de Herphylis’ se aplica a
Aristóteles, pelo que sabemos, mas não é impossível que se descubra que os
documentos que Aristóteles deixou relativos a sua herança tenham sido falsamente
transcritos... Em nosso mundo ‘o autor do opus aristotélico’ é a descrição caracterizadora
de Aristóteles. Mas em outro mundo possível, no qual Aristóteles morreu logo depois
de chegar a Atenas, nunca tendo escrito o opus aristotélico, essa descrição –
para os falantes desse mundo possível – perderá a associação semântica contingente
que ela possuia com o conteúdo semântico do nome próprio ‘Aristóteles’, mesmo que
ela seja parte fundamental (mas não imprescindível) da nossa regra de identificação
para esse nome. Em outras palavras:
Por causa de uma possível desconexão entre referência
do nome próprio e a referência das descrições a ele frouxamente associadas, essas
descrições se tornam capazes de designar outro ou talvez nenhum referente em
outros mundos possíveis nos quais o nome próprio a elas associado continua a se
aplicar ou mesmo deixa de se aplicar. É apenas por essa razão que elas são designadores
acidentais.
Um
exemplo para esclarecer. Uma descrição como ‘o primeiro imperador romano’ exprime
parte da regra-descrição caracterizadora de Júlio Cesar (ele foi o primeiro imperador,
embora de modo não-oficial). Como a regra disjuntiva para a identificação de
Júlio César é mais completa, permitindo identificar o objeto muito mais especificamente,
nós consideramos a descrição ‘o primeiro imperador romano’ como exprimindo uma
propriedade contingente, ainda que importante, de Júlio César. É contingente
porque segundo a sua regra de identificação, ele poderia ser identificado como
tal mesmo no caso em que essa descrição não viesse a lhe pertencer. Só por isso
é que essa descrição se torna acidental, havendo mundos possíveis nos quais a
propriedade referida por ela pode pertencer a outro objeto, ligando-se a outras
descrições fundamentais, como no mundo possível no qual Pompeu foi o primeiro
imperador romano, ou mesmo a nenhuma, como no mundo possível no qual Júlio Cesar
foi um teimoso defensor da república e no qual essa instituição persistiu até o
fim do império.
Claro que
podemos por estipulação abstrair da relação da descrição ‘o primeiro imperador
romano’ com certo imperador específico designado pelo nome ‘Júlio César’; nesse
caso a descrição se torna um designador rígido, pois ela designará o primeiro imperador
romano em qualquer mundo possível no qual ele venha a existir. Esse estratagema
pode ser aplicado a qualquer outra descrição de aplicação unívoca. Contudo, no
caso das descrições do grupo A a rigidez se demonstra uma característica natural
da descrição. Considere A(iii): ‘o terceiro regimento de cavalaria de Cintra’.
Por força das convenções tácitas estabelecidas por nossa prática linguística, essa
descrição sempre se aplicará ao mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual
esse regimento exista. A explicação dada acima explica porque isso ocorre. Assim,
como as descrições do grupo A não se encontram frouxamente associadas ao conteúdo
semântico de nome próprio algum, elas não tem como se referir a objetos diferentes
em outros mundos possíveis nos quais esse objeto venha a existir, sendo isso o
que as torna nomeadores rígidos. Vemos, pois, que muito diversamente do que Kripke
sugeriu, as relações descrição/designador acidental e nome próprio/designador rígido
não tem nada a ver com o mecanismo de referência dessas diferentes espécies de
termos singulares, mas tão somente com as relações que elas são capazes de possuir
uma com a outra.
Um ponto
a se adicionar é que nos casos em que a descrição definida é auxiliar, a regra
de conexão com o objeto por ela expressa não é em si mesma suficiente para identificá-lo
como o objeto referido pelo nome próprio ao qual se associa. Uma descrição como
‘a águia de Haia’, por exemplo, não é capaz, pelo seu conteúdo explícito, de
identificar Rui Barbosa na independência da regra de identificação geralmente
associada ao nome ‘Rui Barbosa’, pois essa descrição honorífica não possui conteúdo
descritivo suficiente para tal. Por isso em um outro mundo possível uma descrição
como ‘a águia de Haia’ pode vir contingentemente associada a um outro nome próprio,
digamos, João da Silva, pertencendo então ao halo semântico desse outro nome próprio.
Finalmente, podemos esclarecer mais qualificadamente
o que seja a associação semântica frouxa entre descrição e nome lançando mão da
distinção wttgensteiniana entre critérios e sintomas[24]. Critérios
(segundo uma interpretação corrente) são propriedades definitórias. Uma
vez aceitas como dadas, elas constituem condições que para nós garantem
a aplicabilidade de um termo conceitual. Sintomas ou critérios secundários, por
sua vez, são propriedades que uma vez aceitas como dadas tornam apenas provável
a aplicabilidade do termo conceitual. Assim, o encontro do plasmodium falciparum
no sangue de um paciente seria critério de malária, enquanto uma febre intermitente
é um mero sintoma. Aplicando essa distinção à relação entre nome próprio e
descrição definida vemos que as propriedades demandadas para a aplicabilidade da
regra de identificação de um nome próprio valem como critérios para a sua aplicabilidade,
enquanto as propriedades demandadas pela regra de uma descrição definida pertencente
ao feixe de descrições associadas a um nome próprio são mero sintoma para a
aplicação do nome, uma vez que apenas tornam essa aplicação provável.
As considerações feitas até aqui nos permitem
prever que a dependência que a descrição definida tem do contexto semântico do
nome próprio correspondente deve ser menor quanto mais irrelevante ela for para
a identificação do objeto. Assim, será mais fácil considerar acidental uma descrição
definida auxiliar como ‘o tutor de Alexandre’ ou ‘o neto de Achaeon’ ou ‘o amante
de Herphylis’, posto que ela desempenha um papel secundário na determinação da
referência do nome ‘Aristóteles’. Mas será menos fácil no caso das descrições fundamentais
como a do autor da Metafísica. E se a descrição definida contiver da maneira
certa tudo aquilo que é essencial ao nome próprio ao qual se encontra subordinada,
ela se tornará inevitavelmente rígida. Esse é o caso de DD-‘Aristóteles’, da
formulação descritiva da regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’ que, como
vimos, é rígida.
Se a flacidez
é proveniente do contraste da descrição com o nome próprio, podemos nos perguntar
se ela não ocorre também pelo contraste entre um nome próprio e outro. Esse deveria
ser o caso de dois nomes próprios de um mesmo objeto quando um deles inclui contingentemente
em seu feixe as descrições que pertencem ao outro. Isso parece ocorrer especialmente
no caso de apelidos. Considere o caso do jovem colegial de nome Jacinto, que por
custar muito a entender as coisas foi apelidado pelos seus maldosos colegas de Cabeça-de-Bigorna
ou, para simplificar, “Bigorna”. Há mundos possíveis nos quais Jacinto não era
um aprendiz moroso, ou não teve colegas maldosos, ou em que o seu colega João
da Silva é quem recebeu esse apelido. Nesses mundos o apelido ‘Bigorna’ ou não
se aplica, ou identifica outra pessoa que não Jacinto. Esse apelido é – se considerado
por contraste com o nome próprio mais autorizado – um designador acidental; um
nome próprio flácido.
As explicações
recém-apresentadas para a diferença no comportamento semântico entre nomes próprios
e descrições definidas não são apenas mais detalhadas do que a obscura sugestão
referencialista de Kripke, segundo a qual o nome próprio refere por possuir alguma
relação de secreta de indevassável intimidade com o seu objeto. Elas tem mais poder
explicativo ao justificarem casos de exceção. Com elas, a rigidez do nome próprio
deixa de ser entendida como uma misteriosa propriedade de designar o objeto em
si mesmo, sem a intermediação de propriedades, para se tornar a metapropriedade
de designar o objeto que possui quaisquer combinações de propriedades que satisfaçam
a sua regra de identificação.
Finalmente, é interessante considerar as
regras de identificação de descrições autônomas (não associadas a nomes próprios),
uma vez que elas funcionam da mesma maneira que as regras de identificação de
nomes próprios. Considere a descrição definida ‘o último período glacial’. Por
ser autônoma, essa descrição precisa exprimir a regra de identificação de um
nome próprio, contendo uma regra de localização:
Regra-descrição localizadora: o último período glacial ocorrido no planeta
terra no máximo até o presente.
Embora
ele tenha ocorrido no período pleistoceno, de aproximadamente 110.000 a 12.000
anos antes de nosso tempo em toda a terra e tenha sido precedido de vários
outros períodos glaciais semelhantes, ele poderia ter ocorrido em um outro
período de tempo mais longo ou curto terminando antes ou depois. Mas há também
uma regra de caracterização para o último período glacial. Ei-la:
Regra-descrição caracterizadora: um longo período de diminuição da temperatura
da superfície e atmosfera terrestre resultando na expansão dos mantos de gelo continentais
e polares, assim como glaciares e alpinos.
Por
funcionarem como nomes próprios, as descrições autônomas demandam, para sua
aplicação, a complexidade necessária a uma regra de identificação, o que não é
exigido de descrições usadas em substituição a nomes, como é o caso de ‘a águia
de Haia’.
Respostas
aos contra-exemplos de Kripke
Gostaria
agora de examinar as objeções usualmente feitas às teorias descritivistas dos
nomes próprios por defensores de teorias causais-históricas. Quero demonstrar que
a teoria meta-descritivista dos nomes próprios é capaz de oferecer respostas
mais detalhadas e convincentes a essas objeções, as quais geralmente falham em distinguir
o papel das regras fundamentadoras, quando não falham em considerar o papel descritivamente
relevante da história causal e do contexto.
1. Objeção de rigidez
Consideremos
primeiro a objeção de rigidez (modal), segundo a qual se o descritivismo fosse
correto então os nomes próprios não poderiam ser designadores rígidos, posto que
descrições não são designadores rígidos.
A resposta geral a essa objeção é que embora
nenhuma regra-descrição de primeira ordem precise se aplicar em todos os mundos
possíveis em que o objeto definidamente existe, a regra-descrição de identificação
do nome próprio (resultante da aplicação da regra meta-identificadora às suas específicas
regras-descrições localizadora e/ou caracterizadora) se aplica necessariamente em
todos os mundos possíveis em que o objeto definidamente existe. (Como já vimos,
podemos ter mundos possíveis nos quais não se pode saber se a regra de identificação
de um nome próprio se aplica ou não; mas tais mundos coincidem com aqueles nos quais
o objeto também não possui uma existência definida, uma vez que a própria existência
do objeto se define pela efetiva aplicabilidade dessa regra.)
Kripke considera casos nos quais nossas descrições
definidas fundamentais não se aplicam, como aquele em que Aristóteles morreu
muito jovem, nunca tendo escrito os textos filosóficos pelos quais o seu nome é
lembrado, ou ainda, um mundo possível (dificilmente imaginável) no qual
Aristóteles viveu quinhentos anos mais tarde. Ainda nesses casos, pensa ele,
podemos reconhecer Aristóteles, o que o leva à conclusão de que até mesmo a disjunção
das descrições do feixe é desnecessária à aplicação do nome.[25] Mas
essa conclusão é simplesmente falsa, pois tudo o que Kripke nos oferece como
exemplo é o caso de não-aplicação da regra caracterizadora acompanhada de uma
aplicação tácita da regra localizadora, ou vice-versa. Contudo, já vimos que esses
casos são previstos como plenamente compatíveis com a aplicação da regra de identificação
do nome próprio. O que Kripke jamais chega a considerar é um caso no qual o que
vimos ser a regra identificadora de um nome próprio não seja aplicável e ainda assim
o seu portador exista. Ele não é capaz
de nos fornecer um exemplo concreto em que a disjunção das descrições do feixe seja
realmente desnecessária, a saber, no qual nenhuma das descrições se aplique em medida
alguma. E isso acontece pela simples razão de que tal exemplo é inconcebível! Como
bem notou Searle, não pode ser que Aristóteles seja o nome de um iletrado vendedor
de peixes veneziano do Renascimento tardio.
Um
mais ardiloso contra-exemplo de Kripke ao descritivismo diz respeito ao nome
próprio ‘Hesperus’.[26] Se
Hesperus abreviasse a descrição ‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’,
diz ele, então isso seria uma verdade necessária. Mas imagine que depois de ter
sido cunhado esse nome, um planeta errante do mesmo tamanho tivesse colidido
com Hesperus, de modo que ele deixasse de ser visível ao entardecer, ou então
(para piorar as coisas) tenha em seu lugar se tornado visível ao entardecer o próprio
planeta errante. Nesse caso não parece que com o nome ‘Hesperus’ estamos nos
referindo ao corpo celeste que satisfaz a descrição ‘o corpo celeste visível
por lá ao entardecer’, mesmo que enganosamente acreditemos nisso.
Esse contra-exemplo deve parte de sua eficácia
ao fato de que o nome próprio ‘Hesperus’ pode realmente ser entendido referindo-se
a algo como o corpo celeste mais brilhante (regra caracterizadora) que aparece ao
anoitecer na direção do sol (regra localizadora). Certamente, era isso o que havia
sido entendido com a palavra antes de a astronomia ter sido desenvolvida, quando
não se sabia ainda diferir Hesperus, o planeta, de Hesperus, um anjo reluzente.
Nesse caso não pode ser que Hesperus não satisfaça a descrição, pois o nome se
refere a uma mera aparência perceptual. Mas ninguém mais hoje se atém a esse sentido
decíduo da palavra e referindo-se a um planeta Kripke não pode estar tendo em
mente esse sentido..[27]
Para responder ao contra-exemplo, comecemos considerando
a questão tendo em mente a concepção meta-descritivista ao invés das simplificações
caricaturais do descritivismo sobre as quais Kripke ergue seus argumentos. O caso
do nome próprio Hesperus deve ser assimilado ao do planeta Vênus, uma vez que
com a palavra ‘Hesperus’, hoje, o que temos em mente é Vênus aparecendo para
nós ao anoitecer.[28] Podemos,
pois, assimilar a regra caracterizadora do planeta Vênus à regra localizadora
de Hesperus, posto que a propriedade que realmente nos importa é a de ser o segundo
planeta do sistema solar e não o fato de ele aparecer ao anoitecer (Se Vênus perder
a atmosfera que o torna brilhante ou grande parte de sua massa, mas ainda assim
não se tornar um mero asteróide, continuando como um planeta, sua regra de identificação
continua sendo satisfeita pela satisfação da sub-regra localizadora e diremos
que Hesperus deixou de ser visível.) Assim, a descrição localizadora-caracterizadora
essencial à identificação de Hesperus, que por mera questão de clareza chamo de
(Vênus)-Hesperus é:
RI-‘(Vênus)-Hesperus’: o segundo planeta do sistema
solar, que tem orbitado o sol entre Marte e a Terra por todo esse tempo e que
sempre foi visível como a estrela da tarde.
Essa
descrição localizadora-caracterizadora pode ser colocada sob a forma standard
de uma regra de identificação que, por unificar a regra de identificação de
Vênus com a regra de identificação de Hesperus se torna a seguinte regra conjuntiva:
RI-‘(Vênus)-Hesperus’:
O nome próprio ‘(Vênus)-Hesperus’ refere-se
propriamente a um objeto x pertencente
à classe dos corpos celestes
see
(i-a) x
satisfaz a sua regra de localização de ser o segundo planeta do sistema solar,
que tem orbitado o sol entre Marte e a Terra por todo esse tempo.
e
(i-b) x
satisfaz a sua regra de atribuição de ser o planeta mais brilhante que sempre
foi visível como a estrela da tarde (Hesperus).
(ii) x
satisfaz a conjunção (i-a) ou (i-b) em medida no todo suficiente e
(ii)
x satisfaz a conjunção (i-a) ou (i-b) mais do que
qualquer outro corpo celeste.
(Assumindo-se junto a isso a satisfação de uma
condição causal do tipo Cc.)
Nesse
caso, a regra de identificação será de um tipo que exige a necessária satisfação
dessa regra-descrição localizadora, tal como no exemplo da regra de identificação
do planeta Vênus. Isso demonstra que a satisfação da descrição proposta por Kripke
‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’ só é relevante como um possível
meio de identificação do planeta tido até hoje. Afinal, se Hesperus perdesse
a sua atmosfera e por isso deixasse de brilhar à noite, ele não deixaria de ser
Hesperus. Se um planeta errante chocar-se com Vênus(-Hesperus) e o lançar para
fora do sistema solar, mesmo lá fora ele continuará sendo o nosso Vênus, pois a
regra RI-‘(Vênus)-Hesperus’ continuará sendo aplicável. Ademais, no caso em que
um planeta errante vir a tomar o lugar de Hesperus, mesmo que ele satisfaça essa
descrição de ser a estrela mais luminosa que aparece “por lá” ao anoitecer, ele
não satisfará RI-‘(Vênus)-Hesperus’, pois não era ele que orbitava o sol desde
que foi descoberto como sendo Vênus e mesmo antes disso. Por isso, se o que nós
virmos “por lá” ao entardecer deixar de satisfazer a regra de identificação – por
não ser o planeta que orbitou o sol no tempo de sua denominação, mas, digamos,
o planeta errante que acabou de tomar o lugar do verdadeiro Vênus – ele não será
mais o Vênus(-Hesperus), mas outra coisa. E isso será assim, não tanto por não
ser mais a fonte causal-histórica do batismo, mas por não se conformar mais com
nossa descrição localizadora-caracterizadora mais fundamental. O mesmo não seria
o caso se fosse no passado, antes da descoberta de (Vênus)-Hesperus. Imagine
que um dia se descubra que há milhões de anos um planeta errante tomou o lugar
do segundo planeta do sistema solar primitivo. Não deixaremos por isso de chamar
esse (Vênus)-Hesperus de Hesperus ou de Vênus. Diremos apenas que se descobriu
que nosso (Vênus)-Hesperus é um planeta que não fazia parte do sistema solar
primitivo. Em ambos os casos o que determina a existência de Hesperus é a descrição
fundamental expressa por RI-‘(Vênus)-Hesperus’.
2. Objeção da necessidade indesejável
Vejamos
agora a objeção de necessidade indesejável (epistêmica). Essa objeção parte da
constatação de que, sendo os nomes próprios designadores rígidos, eles se aplicam
necessariamente aos seus objetos. Como nenhuma descrição se aplica necessariamente
ao seu objeto, nomes próprios não podem ser reduzidos a descrições.
Considerando
que essa objeção, como já vimos, se aplica no máximo a uma caricatura do
descritivismo, seria ainda mais disparatado querer aplicá-la ao metadescritivismo.
O que necessariamente se aplica, caso o objeto definidamente exista, é apenas a
regra de identificação (i.e. ao menos
uma descrição fundamental deve ser suficientemente e predominantemente aplicável
a algo). Assim, como também já vimos, a regra de identificação para o nome próprio
‘Aristóteles’ pode ser transformada em uma descrição definida necessariamente aplicável,
abreviadamente expressa como:
DD-‘Aristóteles’:
a pessoa que satisfaz suficientemente e predominantemente
as descrições de ter nascido em Estagira em 384 a .C., filho do médico da
corte, ter vivido em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a .C. e/ou a pessoa que
foi o autor da filosofia exposta no opus
aristotélico.
Ao fazermos tal consideração, não devemos nos esquecer
que as descrições constitutivas do significado de um nome próprio são capazes de
ser facilmente alteradas (quando auxiliares) e frequentemente mais detalhadas
(quando fundamentais) ou mesmo em alguma medida alteradas, conquanto não ponham
a perder a unidade do significado ou a rigidez – a capacidade de identificar uma
e a mesma coisa em qualquer circunstância na qual ela exista, admitindo que a
existência não seja mais do que a própria aplicabilidade efetiva da regra de
identificação.
Suponha
que seja descoberto que Aristóteles não escreveu a Ética a Nicômano, ou que
ele não nasceu em Estagira, mas na Magna Grécia anos mais tarde. Essas descobertas
teriam de ser acompanhadas de muitas outras alterações em nosso conhecimento histórico.
Mas isso não nos impedirá de supor que em um certo mundo possível em que ele
tenha escrito Ética a Nicômano (além de todas as outras obras) e tenha
nascido em Estagira em 284 a.C. filho de Nicômano, o médico da corte de Felipe,
ele não seja reconhecido como o nosso Aristóteles até mesmo melhorado (por
exemplo: imagine que nesse mundo ele tenha vivido tanto quanto Platão e escrito
várias outras obras importantes...). Ou seja, podemos alterar uma regra de
identificação na medida em que em circunstâncias muito diversas (outros mundos
possíveis) continuamos sendo capazes, através da mesma regra alterada, de
identificar exatamente o mesmo objeto. Mas ultrapassados certos limites, o objeto
identificado deixará de ser o mesmo, posto que a regra de identificação passará
a ser uma considerada outra, identificadora de um outro objeto.
O caso do impostor de nome ‘Arthur Orton’ pode
ser de algum auxílio no esclarecimento desse ponto.[29] Nascido
na Inglaterra e tendo ido cedo para o mar, ele foi certamente identificado através
de regras de localização e caracterização por todos os que realmente o
conheceram. Anos após, quando estava na Austrália, ele leu em um jornal que uma
senhora inglesa, lady Tichborne, estava em busca de seu filho Roger Tichborne, que
tinha desaparecido em um naufrágio no Atlântico, e que ela se negava a acreditar
que ele havia morrido. De volta à Inglaterra, apesar de sua falta de semelhança
com Roger Tichborne, Orton apresentou-se a ela como sendo o seu filho, tendo
com sido imediatamente “reconhecido” pela velha dama e vivido no lugar de seu
filho pelo menos até o falecimento de Lady Tichborne três anos depois. Depois disso
Orton foi acusado por familiares de Lady Tichborne e condenado a 14 anos de
cadeia. Note que a regra caracterizadora pela qual conhecemos Orton é a de um grande
impostor. Mas quase todos hoje acreditam que se trata de uma pessoa que foi falsamente
reconhecida como sendo Tichborne pelo compartilhamento muito parcial de uma regra
de identificação principalmente pela descrição localizadora, adicionada ao
desejo que a senhora inglesa tinha de acreditar. Ou seja: regras de
identificação suficientemente distintas para serem consideradas não-rígidas, ou
seja, capazes de identificar objetos diferentes algum mundo possível no qual
esses objetos existem, ou seja, nos quais tais regras são definidamente aplicáveis,
não identificam o mesmo objeto. Ao que tudo indica, há muitos mundos possíveis
nos quais Arthur Othon não é Roger Tichborne, especialmente o nosso. Alterar
uma regra de identificação não pode ser o mesmo que a criação de uma outra.
Passemos agora ao mais famoso exemplo de Kripke,
concernente à descrição que a maioria das pessoas associa ao lógico Kurt Gödel.
Essa descrição é: ‘o homem que descobriu a incompletude da aritmética’. Kripke pede-nos
para imaginar que Gödel não descobriu realmente o teorema da incompletude.
Suponhamos, diz Kripke, que Gödel tenha tido um amigo, um obscuro lógico chamado
Schmidt, que desenvolveu sozinho o teorema de incompletude em um artigo e morreu
logo depois em circunstâncias obscuras. Gödel apossou-se então do artigo e o
publicou em seu próprio nome. Imagine também que, como muitas outras pessoas, tudo
o que uma certa pessoa, que chamarei aqui de Maria, associa ao nome ‘Gödel’ é a
descrição ‘o inventor do teorema da incompletude da aritmética’. Nesse caso, pensa
Kripke, segundo o descritivismo, quando Maria fica sabendo que foi Schmidt quem
descobriu o teorema da incompletude ela deve ser levada à conclusão de que o
nome ‘Gödel’ significa o mesmo que ‘Schmidt’, ou seja, de que Gödel é Schmidt.
Mas não é isso o que acontece. Pois continua bastante claro, mesmo para a própria
Maria, que Gödel é Gödel e que ele não é Schmidt.[30]
Discordando da análise de Kripke, John Searle
notou que uma pessoa dirá que Gödel não é Smith porque ela entende por Gödel “o
homem que minha comunidade lingüística, ou pelo menos aqueles através dos quais
eu cheguei a esse nome, chamam de Gödel, assumindo que algo mais é requerido”.[31] Com efeito,
se tudo o que Maria sabe sobre Gödel é que foi ele quem descobriu a incompletude
da aritmética e se ela acha que isso é suficiente para a identificação, então ela
não entende a gramática dos nomes próprios, não sabe o que é um nome próprio,
não sendo capaz de lhe dar sentido.
Ora, com base em nossa análise da forma da
regra de identificação para nomes próprios podemos explicitar aquele algo mais
que segundo Searle a pessoa assume que é requerido. Basta atentarmos para RMI2
e para as condições (i-a) e (i-b). Só isso nos leva a perceber que a conclusão
de Kripke é incorreta. Ela é incorreta porque não leva em conta a regra de
identificação que a comunidade linguística deve ter para o nome ‘Gödel’, que inclui
a assunção feita por Maria, como falante competente da linguagem, de que ela não
a conhece o suficiente para concluir que a referência se alterou (Maria certamente
domina RMI2, sabendo que não sabe).
Para
analisarmos melhor o caso vejamos primeiro o que seria a regra de identificação
do nome ‘Gödel’ para os nomeadores privilegiados da comunidade linguística. Do
ponto de vista desses nomeadores há duas razões para Gödel não ser identificado
com Schmidt. Em primeiro lugar, a descrição ‘o descobridor do teorema da incompletude’
não é mais do que uma parte da regra-descrição caracterizadora para Gödel. O teorema
da incompletude foi apenas a mais importante dentre as variadas contribuições
de Gödel. Além disso, mesmo sem ser Schmidt, Gödel foi um lógico suficientemente
competente para trabalhar em Princeton e ser amigo de Einstein. Assim, a regra de
caracterização para Gödel continua a ser parcialmente satisfeita pelo nome ‘Gödel’
(digamos, 2/3 dela), mesmo que ele não tenha descoberto o teorema em questão. A segunda razão
pela qual a comunidade linguística continua a chamar Gödel de ‘Gödel’ é que a regra-descrição
localizadora continua sendo plenamente
satisfeita por Gödel! Afinal, ela continua sendo a regra de identificação de
Gödel, e não a de Schmidt. Resumidamente:
Regra de localização: o homem que nasceu em Brünn em 1906, que estudou na Universidade
de Viena e que em 1940 emigrou pela ferrovia transiberiana para os EUA, onde trabalhou
na universidade de Princeton até a sua morte em 1978.
Assim,
apesar de tudo a regra de identificação para Gödel continua sendo satisfeita
para Gödel muito mais do que para Schmidt. Ao menos para quem realmente a conhece.
Não devemos
sobrepor nossa conclusão de que Gödel não pode ser Smith à conclusão de Maria,
pois a essa última, por carecer de informação, só resta suspender o juízo (Cf.
condição (b-2)). Afinal, seu domínio da gramática dos nomes próprios lhe
permite concluir que ela não tem elementos suficientes para afirmar que Gödel é
Schmidt. Maria está certamente ciente de que ao associar o nome ‘Gödel’ à descrição
‘o inventor da prova da incompletude da aritmética’ ela certamente conhece apenas
uma parte da regra-descrição caracterizadora de Gödel, que deve ser mais completamente
dominada por alguns outros membros da comunidade linguística. Mas o ponto crucial
é que, como falante competente da linguagem, Maria sabe que sendo Gödel o nome
de uma pessoa deve haver também alguma regra de localização espaciotemporal
para Gödel, a qual ela desconhece, uma regra que precisa ser diferente da regra
de localização espaciotemporal para Smith, posto que as informações que ela tem
são de que que Smith é outra pessoa (Gödel não poderia matar-se a si mesmo para
então roubar-se o manuscrito). Sabendo disso, e sabendo que desconhece as regras
de localização, ela sabe que não se encontra em condições de concluir que Gödel
é Schmidt, diversamente de nós, que, como nomeadores privilegiados, sabemos que
Gödel não pode ser Schmidt. Maria sabe implicitamente que para que haja referência,
mesmo que secundária, ela deve conhecer condições de convergência (inclusão do
nome na classe correta de objetos) e possuir competência linguística (que depende
do conhecimento de RMI2). Mas por isso mesmo ela sabe que não sabe o
suficiente sobre o nome Gödel para ter a pretenção de saber que Gödel é Schmidt.
Há uma
curiosidade a respeito. Como ao menos parte de uma das duas descrições fundamentais
identificadoras de Gödel é satisfeita por Schmidt, é possível dizer que este último
passa a herdar alguma coisa do significado do nome ‘Gödel’, mesmo que não ganhe
a sua referência. E isso realmente acontece. Digamos que um lógico, revoltado pela
notícia acerca do roubo do teorema e com pena de Schmidt, lance a exclamação: “Schmidt
é quem foi o verdadeiro Gödel!” Essa é uma frase verdadeira se for entendida como
uma hipérbole. E a razão pela qual ela é verdadeira é dada pela teoria
metadescritivista, a qual prevê que o nome ‘Schmidt’ herda alguma coisa relevante,
mesmo que insuficiente, do significado do nome ‘Gödel’.
Há, por fim, uma maneira de fazer com que Gödel
seja realmente Schmidt, mas ela dá a Kripke o bolo sem o direito de comê-lo. Imagine
a inverossímil estoria de um jovem chamado Schmidt, que por alguma razão assassinou
o adolescente Gödel, conseguido assumir a sua identidade. Contudo, Schmidt era
não só um assassino genial, mas também um lógico genial, de modo que ele
estudou na Universidade de Viena, descobriu a incompletude da aritmética, casou-se
com a dançarina Adele, fugiu do nazismo pela ferrovia transiberiana e tornou-se
professor em Princeton, onde faleceu em 1978. Logo, não se deixem iludir pelas
aparências: aquele sujeito franzino de calças curtas junto a Einstein na famosa
foto de ambos era ele mesmo, o criminoso Schmidt! Nesse caso não há dúvida de que
Gödel é Schmidt. E o metadescritivismo explica: ele é Schmidt porque as
regras-descrições caracterizadora e localizadora predominantes, com exceção das
descrições relativas à infância remota, são as de Schmidt e não as da criança que
uma vez foi chamada de Gödel, a qual há muito deixou de existir.
3. Objeção da ignorância e erro: nomes próprios
ficcionais
Vejamos
agora casos que envolvem ignorância e erro. Eles são importantes por iluminarem
o caráter social dos conteúdos representacionais envolvidos na referência.
Um caso especial de ignorância e erro (além de
necessidade indesejável) exposto por Kripke foi o de nomes próprios parcialmente ficcionais, como Jonas, o pregador.
Ele distingue tais casos daqueles de nomes próprios puramente ficcionais, como
Santa Claus. Mesmo que tenha existido um religioso com o nome de Santa Claus no
passado, sabemos que o nosso Santa Claus nada tem a ver com ele e que se trata
de meros homônimos casuais, assim como Napoleão como o nome da figura histórica
e Napoleão como o nome do cão assim batizado.[32] Mas o
mesmo, pensa Kripke, não se dá no caso de Jonas. Segundo a Bíblia, Jonas foi um
pregador enviado por Deus à cidade de Nineveth para converter os pagãos e que
acabou sendo engolido por um grande peixe... Mas ninguém acredita que essas descrições
sejam verdadeiras. Mesmo assim, estudiosos da Bíblia acreditam que realmente
existiu uma pessoa que originou a estória.[33] Mas
se é assim então o descritivismo está errado, pois não possuímos descrições capazes
de identificar univocamente Jonas[34]. E a
teoria causal deve estar certa, pois o uso semificcional do nome foi realmente
causado por seu portador.
Um exemplo
similar mais adequado é o do justiceiro Robin Hood. Historiadores crêem que a lenda
de Robin Hood seja baseada em alguma pessoa real, que viveu no século XIII.
Para tal há uma lista de candidatos. Entre eles, porém, encontram-se pessoas
que não eram pobres, que não eram foras-da-lei, que não viveram na floresta de Sherwood
e que nem sequer se chamavam Robin Hood! Contudo, o referente dessa figura parcialmente
ficcional é suposto como sendo um e o mesmo, apesar do fato de não satisfazer propriamente
descrição alguma. Para um filósofo como Kripke, a razão pela qual estamos no
final das contas tratando de pessoas que realmente existiram é que a cadeia
causal começou com o reconhecimento do personagem real. Desse modo a teoria causal-histórica
parece possuir uma explicação para algo que a teoria descritivista não é capaz
de explicar.
Antes de respondermos, precisamos lembrar que
há coisas que podem ser aceitas como portadoras do nome e outras não. Eis alguns
exemplos de possíveis causas das lendas de Jonas e Robin Hood:
1) Suponha que um antigo escrivão da Bíblia tenha
pisado em um ouriço-do-mar, e que no doloroso período de convalescência que se
seguiu, as lembranças do acidente o tenham induzido a inventar a história de Jonas.
2) Ao atravessar
uma floresta à noite algum escritor de ficção do final da Idade Média foi agredido
pelas costas por um assaltante desconhecido, o que o deixou desacordado. Esse acidente
o induziu a imaginar a estória de Robin Hood.
3) Um bardo medieval tinha um fiel e valente cão que
o acompanhava nas caçadas na floresta the Sherwood. Esse cão havia sido batizado ‘Robin’. No final
o cão acabou lhe inspirando a estória de um justiceiro chamado Robin Hood, que
vivia na floresta e assaltava os mais ricos para ajudar os pobres.
Obviamente,
ninguém dirá que o ouriço-do-mar é Jonas, que o ladrão desconhecido é Robin
Hood ou que o cão batizado com o nome ‘Robin’ era Robin Hood só porque eles podem
ser considerados as causas da posterior invenção desses personagens. Alguém poderá
nesse ponto objetar que para Kripke a cadeia causal-histórica precisa ser associada
a um ato de batismo, o que não é o caso. Mas o cão foi realmente assim batizado
e todos sabiam seu nome e conheciam suas nobres qualidades. Além do mais, isso
não teria acontecido com o nome ‘Robin Hood’ no caso de a pessoa que originou a
lenda ter sido batizada, como alguns sugerem, com um outro nome. Quanto ao nome
‘Jonas’, podemos ainda imaginar que o antigo escrivão da Bíblia tenha guardado
o ouriço-do-mar em sua casa e que logo depois de inventar a história de Jonas e
contá-la aos seus amigos, ele tivesse tomado o ouriço em suas mãos e dito: “Por
isso eu te batizo com o nome Jonas”. Não parece que ele teria sido capaz de por
essa maneira originar uma cadeia causal capaz de fazer-nos reportar o nome ‘Jonas’
ao ouriço-do-mar, pois Jonas deveria ter sido uma pessoa enquanto o ouriço não
teria nunca passado de um simples ouriço, assim como o cão foi um simples cão.
De nossa parte, a subcondição da regra RMI, que exige classificação adequada, proibe
seres não humanos de serem eventuais recipientes de nomes próprios como os do
Jonas bíblico e do legendário Robin Hood.
Por que
em certos casos reconhecemos a causa como sendo o portador do nome e em outros
não? A única resposta plausível é que a causa que reconhecemos como adequada é
aquela capaz de satisfazer elementos cognitivos que associamos ao nome. Nos casos
de Jonas e Robin Hood, mesmo havendo uma cadeia causal (o que deve ser indubitável),
o que confere adequação a essa cadeia causal são representações descritivamente
exprimíveis dela resultantes, mesmo que bastante vagas, de quem seriam Jonas e Robin
Hood. Com efeito, a partir da história bíblica nós inferimos alguma coisa da descrição
localizadora, qual seja, a de que o Jonas real teria sido um ser humano que viveu
nos tempos bíblicos (entre 600
a 1.000 anos a.C.), e alguma coisa da descrição caracterizadora,
qual seja, a de que ele teria sido uma pessoa envolvida com a religião. E quanto
à pessoa que gerou a lenda de Robin Hood, sabemos que ela deve satisfazer alguma
coisa da descrição localizadora de ter vivido na Inglaterra por volta do século
XIII, além de alguma coisa da descrição caracterizadora, como a propriedade de ter
sido alguma espécie de justiceiro. Além disso, em ambos os casos vagas histórias
causais podem ser supostas. Segundo RMI2, a regra meta-identificadora
para nomes próprios, seria essa provável satisfação genérica de regras-descrições
fundamentais aquilo que torna esses nomes semi-ficcionais indicadores de coisas
alegadamente reais. É verdade que essas descrições são insuficientes para a identificação
unívoca de Jonas e de Robin Hood, mas não é isso o que pretendemos com elas; pois
afinal não somos realmente capazes de identificar essas pessoas. O que elas nos
permitem fazer é apenas propor hipóteses plausíveis – supor que esses personagens
existiram realmente.
Podemos,
pois, distinguir nas descrições associadas aos nomes de personagens semi-ficcionais
dois elementos. O primeiro é o elemento meramente ficcional, constituído de descrições
geralmente coloridas e fantasiosas, que não foram feitas para se aplicar à realidade,
como os sofrimentos de Jonas no interior do peixe ou os feitos heróicos de Robin
Hood. O segundo é o elemento não-ficcional; são descrições localizadoras e caracterizadoras
muito vagas, que seriam implicadas pelas regras localizadora e caracterizadora que
supomos que poderiam ser completadas se dispuséssemos de informações suficientes
a respeito do portador do nome. Aquilo que define o que chamamos de caráter semi-ficcional
é a adição do elemento imaginativo, decalcado sobre critérios identificadores
insuficientes que nos teriam sido originariamente legados, o que é complicado
pelo fato de que não temos como dissociar suficientemente o que é mera produção
da imaginação daquilo que seriam os traços restantes de critérios identificadores.
Nada
impede, porém, que em certos casos essa distinção possa ser esclarecida. Imagine
que estudiosos descubram documentos comprovando que Robin Hood chamava-se na verdade
Robart Hude, um fora da lei que realmente viveu na floresta de Sherwood no início
do século XIII. Nesse caso, traços das descrições localizadora e caracterizadora
que nos restaram demonstram-se verossímeis. Mas se esse não for o caso pode ser
que estejamos diante de exemplos idênticos ao de Santa Claus, cuja ligação com
um original histórico é meramente acidental. Há, pois, um esperado paralelo entre
a incerteza ligada aos nomes semi-ficcionais e a insuficiência das descrições que
a eles somos capazes de associar.
4. Objeção da ignorância e erro: descrições elípticas
e incorretas
A mais
interessante forma de objeção da ignorância e do erro é aquela na qual Kripke demonstra
que geralmente as pessoas conseguem fazer com que um nome próprio tenha referência,
mesmo quando a ele associam apenas uma descrição indefinida ou uma descrição incorreta.
Exemplos do primeiro caso são os nomes ‘Cícero’ e ‘Feynman’, aos quais muitos associam
apenas alguma descrição indefinida como ‘um famoso orador romano’ para o primeiro
e ‘um grande físico norte-americano’ para o segundo.[35] Apenas
uns poucos seriam capazes de explicar os discursos políticos de Cícero ou de dissertar
sobre as contribuições de Feynman para a microfísica. Mesmo assim, as pessoas
são capazes de se referir a Feynman através de seu nome. Mais do que isso, as
pessoas são capazes de usar um nome próprio referencialmente, mesmo quando associam
a ele descrições blatantemente errôneas. Kripke observou que em sua época muitos
associavam ao nome ‘Einstein’ à descrição ‘o inventor da bomba atômica’.[36] Com isso
as pessoas já conseguiam se referir a Einstein, acreditou ele, apesar de a bomba
atômica ter sido elaboração dos cientistas do projeto Manhattan, do qual Einstein
nunca participou.
Podemos retornar aqui à resposta já exposta anteriormente
de que a descrição sustentada pelo falante deve estar em convergência com o conteúdo caucionado pela comunidade linguística no
sentido de pertencer a uma classe C de nomes próprios. Essa convergência já permite
um uso vago, que por isso mesmo não deve ser considerado inapropriado, do nome próprio
na linguagem. Ela permite o que já chamamos de uma referência por empréstimo, não-autosuficiente,
algo mais que um gesto em direção à verdadeira referência. Associando os nomes
‘Cicero’ e ‘Feynman’ a descrições indefinidas, e mesmo associando o nome ‘Einstein’
a uma descrição errônea mas convergente, as pessoas já se tornam capazes de
colocar o nome próprio na órbita da referência, ou seja, de usá-lo em práticas
linguísticas nas quais seu papel seja suficientemente vago e adequado para poder
ser interpretado por nomeadores privilegiados como denotando de maneira
aproximada o seu portador. Afinal, mesmo no caso de uma descrição incorreta, como
‘o inventor da bomba atômica’, a pessoa já sabe que o nome ‘Einstein’ se refere
a um cientista e a um ser humano, e não, por exemplo, a uma espécie de pedra preciosa.
Assim, se a pessoa disser que Einstein inventou a bomba atômica, outros poderão
corrigi-la, admitindo que ela queria se referir à mesma pessoa a qual elas se
referem com esse nome. Contudo, se, como já notamos, uma pessoa usasse o nome
‘Einstein’ para designar um diamante, ou usasse o nome ‘Feynman’ para designar
uma marca de perfume, esse uso seria claramente inadequado, pois ela não estaria
tentando se referir à mesma espécie de coisa a que nós nos referimos com esses
nomes, não sendo geralmente capaz de inseri-los corretamente em situações
dialógicas. Sequer uma referência não-autosuficiente é aqui alcançada.
Seria possível
opor à resposta descritivista o fato de que uma razão pela qual nos lembramos
do físico Robert Oppenheimer é que ele foi o responsável pela criação da bomba
atômica. Logo, quem diz que Einstein foi o inventor da bomba atômica está usando
a regra caracterizadora do nome Oppenheimer, o que significa que deveria fazer
referência a Oppenheimer ao falar de Einstein, o que não é o caso... A resposta
a uma objeção como essa é que muito depende do que está sendo enfatizado. Se a frase
fosse “O inventor da bomba atômica foi Einstein”, a pessoa seria de fato corrigida
com a resposta de que o responsável pela criação da bomba foi Oppenheimer e não
Einstein. Contudo, quando o nome próprio ‘Einstein’ está na posição de sujeito,
nós enfatizamos a regra associada à descrição auxiliar ‘o portador do nome “Einstein’”.
A posição de sujeito só deixa de importar aqui quando a informação é mais detalhada.
Se uma pessoa dissesse: “Einstein foi o físico que dirigiu o projeto Manhattan,
que produziu a primeira bomba atômica, tendo nascido em Nova York em 1904 e falecido
de câncer em 1967” ,
nós não a corrigiríamos dizendo que Einstein não foi o responsável pela invenção
da bomba atômica; nós diríamos que a pessoa está realmente se referindo a Oppenheimer.
5. Circularidade
Um
último argumento de Kripke é o que apela à circularidade: o nome Einstein não
pode ser explicado pela descrição ‘o criador da teoria da relatividade’, pois o
nome ‘teoria da relatividade’ é explicado pela descrição ‘a teoria criada por
Einstein’.[37]
Uma circularidade semelhante ele aponta na explicação do nome próprio ‘Giuseppe
Peano’. Muitos de nós associamos a esse nome a descrição ‘o descobridor dos axiomas
da aritmética’. Trata-se, porém, de um engano. Peano apenas expôs os axiomas,
adicionando ao seu texto uma nota na qual atribuía corretamente o seu descobrimento
a Dedekind. O erro, de acordo com Kripke, perpetuou-se. Uma solução, escreve ele,
seria dizer que Peano é ‘a pessoa que a maioria dos experts referem como sendo Peano’. Mas essa solução seria circular.
Como identificar os experts em Peano?
Suponhamos que eles sejam os matemáticos. Mas pode ser que a maioria dos matemáticos
erroneamente associe ao nome Peano à descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’.
Poderíamos então sugerir o recurso à descrição ‘a pessoa a qual a maioria dos Peano-experts refere pelo nome Peano’. Mas essa
solução seria também circular, pois para identificar os Peano-experts já precisamos ter identificado
Peano, já precisamos saber quem é Peano.[38]
Essas
objeções de circularidade são claramente falaciosas e me pergunto se alguma vez
alguém já as levou a sério. Por certo é possível que alguém aprenda a teoria da
relatividade na independência de qualquer referência ao nome de Einstein. E quanto
a Peano, se tudo o que penso saber dele é que foi o descobridor dos axiomas da
aritmética, essa é uma descrição falsa, mas convergente. Basta digitar “o descobridor
dos axiomas da aritmética” no Google e acabarei descobrindo que estou enganado.
Mas por ser convergente, a descrição já implica coisas verdadeiras, como o fato
de que Peano foi um famoso matemático italiano. Assim, percebido o erro eu
recomeço orientando-me por elas. Para aprender mais posso procurar em uma enciclopédia
ou em um livro sobre a história da matemática. Lá eu encontrarei informações
mais detalhadas, feixes de descrições oferecidas pelos matemáticos. De posse dessas
informações e da bibliografia dada, eu chegarei a textos específicos sobre Peano,
escritos por especialistas em Peano, e mesmo aos textos do próprio Peano. O
processo não é circular, mas de ascenção
em báscula: com base nas informações preliminares genéricas I1 sobre
x somos capazes de procurar e encontrar
as informações adicionais I2 sobre x; com base no conjunto das informações {I1, I2}
sobre x tornamo-nos capazes de procurar
e encontrar as informações I3 sobre x; com base então no conjunto de informações {I1, I2,
I3} chegamos a I4 e assim por diante. Claro que cada novo
corpo de informações adquirido já contém as informações anteriores e as iniciais,
incluindo erros corrigidos, o que pode a um olhar desatento dar impressão de circularidade...
Mas isso não é suficiente para tornar o processo realmente circular, uma vez que
é o conhecimento adicionado e não o conhecimento preservado aquilo que nos leva
a adquirir novo conhecimento.
Isso também se aplica, certamente, ao procedimento
que Kripke tenta exemplificar. É verdade que se para saber quem é o especialista
em Peano precisássemos já saber tudo o
que o especialista em Peano sabe sobre Peano, precisaríamos saber quem é Peano
para saber quem é o especialista em Peano e cairíamos em circularidade. Mas
como prcisamos, para saber quem é o especialista em Peano, de no máximo algumas
generalidades sobre Peano (um grande matemático italiano do século XIX etc.), e
para saber quem é Peano o especialista em Peano precisa saber muito mais coisas
sobre ele do que sabemos, nós caímos, não em uma circularidade, mas em um movimento
cada vez mais detalhador de informações sobre o objeto referido.
O
enigma de Pierre
Em
1979 Kripke apresentou um problema que parecia colocar em questão tanto as respostas
descritivistas quanto as respostas causalistas para o problema da referência.
Pierre é um francês que quando criança acreditava na verdade da frase “Londres est
jolie” (Londres é bonita). Adulto foi para Inglaterra viver em um bairro desagradável
de Londres, acreditando então na verdade da frase “London isn’t pretty”. Ele mantém
as duas crenças sem perceber a contradição. Mas se a origem causal do uso de
‘Londres’ e ‘London’ é a mesma, então ele deveria perceber que está atribuindo
predicados contraditórios à mesma referência, mesmo porque ele é um lógico e um
lógico não se contradiz.
Nossa explicação do mecanismo de referência de
nomes próprios explica perfeitamente o enigma de Pierre. Ele de algum modo não
sabe que ‘Londres’ é ‘London’. De ‘Londres’ ele guarda apenas a descrição localizadora
vaga ‘Londres é uma cidade’ e a descrição auxiliar ‘Londres est jolie’, o que
lhe permite uma referência bastante insuficiente à Londres. Já de ‘London’ ele
conhece o suficiente da descrição localizadora ‘Uma cidade localizada junto ao
rio Tâmisa, na Inglaterra’ e a descrição caracterizadora ‘London é uma cidade grande,
capital da Inglaterra’, além do conhecimento de sua descrição auxiliar ‘London não
é uma bela cidade’, dominando assim a regra de identificação. Como ele não é capaz
de associar os dois conjuntos de descrições que ele possui, uma vez que eles são
disjuntos, ele não é capaz de perceber que ambos se referem ao mesmo objeto.
Frege, como sabemos, já teria como resolver esse “enigma” em 1918.
Respostas
aos contra-exemplos de Donnellan
Além
das objeções feitas por Kripke precisam ser lembrados alguns contra-exemplos de
Keith Donnellan apresentados em um importante artigo de 1970, onde ele defendeu
uma teoria causal-histórica muito semelhante a de Kripke.
1. Tales o cavador de poços
O
primeiro e mais interessante contra-exemplo diz respeito ao filósofo Tales, sobre
o qual não sabemos muito mais do que a descrição definida ‘o filósofo milesiano
antigo que afirmou que tudo é água’.[39] Imagine
agora que as nossas fontes, Aristóteles e Herótodo, estivessem mal-informadas, e
que Tales tenha sido apenas um sábio cavador poços que, cansado de sua profissão,
exclamou: “Quem me dera se tudo fosse água para eu não ter de cavar esses malditos
poços!”, e que um viajante com pouco conhecimento do dialeto local tenha por engano
entendido essa frase como dizendo respeito à natureza última da realidade como
sendo constituida de água, tendo sido esse engano repetido por Herótodo e por
Aristóteles, que acabou por legá-lo à tradição filosófica. Afora isso, imagine
que em tempos remotos tenha existido um eremita que nunca divulgou suas idéias,
mas que realmente sustentou que tudo é água. Nesse caso, escreve Donnellan, nossa
tendência seria a de pensar que com o nome ‘Tales’ não estamos nos referindo ao
eremita, mas ao cavador de poços, apesar de ele não satisfazer nossa descrição.
Nós fazemos essa referência, pensa ele, devido ao tear causal-histórico que se inicia
com Tales, mesmo que associado a uma descrição errônea. A favor dessa conclusão
está o fato de que não há relação causal alguma entre o nosso uso do nome ‘Tales’
e o eremita. Não é o pensamento desse eremita (talvez nunca transmitido a
ninguém) de que tudo é água que foi lembrado por sucessivas gerações de filósofos.
Vejamos primeiro como seria a resposta do descritivista.
Ao examinar esse exemplo, Searle começou por relativizar a conclusão de Donnellan
ao conceber uma versão do exemplo que parece contradizer a concepção causal-histórica.
Se Herótodo tivesse um poço no qual um sapo coaxasse de modo a emitir sons parecidos
com a frase “Tudo é água” e o sapo pertencesse à espécie chamada ‘Tales’, ele
poderia ter dito “o Tales disse que tudo é água”, originando ele próprio o equívoco.
Mas se a teoria causal-histórica é certa, uma vez esclarecidos sobre esse fato nós
deveríamos concluir que com o nome ‘Tales’ estamos nos referindo ao sapo do poço
de Herótodo, o que certamente não é o caso.[40] O que
concluiríamos, certamente, é que Tales nunca existiu. Parece, pois, que só a origem
causal não basta.
Contudo, o que nos propomos notar aqui é que
a teoria metadescritivista é capaz de produzir uma resposta à objeção de
Donnellan enriquecedora de sua própria posição. Ela pode responder introduzindo
descrições relativas ao que no capítulo anterior chamamos de história causal: a história que somos capazes de derivar de pontos nodais do
percurso espaciotemporal delineado por uma cadeia causal. Searle pareceu ter percebido
isso ao observar que:
Quando dizemos “Tales foi o filósofo grego que sustentou
que tudo é água”, não queremos apenas dizer que qualquer um sustentou que tudo é água, nós queremos dizer a pessoa
que era conhecida de outros filósofos gregos como argumentando que tudo é água,
que era referida em seu tempo ou subsequentemente por algum predecessor grego
pelo nome ‘Tales’, cujos trabalhos e idéias chegaram até nós postumamente através
dos escritos de outros autores e assim por diante.[41]
Com
efeito, mais do que qualquer outro filósofo, a importância de Tales está em seu
lugar na história da filosofia ocidental, que é o de sua própria origem. Como
resultado da longa história causal daí resultante, o que justifica a aplicação
do nome passou a ser em grande parte a crença na aplicabilidade de uma variedade
de considerações apresentadas por outros filósofos que demonstram o seu lugar,
presença e influência na história da filosofia. Afinal, se hoje algum filósofo sugerisse
que tudo é água, essa afirmação seria considerada simplesmente ridícula. Como
resultado disso, se descobrirmos que na verdade Tales foi apenas um cavador de
poços, tenderemos a oscilar entre a admissão de que ele realmente foi um cavador
de poços e (como Searle também observou) a conclusão de que o filósofo ‘Tales’
na verdade nunca existiu.
Ora, mesmo que não possamos resgatar cognitivamente
supostas cadeias causais-históricas, nós podemos resgatar cognitivamente elementos
da história causal, a saber, importantes acontecimentos espacio-temporais evidenciadores
de pontos nodais de cadeias causais, principalmente através de elos representacionais
ocorrentes nas mentes de certas pessoas e capazes de ser linguisticamente manifestados.
No caso de Tales há descrições bem conhecidas, como a de que ele foi ‘a pessoa
nomeada por Herótodo e Aristóteles na doxografia como sendo o filósofo pré-socrático
que afirmou que tudo é água...’. Tais descrições nos permitem resgatar pontos
nodais cognitivos da cadeia causal-histórica concernentes a representações que
devem ter ocorrido nas mentes de Heródoto, Aristóteles e ainda outros. Afinal,
tudo o que sabemos de Tales vem do que filósofos posteriores disseram dele. Nesse
caso específico, a importância desses elementos históricos é tão grande que eles
passaram a fazer parte de uma exposição mais completa da regra de caracterização
de ‘Tales’, o filósofo. Ela pode ser muito resumidamente expressa como:
Regra de caracterização: O primeiro filósofo pré-socrático grego, referido
na doxografia por Aristóteles e Herótodo como o filósofo que afirmou que tudo é
água etc.
É óbvio
que assim comprendida a regra de caracterização continua sendo em boa parte satisfeita
pelo cavador de poços: Tales foi citado na doxografia por Aristóteles e
Heródoto como tendo afirmado que tudo é água, mesmo no caso de ele não ter sido
o primeiro filósofo pré-socrático, nem de ele ter dito realmente que tudo é
água. Mais além, devemos adicionar a isso a demanda de satisfação da regra de localização
espaciotemporal a ser resumida como:
Regra de localização: A pessoa que, segundo a doxografia, viveu provavelmente
de 624 a
548-5 a .C.,
que nasceu e morreu em Mileto e que provavelmente viajou ao Egito etc.
Podemos, pois, com muita tranquilidade, continuar
a dizer que sabemos que mesmo sendo um cavador de poços sem qualquer relação com
a filosofia, Tales satisfaz suficientemente e mais do que qualquer outro a sua regra
disjuntiva e portanto a sua regra de identificação, continuando a ser o nosso
Tales. Como o eremita de Donnellan satisfaz um pouco de A e nada de B, ele não
pode ser Tales. Adicionalmente, devemos reconhecer que Tales não poderia ser um
sapo que viveu por volta de 580
a .C. em Mileto, pela simples razão de que a regra de
identificação demanda que ele pertença à classe G dos seres humanos.
A assunção
de uma história causal como parte da regra de caracterização no caso recém-exposto
não deixa de ser de fundamental importância, sendo dessa maneira que a cadeia
causal-histórica pode participar do metadescritivismo. Para evidenciarmos sua
importância, basta imaginarmos que o eremita considerado por Donnellan, além de
ter sustentado que tudo é água, tenha satisfeito a condição localizadora para
Tales de ter vivido entre 624 e 548-5
a .C., tendo nascido e morrido em Mileto e viajado ao Egito.
Imaginemos também que venhamos a descobrir que Tales, o cavador de poços, tenha
vivido na mesma Época em Mileto, embora nunca tenha visitado o Egito nem sido filósofo.
Nesse caso poderá ser objetado que o eremita satisfaz a regra localizadora e mesmo
a maior parte da regra caracterizadora mais do que Tales. Mesmo assim parece-nos
que o eremita não poderia ter sido Tales. E isso é assim porque o Eremita não
satisfaz a esperada história causal tão imprescindivelmente incorporada à regra
caracterizadora. Se, por outro lado, o nome ‘Tales’ não estivesse tão profundamente
vinculado à história causal, não teríamos qualquer dificuldade em identificar Tales
como sendo o eremita.
2. O filósofo J. L. Aston-Martin
O segundo
contra-exemplo é sobre um estudante que conversou em uma festa com uma pessoa
que ele acreditava ser um grande filósofo, J.L. Aston-Martin, o autor de “Outros
corpos”.[42]
Embora a pessoa coincida em se chamar Aston-Martin, ela apenas se faz passar pelo
filósofo. Donellan nota que a frase (a) “Na noite passada eu falei com Aston-Martin”,
é falsa, pois associa o nome ‘Aston-Martin’ à descrição
D1: o
filósofo autor de “Outros corpos”,
enquanto
as frases (b) “No final da festa Robinson tropeçou nos pés de Aston-Martin e
deu com a cara no chão” e (c) “Fui quase o último a sair, só Aston-Martin e Robinson
ficaram”, são verdadeiras, pois vêm associadas à descrição
D2: o homem chamado Aston-Martin que encontrei
na festa.
A objeção
é a de que a teoria do feixe de descrições não explica essa alteração: tanto em
(a) quanto em (b) e (c) o nome Aston-Martin deveria vir associado ao mesmo feixe
de descrições que inclui ‘o autor de “Outros corpos”’.
Essa objeção
pode ser eficazmente respondida pela aplicação a nomes próprios de uma distinção
similar à introduzida pelo próprio Donnellan entre usos atributivo e referencial
de descrições definidas. No caso das descrições definidas, o uso atributivo é
aquele mais propriamente vinculado ao conteúdo da descrição, enquanto o uso referencial
é vinculado à função indexical da descrição. No caso do nome próprio, o equivalente
ao uso atributivo é aquele que se baseia nas descrições que exprimem sua regra
de identificação. Isso explica o sentido do nome ‘Aston-Martin’ na frase (a), pois
a descrição ‘o filósofo autor de “Outros corpos”’ exprime parte da regra de identificação
de um objeto. Já no caso caso similar ao do uso referencial para o nome próprio,
o elemento indexical e o contexto têm papel decisivo, de modo que a regra de identificação
usual deixa de importar. Isso explica o sentido do nome ‘Aston-Martin’ nos casos
(b) e (c). Aqui o que importa é a descrição adventícia
D2 no lugar da qual comparece o nome próprio. Como tal ela é provisória e dependente
da situação conversacional na qual foi adquirida. O que o falante nesses casos
pretende é apenas identificar um certo participante da festa utilizando o nome pelo
qual ele foi chamado, deixando de ter qualquer importância se é verdadeiro que esse
o nome é o de um filósofo que verdadeiramente lá se encontrava ou não. Quanto à
descrição (a) ela faz parte das descrições caracterizadoras do filósofo
Aston-Martin, mas não do seu homônimo encontrado na festa e confundido por
Robinson com o filósofo.
Outro
contra-exemplo de Donnellan é o de uma pessoa A que, usando óculos especiais,
identifica em uma tela dois quadrados idênticos, colocados um em cima do outro.
Ao quadrado que está em cima ela chama de Alfa, ao quadrado embaixo ela chama de
Beta. A única descrição que ela tem para a identificação de Alfa é
(a) o quadrado que está em cima.
Acontece
que, sem que a pessoa saiba, ela está usando óculos que invertem a posição dos
quadrados, de modo que o quadrado Alfa é o que está embaixo. Donnellan pensa ter
assim demonstrado que o quadrado ao qual a pessoa se refere é o quadrado Alfa
(o de baixo), mesmo associando à palavra a descrição errônea (a).
Como resposta, sugiro que a pessoa só se refere
ao quadrado Alfa porque, embora associando a Alfa uma descrição errônea, trata-se
de uma descrição convergente, a ser completada como:
(b) ˹O quadrado˺ (que A vê como o) ˹que está em
cima˺.
Essa correção, por sua vez, é parte da verdadeira
descrição identificadora do quadrado Alfa, que é:
(c): ˹o quadrado˺ (que A vê como o) ˹que está em
cima˺... quando na verdade é o que está embaixo, uma vez que A está usando óculos
que invertem a posição das imagens.
O observador
A desconhece que a sua descrição (a) é parte da descrição identificadora mais
completa (c). Mas esse fato e essa última descrição são coisas conhecidas de outros
usuários da linguagem, de nomeadores bem informados, que podemos chamar de B. Esses
usuários privilegiados dirão que A se refere ao quadrado Alfa que está embaixo
por disporem da informação dada pela descrição (c), que expressa o mais completo
modo de apresentação do objeto, a mais completa regra identificadora (que o
caracteriza como um quadrado e o localiza como o quadrado que está embaixo).
Como
evidência dessa conclusão está o fato de que uma vez de posse das informações
oferecidas pelos nomeadores B, que incluem a descrição (c), A concordará em revisar
a descrição (a) como sendo parte de (b), referente apenas ao modo como A vê, que
por sua vez é parte da descrição (c). Embora literalmente falsa, a descrição (a)
é útil à referência porque reinterpretável como parte de uma regra-descrição identificadora
correta.
3. “Tom é uma pessoa simpática”
Um
último contra-exemplo de Donnellan é o de uma criança que já foi para a cama e que
é acordada brevemente pelos pais.[43] Tom,
um velho amigo da família, chegou de visita e insistiu em ver o filho mais jovem,
que ainda não conhece. A mãe acorda a criança e lhe diz: “Esse é Tom”. Tom diz
“Oi jovem” e a criança volta a dormir. No dia seguinte a criança acorda e tudo o
que ela sabe dizer de Tom é que ele é ‘uma pessoa simpática’. A criança sequer
se recorda de ter sido acordada na noite anterior. Mas ela se refere a Tom sem o
auxílio de descrições definidas. Para W.G. Lycan essa é uma prova contundente
da teoria causal dos nomes: a criança é capaz de se referir a Tom apenas através
de uma transferência causal demonstrativa.[44]
Examinando melhor esse exemplo, Brian Loar
considerou que bem pode ser que a linguagem aqui nos engane, como no caso em
que uma pessoa percebe que faltam convidados para o jantar, mas não se recorda quem;
somos intitulados a dizer que ela se refere a quem não compareceu, mas a
palavra ‘refere’ não parece estar sendo usada aqui no sentido apropriado.[45] Com
efeito, se a criança de nada se recorda ao dizer que Tom é simpático, não podemos
sequer distinguir o seu proferimento da mera expressão de sua vontade de agradar
os pais.
Podemos
ainda admitir – em benefício do exemplo – que a criança possui cognições semânticas
não-reflexivas relacionadas ao seu encontro com Tom, que lhe justificam dizer que
ele é simpático. Nesse caso há de fato um elemento cognitivo convergente, que
nos permite concluir que a criança logra introduzir a palavra na situação dialógica
referindo-se a um ser humano, Tom. Mas ainda aqui trata-se do que já foi
chamado de um empréstimo de referência, de uma referência incompleta, de um insuficiente
gesto em direção à referência. Como todos sabem a quem a criança está se
referindo, o exemplo pode produzir a falsa impressão de que a criança é capaz
de fazer uma referência identificadora completa a Tom. Mas isso é ilusório. Trata-se
de uma referência bastante insuficiente. Ela não sabe quem é Tom e não teria sequer
como reconhecê-lo se o encontrasse na rua. Se ela dissesse ‘Tom é uma pessoa
simpática’ a estranhos que desconhecessem as circunstâncias, a lembrança do testemunho
encontrando-se perdida, ninguém seria capaz de dizer de quem se trata. Por conseguinte,
o proferimento se refere efetivamente a Tom, não para o falante, mas para os
intérpretes capazes de completar a referência, que no caso são os pais da criança.
Afinal, eles não só se recordam que a criança foi introduzida a Tom e pressupõem
que é por causa disso que ela agora diz que Tom é simpático, mas são eles que
realmente sabem quem é Tom e que são capazes de reidentificar a pessoa a quem
as palavras se referem. Com efeito, os pais da criança são os falantes privilegiados
que conhecem de um modo auto-suficiente a regra de identificação para o nome ‘Tom’,
a qual pode ser descritiva de sua aparência, dos seus traços psicológicos, do
que ele faz, de onde ele vive e de onde ele veio. Eles também conhecem
descrições auxiliares relevantes, concernentes às relações de Tom com a família.
Como o proferimento da criança acontece em um espaço público em que esses intérpretes
privilegiados estão presentes, a intenção da criança de se referir a alguma
pessoa simpática com a qual esteve em contato é complementada pela identificação
referencial dessa pessoa feita pelos outros participantes da situação conversacional,
levando à ilusão de que a criança produziu algo mais do que um mero gesto em
direção à referência.
Resposta
à objeção de magia epistêmica
Há,
finalmente, uma objeção genérica levantada por filósofos externalistas como Michael
Devitt, segundo a qual existe alguma coisa mágica no descritivismo. Segundo essa
objeção, o descritivismo atribui à mente uma propriedade extraordinária, que é a
de permitir aos seus conteúdos se relacionarem como que por encanto às coisas
fora dela. Como escreve Devitt em sua crítica a Searle:
Como poderia algo dentro da cabeça determinar a referência,
que é uma relação com coisas particulares fora da cabeça? ...supor que o pensamento
de alguém pode alcançar objetos particulares fora da mente é sustentar teorias mágicas
da referência e intencionalidade. [46]
Como pode uma coisa dentro da cabeça se referir a uma
coisa fora da cabeça? Searle não vê problema: simplesmente acontece. Essa é a
verdadeira mágica.[47]
Certamente,
um cognitivista de senso comum irá insistir que a tese de que as palavras se ligam
aos objetos devido a idéias ou representações ou regras conceituais que elas veiculam
é perfeitamente natural e intuitiva. Com
efeito, enquanto filósofos somos quase inevitavelmente conduzidos ao tradicional
e quase intratável problema da percepção, a saber, o problema de saber como
podemos ir além do véu da percepção, posto que tudo o que pode ser dado à
experiência são impressões sensíveis (sense-data). Aqui há um mistério
que parece demandar mágica para ser resolvido. Mas a mágica pela qual, através de
impressões sensíveis podemos ter acesso a um mundo físico exterior é, podemos
apostar, meramente aparente[48]. Muito
mais extrema, porém, parece-me a feitiçaria do referencialismo direto, segundo
a qual as próprias palavras, mais do que a forçosa intermediação cognitiva a
elas ligada, têm o poder de alcançar os seus objetos de maneira a se referirem a
eles. É verdade que Devitt defende uma forma matizada de referencialismo, segundo
a qual redes causais parcialmente cognitivas são responsáveis pela referência.
Mas ainda assim, se ele não quiser recair no cognitivismo, ele precisará ignorar
qualquer força explicativa originada do conteúdo dessas cognições. Contudo, tal
admissão faz a objeção retornar com toda sua força: como podem essas cadeias causais,
na independência de sua relação com conteúdos cognitivos, serem capazes de explicar
nossa referência às coisas particulares que as originaram? Isso nos faz suspeitar
que as considerações de Devitt sejam psicologicamente explicáveis como uma projeção
inconsciente da negação do próprio problema do referencialismo no campo inimigo
do cognitivismo.
Reformulação
russelliana
Vale
aqui notar que as regras meta-identificadoras permitem uma aplicação sistemática
do procedimento da teoria das descrições à teoria metadescritivista dos nomes
próprios, o que pode ser útil ao objetivo de exibir a estrutura lógica da regra
de identificação. Considere, por exemplo, a sentença (i) “Aristóteles teve de
abandonar Atenas”. Tendo em mente a aplicação de RMI1 na formulação da
regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’, podemos parafrasear essa regra
através do método proposto por Russell em sua teoria das descrições como:
1. Há ao menos um x que satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira
em 384 a .C.,
vivido em Atenas e morrido em Chalkis em 322 a .C. e/ou a condição de ter sido o autor das
grandes doutrinas do opus aristotélico.
2. Não existe mais de um x para o qual vale o que foi enunciado em 1.
3. Este x
se chama Aristóteles e teve de abandonar Atenas.
A
condição 1 inclui a idéia de suficiência, a condição 2 expõe a idéia de unicidade,
e a condição 3 associa o que foi univocamente delimitado ao nome ‘Aristóteles’,
adicionando a predicação de (i). Para formular a sentença (i) simbolicamente, estabelecemos
que N = ‘...é a pessoa de nome ‘Aristóteles’’, A = ‘...satisfaz suficientemente
a condição de ter nascido em Estagira em 384 a .C., tendo vivido em Atenas e morrido em Chalkis
em 322 a .C.’
(regra localizadora), B = ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter sido o
autor das grandes doutrinas do corpus aristotélico’ (regra caracterizadora), e T
= ‘...teve de abandonar Atenas’. A frase “Aristóteles teve de abandonar Atenas”
pode ser então formalizada como ∃x ((Ax ˅ Bx) & (y) ((Ay ˅ By) → y = x) & Nx & Tx)” e RI-‘Aristóteles’
pode ser formalizada como:
∃x ((Ax ˅ Bx)
& (y) ((Ay ˅ By) → y = x)
Com
isso é requerida a existência, a unicidade e a suficiência, que aqui se associam
aos predicados que expressam as propriedades identificadoras, embora essa formulação
não capture todas as nuances que a regra de identificação possui. Como quer que
seja, o que essas breves considerações sugerem é que o verdadeiro serviço da teoria
das descrições seja aqui o de exibir de modo algo simplificado a estrutura formal
de regras de identificação de termos singulares.
Identidades
entre nomes próprios e o “necessário a posteriori”
As
considerações que acabamos de fazer nos conduzem a uma última questão, concernente
ao status epistêmico das identidades entre nomes próprios. De acordo com
Kripke, como os nomes próprios são designadores rígidos, dois nomes próprios
com a mesma referência precisam se aplicar a um único objeto em qualquer mundo
possível no qual ele exista. Por conseguinte, embora as sentenças de identidade
entre nomes próprios possam ser a posteriori, ou seja, aprendidas a partir da experiência
sensível, elas são necessárias. Daí que uma frase como “Hesperus é Phosphorus”
exprime para Kripke uma proposição necessária a posteriori. Contudo,
essa conclusão de que existem proposições necessárias a posteriori tem sido
considerada controversa por vários filósofos. Como é possível, afinal, que uma
proposição verdadeira em todos os mundos possíveis possa depender da experiência
para ser verdadeira?
Considere, para começar, a frase “Cicero é Tulio”. A regra-descrição
de identificação para o nome próprio ‘Marco Tulio Cicero’ é (abreviadamente):
RI-‘Marco Tulio Cicero’
O nome próprio
‘Marco Tulio Cicero’ – tal como, por consequência, também suas partes ‘Marco’,
‘Tulio’ e ‘Cicero’ – se refere a um objeto x pertencente à classe dos seres
humanos see suficientemente e mais do que qualquer outro candidato, x
nasceu em Arpino em 106 a .C.,
viveu em Roma e faleceu em Fórmia em 43 a .C. e/ou que foi um filósofo, orador,
advogado e político romano, o senador que escreveu as Catilinas...
Considerada com esse sentido intencionado a frase
“Tulio é Cicero” é obviamente necessária e a priori, pois ela é analítica no
sentido de ser definitória daquilo que se entende pelo nome ‘Marco Tulio Cicero’.
Supondo que não exista diferença de sentido entre as diferentes denominações,
uma pessoa que não sabe que Tulio é Cicero é como uma pessoa que não sabe que “ß é ss”, uma ignorância de identidades convencionais.
Outros
exemplos são mais complexos. Podemos ter uma regra geral do tipo:
RI-‘Mary
Ann Evans’
O nome próprio ‘Mary Ann Evans’, tal com o seu
pseudônimo ‘George Eliot’, se refere a um objeto x pertencente à classe dos
seres humanos see x estiver suficientemente
e mais do que qualquer outro candidato na origem de nossa consciência de que x
é a mulher que nasceu em Nuneaton, em 1819, tendo vivido boa parte de sua vida
em Londres e falecido em Chelsea em 1880 na Inglaterra e/ou talvez a maior
novelista inglesa, autora de clássicos como Middlemarch, possuindo tais
e tais traços pessoais...
Podemos considerar aqui três grupos de falantes: (i) o
grupo dos que conheceram Mary Evans, como os seus parentes e amigos de infância;
(ii) o grupo dos que conheceram somente George Eliot, que são as pessoas que
leram Adam Bede pouco depois de sua publicação; (iii) os que sabem ou
souberam que George Eliot é um pseudônimo de Mary Ann Evans. Os últimos
conhecem a regra geral RI-‘Mary Ann Evans’. Nesse sentido intencional, bem conhecido
pelos dois maridos de Mary Evans e por ela mesma “George Eliot é (o mesmo que) Mary
Evans” pode ser considerada uma frase de identidade necessária e a priori.
Mas não precisa ser assim. O que as pessoas do grupo (ii) tem em mente como a
regra de identificação para George pode ser: ‘o autor de Adam Bede,
Middlelmarch e de alguns outros clássicos da literatura inglesa’, tendo
vagas indicações acerca do tempo e lugar em que esse autor viveu. Já as pessoas
do grupo (i) tem como sentido intencional a regra de identificação de Mary Evans
como ‘a mulher com tais e tais traços pessoais, filha de Robert Evans, nascida
em Nuneaton em 1819...’ As regras de localização não podem aqui se contradizer,
uma vez que são partes de uma mesma regra geral. Mas para as pessoas dos grupos
(i) e (ii) aprendam que as regras de identificação parciais que elas usam são
partes de uma regra maior de identificação é algo informativo. E por isso mesmo
a frase de identidade “George Eliot é Mary Evans” é para elas contingente e
a posteriori. É a posteriori enquanto depende de informações de subfatos
contingentes para o seu aprendizado, como foi o caso da decisão de Mary Evans
de usar um certo pseudônimo literário.
Note-se que os componentes do grupo (iii)
podem pensar a identidade de George Eliot com Mary Evans também da segunda
maneira, em termos dos modos de apresentação da pessoa, por exemplo, quando explicam
a alguém a identidade. Nesse caso elas estão considerando as regras parciais
para cada nome, querendo mostrar que elas são partes constitutivas da regra de
identificação completa de Mary Ann Evans. Sem a consideração do contexto, a
frase “George Eliot é Mary Evans” é ambígua, podendo querer dizer uma coisa ou
outra ou ambas as coisas.
Algo similar
se pode dizer, finalmente, da frase “Hesperus é Phosphorus”. A regra de
identificação para Vênus é hoje algo como:
RI-‘Vênus*’
O nome próprio ‘Vênus’ – tal como os nomes ‘Phosphorus’
(enfatizando a “estrela matutina”) e ‘Hesperus’ (enfatizando a “estrela verpertina”)
– se refere ao planeta que satisfaz suficientemente e mais do que qualqure
outro a condição localizadora de ser o segundo planeta do sistema solar, descoberto
como estando situado entre a terra e Mercúrio e/ou a regra caracterizadora de
ser um planeta do sistema solar etc.
Se tivermos em mente essa regra de identificação não
há diferença entre Hesperus e Phosphorus, o que torna “Hesperus é Phosphorus”
um enunciado necessário e a priori, pois se deriva da regra.
Mas também podemos
considerar a identidade em questão, tal como Frege o fez, como uma descoberta
astronômica. Nesse caso, o que estamos fazendo é associar ao nome ‘Hesperus’ à
descrição auxiliar ‘o corpo celeste mais brilhante visto ao anoitecer na direção
do sol’ e associar a ‘Phosphorus’ a descrição auxiliar ‘o corpo celeste mais brilhante
visto ao amanhecer na direção do sol’. Cada uma dessas descrições tem como
referente simplesmente a estrela que vemos no céu em certo tempo e lugar e nada
mais. O que a frase de identidade faz é afirmar que além disso esses dois modos
de apresentação são modos de apresentação de um mesmo objeto, ou seja, que cada
uma dessas regras de identificação é parte das regras auxiliares pertencentes
à regra de identificação geral para Vênus. Também aqui foi empiricamente descoberto
pelos astrônomos babilônicos que essas duas regras de identificação para objetos
dados diferentes poderiam ser entendidas como partes de uma única regra de
identificação mais geral para um único objeto, de modo que sob tal perspectiva
“Herperus é Phosphorus” expressa uma verdade a posteriori e contingente (que
contém a ideia de que o modo de apresentação de Hesperus não é o mesmo que o de
Phosphorus), posto que poderia não ter sido assim.
Se não houver
um contexto desambiguador, a frase “Hesperus é Phosphorus” retém a sua ambiguidade
semântica, podendo ser interpretada tanto como querendo dizer “(Hesperus)-Vênus
= (≠ ) (Phosphorus)-Vênus”) quanto “Hesperus-(Vênus) ≠ (=) Phosphorus-(Vênus)”,
respectivamente enfatizando a identidade ou a diferença. Temos, pois, dois
pensamentos imbricados um no outro: um sobre a diferença, outro sobre uma
identidade. O que um filósofo como Kripke fez foi confundir as duas maneiras de
entender as frases de identidade entre nomes próprios recém-apresentadas,
ignorando as flutuações contextuais capazes de desambiguá-las. Ele confundiu as
formas de entendimento juntando a necessidade do pensamento da identidade a ser
convencionalmente entendido como analítico, i.e., necessário e a priori,
constituido por uma regra que verifica a identidade, com o caráter a posteriori
do pensamento de uma diferença, entendido como sintético, i.e., contingente e
a posteriori, que visa expor modos de apresentação de objetos (aparências)
diferentes para nos informar que esses objetos são eles próprios modos de
apresentação de um mesmo objeto mais fundamental.
Finalmente, é interessante observar a curiosa coincidência
entre esses resultados, derivados de nossa análise das regras de identificação
dos nomes próprios, e os resultados da análise das frases de identidade sob a
perspectiva metodologicamente diversa do bidimensionalismo semântico. Essa
coincidência não parece ter nada de casual.[49]
Conclusão
Como
é comum em filosofia, sempre que acreditamos ter resolvido um problema há outros
a nossa espera na próxima curva. Contudo, um pouco de reflexão sobre a maneira de
ver aqui proposta sugere que o caminho em proposto é de longe o mais viável. Suponha,
por exemplo, que RMI2 seja implementada em um programa de computador,
e que sejam nele introduzidos nomes próprios junto com as informações
necessárias sobre as suas descrições fundamentais, histórias causais etc. Nesse
caso parece prima facie concebível que
o computador seja capaz de nos dizer com boa margem de segurança se o nome
próprio é ou não é aplicável, dadas as informações exigidas. Mas o mesmo não me
parece sequer concebível quando pensamos nas teorias descritivistas tradicionais
e ainda menos no que concerne às vagas sugestões histórico-causais.
É certo que a teoria proposta, embora possuindo
maior poder explicativo, é inevitavelmente mais complexa. Mas esse é o preço de
ser a ser pago pela maior adequação. Assim como acontece na ciência, diversamente
da virtude que se constitui na maior simplicidade quanto aos princípios, a simplicidade
de conteúdo é o que menos podemos esperar de teorias mais maduras. Não é culpa nossa
que a natureza seja mais intrincada do que possa aparentar.
[2] A expressão ‘descritivismo causal’ foi
cunhada por David Lewis para designar teorias mistas dos nomes próprios em seu
artigo de 1984. Ver também Lewis 1997 e Kroon 1987.
[3] O fato de que as regras espaciotemporalmente localizadoras
tem um papel privilegiado não passou completamente desapercebido. Paul Ziff,
por exemplo, defendeu que as descrições localizadoras ou que implicam em localização
formam uma parte central do mecanismo de referência do nome próprio (1960).
[4] Escolho a Wikipedia
pelo acesso fácil; mas qualquer outra enciclopédia irá realçar dados similares
em ordem similar.
[5] Kripke tem assim razão em pensar que mesmo a
sentença “Aristóteles é o indivíduo chamado ‘Aristóteles’” não é a priori (1982 p. 68 ss).
[6] Uma razão pela qual a filosofia da linguagem se
distingue da linguística é não só pela amplitude de escopo, que vai além das línguas
particulars, mas pela presença de implicações epistemológicas e mesmo metafísicas
em seu desiderato.
[7] Kripke chega a uma conclusão parecida ao recomendar
que consideremos homônimos como sendo nomes
diferentes, posto que diferentes referentes
devem ser suficientes para determinar nomes diferentes, mesmo que suas marcas
sensíveis sejam idênticas. (1980 p. 8).
[8] Compare as descrições:
1. ‘o portador
do nome ‘Tom Jobim’,
2. ‘o portador
do nome ‘Antônio Carlos Jobim’ e
3. ‘o portador
do nome ‘Ismael Silva’.
Em uma teoria
do sentido lexical do nome próprio – chamada de teoria metalinguística – parece
que devemos distinguir aqui três sentidos lexicais diversos, posto que cada descrição
trás consigo uma marca sensível diversa. Intuitivamente, porém, é bastante claro
que o sentido do nome próprio em 3 é muito distinto dos sentidos assemelhados
dos nomes próprios em 1 e 2. A
diferença só se torna explicável porque ela diz respeito ao conteúdo semântico
desses nomes, às regras através das quais os seus portadores são identificados.
Se entendermos o sentido do nome próprio em abstração de suas marcas sensíveis,
então 1 e 2 contém nomes semanticamente idênticos, por sua vez muito distintos do
nome contido em 3. Mas como a expressão simbólica do nome é a expressão de seu
conteúdo semântico, podemos dizer que em 1 e 2 temos um mesmo nome próprio
com diferentes expressões simbólicas, enquanto em 3 temos um outro nome
próprio simbolicamente expresso.
[9] Monk 1990, p. 138.
[10] Suponho aqui que ele nada saiba sobre quem
foi Achaeon e sobre quando e onde ele viveu, pois isso já implica que ele associa
ao nome descrições como ‘um filósofo macedôneo do século III a.C’.
[12] Deus também não poderia ter localização por
estar em todos os lugares. Mas esse é um caso problemático, pois sua existência
ou é inverificável ou é falseada. Como para nosso conforto escreveu Baudelaire:
“Deus é o único ser que para reinar não precisa sequer existir” (1867, 75-76).
[13] Note-se que a teoria kripkiana do batismo
também encontraria dificuldades em explicar a nossa preferência pelo segundo
Aristóteles em M1. Ela não teria como distinguir o verdadeiro Aristóteles, pois
não teria à disposição o recurso de se valer de descrições para privilegiá-lo.
Além disso, ela não teria como explicar porque o verdadeiro Aristóteles passa a
ser o primeiro em M2. Contudo, como as descrições são causalmente determinadas,
é sempre possível desenvolver uma solução causal-histórica para tais casos
como, também, para qualquer outro. Tal solução seria, porém, sempre em última
instância dependente da identificação consciente das descrições relevantes
geralmente implicadas na intenção de preservar a mesma referência.
[14] O sentido
cognitivo, epistêmico ou informativo (Sinn ou Erkenntniswert) é, como vimos, bem mais do que o sentido literal; ele
é uma espécie de intenção (com ç) que, com base em convenções, devemos associar
à expressão. Essa posição opõe-se ao externalismo semântico de Putnam e outros,
cuja implausibilidade será evidenciada no capítulo 8.
[17] A bem da verdade deve ser notado que existem
dicionários específicos para nomes próprios, como os que explicam os sentidos etimológicos
dos nomes próprios de pessoas e fornecem informações genéricas sobre os seus portadores
mais conhecidos.
[18] Nem sempre, como atesta a
maldosa observação de um crítico londrino sobre James Joyce e sua esposa
semi-analfabeta: “Fui apresentado a um velho doente acompanhado de uma vaca”. (O’Brien,
2011)
[21] Ver Locke 1975: 2.31.4-5, 2.32.12,
2.29.7, 3.10.22, 3.11.24. Esse compromisso de Locke e de outros filósofos com a
divisão de trabalho da linguagem foi lembrado por A.D. Smith (1975, pp 70-73).
[22] 1980, pp. 81-85.
[23] Não há aqui nenhum compromisso
antropomórfico. Um objeto pode ter sua regra de identificação efetivamente e
continuamente aplicável a si mesmo (não sendo assim meramente imaginário), mesmo
que essa regra nunca tenha sido pensada nem aplicada por nenhum sujeito
cognitivo.
[27] Não há, por isso, qualquer razão para se
tentar contornar o argumento modal tornando o nome próprio equivalente a uma descrição
rigidificada, ou seja, indexada ao mundo atual, com todos os problemas que isso
envolve (Cf. Stanley 1997).
[28] O exemplo foi inicialmente sugerido por Ruth
Barcan Marcus usando o nome ‘Venus’ em uma conferência assistida por Kripke. Ver
Marcus 1993, p. 11.
[29] J.L. Borges reescreveu ficcionalmente
essa história no conto “El inverosímil impostor Tom Castro”, em sua Historia universal de la infâmia.
[30] Kripke 1980, pp.
83-84.
[33] Admito essa afirmação de Kripke em benefício
do exemplo, dado que a maioria dos estudiosos realmente acredita que esse personagem
bíblico seja inteiramente ficcional.
[34] Kripke 1980, p. 67-68.
[35] Kripke 1980, pp. 81-82.
[36] Kripke 1980, p. 85.
[37] Kripke 1980, p. 82.
[38] Kripke 1980, pp. 84-5, 88-9. O
exemplo é elaborado por Scott Soames, 2003 vol. 2, p. 361.
[41] Searle 1983, p.
253. Devido a passagens como essa
Searle já foi interpretado como sendo um descritivista causal, o que não é bem
o caso.
[48] Costa 2018, cap. VI.
[49] Segundo a semântica bidimensionalista, um enunciado
de identidade como “Hesperus é Phosphorus” expressa ambiguamente duas proposições.
A primeira é a proposição de intenção
primária, cujos termos se referem cognitivamente,
variando a sua referência em mundos possiveis, o que torna a proposição contingente
a posteriori. Já segunda é a proposição de intenção
secundária, cujos termos são designadores
rígidos referindo-se invariavelmente à mesma coisa nos mais diversos mundos possíveis,
o que a torna necessária e a priori. Ver M. Garcia-Carpintero & J. Macia (2006).
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