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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

HOMO ANIMALIS CARNIVOROUS

  

 

É ERRADO COMER CARNE ANIMAL?

 

Uma pequena questão de filosofia moral aplicada é a de sabermos se é justo comer carne animal. Eis o que Peter Singer, em seu livro Ética Prática, escreve sobre o assunto:

 

Se os animais são importantes por si mesmos, então o uso que deles fazemos como alimentos se torna questionável... O arrazoado contra o uso de animais para a nossa alimentação torna-se mais contundente nos casos em que os animais são submetidos a vidas miseráveis para que a sua carne se torne acessível aos seres humanos ao mais baixo custo possível.

 

Singer segue escrevendo sobre os frangos forçados a viverem em um espaço exíguo, constantemente comendo grãos, e sobre o confinamento dos bois em países como os Estados Unidos.

Ele nota que só em um país relativamente civilizado, que é a Suíça, não é permitido que frangos sejam criados em gaiolas. A sua conclusão é a de que devemos boicotar o resultado final desse processo, tornando-nos vegetarianos. Ele mesmo decidiu pessoalmente dar o exemplo.

   Note-se que o argumento de Singer não é dirigido contra o consumo de carne animal tout court, mas contra a muitas vezes péssima qualidade de vida dos animais criados pelos homens, por exemplo, em indústrias rurais. Se os animais tivessem uma boa qualidade de vida e se a sua morte fosse indolor e imediata, sem o stress de sua antecipação, Singer não teria nada contra a presença de carne animal em nossa alimentação.

   Para mim o único problema com seu argumento está em sua conclusão de que devemos nos tornar vegetarianos de modo a boicotar os maus tratos de animais.

A questão é que de nada adianta que alguns de nós se tornem vegetarianos como forma de protesto pelos maus tratos dos animais. Afinal, pela lei da oferta e da procura isso apenas diminuiria o custo da carne animal, permitindo que outros seres humanos mais tenazmente carnívoros – que são a grande maioria – comam mais carne animal por um preço mais acessível. O boicote contra a carne animal com o fito de fazer com que eles sejam melhor tratados de nada adiantará e poderá ser até contraprodutivo.

   Concordando com Singer em sua denúncia aos maus tratos dos animais, quero discorrer brevemente sobre a questão e se saber se é ou não é justo comer carne animal.

   Antes disso, porém, preciso notar um ponto importante que concerne a uma diferença fundamental entre a espécie de vida dos animais e a dos seres humanos, algo já percebido por Heidegger em Ser e Tempo. Nós vivemos tanto no presente quanto no passado e no futuro. Vivemos no passado quando nos recordamos de nossas experiências e acontecimentos passados. Mas vivemos também no futuro, quando antecipamos o que faremos ou o que irá acontecer, revistando nossas recordações e projetos passados e pela comparação com as vicissitudes de nossa própria realidade presente, refazendo constantemente esses projetos. Principalmente, sabemos que um dia iremos morrer, o que é uma pesada antecipação, principalmente por não sabermos nem como nem quando isso irá acontecer e porque nossos projetos não podem e  talvez nem devam ser definidos com base nisso. Não é de se admirar a busca de consolos e compensações extramundanas. A vida fora do presente é talvez muito mais entre os humanos do que a vida no presente.

   Animais são nesse ponto em grande medida, senão inteiramente, muito diferentes de nós. Bois e frangos vivem essencialmente no presente. Um boi pode certamente antecipar um futuro próximo, com a vinda de seu dono, ou ter a memória de algo bom ou ruim que lhe aconteceu no passado e antecipar a mesma experiência em condições similares. Mas olhar para os animais como se estes pudessem antecipar, como nós, o futuro, ou recordar-se, como nós, do passado, vivendo mentalmente o tempo, é uma projeção antropomórfica de nós mesmos no mundo animal.

  Em minha opinião a projeção de nossa consciência nos animais é frequente em muitos de nós, ficando isso claro quando pessoas conversam com seus animais domésticos ou até mesmo (alguns) com as plantas que cultivam. Creio que essa projeção seja uma das condições que conduzem ao vegetarianismo.

   Daí se segue meu argumento a favor do consumo de carne animal. Imagine um mundo possível no qual todos os animais, entre eles bois e frangos, fossem exemplarmente bem tratados. Os bois viveriam livres no pasto e ao serem mortos não poderiam antecipar a ocorrência, que seria instantânea e indolor (o que de fato acontece hoje quando são utilizados métodos realmente sofisticados). Nesse caso – considerando que esses animais não vivem no futuro e não se encontram capazes de antecipar a sua própria morte, não haveria qualquer problema em se consumir carne animal. Mais do que isso, é possível argumentar que nós aumentaríamos em muito a quantidade do bem no mundo, permitindo a vida feliz de uma imensa quantidade de bois e de frangos, animais que sem nós não teriam como sobreviver. Compare, por exemplo, a vida “curta, bruta e suja”, para usar as palavras de Hobbes, dos animais nas savanas, cuja subsistência é incerta e cuja existência se encontra constantemente em risco, e se torna claro que a vida de nossos bois e frangos, se tratados da maneira indicada, seria privilegiada e benéfica, talvez até em certo sentido mais do que a de seres conscientes como nós.

  O argumento acima pode ser estendido ao nosso próprio mundo. Ele torna claro que em muitos lugares onde os bois se encontram no pasto e os frangos têm uma vida livre, a alimentação de carne animal apenas produz um bem à espécie. Ela permite a uma grande quantidade de animais viverem vidas felizes, além, é claro, dos que tem o prazer de comê-los. Me recordo algo que vi em uma fazenda no Nordeste. Sob o sol causticante do meio-dia havia a sombra de uma única árvore. E lá se encontravam meia dúzia de bois reunidos, de pé, protegendo-se do sol. Fico pensando em o quão mais difícil seria a vida deles se fossem zebras ou búfalos ou mesmo leões nas savanas. Fico pensando que apesar desses animais serem mortos de forma ainda brutal, mesmo que imediata, eles devem ter tido uma vida muito menos difícil do que a dos animais da savana, e até mesmo em certos aspectos melhor do que a de muitos seres humanos.

   Minhas conclusões:

1) Primeiro, a tese do boicote é inconvincente. De nada adianta nos tornarmos vegetarianos. Mais convincente e a meu ver mais importante é que continuemos comendo carne animal e nos esforcemos para melhorar a qualidade de vida dos animais, o que pode ser feito com muito mais eficácia pelo ativismo e pela promulgação e seguimento de leis que protejam os animais.

2) Sabemos que o ser humano é carnívoro por natureza. Há até mesmo aminoácidos essenciais para a nossa saúde que só podem ser encontrados na carne animal. Se comermos carne animal estaremos, pois, fazendo jus à nossa própria natureza sem deixar de estar em harmonia com a natureza como um todo. Por sua natureza o homem está mais próximo do lobo e da raposa, que vivem de animais menores, do que do ursinho coala, que vive das folhas de bem definidas espécies de eucaliptos. É uma ideia infeliz querer que nos transformemos em parentes dos coalas - contra natura!

   Finalmente, o que dizer daqueles que rejeitam a alimentação animal apenas por serem por princípio contra o sacrifício da vida, seja ela qual for. A resposta deve variar bastante, mas uma que deve ser muito comum é a seguinte. Trata-se, primeiro, de uma projeção antropomórfica que faz com que certas pessoas não percebam o quão diverso dos seres humanos é o "estar no mundo" dos animais. Mas só isso não basta. Trata-se também de uma reação neurótica, que pode ser causada pela tentativa de nos sentirmos mais humanos e mesmo moralmente superiores a outros seres humanos, uma tentativa feita às vezes para compensar um sentimento de inferioridade, como a consciência de não estarmos retribuindo suficientemente o que o mundo tem a nos oferecer.

  Quando precisamos aumentar nossa autoestima, procuramos uma compensação, algo que nos faça sentir superiores àquilo que de alguma forma são as causas desse sentimento, e uma maneira mais fácil de se conseguir isso é nos tornarmos sócios do clube dos vegetarianos, a reforçando-nos uns aos outros através de crenças irrefletidas.

 

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