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domingo, 13 de fevereiro de 2022

#SOBRE A ONTOLOGIA DOS TROPOS

  

 

 Obs.: Isso é um esboço impublicável!

 

 

5

 

REVISITANDO A ONTOLOGIA DOS TROPOS

 

                                           Qualquer mundo possível e, é claro, o nosso,

                                           é totalmente constituído de seus tropos.

                                           D. C. Williams

 

 

Há vários nomes para o tema desse artigo: propriedades concretizadas, qualidades particularizadas, acidentes individuais, bites de qualidades, particulares abstratos e ainda outros. Mas o mais usual é a palavrinha tropo, que pelo menos tem a vantagem de ser pequena.

     A teoria dos tropos é uma aquisição ontológica bastante recente. Embora o conceito de tropo tenha existido com outros nomes no mínimo desde Aristóteles, somente nos últimos cinquenta anos filósofos tiveram a idéia de tomar os tropos como as pedrinhas de construção ontológicas fundamentais do mundo, tentando resolver os tradicionais problemas dos universais e da natureza dos particulares concretos somente através deles.[1] De fato, meu palpite é o de que a teoria dos tropos é tão revolucionariamente simples em seus aspectos fundamentais, que ela será capaz de produzir em ontologia uma revolução similar à introdução de novas teorias fisicalistas na solução do problema mente-corpo na segunda metade do século vinte. Infelizmente, como as novas teorias da relação mente-corpo, a teoria dos tropos tem se ramificando em uma variedade crescente, cada uma tentando realizar ao seu próprio modo a tarefa de pesar valores ontológicos quase imperceptíveis. No que se segue, ao invés de fazer o duro trabalho de discutir essas versões, escolherei o caminho mais fácil de introduzir e colocar em discussão e propor algumas idéias adicionais.

 

Introduzindo Tropos

Primeiro: o que são tropos? Para Donald Williams, o filósofo que originou a ontologia dos tropos, tropos são “particulares abstratos”, o que não é muito esclarecedor devido à falta de clareza da noção de abstração, mesmo que se diga que tropos são primitivos e que como tais não podem ser definidos. Prefiro aqui revisar a noção de tropo entendendo-a como uma propriedade (simples ou complexa) localizadas no espaço e no tempo, onde o termo ‘propriedade’ deve ser entendido no mais amplo sentido possível, incluindo relações e espécies naturais. Exemplos de tropos podem ser a cor vermelha da torre Eiffel, a sua forma, o seu peso, a sua dureza, a sua altura etc. Outros tropos são o grito de um hipopótamo particular chamando a fêmea e o odor particular exalado por uma rosa. Tropos podem ser propriedades relacionais, como a altura de uma ponte, incluindo nisso relações causais. Tropos podem ser também estados mentais como uma sensação de dor, uma emoção, uma personalidade, um pensamento, uma crença. Tropos diferem do que podemos chamar de indivíduos, como é o caso de particulares concretos como a torre, o hipopótamo, a rosa e mesmo um ser humano. Mesmo assim eles são particulares, posto que estão localizados no espaço e no tempo. Tropos são usualmente compostos de tropos, e algumas composições de tropos são altamente complexas, como, por exemplo, uma performance da Quinta Sinfonia de Beethoven. E tropos podem ser objetos de percepção seletiva[2]: ao olharmos para as ondas quebrando no oceano podemos nos concentrar alternativamente em sua cor, nas formas de suas ondas, ou em seus sons.

     Como todos os particulares, tropos têm condições de identidade. Parece que a condição de identidade fundamental deva ser uma localização espaço-temporal suficientemente homogênea sob certo modo epistêmico de acesso e avaliação. Por exemplo: diante de uma parede homogeneamente pintada de vermelho podemos dizer que estamos diante de um tropo de vermelho. Ou então: o par de sapatos que eu estou usando agora é marrom. A propriedade do sapato direito de ser marrom é um tropo, uma vez que está localizada de modo suficientemente homogêneo em meu sapato direito, e a propriedade do sapato da esquerda de ser marrom pode ser considerada outro tropo por razões similares.  Como os sapatos têm diferentes localizações espaciais, temos ao menos dois tropos de marrom. A maciez do couro de meu sapato esquerdo é também um tropo que tem mais ou menos a mesma extensão de sua cor marrom. Isso significa que esse marrom e essa maciez são o mesmo tropo? Não, posto que eles são perceptualmente acessados de modos diferentes, no caso, por sentidos diferentes. Para a próxima questão, a de saber o quanto o tropo de marrom do meu sapato esquerdo pode ser subdividido, uma resposta possível seria: até onde ainda formos capazes de distinguir a cor marrom. Quanto tempo o tropo de marrom do meu sapato esquerdo irá durar? Provavelmente não mais do que o próprio sapato. Um tropo dura enquanto ele permanecer essencialmente o mesmo sem deixar de manter a sua continuidade temporal. São as forças da natureza tropos? De acordo com nossa definição sim: uma força eletromagnética é uma propriedade eletromagnética espacio-temporalmente localizável, ainda que espalhada; uma “força” gravitacional é na verdade uma propriedade espalhada de encurvamento do espaço-tempo na proximidade de um corpo maciço. Nada existe que não seja tropo.

     Menciono essas coisas porque um entendimento inadequado pode facilmente dar azo a tentativas de desacreditar as condições de identidade dos tropos, por exemplo, empurrando a precisão para além dos seus limites contextualmente razoáveis. A vaguidade de nossas condições de identidade para os tropos é uma consequência direta de nossas práticas linguísticas, sendo tais condições fortemente baseadas em convenções e apenas suficientemente precisas para servirem aos nossos propósitos.

      Como os tropos estão localizados no espaço e no tempo, eles são particulares existentes. Afinal, a existência pode ser entendida como sendo a comprovadamente contínua aplicabilidade de um predicado a um particular, que no caso do tropo é o nome de uma propriedade espaciotemporalmente localizável. Alguns tropos podem ser experienciados de forma isolada, por exemplo, o perfume da rosa, o som do vento. Outros não. Tropos visuais e táteis, por exemplo, devem ter alguma forma, e todos os tropos devem ter certa duração no tempo.

      São formas espaciais e durações temporais tropos? Bom, essas coisas não parecem poder existir sem estarem associadas com tropos, uma forma com uma cor, um volume com o seu peso, uma duração no tempo com um agregado de tropos persistindo em sua existência etc. Keith Campbell, discordando de D. C. Williams, não admitia que formas fossem tropos, devido a sua dependência de outros tropos. Mas isso parece insuficiente. Afinal, por que os limites espaciais e temporais dos tropos não poderiam ser tropos, se eles também são descrevíveis como propriedades espaciotemporalmente localizáveis? Se quisermos poderemos chamá-los de tropos limitadores, sem precisarmos negar que são tropos.

 

Tropos e universais

A teoria dos tropos é importante porque promete uma nova solução para ao menos dois perenes problemas ontológicos: o problema dos universais e o problema dos particulares concretos.

     Começo com o problema dos universais, que ontologicamente posto se entende como a questão de se saber como é possível que muitos particulares diferentes possam compartilhar da mesma propriedade, enquanto linguisticamente posto se entende como a questão de como podemos aplicar o mesmo predicado a muitos particulares diferentes. Filósofos realistas sugeriram que isso só é possível porque um predicado designa um universal, entendido como um objeto abstrato do qual uma multiplicidade de indivíduos pode participar, ou, como é usualmente dito, esses indivíduos exemplificam ou instanciam o universal. Assim, para o realista dizemos que essa rosa e esse morango são vermelhos porque esses indivíduos (corpos materiais) participam do universal ‘vermelho’, ou porque eles exemplificam ou instanciam o universal. A solução traz consigo dificuldades profundas que não poderão ser consideradas aqui.

     Para resolver o problema dos universais apelando para os tropos precisamos introduzir a idéia de similaridade exata – que entendo como sendo o mesmo que o de identidade qualitativa – a qual também é um primitivo. Filósofos como D. C. Williams[3] e Keith Campbell[4] conceberam o universal como uma classe de tropos precisamente similares. Assim, a palavra ‘vermelho’ se refere à classe de todos os tropos de vermelho, que é unida pelo fato de que tais tropos são qualitativamente idênticos uns com os outros. Para Williams, quando nós dizemos “Essa rosa é vermelha”, queremos dizer que essa rosa tem um tropo de vermelho que pertence à classe dos tropos de vermelho. E quando nós dizemos que o vermelho é uma cor, o que queremos dizer é que a classe de todos os tropos de vermelho está incluída na classe de todos os tropos de cor.

     Contudo, há problemas com esse modo de ver. Primeiro, há um problema com o tamanho: uma classe pode tornar-se maior ou menor; mas um conceito não pode mudar o seu tamanho, pois um conceito não tem tamanho. Segundo: o que é uma classe? Se não é um tropo, mas um objeto abstrato, parece que estamos abandonando as vantagens da teoria. Terceiro, podemos desenvolver objeções concernentes ao status ontológico das similaridades e ao problema da similaridade entre as similaridades. Suponhamos, para começar, que similaridades são tropos. Nesse caso, se temos o conjunto de tropos similares T1, T2, T3 e T4, podemos dizer (usando ‘=’ para abreviar similaridade): T1 = T2, T2 = T3, T3 = T4 etc. Mas aqui surge um problema. De modo a construir uma classe de tropos similares precisamos saber que o primeiro tropo de similaridade é similar ao segundo tropo de similaridade, e que o segundo é similar ao terceiro etc. Mas como sabemos disso? Bom, como não pode ser por apelar para uma idéia abstrata de similaridade, deve ser por apelar para um terceiro tropo de similaridade. Assim, a similaridade entre T1 e T2 é similar à similaridade entre T2 e T3, e essa similaridade entre as duas similaridades é um novo tropo de similaridade. Como a mesma questão pode ser colocada com respeito à similaridade entre os tropos de similaridade desse segundo nível e assim por diante, parece que caímos em uma espécie de regresso piramidal de similaridades entre similaridades. Mesmo que não seja infinito esse regresso parece suficientemente esmagador para o intelecto humano. Além disso, não parece que ele seja algo realmente experienciado.

      Na tentativa de ultrapassar essas dificuldades, quero propor uma concepção algo diferentes dos universais, inspirada pelo tipo de tratamento que filósofos empiristas como Berkeley deram a nossas idéias, de modo a assegurar a sua unidade. À luz desse tratamento sugiro que um universal possa ser definido como:

 

Um tropo T* qualquer tomado como modelo, ou qualquer outro tropo similar a ele.

 

Aceitando essa definição, o problema do tamanho desaparece, pois é indiferente à definição quantos tropos são similares a T*. O segundo problema também desaparece, pois nessa análise nenhuma menção precisa ser feita ao conceito de classe (mesmo que disso se possa inferir a existência de uma classe extensional). Quando alguém profere a sentença “Essa rosa é vermelha”, a pessoa quer dizer que essa rosa tem um tropo Tr que é similar ao tropo Tr* tomado como um modelo na memória do falante, o qual remonta à sua experiência de coisas vermelhas (não penso em T* como sendo um único: qualquer T pode ser tomado como T*; além disso, o modelo usado pelo ouvinte não será o mesmo usado pelo falante, podendo variar). Assim, quando o falante profere a sentença “Vermelho é uma cor” ele quer dizer que sempre que nos for dado um tropo de vermelho, ele será também um tropo de cor. Finalmente, o terceiro problema também parece desaparecer, pois não precisamos comparar uma similaridade com a outra, mas somente os tropos T1, T2... Tn individualmente com o tropo modelar escolhido T*. Ao invés do regresso piramidal, o esquema toma uma forma mais razoável:

  

                                               T1 = T*

                                               T2 =  “

                                               T3 =  “

                                               T4 =  “ ...

 

Alguém poderá notar que essa solução não elimina totalmente o problema. Afinal, suponha que queiramos saber se T1 é similar a T4? Se precisamos nos valer de um modelo T*, isso é feito por comparação com esse modelo, como no esquema seguinte:

 

T1 = T* = T4

 

Certamente, surge aqui a questão de se saber se a primeira similaridade é similar à última similaridade, o que nos força a recorrer a uma similaridade de segunda ordem. Apesar disso, a atual solução é bem mais econômica do que a inicialmente considerada. Pois segundo a primeira solução, considerando que T1 = T2 = T3 = T4 chegávamos à conclusão de que T1 = T4 pela lei da transitividade, mas precisávamos justificar a aplicação dessa lei pelo recurso a uma pirâmide de similaridades de ordens superiores.

     Existe um outro caminho pelo qual precisamos recorrer a similaridades exatas de ordem superior. Afinal, se similaridades são tropos, o universal ‘similaridade’ precisa ser construído de tal modo que certo tropo de similaridade, que pode ser chamado de Ts*, seja admitido como modelo para os outros tropos de similaridade. Nosso esquema será:

 

    (3)                                 Ts1  =  Ts*

                                          Ts2  =   “

                                          Ts3  =   “...

 

Ora, sendo as similaridades tropos, então parece que podemos ter tropos de similaridade de segunda ordem referidos pelos signos de similaridade que estão entre Ts1 e Ts*, entre Ts2 e Ts*, e assim por diante – chamemo-los Tss1, Tss2 etc. De maneira a fazer referência ao universal composto por essas similaridades de similaridades precisaremos de um novo tropo modelar de similaridade de similaridades, que será Tss*. É fácil objetar dizendo que poderíamos criar um número indeterminado de ordens superiores de tropos de similaridade exata dessa maneira.

     Uma resposta razoável a esta suposta objeção é a de que a consequência predita é inofensiva. Nada nos impede de parar quando não encontramos mais vantagem explanatória em prosseguir. Como H. H. Price notou, as mesmas consequências resultam da adoção do realismo[5]: a idéia da idéia na filosofia de Platão nada mais é do que uma idéia de segunda ordem. Certamente, ao criticar a sua doutrina das idéias Platão teve (mesmo que implicitamente) uma idéia de sua idéia, ou mesmo talvez uma idéia de sua idéia de sua idéia. Mas ele não precisaria prosseguir neste procedimento indefinidamente, posto que há um ponto para além do qual as razões explanatórias cessam.

     Finalmente, vale a pena observar que a similaridade não precisa ser vista como um tropo como os outros. Considere, por exemplo, as condições de similaridade para a similaridade. Elas devem pressupor vaguidade e extensões espaciais extremamente variáveis. Muitos diriam que a similaridade não ocupa espaço nem tempo. Mas não estejamos tão certos disso! Quando considero a similaridade entre as cores de dois sapatos que estou vendo na vitrina da loja, a similaridade entre essas coisas parece estar de algum modo por aqui mesmo e não, digamos, lá fora ou em lugar algum. E quando alguém considera as similaridades entre a forma de nossa galáxia e a forma da galáxia de Andrômeda, a similaridade deve ter algo a ver com toda a região do universo na qual elas se encontram, posto que tal similaridade não existiria se esses gigantescos aglomerados de estrelas não existissem.

     Talvez devêssemos agora ser lembrados que a similaridade tem a ver com lógica e que, tal como o espaço e o tempo, a lógica estaria além do reino dos tropos. Contudo, a lógica já foi considerada como algo que só não parece empírico por ser inerente à realidade empírica como um todo. É possível sugerir que a similaridade seja também um tropo limitador, que vige entre as constantes lógicas e os tropos perceptíveis mais típicos.

     Comparemos agora a presente solução para o problema dos universais com as tradicionais soluções realista e nominalista.

      Para o realista, propriedades universais devem ser objetos abstratos não-empíricos, acessíveis somente ao intelecto. Isso nos força à admissão da existência de dois mundos, nosso mundo empírico e ainda um outro mundo com um infinito número de entidades abstratas, entidades para as quais não temos critérios de identidade, posto que elas não são espacio-temporalmente localizadas. Mais além, ele é deixado com o aparentemente insolúvel problema de como explicar a relação entre as entidades abstratas extramundanas e os indivíduos que deles participam e que os instanciam.

     Por outro lado, a solução nominalista é uma espécie de formação reativa contra o realismo, limitada pelas mesmas assunções. O nominalista consistente “resolve” o problema dos universais através de uma contraintuitiva negação da existência das propriedades; para ele há apenas particulares nus e predicações são flatus vocis sem referência real. Mas essa parece ser uma estratégia de avestruz… com a qual o nominalista se recusa a fazer face aos problemas.

     A teoria dos tropos, ao invés, não duplica os mundos como o realismo nem nos força ao contrasenso. Em seus princípios, ao menos, ela está em perfeito acordo com o senso comum. Se você perguntar ao homem comum onde estão as propriedades, ele irá responder apontando para o azul do céu, para a solidez da mesa, ou comprovando a frieza de um cubo de gelo pelo tato. Somente anos de doutrinação filosófica poderão ser bem-sucedidos em condicionar a sua mente a ver essas coisas de modo diferente.

 

Tropos e indivíduos concretos

O segundo grande problema é o de como construir indivíduos, começando com os que são particulares concretos, com base em tropos. Para D. C. Williams, um particular concreto é uma soma de tropos.[6] Tropos podem ser associados de modo a formar agregados de tropos e, eventualmente, particulares concretos. O conceito-chave aqui é o de compresença (compresence) ou co-ocorrência (concurrence[7]): a quase-mesmidade da localização espaço-temporal dos tropos. Esse conceito de co-ocorrência pode ser analisado como composto de dois outros, a colocalização e a cotemporalidade. A co-localização dos tropos é a sua localização em certa região do espaço, sem levar em consideração quando eles se encontram nessa região. Assim, duas pessoas que tomam turnos em dormir em uma mesma cama não deixam de ser colocalizadas nessa região do espaço. A cotemporalidade de tropos é a sua existência durante um mesmo intervalo de tempo. Assim, o monte Roraima e eu somos co-temporais, mas não somos colocalizados. A co-ocorrência dos tropos surge quando eles são colocalizados e cotemporais, ou seja, quando eles existem simultaneamente durante certo intervalo de tempo em certa região espacial. A co-ocorrência dos tropos é a cotemporalidade de tropos colocalizados.

     A sugestão é a de que um indivíduo ou particular concreto, como uma cadeira, deve ser totalmente constituído por tropos de peso, dureza, cor, forma etc. que estão relacionados uns aos outros minimamente através de co-ocorrência (i.e., por colocalização copresente). A vantagem dessa concepção é que ela nos permite abandonar o velho e supérfluo conceito de substância entendido como um substrato oculto das propriedades. O particular concreto evidencia-se como uma alcachofra, que consiste somente em suas folhas, que são os tropos. É preciso notar, contudo, que pode haver sentidos da palavra ‘substância’ resgatáveis através de uma ontologia dos tropos. Se a substância for entendida como aquilo que existe em si mesmo e sem a necessidade de outra coisa, parece que ela pode ser aproximada ao conceito de um sistema de tropos co-ocorrentes essencial a um tipo de objeto material.

     Uma ingênua, mas instrutiva objeção contra essa maneira de ver é que nesse caso toda predicação se torna tautológica: o proferimento “As suas unhas são vermelhas” é tautológico porque vermelho é predicado de um sujeito que já possui tropos de vermelho como constituintes.[8] Essa objeção é fácil de ser refutada. Para tal precisamos apenas distinguir o sistema de tropos co-ocorrentes essencial do inessencial. O sistema essencial a um objeto material é aquele exposto na definição do objeto material em questão. Diversamente de dureza e forma, os tropos de vermelho das unhas não pertencem a elas necessariamente. Portanto, esses tropos com certeza não são constitutivos do objeto referido pelo termo singular ‘suas unhas’ e a sentença não é tautológica.

     Uma outra dificuldade, apontada por Cris Daily, nasce do fato de que a teoria dos tropos é vulnerável a argumentos de regressão análogos aos usados contra os objetos abstratos assumidos pelo realismo. No caso de particulares concretos, Cris Daily mostrou que é possível construir, contra a idéia de co-ocorrência, o seguinte argumento. Suponha que um particular concreto fosse constituído somente pelos tropos T1, T2 e T3. Como a relação de co-ocorrência não pode ser uma entidade abstrata, ela deve ser um tropo. Chamemo-la de relação Tc. Nesse caso parece que nós temos um novo particular concreto, constituído por T1, T2, T3 e Tc. Ora, para dar conta desse particular precisamos de uma nova co-ocorrência para T1, T2, T3 e Tc, a qual poderá ser chamada de Tc’. Mas a adição de Tc’ gera um novo particular, que requer uma nova co-ocorrência e assim infinitamente.[9]

     Uma resposta a essa objeção poderia tomar uma forma similar àquela que filósofos realistas aplicaram em defesa de suas próprias entidades abstratas. Para o realista platônico as formas ou idéias possuíam um status sui-generis.[10] Como justificar esse status? Em meu juízo poderíamos responder dizendo que diversamente de cada um dos tropos co-ocorrentes, a co-ocorrência (ou compresença) é um tropo que se deixa predicar de todo um feixe de tropos. Mas por isso mesmo não há uma propriedade intermediária entre o tropo de co-ocorrência e o feixe de tropos, da mesma forma que não há uma propriedade intermediária entre F e a na formação da proposição Fa. Nada sugere que Fa deva se desdobrar em FRa, onde R é um predicado que relaciona F a a, pois nesse caso cairíamos em uma regressão ao infinito. A predicação de co-ocorrência do feixe de tropos {t1... tn} tem a forma Tc{t1... tn}, que tem a mesma forma que Fa, onde Tc é uma propriedade do conjunto. Se considerarmos Tc dessa maneira, nada sugere que seja necessário um tropo intermediário. É nisso que consiste o status especial de Tc, que o distingue dos tropos primários constitutivos do conjunto {t1... tn}.

     O ponto importante que precisa ser notado é que, embora possamos ser obrigados, em defesa da teoria dos tropos, a aplicar estratégias semelhantes àquelas que foram usadas em defesa das teorias realistas dos universais, nós estamos fazendo isso de um modo totalmente inexpensivo, nem pressupondo nem multiplicando entidades questionáveis. A teoria dos tropos é, pois, uma promessa de se encontrar um fim para mais de dois mil anos de especulação ontológica em torno de coisas tão misteriosas como idéias platônicas, particulares nus e substâncias ocultas.[11]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] O trabalho originador da ontologia dos tropos foi o artigo de D. C. Williams intitulado “The Elements of Being,” publicado na Review of Metaphysics, vol. 4, pp. 2-18 e 171-92, 1953. Williams foi o primeiro a propor a ideia tão genial quanto simples de construir o mundo inteiro tendo somente tropos como elementos ontológicos fundamentais. Desde então a discussão sobre tropos tem crescido constantemente.

 

[2][2] Michael Loux: Metaphysics: A Contemporary Introduction (London: Routledge 1998), p. 81

[3] D. C. Williams, “The Elements of Being” in, P. V. Inwagen & D. W. Zimmerman: Metaphysics: The Big Questions (Oxford: Brownwell 1998), pp. 45-46.

[4] Keith Campbell, “The Metaphysics of Abstract Particulars,” in S. Laurence & Cynthia Macdonald (eds.): Contemporary Readings in the Foundations of Metaphysics (Oxford: Brownwell 1998), pp. 357-9.

 

[5] Ver H. H. Price, Thinking and Experience (Hutchinson University Press: Oxford 1953), chap. 1. A objeção considerada tem sua origem em Bertrand Russell. Ver seu The Problems of Philosophy (Oxford: Oxford University Press 1980 (1912)), p.55. Para uma resposta diferente, ver Keith Campbell, Abstract Particulars (Oxford: Brownwell 1990), pp. 34 ff.

[6] “The Elements of Being”, pp. 44-45.

[7] O termo inglês ‘concurrence’ significa cooperação ou conjunção. Como não há equivalente em português, preferi criar o termo ‘co-ocorrência’.

 

[8] Michael Loux: Metaphysics: A Contemporary Introduction (London: Routledge 1998), p. 103.

[9] Cris Daily: “Tropes” in, D. H. Mellor & A. Oliver: Properties (Oxford: Oxford University Press 1997), p. 157.

[10]10 Ver Gregory Vlastos, “The Third Man Argument in the Parmenides”, Philosophical Review 63 (1954) pp. 319-349.

[11] Resta saber a razão da ontologia dos tropos ter precisado esperar o século XX para ser defendida. Afinal, o reconhecimento da existência de propriedades espacio-temporalmente localizáveis existe ao menos desde Aristóteles. A única resposta que encontro é a de que só o século XX nos proveu de uma concepção científica do mundo capaz de tornar tal ponto de partida natural e plausível.

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