Obs.: Isso é um esboço impublicável!
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REVISITANDO A ONTOLOGIA DOS
TROPOS
Qualquer mundo possível e, é claro, o nosso,
é totalmente
constituído de seus tropos.
D. C. Williams
Há vários nomes para o tema
desse artigo: propriedades concretizadas, qualidades particularizadas,
acidentes individuais, bites de
qualidades, particulares abstratos e ainda outros. Mas o mais usual é a palavrinha
tropo, que pelo menos tem a vantagem de
ser pequena.
A
teoria dos tropos é uma aquisição ontológica bastante recente. Embora o
conceito de tropo tenha existido com outros nomes no mínimo desde Aristóteles,
somente nos últimos cinquenta anos filósofos tiveram a idéia de tomar os tropos
como as pedrinhas de construção ontológicas fundamentais do mundo, tentando
resolver os tradicionais problemas dos universais e da natureza dos
particulares concretos somente através deles.[1] De
fato, meu palpite é o de que a teoria dos tropos é tão revolucionariamente simples
em seus aspectos fundamentais, que ela será capaz de produzir em ontologia uma
revolução similar à introdução de novas teorias fisicalistas na solução do
problema mente-corpo na segunda metade do século vinte. Infelizmente, como as novas
teorias da relação mente-corpo, a teoria dos tropos tem se ramificando em uma
variedade crescente, cada uma tentando realizar ao seu próprio modo a tarefa de
pesar valores ontológicos quase imperceptíveis. No que se segue, ao invés de
fazer o duro trabalho de discutir essas versões, escolherei o caminho mais fácil
de introduzir e colocar em discussão e propor algumas idéias adicionais.
Introduzindo Tropos
Primeiro: o que são tropos?
Para Donald Williams, o filósofo que originou a ontologia dos tropos, tropos são
“particulares abstratos”, o que não é muito esclarecedor devido à falta de
clareza da noção de abstração, mesmo que se diga que tropos são primitivos e
que como tais não podem ser definidos. Prefiro aqui revisar a noção de tropo
entendendo-a como uma propriedade
(simples ou complexa) localizadas no espaço
e no tempo, onde o termo ‘propriedade’ deve ser entendido no mais amplo
sentido possível, incluindo relações e espécies naturais. Exemplos de tropos
podem ser a cor vermelha da torre Eiffel, a sua forma, o seu peso, a sua
dureza, a sua altura etc. Outros tropos são o grito de um hipopótamo particular
chamando a fêmea e o odor particular exalado por uma rosa. Tropos podem ser
propriedades relacionais, como a altura de uma ponte, incluindo nisso relações causais.
Tropos podem ser também estados mentais como uma sensação de dor, uma emoção,
uma personalidade, um pensamento, uma crença. Tropos diferem do que podemos
chamar de indivíduos, como é o caso
de particulares concretos como a torre, o hipopótamo, a rosa e mesmo um ser
humano. Mesmo assim eles são particulares, posto que estão localizados no
espaço e no tempo. Tropos são usualmente compostos de tropos, e algumas
composições de tropos são altamente complexas, como, por exemplo, uma performance
da Quinta Sinfonia de Beethoven. E tropos podem ser objetos de percepção
seletiva[2]:
ao olharmos para as ondas quebrando no oceano podemos nos concentrar
alternativamente em sua cor, nas formas de suas ondas, ou em seus sons.
Como todos os particulares, tropos têm condições
de identidade. Parece que a condição de identidade fundamental deva ser uma
localização espaço-temporal suficientemente homogênea sob certo modo epistêmico
de acesso e avaliação. Por exemplo: diante de uma parede homogeneamente pintada
de vermelho podemos dizer que estamos diante de um tropo de vermelho. Ou então:
o par de sapatos que eu estou usando agora é marrom. A propriedade do sapato
direito de ser marrom é um tropo, uma vez que está localizada de modo suficientemente
homogêneo em meu sapato direito, e a propriedade do sapato da esquerda de ser
marrom pode ser considerada outro tropo por razões similares. Como os sapatos têm diferentes localizações
espaciais, temos ao menos dois tropos de marrom. A maciez do couro de meu sapato
esquerdo é também um tropo que tem mais ou menos a mesma extensão de sua cor
marrom. Isso significa que esse marrom e essa maciez são o mesmo tropo? Não,
posto que eles são perceptualmente acessados de modos diferentes, no caso, por
sentidos diferentes. Para a próxima questão, a de saber o quanto o tropo de
marrom do meu sapato esquerdo pode ser subdividido, uma resposta possível
seria: até onde ainda formos capazes de distinguir a cor marrom. Quanto tempo o
tropo de marrom do meu sapato esquerdo irá durar? Provavelmente não mais do que
o próprio sapato. Um tropo dura enquanto ele permanecer essencialmente o mesmo
sem deixar de manter a sua continuidade temporal. São as forças da natureza
tropos? De acordo com nossa definição sim: uma força eletromagnética é uma propriedade
eletromagnética espacio-temporalmente localizável, ainda que espalhada; uma “força”
gravitacional é na verdade uma propriedade espalhada de encurvamento do
espaço-tempo na proximidade de um corpo maciço. Nada existe que não seja tropo.
Menciono
essas coisas porque um entendimento inadequado pode facilmente dar azo a
tentativas de desacreditar as condições de identidade dos tropos, por exemplo,
empurrando a precisão para além dos seus limites contextualmente razoáveis. A
vaguidade de nossas condições de identidade para os tropos é uma consequência
direta de nossas práticas linguísticas, sendo tais condições fortemente
baseadas em convenções e apenas suficientemente precisas para servirem aos
nossos propósitos.
Como os tropos estão localizados no espaço
e no tempo, eles são particulares existentes. Afinal, a existência pode ser entendida
como sendo a comprovadamente contínua aplicabilidade de um predicado a um
particular, que no caso do tropo é o nome de uma propriedade espaciotemporalmente
localizável. Alguns tropos podem ser experienciados de forma isolada, por
exemplo, o perfume da rosa, o som do vento. Outros não. Tropos visuais e
táteis, por exemplo, devem ter alguma forma, e todos os tropos devem ter certa
duração no tempo.
São
formas espaciais e durações temporais tropos? Bom, essas coisas não parecem
poder existir sem estarem associadas com tropos, uma forma com uma cor, um
volume com o seu peso, uma duração no tempo com um agregado de tropos persistindo
em sua existência etc. Keith Campbell, discordando de D. C. Williams, não admitia
que formas fossem tropos, devido a sua dependência de outros tropos. Mas isso
parece insuficiente. Afinal, por que os limites espaciais e temporais dos
tropos não poderiam ser tropos, se eles também são descrevíveis como propriedades
espaciotemporalmente localizáveis? Se quisermos poderemos chamá-los de tropos
limitadores, sem precisarmos negar que são tropos.
Tropos e universais
A teoria dos tropos é
importante porque promete uma nova solução para ao menos dois perenes problemas
ontológicos: o problema dos universais e o problema dos particulares concretos.
Começo com o problema dos universais, que
ontologicamente posto se entende como a questão de se saber como é possível que
muitos particulares diferentes possam compartilhar da mesma propriedade, enquanto linguisticamente posto se entende como
a questão de como podemos aplicar o mesmo predicado a muitos particulares
diferentes. Filósofos realistas sugeriram que isso só é possível porque um predicado
designa um universal, entendido como um objeto abstrato do qual uma
multiplicidade de indivíduos pode participar, ou, como é usualmente dito, esses
indivíduos exemplificam ou instanciam o universal. Assim, para o realista
dizemos que essa rosa e esse morango são vermelhos porque esses indivíduos (corpos
materiais) participam do universal ‘vermelho’, ou porque eles exemplificam ou
instanciam o universal. A solução traz consigo dificuldades profundas que não
poderão ser consideradas aqui.
Para resolver o problema dos universais
apelando para os tropos precisamos introduzir a idéia de similaridade exata – que entendo como sendo o mesmo que o de identidade qualitativa – a qual também é um primitivo. Filósofos como D. C. Williams[3] e
Keith Campbell[4] conceberam
o universal como uma classe de tropos precisamente similares. Assim, a palavra
‘vermelho’ se refere à classe de todos os tropos de vermelho, que é unida pelo
fato de que tais tropos são qualitativamente idênticos uns com os outros. Para
Williams, quando nós dizemos “Essa rosa é vermelha”, queremos dizer que essa
rosa tem um tropo de vermelho que pertence à classe dos tropos de vermelho. E
quando nós dizemos que o vermelho é uma cor, o que queremos dizer é que a
classe de todos os tropos de vermelho está incluída na classe de todos os tropos
de cor.
Contudo, há problemas com esse modo de
ver. Primeiro, há um problema com o tamanho: uma classe pode tornar-se maior ou
menor; mas um conceito não pode mudar o seu tamanho, pois um conceito não tem tamanho.
Segundo: o que é uma classe? Se não é um tropo, mas um objeto abstrato, parece
que estamos abandonando as vantagens da teoria. Terceiro, podemos desenvolver
objeções concernentes ao status ontológico das similaridades e ao problema da
similaridade entre as similaridades. Suponhamos, para começar, que
similaridades são tropos. Nesse caso, se temos o conjunto de tropos similares
T1, T2, T3 e T4, podemos dizer (usando ‘=’ para abreviar similaridade): T1 =
T2, T2 = T3, T3 = T4 etc. Mas aqui surge um problema. De modo a construir uma classe
de tropos similares precisamos saber que o primeiro tropo de similaridade é
similar ao segundo tropo de similaridade, e que o segundo é similar ao terceiro
etc. Mas como sabemos disso? Bom, como não pode ser por apelar para uma idéia
abstrata de similaridade, deve ser por apelar para um terceiro tropo de similaridade.
Assim, a similaridade entre T1 e T2 é similar à similaridade entre T2 e T3, e
essa similaridade entre as duas similaridades é um novo tropo de similaridade. Como
a mesma questão pode ser colocada com respeito à similaridade entre os tropos
de similaridade desse segundo nível e assim por diante, parece que caímos em
uma espécie de regresso piramidal de similaridades entre similaridades. Mesmo que não seja infinito
esse regresso parece suficientemente esmagador para o intelecto humano. Além
disso, não parece que ele seja algo realmente experienciado.
Na tentativa de ultrapassar essas
dificuldades, quero propor uma concepção algo diferentes dos universais, inspirada
pelo tipo de tratamento que filósofos empiristas como Berkeley deram a nossas
idéias, de modo a assegurar a sua unidade. À luz desse tratamento sugiro que um
universal possa ser definido como:
Um tropo T* qualquer tomado como modelo,
ou qualquer outro tropo similar a ele.
Aceitando essa definição, o
problema do tamanho desaparece, pois é indiferente à definição quantos tropos
são similares a T*. O segundo problema também desaparece, pois nessa análise
nenhuma menção precisa ser feita ao conceito de classe (mesmo que disso se possa
inferir a existência de uma classe extensional). Quando alguém profere a
sentença “Essa rosa é vermelha”, a pessoa quer dizer que essa rosa tem um tropo
Tr que é similar ao tropo Tr* tomado como um modelo na memória do falante, o
qual remonta à sua experiência de coisas vermelhas (não penso em T* como sendo
um único: qualquer T pode ser tomado como T*; além disso, o modelo usado pelo
ouvinte não será o mesmo usado pelo falante, podendo variar). Assim, quando o
falante profere a sentença “Vermelho é uma cor” ele quer dizer que sempre que
nos for dado um tropo de vermelho, ele será também um tropo de cor. Finalmente,
o terceiro problema também parece desaparecer, pois não precisamos comparar uma
similaridade com a outra, mas somente os tropos T1, T2... Tn individualmente
com o tropo modelar escolhido T*. Ao invés do regresso piramidal, o esquema
toma uma forma mais razoável:
T1 = T*
T2 = “
T3 = “
T4 = “ ...
Alguém poderá notar que
essa solução não elimina totalmente o problema. Afinal, suponha que queiramos
saber se T1 é similar a T4? Se precisamos nos valer de um modelo T*, isso é
feito por comparação com esse modelo, como no esquema seguinte:
T1 = T* = T4
Certamente, surge aqui a
questão de se saber se a primeira similaridade é similar à última similaridade,
o que nos força a recorrer a uma similaridade de segunda ordem. Apesar disso, a
atual solução é bem mais econômica do que a inicialmente considerada. Pois
segundo a primeira solução, considerando que T1 = T2 = T3 = T4 chegávamos à
conclusão de que T1 = T4 pela lei da transitividade, mas precisávamos
justificar a aplicação dessa lei pelo recurso a uma pirâmide de similaridades
de ordens superiores.
Existe um outro caminho pelo qual precisamos
recorrer a similaridades exatas de ordem superior. Afinal, se similaridades são
tropos, o universal ‘similaridade’ precisa ser construído de tal modo que certo
tropo de similaridade, que pode ser chamado de Ts*, seja admitido como modelo
para os outros tropos de similaridade. Nosso esquema será:
(3)
Ts1
=
Ts*
Ts2 = “
Ts3 =
“...
Ora, sendo as similaridades
tropos, então parece que podemos ter tropos de similaridade de segunda ordem referidos
pelos signos de similaridade que estão entre Ts1 e Ts*, entre Ts2 e Ts*, e
assim por diante – chamemo-los Tss1, Tss2 etc. De maneira a fazer referência ao
universal composto por essas similaridades de similaridades precisaremos de um
novo tropo modelar de similaridade de similaridades, que será Tss*. É fácil objetar
dizendo que poderíamos criar um número indeterminado de ordens superiores de
tropos de similaridade exata dessa maneira.
Uma resposta razoável a esta suposta
objeção é a de que a consequência predita é inofensiva. Nada nos impede de
parar quando não encontramos mais vantagem explanatória
Finalmente, vale a pena observar que a
similaridade não precisa ser vista como um tropo como os outros. Considere, por
exemplo, as condições de similaridade para a similaridade. Elas devem pressupor
vaguidade e extensões espaciais extremamente variáveis. Muitos diriam que a similaridade
não ocupa espaço nem tempo. Mas não estejamos tão certos disso! Quando
considero a similaridade entre as cores de dois sapatos que estou vendo na
vitrina da loja, a similaridade entre essas coisas parece estar de algum modo
por aqui mesmo e não, digamos, lá fora ou em lugar algum. E quando alguém considera
as similaridades entre a forma de nossa galáxia e a forma da galáxia de Andrômeda,
a similaridade deve ter algo a ver com toda a região do universo na qual elas se
encontram, posto que tal similaridade não existiria se esses gigantescos
aglomerados de estrelas não existissem.
Talvez devêssemos agora ser lembrados que
a similaridade tem a ver com lógica e que, tal como o espaço e o tempo, a
lógica estaria além do reino dos tropos. Contudo, a lógica já foi considerada
como algo que só não parece empírico por ser inerente à realidade empírica como
um todo. É possível sugerir que a similaridade seja também um tropo limitador,
que vige entre as constantes lógicas e os tropos perceptíveis mais típicos.
Comparemos agora a presente solução para o
problema dos universais com as tradicionais soluções realista e nominalista.
Para o realista, propriedades universais devem
ser objetos abstratos não-empíricos, acessíveis somente ao intelecto. Isso nos força
à admissão da existência de dois mundos, nosso mundo empírico e ainda um outro
mundo com um infinito número de entidades abstratas, entidades para as quais não
temos critérios de identidade, posto que elas não são espacio-temporalmente
localizadas. Mais além, ele é deixado com o aparentemente insolúvel problema de
como explicar a relação entre as entidades abstratas extramundanas e os indivíduos
que deles participam e que os instanciam.
Por outro lado, a solução nominalista é
uma espécie de formação reativa contra o realismo, limitada pelas mesmas
assunções. O nominalista consistente “resolve” o problema dos universais através
de uma contraintuitiva negação da existência das propriedades; para ele há
apenas particulares nus e predicações são flatus
vocis sem referência real. Mas essa
parece ser uma estratégia de avestruz… com a qual o nominalista se recusa a
fazer face aos problemas.
A teoria dos tropos, ao invés, não duplica
os mundos como o realismo nem nos força ao contrasenso. Em seus princípios, ao
menos, ela está em perfeito acordo com o senso comum. Se você perguntar ao
homem comum onde estão as propriedades, ele irá responder apontando para o azul
do céu, para a solidez da mesa, ou comprovando a frieza de um cubo de gelo pelo
tato. Somente anos de doutrinação filosófica poderão ser bem-sucedidos em
condicionar a sua mente a ver essas coisas de modo diferente.
Tropos e indivíduos
concretos
O segundo grande problema é
o de como construir indivíduos, começando com os que são particulares concretos,
com base
A sugestão é a de que um indivíduo ou particular
concreto, como uma cadeira, deve ser totalmente constituído por tropos de peso,
dureza, cor, forma etc. que estão relacionados uns aos outros minimamente
através de co-ocorrência (i.e., por colocalização copresente). A
vantagem dessa concepção é que ela nos permite abandonar o velho e supérfluo
conceito de substância entendido como um substrato oculto das propriedades. O
particular concreto evidencia-se como uma alcachofra, que consiste somente em
suas folhas, que são os tropos. É preciso notar, contudo, que pode haver
sentidos da palavra ‘substância’ resgatáveis através de uma ontologia dos
tropos. Se a substância for entendida como aquilo que existe em si mesmo e sem
a necessidade de outra coisa, parece que ela pode ser aproximada ao conceito de
um sistema de tropos co-ocorrentes essencial a um tipo de objeto material.
Uma ingênua, mas instrutiva objeção contra
essa maneira de ver é que nesse caso toda predicação se torna tautológica: o
proferimento “As suas unhas são vermelhas” é tautológico porque vermelho é
predicado de um sujeito que já possui tropos de vermelho como constituintes.[8]
Essa objeção é fácil de ser refutada. Para tal precisamos apenas distinguir o
sistema de tropos co-ocorrentes essencial do inessencial. O sistema essencial a
um objeto material é aquele exposto na definição do objeto material em questão.
Diversamente de dureza e forma, os tropos de vermelho das unhas não pertencem a
elas necessariamente. Portanto, esses tropos com certeza não são constitutivos
do objeto referido pelo termo singular ‘suas unhas’ e a sentença não é
tautológica.
Uma
outra dificuldade, apontada por Cris Daily, nasce do fato de que a teoria dos
tropos é vulnerável a argumentos de regressão análogos aos usados contra os
objetos abstratos assumidos pelo realismo. No caso de particulares concretos,
Cris Daily mostrou que é possível construir, contra a idéia de co-ocorrência, o
seguinte argumento. Suponha que um particular concreto fosse constituído somente
pelos tropos T1, T2 e T3. Como a relação de co-ocorrência não pode ser uma
entidade abstrata, ela deve ser um tropo. Chamemo-la de relação Tc.
Nesse caso parece que nós temos um novo particular concreto, constituído por
T1, T2, T3 e Tc. Ora, para dar conta desse particular precisamos de
uma nova co-ocorrência para T1, T2, T3 e Tc, a qual poderá ser
chamada de Tc’. Mas a adição de Tc’ gera um novo
particular, que requer uma nova co-ocorrência e assim infinitamente.[9]
Uma resposta a essa objeção poderia tomar
uma forma similar àquela que filósofos realistas aplicaram em defesa de suas próprias
entidades abstratas. Para o realista platônico as formas ou idéias possuíam um
status sui-generis.[10] Como
justificar esse status? Em meu juízo poderíamos responder dizendo que diversamente
de cada um dos tropos co-ocorrentes, a co-ocorrência (ou compresença) é um
tropo que se deixa predicar de todo um feixe de tropos. Mas por isso mesmo não
há uma propriedade intermediária entre o tropo de co-ocorrência e o feixe de
tropos, da mesma forma que não há uma propriedade intermediária entre F e a
na formação da proposição Fa. Nada
sugere que Fa deva se desdobrar em FRa, onde R é um predicado que relaciona F
a a, pois nesse caso cairíamos em uma
regressão ao infinito. A predicação de co-ocorrência do feixe de tropos {t1...
tn} tem a forma Tc{t1... tn}, que tem a mesma forma que Fa, onde Tc é uma propriedade
do conjunto. Se considerarmos Tc dessa maneira, nada sugere que seja
necessário um tropo intermediário. É nisso que consiste o status especial de Tc, que o distingue dos tropos
primários constitutivos do conjunto {t1... tn}.
O ponto importante que precisa ser notado
é que, embora possamos ser obrigados, em defesa da teoria dos tropos, a aplicar
estratégias semelhantes àquelas que foram usadas em defesa das teorias realistas
dos universais, nós estamos fazendo isso de um modo totalmente inexpensivo, nem
pressupondo nem multiplicando entidades questionáveis. A teoria dos tropos é,
pois, uma promessa de se encontrar um fim para mais de dois mil anos de especulação
ontológica em torno de coisas tão misteriosas como idéias platônicas, particulares
nus e substâncias ocultas.[11]
[1] O trabalho originador da ontologia dos tropos foi o artigo
de D. C. Williams intitulado
“The Elements of Being,” publicado na Review of Metaphysics, vol. 4, pp.
2-18 e 171-92, 1953. Williams
foi o primeiro a propor a ideia tão genial quanto simples de construir o mundo
inteiro tendo somente tropos como elementos ontológicos fundamentais. Desde então a discussão
sobre tropos tem crescido constantemente.
[2][2] Michael Loux: Metaphysics: A Contemporary Introduction
(London: Routledge 1998), p. 81
[3] D. C.
Williams, “The Elements of Being” in, P. V. Inwagen & D. W. Zimmerman:
Metaphysics: The Big Questions (Oxford: Brownwell 1998), pp.
45-46.
[4] Keith Campbell,
“The Metaphysics of Abstract Particulars,” in S. Laurence & Cynthia Macdonald
(eds.): Contemporary Readings in the Foundations of Metaphysics (Oxford:
Brownwell 1998), pp. 357-9.
[5] Ver H. H. Price,
Thinking and Experience (Hutchinson University Press: Oxford 1953), chap.
[6] “The Elements
of Being”, pp. 44-45.
[7] O termo inglês ‘concurrence’ significa cooperação ou conjunção. Como não há equivalente em português, preferi criar o termo
‘co-ocorrência’. ‘
[8] Michael Loux:
Metaphysics: A Contemporary Introduction (London: Routledge 1998), p. 103.
[9] Cris Daily:
“Tropes” in, D. H. Mellor & A. Oliver: Properties (Oxford: Oxford
University Press 1997), p. 157.
[10]10 Ver Gregory
Vlastos, “The Third Man Argument in the Parmenides”, Philosophical Review 63 (1954) pp. 319-349.
[11] Resta saber a razão da ontologia dos tropos ter precisado esperar o século
XX para ser defendida. Afinal, o reconhecimento da existência de propriedades espacio-temporalmente
localizáveis existe ao menos desde Aristóteles. A única resposta que encontro é
a de que só o século XX nos proveu de uma concepção científica do mundo capaz
de tornar tal ponto de partida natural e plausível.
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