Draft para o livro Cognitivismo semântico
IRREGULARIDADES DO
TERRENO CONCEITUAL
Don’t
get involved in partial problems, but always take flight to where there is a
free view over the whole single great problem, even if this view is still not a
clear one.
[Não se deixe envolver por problemas parciais, mas sempre
ascenda para onde há uma concepção livre de todo o único grande problema, mesmo
se essa concepção ainda não for clara.]
Ludwig
Wittgenstein
Como ficou claro nos capítulos anteriores, as teorias descritivistas tradicionais
dos nomes próprios e termos gerais eram estruturalmente rudimentares. Foi em boa
parte devido ao desenvolvimento insuficiente daquelas teorias que a concepção
causal da referência dos termos gerais e o externalismo semântico pareceram opções
plausíveis, sugerindo que as palavras precisam significar mais do que são convencionadas
a significar, posto que em sua dimensão mais relevante, que é a da determinação
da referência, os significados seriam externos ao sujeito falante. Já vimos,
porém, que em seu sentido próprio o externalismo semântico é insustentável por
envolver uma falácia genética. Não quis com isso negar a óbvia indispensabilidade
da influência de fatores causais externos para que a referência se tornasse
possível. Mas essa influência é elusiva, e no caso dos termos gerais ainda mais
elusiva do que no caso dos nomes próprios.
Meu objetivo deveria ser agora
o de esboçar uma mais adequada teoria descritivista dos termos gerais, seguindo
um modelo paralelo ao proposto para os termos singulares. Contudo, o terreno
que se encontra à frente parece bem mais acidentado. Não temos à disposição uma
única classificação coerente para os termos gerais e não possuímos um modelo único
constitutivo de suas regras de atribuição. Por isso e porque a questão demanda uma
investigação muito mais detalhada, não pretendo fazer mais do que esboçar
algumas poucas sugestões.
Uma classificação para os termos gerais
Na tentativa de estabelecer uma classificação genérica dos termos
gerais, quero começar propondo uma tricotomia análoga àquela que divide os
termos singulares em indexicais, descrições definidas e nomes próprios. Correspondentemente,
proponho que os termos gerais possam ser divididos em:
(a) Indexicadores (não-analisáveis)
(b) Descritivadores (possuem forma descritiva)
(c) Nominadores (são analisáveis sob forma
descritiva)
Termos gerais indexicadores são os que só se deixam definir em
contextos indexicais. Exemplos poderiam ser palavras como ‘vermelho’, ‘redondo’,
‘quente’ e ‘duro’ na linguagem natural. Característico desses termos é que eles
não se deixam analisar na forma de descrições, ao menos enquanto forem entendidos
como designações de aparências fenomenais
(internas ou, mais comumente, suas projeções ou correlatos ditos externos), que
é como os entendo aqui. (Obviamente, ‘vermelho’ pode ser definido em uma
linguagem fisicalista como um certo comprimento de onda eletromagnética que vai
de 630 a 740 mn, assim como ‘redondo’ pode ser definido na linguagem da geometria
como o que é limitado por um perímetro circular..., mas não é assim que
aprendemos o que essas palavras significam.) Em contextos sensório-perceptuais,
esses termos podem ser usados junto a indexicais de modo a determinar a referência
sem a intermediação de descrições. Há boas razões para pensarmos que não há
como procedermos a uma análise de termos gerais fenomenais em proferimentos
como “Vermelho ali”, “Redondo lá”, “Isso duro” ou “Sinto calor” sem aprendermos
o significado fenomenal de palavras como ‘vermelho’, ‘redondo’, ‘duro’ ou ‘quente’
por meio de, digamos, familiaridade (acquaintance)
sensório-perceptual, ou seja, sem sermos interpessoalmente apresentados a
coisas respectivamente apontadas como sendo vermelhas, redondas, duras ou quentes
através de proferimentos indexicais. Linguisticamente esses termos são
reconhecidos como denotando propriedades-t ao virem associados a termos
singulares capazes de identificar objetos materiais. Assim, se digo algo como
“Esse sofá é vermelho”, através do indexical ‘esse’ complementado pelo termo sortal
‘sofá’, formo uma unidade que funciona como um termo singular mais completo;
com ela eu me refiro a um objeto material, ao qual atribuo a propriedade-t de
ser vermelho. Mesmo que eu dissesse apenas “Isso é vermelho”, eu estaria
implicitamente me referindo a algo espaciotemporalmente localizado, geralmente
um objeto material possuidor da propriedade-t de ser vermelho. Posso,
obviamente, abstrair dessas aplicações particulares tendo em mente o que é comum a um paradigma de vermelho
escolhido (por exemplo, o desse sofá, ou alguma imagem mental dele que
posso atualizar) e a qualquer outra
propriedade-t qualitativamente idêntica a ela. Nesse caso estarei falando
do vermelho enquanto tal, do universal do vermelho. Mas não se trata aqui nem
da classe de todos os tropos de vermelho, como pensou Donald Williams (afinal,
tal coisa não cabe em nossas mentes por razões medicinais), nem, obviamente, de
alguma entidade idealmente abstrata como o vermelho-em-si-mesmo, como pensavam filósofos
realistas. Podemos mesmo dizer que essa abstração nos leva a pensar na classe
de todos os tropos de vermelho, mas por não ser isso realmente concebível
enganam-se os que pensaram que é a essa classe que nos referimos ao pensarmos
no universal do vermelho. O universal transforma-se aqui no efeito de uma
habilidade comparativa e sintetizadora que ganhamos pela familiaridade com as
propriedades-t. Os termos indexicadores são, aliás, sub-rogados daquilo que
Bertrand Russell equivocamente chamou de nomes próprios lógicos: afinal, eles
são os melhores candidatos a termos primitivos da linguagem natural, entendidos
como aqueles cujas regras de significação só são aprendidas pela familiaridade
com os seus designata.
Vejamos agora os termos gerais descritivadores. Eles são análogos às
descrições definidas, mas com função classificadora ao invés de individuadora. Esses
termos aparecem na forma de predicados complexos e podem sem muita dificuldade
ser traduzidos como descrições indefinidas, como é o caso da descrição ‘...um
caçador de dotes’, que pode ser aplicada tanto a David Sebastian quanto a Zsa
Zsa Gabor. A grande maioria das predicações se caracteriza de forma descritiva,
que é a de serem linguisticamente mais estáveis que os termos indexicadores, na
medida em que independem da familiaridade – não precisamos usar indexicais para
identificar D. S. como sendo um caçador de dotes.
Há, finalmente, termos gerais nominadores:
nomes gerais cuja expressão simbólica perceptível é não-descritiva, mas
que são analisáveis de modo em alguma medida análogo ao dos nomes próprios, posto
que abreviam descrições ou conjuntos de descrições. Esses podem ser termos de
espécies naturais como ‘tigre’, termos de massa como ‘água’, termos de artefatos
como ‘cadeira’, termos sociais como ‘professor’, termos culturais como ‘sinfonia’
e ainda muitos termos utilizados em filosofia e ciência. Eles são abreviações de
descrições ou de feixes, ou de grupos de feixes de descrições mais ou menos
estruturados.
Ao menos em alguns casos, como veremos, eles podem ser entendidos como
abreviações de feixes de descrições cujas combinações efetivamente aplicáveis
são selecionadas por meio de regras de atribuição de nível superior, analogamente
ao caso dos nomes próprios.
Diante disso é possível propor para os termos gerais uma hipótese
genético-estrutural também em alguma medida análoga à que sugerimos no Capítulo
1 para os termos singulares. Os termos gerais indexicadores seriam estruturalmente
mais originários, podendo a cognição das propriedades por eles designadas ser tomada
como elemento na construção de conceitos mais complexos. Admitindo, como temos
feito, uma ontologia dos tropos que por princípio rejeita entidades verdadeiramente
abstratas, os termos gerais nominadores deveriam (ao menos tendencialmente, dado
que o caminho oposto também é possível) ter sua origem em termos gerais
descritivadores que se originariam de combinações de termos indexicadores. Por fim, por razões de economia e
flexibilidade, são instituídas palavras
únicas que abreviam predicados descritivadores, em muitos casos ordenados
em sua aplicação através de metaregras que em alguma medida podem ser
estruturalmente análogas às dos nomes próprios. Isso se dá, como veremos, com
termos de espécies naturais e termos de massa. Assim, ao invés de dizer ‘um líquido
transparente, insípido e inodoro’ ou ‘uma quantidade de hidróxido de hidrogênio’
em circunstâncias onde tal especificação é desnecessária, ganhamos em flexibilidade
no uso de critérios de atribuição se resumimos ambas as descrições na palavrinha
‘água’, cuja regra metadescritiva de atribuição é RA-‘água’ – a regra estudada
no capítulo anterior. Finalmente, tanto termos gerais nominadores quanto termos
gerais indexicadores podem comparecer outra vez como constituintes de predicações
descritivadoras, permitindo a formação de predicados mistos sem limitações de
complexidade.
Essa analogia classificatória
entre termos singulares e gerais nos leva a perguntar se não existiriam situações
originárias nas quais eles não se tivessem ainda diferenciado. Podemos imaginar
a existência de termos referenciais originários que funcionariam indiferenciadamente,
tanto como termos singulares indexicais quanto como termos gerais, em um papel que
recorda aquilo que Ernst Tugendhat chamou de quasi-predicado. Tratar-se-iam,
no caso de predicados indexicalmente usados, de coisas tais como o grito de alerta
de certas aves, que designariam propriedades singularizadoras relacionadas a
uma região espaciotemporal variável e indicando perigo, ou, digamos, um gemido
de dor na linguagem humana. Desses termos referenciais originários surgiriam de
um lado, termos singulares indexicais, de outro lado, termos gerais
indexicadores. Dos termos singulares indexicais se derivariam descrições
definidas, e delas, por fim, nomes próprios. Similarmente, dos termos gerais
indexicadores se derivariam termos gerais descritivadores, dos quais se
originariam, enfim, termos gerais nominadores. Essas transformações não seriam obviamente
forçosas e unidirecionais, mas, como notei, originárias e tendenciais, uma vez
que caminhos de derivação inversos e cruzados também parecem concebíveis.
Neodescritivismo aplicado a termos gerais
Não faria sentido defender uma teoria descritivista dos termos gerais para
os termos gerais indexicadores, posto que eles dizem respeito ao que podemos aqui
qualificar como simples relativamente à linguagem ou domínio de linguagem que
está sendo considerado. Também não faria muito sentido tentar desenvolver semelhante
teoria para o caso dos termos gerais descritivadores, posto que eles mesmos, quando
funcionam propriamente, já são descrições não-definidas que exprimem suas
próprias regras de atribuição. Contudo, podemos desenvolver explicações
descritivistas (ou neodescritivistas) para a aplicação de termos gerais nominadores.
Os termos de artefatos
exemplificam de forma mais simples e transparente o último caso. Considere
alguns exemplos de definições de semelhantes termos por intermédio de
descrições indefinidas:
Cadeira (Df.) = um artefato não-veicular
com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez.
Lápis (Df.) = um objeto manuseável, geralmente
de madeira, com ponta de material suficientemente sólido e que serve para escrever.
Carro (Df.) = um veículo automotivo que
se movimenta normalmente sobre quatro rodas, sendo mais propriamente feito para
transportar um pequeno número de pessoas.
Catedral (Df.) = uma igreja que tem um
trono de bispo e congrega as outras igrejas da diocese.
Podemos dizer que os termos acima abreviam as descrições indefinidas
(na indicação de propriedades de particulares) ou não-definidas (na indicação de propriedades ditas universais) correspondentes,
as quais exprimem seus significados cognitivos. Essas descrições constituem definições
funcionais que exprimem regras criterais de atribuição ou aplicação. Mas,
diversamente do que geralmente acontece com espécies naturais, elas não fazem
menção a essências subjacentes, posto que artefatos não as possuem. Também
diversamente dos termos de espécies naturais considerados no capítulo precedente,
cujo significado é expresso por um entrelaçado de descrições de propriedades
aparentes e subjacentes, termos de artefatos tem o seu sentido em geral determinado
por completo por regras-descrições dos tipos que formam o conjunto <Ds + Dsd>.
Definições descritivas dos
termos nominadores de artefatos podem admitir e mesmo requerer detalhamentos.
Além disso, elas não possuem fronteiras precisas, nem necessariamente imutáveis.
Mas isso em nada as deprecia, pois a frequente rejeição de definições por semelhantes
razões não passa de mal-entendido. A vaguidade, como temos sempre recordado, é uma
característica insuperável da grande maioria dos conceitos, supostamente refletindo
uma característica ontológica da própria realidade à qual se aplicam. O mais importante
é que de posse (quase sempre tácita) das definições somos capazes de aplicar os
conceitos satisfatoriamente à grande maioria dos casos, o que lhes dá uma justificação
pragmática. Pode-se tentar objetar contra as definições acima apresentadas apontando
para casos limítrofes ou o que parece serem exceções. Uma cadeira feita para
acomodar pessoas muito gordas pode ser usada para que duas pessoas magras se
sentem lado a lado. Contudo, nem por isso ela deixa de ser um artefato feito
para ser usado por uma só pessoa de cada vez. Um tronco de árvore com a forma
de uma cadeira, que é trazido para casa e modelado de modo a ser usado como
cadeira seria uma cadeira? Ora, esse é um caso limítrofe; conceitos possuem
margens de indeterminação indecidíveis, com relação às quais nossos critérios de
classificação falham. Para além disso, um lápis eletrônico, desses usados para se
desenhar em telas de computador, pode ser parecido com um lápis, mas não é;
trata-se já de um uso estendido da palavra, por analogia funcional.
Como critério para a aplicação
de um termo conceitual, psicólogos experimentais falaram de tipicalidade, do uso de um estereótipo do particular como maneira de
caracterizá-lo. Assim, o estereótipo de
lápis não é um lápis de cera, mas o velho lápis de madeira com ponta de grafite.
O estereótipo de cadeira é um artefato que encontramos na sala de jantar, com
quatro pernas, e não a cadeira de balanço ou a de praia, muito menos a cadeira elétrica.
O estereótipo de um pássaro pode ser um gavião, mas não será um pinguim. Nós
reconhecemos os estereótipos mais prontamente, já que eles apresentam propriedades
mais típicas em maior número. Isso
torna fácil aos psicólogos serem induzidos à conclusão de que a maneira tradicional
pela qual os filósofos trataram conceitos, buscando definições reais com
possíveis condições necessárias e suficientes de aplicação, é incorreta e ultrapassada.
Não obstante, incorreu-se aqui em uma séria confusão
categorial. Uma coisa são as variáveis condições de performance que o
psicólogo investiga; outra são os critérios derivados da regra de atribuição da
expressão conceitual, os quais são elementos definitórios e interessam ao
filósofo. As duas coisas são tão diversas quanto compatíveis. As estruturas
lógico-conceptuais definitórias que constituem as regras de atribuição de uma palavra-conceito
– as que constituem o conteúdo conceitual – podem ser capazes de gerar múltiplas
e variadas constelações criteriais, as quais são responsáveis por variações
semânticas genericamente determinadas daquilo que temos em mente ao aplicarmos
a palavra. Assim, a regra de atribuição para o conceito de pássaro pode gerar
constelações criteriais específicas, que são diferentes para passarinhos, águias,
abutres, avestruzes, pinguins... Como é muito mais comum encontrarmos as
constelações criteriais derivadas, pelas quais reconhecemos um pássaro que
encontramos em árvores e que voa, somos bem mais rápidos em aplicá-la. Geneticamente
essas constelações devem ter surgido inicialmente na formação de um complexo
criterial primário constitutivo da regra conceitual para a identificação de
pássaros. O que os psicólogos experimentais descobriram foi apenas essa
centralidade geradora da mais fácil perfomance da aplicação do predicado e não
a razão originadora de sua aplicação, sem a qual não haveria, nem estereótipo,
nem performance.
Aqui também podemos fazer uma aplicação útil
da distinção entre critério e sintoma. Uma cadeira de balanço, por exemplo, não
possui a mais frequente condição caracterizadora, que é a de ter quatro pés;
mesmo assim, ela continua seguindo a definição conceitual de ser um artefato não-veicular
com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez. Ela
continua satisfazendo os critérios da regra de atribuição, aos quais a condição
usual de ter quatro pés não pertence. E o mesmo vale para a cadeira de praia...
Aqui também vemos não ser necessária a contradição entre uma definição
filosófica tradicional (possivelmente apresentável em termos de condições
necessárias e suficientes) realizada em um nível mais abstrato, que explicita
uma regra criterial que pode ser mais ou menos complexa, e a investigação de condições
identificadoras frequentemente inessenciais responsáveis pela performance, que
não são critérios definitórios, mas meros sintomas probabilizadores.
Esses sintomas, ou traduzem maior facilidade e rapidez no reconhecimento (como
a cadeira de mesa ou um bem-te-vi), ou maior dificuldade e lentidão no
reconhecimento (como a cadeira elétrica ou um pinguim).
No capítulo anterior vimos que
no caso de termos de espécies naturais como ‘água’ e ‘ouro’ precisamos distinguir
ao menos dois núcleos descritivos na constituição do sentido do termo: um núcleo
popular, derivado de nossa vida cotidiana, e um núcleo científico, derivado de
nossa descoberta da suposta estrutura essencial subjacente, ambos os núcleos
dependentes de uma regra disjuntiva inclusiva para a identificação do que possa
ser chamado de ‘água’ ou ‘ouro’. Mas não parece possível generalizar essa
duplicidade sequer para espécies naturais.
Considere outra vez o termo contável de espécie
natural ‘tigre’. Podemos considerar a descrição de superfície (o estereótipo)
como sendo Dt = grande e feroz felino carnívoro, um quadrúpede com pelo amarelado,
listas escuras transversais e focinho branco. Junto a isso, o importante para a
identificação de um tigre é que ele também pertença à espécie panthera tigris,
originária da Ásia, o que adicionado a Dt e à ideia de que os membros de uma
espécie devem ser intercruzáveis de modo a produzir descendentes férteis resulta
em:
Dte: Um animal entrecruzável com outros que também pertencem
ou ao menos descendem das populações de animais asiáticos que historicamente
foram chamados de tigres por satisfazerem suficientemente a descrição de
superfície Dt, sem desse entrecruzamento resultarem descendentes estéreis.
Como base nisso podemos formular a seguinte regra descritiva para a
atribuição do conceito de tigre:
RA-‘tigre’:
Usamos o termo geral tigre para nos referirmos
(propriamente) a uma propriedade-t do gênero animal de um objeto x
see
(i)
a propriedade de x satisfaz a regra
de caracterização expressa por Dte,
(ii)
em medida suficiente,
Como já notei no Capítulo 7, ao menos para a zoologia atual o termo de
espécie natural ‘tigre’ tem funcionado de modo diferente do termo ‘água’. Enquanto
a descrição da microestrutura é importante para a caracterização de massas de água,
o layout genético não é essencial
para a identificação de tigres, diversamente da constatação de sua pertinência
a uma dada espécie. Pode ser que o conceito de tigre venha a ser alterado de modo
que o layout genético passe a ter um
papel relevante; pode ser que por alguma nova convenção se deixe de considerar
a região onde se originou a população – regras conceituais são geralmente
vagas, alteráveis e não precisam excluir algum grau de arbitrariedade.
Ainda outro caso é o de termos
gerais que embora pareçam ser de espécie natural, não possuem nenhuma estrutura
subjacente. Considere conceitos geográficos, como os de rio e lagoa. Um rio é
um fluxo de água suficientemente grande, que corre sobre um leito naturalmente
escavado na Terra em certa direção, partindo de uma nascente, diversamente de córregos,
canais, rios de lava, etc. Uma lagoa se distingue tão-somente pela propriedade
superficial de ser uma extensão fechada e suficientemente grande de água doce, diversamente
de lagos, lagunas, poças de água, etc. Uma alternativa diante desses casos seria
a de redefinir o conceito de espécie natural demandando o compartilhamento pelos
seus membros de uma essência subjacente, mesmo que descoberta a posteriori, o que com alguma razão
excluiria termos como os recém-considerados.
Diversamente do caso dos nomes
próprios, não faz sentido exigir dos termos gerais que eles satisfaçam propriamente
descrições do grupo A, de localização e carreira espaciotemporal, posto que eles
não se aplicam a um único objeto. Já vimos como isso se dá com um termo de
espécie natural como ‘água’. Mas no caso de espécies zoológicas como a dos
tigres, é possível que a relação com o grupo historicamente e regionalmente
localizado que deu origem ao nome possua alguma importância, o que acaba sendo
refletido por RA-‘tigre’.
Há ainda casos em que, além de
serem múltiplos, os critérios caracterizadores do tipo de entidade se encontram
muito fracamente conectados entre si. Nesses casos podemos ser levados a recorrer
a uma regra meta-caracterizadora para o termo geral capaz de estabelecer o que e o quanto da multiplicidade de
condições que precisa ser aproximadamente satisfeito. Assim, podemos eventualmente
precisar de
(i) um conjunto de regras-descrições indefinidas
de primeira ordem que constituem um modelo
(um feixe de descrições) e
(ii) uma regra-descrição de ordem superior, RMD
– a regra meta-descritiva do termo geral – estabelecendo a medida em que o modelo
precisa ser satisfeito para que o termo geral possa ser aplicado.
Exemplos explícitos de semelhantes regras criteriais complexas
demandadas para a aplicação de um termo conceitual são frequentes em ciência, como o demonstram o
caso de uma doença como a febre reumática ou síndromes
como a de Asperger.
Para o diagnóstico de uma crise
aguda de febre reumática temos o critério de Jones modificado. O conjunto de regras-descrições
indefinidas se divide como se segue:
a) Manifestações maiores:
1. cardite,
2. coreia,
3. eritema
marginado,
4. poliartrite,
5. nódulos
subcutâneos.
b) Manifestações menores:
1. Poliartralgia,
2. Velocidade de hemosedimentação ou proteina
C-reativa elevada e febre,
3. Intervalo PR prolongado no ECG.
A regra meta-descritiva de atribuição é o próprio critério de Jones modificado:
RA-‘febre reumática’: O diagnóstico de febre reumática aguda precisa de
duas manifestações maiores ou uma maior e duas menores e evidência de infecção
do grupo A de estreptococos, cultura positiva de orofaringe ou teste rápido de
antígenos positivos em alguém com manifestações clínicas sugestivas de faringite
estreptocócica.
É interessante aqui notar o quão aproximados são a regra científica mais
precisa constitutiva do critério de Jones e nossa análise de certas regras tacitamente
conhecidas e menos precisas que regem a atribuição de termos conceituais.
Outro caso que, por ser proveniente da ciência,
é também explícito, é o dos critérios diagnósticos para a síndrome de Asperger.
Eles são ainda mais vagos do que o critério de Jones modificado e variam de
acordo com o especialista. Mas a estratégia é semelhante. No critério apresentado
pelo Dr. Christopher Gillberg, por exemplo, há seis tipos de critérios (que
chamaríamos de tipos de descrições), cada qual geralmente subdividido em vários
sub-critérios (as descrições indefinidas), sendo a isso adicionada a exigência
(a regra meta-descritiva) de que todos os seis tipos de critérios sejam
satisfeitos e de que pelo menos nove sub-critérios sejam satisfeitos. Note-se
que tal regra demanda a satisfação de uma variável multiplicidade de condições
criteriais para poder cumprir com seu papel caracterizador.
Casos usuais,
porém, costumam ser tácitos. Quero me restringir aqui a um único exemplo de
conceito mais vago e aberto, que se ajusta relativamente bem ao que
Wittgenstein classificaria como exprimível pelo termo ‘semelhanças de família’
(Familienänhnlichkeit). Trata-se do conceito de religião. O
filósofo P. W. Alston analisou o conceito de religião de maneira similar aos
casos apresentados acima. Eis os critérios (as regras-descrições criteriais) mais
relevantes para a aplicação referencial da palavra ‘religião’ por ele
considerados:
1. Crenças em seres sobrenaturais (deuses).
2. Sentimentos caracteristicamente religiosos (reverência,
adoração, senso de mistério, sentimento de culpa, etc. associados ao divino).
3. Um código moral que se acredita sancionado pelos
deuses.
4. Rezas e outras formas de comunicação com os
deuses.
5. Uma distinção entre entidades sagradas e
profanas; atos rituais concentrados em torno de entidades ou objetos sagrados.
6. Uma ampla organização da vida individual e
social baseada em características anteriormente descritas.
7. Uma cosmovisão, a saber, uma explicação do
significado do mundo e do lugar do homem nele.
Como o próprio Alston notou, há religiões como o catolicismo, o
judaísmo e o islamismo, que satisfazem todas as regras-descrições constitutivas
do feixe ou modelo. Elas constituem casos
prototípicos, podendo derivar-se a
aplicação da palavra para casos que satisfazem apenas partes do modelo.
Cumpre notar que talvez nenhuma das condições
incluídas no modelo seja necessária, disso resultando, ao menos em aparência, a
inexistência de uma essência geral única da religião. No protestantismo, nota
Alston, os rituais relativos a objetos sagrados são bastante atenuados; e no
caso dos Quakers eles são até mesmo
repudiados, tornando-se fundamental apenas a experiência mística. Mesmo a
crença em seres sobrenaturais pode estar ausente; há religiões como o budismo
hinayana, nas quais os seres sobrenaturais são ignorados, incidindo a ênfase no
cultivo de uma disciplina moral e meditativa que busque um estado espiritual em
que todos os desejos parem de existir. Podemos adicionair ainda que há
religiões laicas em que a crença em
um Deus pessoal sobrenatural é simplesmente excluída, como é
o caso da religião da humanidade fundada por Auguste Comte, que diviniza a sociedade
humana além de possuir figuras devocionais (equivalentes a santos) como
Shakespeare e Clotilde de Vaux. Parece que, em uma extensão talvez indébita dos
critérios sugeridos por Alston, a religião sequer precisa demandar uma prática social,
como acontece com religiões pessoais, como a do filósofo Spinoza, que se
baseava na calma e jubilosa aceitação de tudo o que acontecia como decorrente
das leis impessoais do universo, ou a do físico Albert Einstein, que via nessas
leis uma fonte de reverência e de encantamento.
Podemos aprimorar ainda mais o
exemplo de Alston, estabelecendo uma regra de regras, uma metaregra aplicável
às regras-descrições constitutivas do modelo formador do sentido do termo geral
‘religião’. Podemos chamá-la simplesmente de regra de atribuição constitutiva do
conceito de religião ou:
RA-‘religião’:
Usamos a palavra ‘religião’ para referir-nos (propriamente)
a uma propriedade-t do gênero de uma prática sócio-cultural de um objeto x
see
(i)
x satisfaz ao menos uma ou duas das regras-descrições constitutitivas
do modelo para o termo geral ‘religião’,
(ii)
em medida
suficiente.
(iii)
Mais do que qualquer outra regra de atribuição
do mesmo gênero.
Essa regra nos permite chamar de religião não só o catolicismo e o judaísmo,
que exemplificam por completo o modelo, mas também o budismo hinayana e a religião
da humanidade. Uma característica dessa regra de atribuição é que ela é
propositadamente vaga. Ela é vaga de maneira a fazer corresponder à vaguidade de
nosso próprio conceito de religião, que por sua vez deveria corresponder à
vaguidade intrínseca ao fenômeno considerado. Casos como o da religião da
humanidade satisfazem a metaregra (condições 1, 5 e 6, pelo menos). Há casos de
religiões pessoais (como as de Spinoza e Einstein), que são fronteiriços no sentido
de que quase não mais sabemos se o conceito realmente se aplica (satisfazem a condição
2). E há ainda casos que eventualmente se aproximam de satisfazer alguma
condição da regra de atribuição, embora não a satisfaçam suficientemente.
Considere, por exemplo, organizações secretas como a dos Rosacruzes, grupos
políticos radicais como o dos comunistas ortodoxos, ou ainda, o misticismo
matemático dos filósofos pitagóricos. Seriam religiões? Não propriamente, pois
como as regras de classificação dos conceitos de organização secreta, de grupos
políticos radicais e de filosofia se aplicam a essas coisas mais propriamente,
o conceito de religião passa a aplicar-se a elas apenas em um sentido estendido.
Termos gerais e designação rígida
Diante dessa variedade de regras de atribuição podemos retornar à
questão de saber se os termos gerais são designadores rígidos. Tanto Kripke
quanto Putnam responderiam afirmativamente a essa pergunta, ao menos no que
concerne aos termos de espécie natural, pois eles assumem que tais termos se
referem a uma mesma essência microestrutural, pelo menos em qualquer mundo possível
no qual essa essência exista.
Contudo, a rigidez dos termos
gerais é diferente do caso relativamente não-problemático da rigidez dos nomes
próprios. Enquanto o nome próprio designa apenas um único objeto em qualquer
mundo possível no qual esse objeto existe, precisando apenas identificá-lo, o termo
geral designa uma propriedade instanciável em objetos em um número que pode diferir
em cada mundo possível (um mundo possível pode não conter tigre algum, outro como
o nosso pode ser populado por alguns milhares e ainda outro pode ser
superpopulado por bilhões de tigres). Por isso mesmo, para quem defende a rigidez
dos termos de espécie natural, a sua referência não deve ser confundida com a
sua extensão. Também é problemático pensarmos que o termo geral é rígido por
ter como referência uma espécie. Pois
se fizermos isso parece que, ou recaímos em problemas como o recém-exposto, ou então
nós o circundamos concebendo a espécie como uma propriedade abstrata, mas ao
preço de termos de aceitar um problemático realismo de propriedades.
Quero aqui coerentemente optar
pela alternativa já escolhida, segundo a qual termos gerais designam primariamente
propriedades-t. Sob esse ponto de vista, um termo geral é rígido na medida em
que ele designa uma mesma propriedade-t (tropo ou agrupamento de tropos) em
qualquer mundo possível no qual essa propriedade-t exista. Mas como cada mundo possível
pode ter uma diversidade de propriedades particularizadas, precisamos de um
critério de identidade para a propriedade a ser escolhida como sendo a mesma em cada mundo possível! Seria
possível obter tal critério? Aparentemente não; afinal, só os termos singulares
parecem capazes disso, pois só eles são feitos para singularizar uma mesma
coisa em qualquer mundo possível no qual ela exista. Minha sugestão é a de que nossos
termos conceituais são rígidos porque se aplicam em todos os mundos possíveis nos
quais ao menos uma propriedade-t a ser por eles designada existe. Mas como sob
a perspectiva da linguagem só podemos encontrar tal critério para os termos
gerais com auxílio da aplicação do critério de singularização oferecido por
termos singulares, na prática será necessário vincularmos o termo geral a um
termo singular e perguntarmo-nos se uma propriedade-t idêntica à do objeto
referido pelo termo singular em nosso mundo existe ou, se não existe, se é pelo
menos concebível. Em tais casos verificaremos que o termo geral que a designa é
rígido, pois em qualquer mundo possível no qual for identificado um objeto com
uma propriedade-t qualitativamente idêntica a ela, essa propriedade será objeto
de aplicação da regra de atribuição do termo conceitual correspondente. Trata-se
aqui, ademais, de uma rigidez secundária
no sentido de que ela é dependente da rigidez dos termos singulares aos quais o
termo geral vem associado em frases predicativas ou relacionais singulares. Considere,
para exemplificar, o termo geral indexicador ‘branco’. Quando usamos enunciados
predicativos singulares como “A Lua (da terra) é branca” ou “Isso é branco”, estamos
nos referindo a propriedades-t da brancura da Lua ou disso, de modo que o termo
geral indexicador ‘branco’ pode ser considerado rígido por aplicar-se à mesma propriedade
de brancura em qualquer mundo possível no qual, mesmo não existindo a Lua, existe
algum outro objeto qualquer com a propriedade de ser branco. A rigidez do
predicado ‘...é branca’ é, pois, secundária à rigidez de um nome próprio como
‘Lua’, o qual é rígido na independência de seu comparecimento em frases
predicativas.
Não é preciso, contudo, que em um outro mundo possível, para se predicar um
branco qualitativamente idêntico seja preciso encontrar uma lua; bastará encontrarmos qualquer objeto de referência
do qual possa se predicar que é branco. Suponhamos que a regra de atribuição
para o que chamamos de ‘ouro’ fosse expressa pela descrição “metal raro de cor propriamente
amarelada, solúvel em água áurea, com número atômico 76...”. Nesse caso, parece
aceitável que através do proferimento indexical “Esse anel é de ouro” feito por
mim agora para me referir ao material de um anel, eu esteja usando o predicado
como designador rígido, aplicando-se ele um conjunto de propriedades qualitativamente
idênticas em qualquer mundo possível no qual tal conjunto de propriedades seja
individuado pelo mesmo termo geral singularizador. Finalmente, para o caso dos
termos gerais descritivadores isolados, considere a expressão predicativa “...tem
senso de humor”. O predicado ‘ter senso de humor’ também parece ser um
designador rígido secundário porque a propriedade em questão de ter senso de
humor é singularizada em qualquer mundo possível no qual algum indivíduo compareça
possuindo senso de humor.
O que foi dito acima também
explica porque termos gerais nominadores podem ser rígidos, enquanto as descrições
constitutivas desses termos podem não ser rígidas. Assim, ‘água’ é um termo
rígido por contraste com a descrição ‘algo que serve para beber’, pois se aponto
para esse copo de água e digo ‘Essa água serve para beber” no mundo atual, isso
é verdadeiro, mas pode ser que em alguma circunstância contrafactual esteja eu
apontando para esse mesmo copo de água e esteja dizendo algo falso, pois embora
sendo água, ela contém alguns miligramas de arsênico e realmente não sirva para
beber. A explicação é aqui análoga a que usamos para explicar a acidentalidade
relativa das descrições definidas com relação aos nomes próprios no Capítulo 6:
o termo geral descritivador é, no caso, semanticamente dependente da aplicação
do termo geral nominador, o que explica a sua relativa acidentalidade.
De modo similar, termos
descritivadores devem aparecer como acidentais ou flácidos se comparados com
termos conceituais nominadores aos quais estiverem usualmente, mas não
necessariamente, associados. Considere o termo conceitual nominador ‘coala’. Aos
ursinhos coalas aplicamos o termo descritivador ‘comedor de folhas de eucalípto’.
Mas imagine um mundo possível no qual a seleção natural torne os coalas animais
comedores de grama. Nesse mundo, o termo geral descritivador ‘comedor de folhas
de eucalipto’ se demonstrará não aplicável aos coalas, ou então aplicável a um
animal de outra espécie, o que demonstra que ele é acidental relativamente ao termo
conceitual ‘coala’ ao qual vem geralmente associado.
Essas respostas podem ser vistas
como trivializadoras da pretensão original da noção de designador rígido, como sendo
algo cujo mecanismo de referência aparentava apontar para a descoberta de alguma
coisa nova, intrigante, misteriosa. Com efeito. Mas essa trivialização já
estava presente em nossa análise da rigidez no caso paradigmático dos nomes
próprios, sendo a trivialidade do presente caso mera consequência. Dizer que um
termo deve manter a mesma referência, caso essa referência exista, ainda que as
circunstâncias envolvidas – os mundos possíveis – sejam diversas, não parece
ser no final das contas muito mais do que um lugar-comum, a menos que a
distinção entre rígido e acidental fosse categorial, o que já demonstramos não
ser o caso.
A velha questão da essência
Chegamos com isso à velha questão da essência: aplicamos termos gerais
com base em essências que são comuns a suas instâncias? Pelo que vimos, a questão
não pode ser respondida com um simples sim ou não. O próprio conceito de
essência não é muito claro. Se entendermos por essência a reunião das características
definitórias da natureza intrínseca de um ser (Aristóteles), parece que podemos
linguisticamente entender uma propriedade essencial como uma reunião de
características que são necessárias e suficientes para a aplicação de um
termo geral. Nesse caso a essência expressa pelos termos gerais consiste em
suas regras de atribuição, posto que são elas que constituem as condições
necessárias e suficientes para a atribuição dos termos.
Comparativamente, é possível
sugerir que possamos classificar a variedade de termos gerais de acordo com o grau de necessidade com o qual certas propriedades
precisam satisfazer as condições para a sua aplicação. Quero esclarecer esse
ponto através de casos que vão desde o mais alto grau de necessidade ao mais
baixo, como se segue:
(a) Considere o caso de termos indexicadores como ‘vermelho’
e ‘redondo’. Considere também o caso de termos propriamente descritivadores
como ‘um terno branco’ e ‘uma bola de fogo’, que demandam a satisfação de um
conteúdo descritivo específico. Nos primeiros dois casos, ao menos, parece que
podemos assumir essências que por suposição
são reais, entendidas como indefiníveis condições necessárias e
suficientes para a aplicabilidade dos termos entendidas como como constitutivas
das coisas. Os últimos dois casos dependerão de definições mais ou menos
flexíveis.
(b) Há o caso dos termos nominadores de espécie
natural que possuem propriedade microestrutural essencial, como ‘ouro’. Pode
ser convencionalmente estabelecido que se não se tratar do elemento de número
atômico 76, ele não será propriamente ouro, caso em que também poderíamos assumir
uma essência que é por suposição real.
(c) Termos nominadores de espécie natural como ‘tigre’,
cuja propriedade essencial se encontra por convenção no nível superficial de
pertinência a uma dada espécie geograficamente originada. Aqui parece que se assumirmos
uma essência, ela será mais do tipo chamado por Locke de nominal por sua
dependência de convenções, por melhor que as fundamentemos, sendo assim mesmo
passíveis de alteração.
(d) Termos nominadores de espécie natural como ‘água’
que, como vimos, possuem propriedades fundamentadoras nucleares que podem ser
suficientes, mas que não são necessárias, não podendo nesse sentido serem
consideradas essenciais. Contudo, uma essência (também supostamente) real como H2O
pode ser assumida com respeito aos designata do subconceito expresso
pelo termo ‘óxido de hidrogênio’, por exemplo. (A regra atributiva para o conceito
geral de água, por sua vez, pode ser considerada uma essência nominal, estabelecendo
condições necessárias e suficientes para sua aplicação.)
(e) Termos
gerais nominadores como ‘religião’, ‘jogo’, ‘número’, ‘arte’, ‘conhecimento’, ‘consciência’...
Em graus diversos esses termos correspondem ao que Wittgenstein (em meu juízo de
forma equivocada) analisou como possuindo o que ele chamava de “semelhanças de
família” entre suas aplicações. Nesses
casos não há, ao que parece, uma essência comum, mas aglomerados diversos de
propriedades (o que não implica que elas não possam ser associadas de modo a
formar descrições definicionais). Seja como for, tais conceitos podem ser frequentemente
analisados em subconceitos que por sua vez possuem alguma clara essência comum.
Assim, pode bem ser possível encontrarmos uma essência comum ao catolicismo, ao
jogo de xadrez (e mesmo ao jogo em geral), ao número natural, à arte própria ou
ao conhecimento proposicional.
A admissão das variadas possibilidades mostradas nos casos que vão de (a)
a (e) nos oferece uma possível chave para abordar a disputa entre essencialismo
e anti-essencialismo, pois sugere uma gradação entre ambos os casos. Estou
admitindo aqui um conceito de essência que ou é nominal (e nesse sentido de dicto) ou é apenas bem fundada
e assim assumida como real, embora
não seja descoberta como algo “apoditicamente” real (sendo nesse sentido enfraquecido
um de re que pertence ao de dicto).
Não se trata do realismo essencialista no qual seríamos capazes de nos deparar
com necessidades transcendentalmente metafísicas, posto que o falibilismo
intrínseco as nossas pretensões de conhecimento frustra a admissão de um
essencialismo metafisicamente de re, do essencialismo último, ainda hoje
aspirado por muitos essencialistas. (Talvez possa ser o caso; o problema é que,
parafraseando Karl Popper, mesmo que encontrássemos tal essência metafisicamente
de re, não teríamos qualquer meio de
nos certificarmos de a termos encontrado).
Sobre a colonização da filosofia pela ciência
Quero terminar retornando às considerações metafilosóficas genéricas
com as quais iniciei esse estudo. “Tudo é um”, pensavam os pré-socráticos. A
abrangência de escopo tem sido um traço constitutivo da filosofia em toda a sua
história, de Aristóteles a Hegel, de Wittgenstein a Jürgen Habermas. Mas essa abrangência
tem sido desafiada pela filosofia analítica em sua forma contemporânea, que se
encontra dividida em áreas de investigação no interior das quais se subdividide
em grupos competitivos de teorias cada vez mais especializadas, geralmente
incapazes de dialogar entre si. Em meu juízo a perda de abrangência pode ser tanto
justificada quanto exagerada. Ela está associada ao desenvolvimento exponencial
da ciência, tanto formal quanto empírica, que se reflete no modo como funciona
a própria instituição universitária, em um movimento de excessiva,
insuficientemente fundada desmagificação do mundo (Entzauberung der Welt)
que torna o método científico objeto de uma crença substitutiva quase religiosa,
podendo incluir aspectos positivos e/ou negativos. Como aspecto filosoficamente
negativo eu escolheria a tendência de boa parte da filosofia acadêmica anglo-americana
de reduzir como espúrio o que não se adequa ao uso de parâmetros de produção e de
avaliação que podem servir bem para as ciências duras e seu valor pragmático, mas
que em filosofia tendem a produzir como resultado um cientificismo positivista
e reducionista, que varre pra debaixo do tapete questões legítimas (e.g., as teses destrutivas de W. V. Quine,
como a da indeterminação do significado, da inescrutabilidade da referência e
da indeterminação da tradução... que, a um exame cuidadoso, revelam-se como sofisticados
sofismas radicados em um fundo de preconceituoso reducionismo cientificista e
pragmatista que pode ser bloqueador dos caminhos de uma investigação filosófica
mais ampla e promissora; um outro exemplo é a defesa formalista de Kripke por
Scott Soames, que só convence os já convertidos). Posso
exemplificar melhor o que tenho em mente contrastando duas posições opostas; as
de Scott Soames e Susan Haack.
Para Soames a filosofia encontra-se na era da especialização: a filosofia
contemporânea tem produzido teorias cada vez mais especializadas, que se
desdobram em novas sub-teorias, e assim sucessivamente, sem expectativa de síntese. Um
resultado disso é que, no imenso tear da filosofia contemporânea as visões compreensivas,
que objetivam “esclarecer associações entre conceitos constitutivos de nosso
entendimento do mundo como um todo”, como pensava Ernst Tugendhat, parecem
tornar-se praticamente impossíveis e, na opinião de alguns mesmo desnecessárias.
Susan Haack
alertou-nos sobre os riscos desse modo de pensar. Ela observa que o atual
desenvolvimento da ciência e da tecnologia tem absorvido no pensamento
acadêmico o lugar próprio da filosofia, produzindo uma inaudita erupção de cientismo
no sentido de uma imitação de procedimentos científicos pela comunidade filosófica.
Esse cientismo se evidencia para ela particularmente pela especialização precoce,
fragmentadora do campo de investigação. A especialização, escreve ela, é boa para
a ciência, uma vez que suas ramificações se erigem sobre bases suficientemente
sólidas. Mas a especialização pode ser prejudicial no campo da filosofia, cujas
bases teóricas são elas mesmas especulativas e incertas, podendo ser profundamente
enganosas se tratadas como se fossem fundamentos sólidos e confiáveis. O resultado
dessa especialização precoce pode bem ser o que ela chamou de “uma desastrosa
fragmentação da filosofia”. Seu mal maior é impedir a visão dos eventuais
vínculos de coerência entre as diversas ideias e teorizações filosóficas, retirando
da filosofia a propriedade de consiliência – entendida por ela como a assunção
heurística de que diferentes sub-domínios de nossas investigações devem ser
heuristicamente complementares entre si, derivando sua força da unidade suposta
do que se tem por objeto do conhecimento (considere, como exemplo em ciência, o
suporte mútuo entre evolucionismo darwiniano, genética mendeliana e genética
molecular). Em filosofia, o alcançar de consiliência é pelo menos indicativo de
maior plausibilidade, sendo isso o que dá à confluência de ideias apresentadas
no presente livro, por exemplo, um maior grau de plausibilidade. Em contraposição,
quando falta qualquer possibilidade de comparação com uma ordenação mais geral de
ideias, nossos procedimentos especializados de fundo especulativo se tornam eles
mesmos inavaliáveis. Caímos assim facilmente em uma espécie fútil de argumentação,
na qual perdemos os meios externos de apreciar a relevância daquilo mesmo que
estamos discutindo.
Tanto o diagnóstico inadvertidamente
otimista de Soames quanto o diagnóstico razoavelmente pessimista de Haack são,
creio eu, susceptíveis de um certo grau de relativização. Em favor de Soames
devemos notar que é inegável a necessidade de especulações que requeiram conhecimento
especializado. As ciências se desenvolvem e se ramificam rapidamente. Há, sem
dúvida, muita coisa que só especialistas trabalhando em algum campo específico
são capazes de realizar, sendo inegável a existência de inovações enriquecedoras
– mesmo que especulativas e questionáveis – em questões específicas. Um exemplo
dentre muitos outros tem sido a prolífica discussão sobre a natureza da consciência
por filósofos como D. M. Armstrong, David Rosenthal, Daniel Dennett, Ned Block,
Bernard Baars, Giulio Tononi e vários outros, feita em íntima conexão com a ciência. Não há
nada de errado nessa espécie de investigação, nem em investigações pontuais de
questões secundárias. E
também não há em si mesmo nada de filosoficamente impróprio no expansionismo reducionista
(i.e., generalizador e capaz de simplificar distorcivamente o modo como
as coisas realmente são) a ser encontrado em filósofos formalmente motivados, que
é comum às teorias causais criticadas no presente livro, conquanto elas não
sejam vistas dogmaticamente, mas como desafios filosóficos de inegável originalidade
e força dialética.
Afinal, foi só como resposta a esses desafios que se tornou possível o desenvolvimento
das teorias neodescritivistas esboçadas nesse livro.
Podemos, por mera analogia, comparar a
diferença entre filosofia abrangente, com propósitos sistematizadores, e muito
da filosofia especializada, com a diferença que existe entre física teórica e a
física experimental. A física experimental objetiva avaliar teorias através da
observação empírica; a física teórica examina os resultados daqueles experimentos
com o objetivo de produzir ou corrigir generalizações nomológicas. Sob uma
perspectiva algo similar podemos conceber a distinção entre filosofia especializada
e filosofia abrangente. A filosofia teórica abrangente deveria então,
idealmente, ser capaz de utilizar os resultados interessantes de teorias mais especializadas,
combinando-os na produção de sínteses mais amplas, justificando-se então pela
coerência intrínseca entre as últimas. A síntese ampla possível (penso em Ernst
Tugendhat ou Jürgen Habermas) teria, em contraposição, poder confirmatório com
relação às teorias especializadas de que faz uso, avaliando-as e esclarecendo melhor
o seu papel. Sob essa perspectiva, as duas espécies de trabalho filosófico poderiam
ser, no final das contas, complementares.
Em todo o presente ensaio visei,
através de um exame de teorias variadas, seguir o caminho da abrangência e
reintegração, ainda que restrita à problemática da referência. Meu intento foi
o de proceder de modo sistematizador e não-reducionista, procurando, sempre que
fosse o caso, sustentar uma espécie de equilíbrio reflexivo entre (i) intuições
do senso comum e da linguagem natural, (ii) as razões que a análise lógica nos
permite encontrar, e ainda (iii) possíveis resultados da ciência. Tomo isso
como um procedimento anti-reducionista par
excellence.
Como também tentei demonstrar, a aproximação das questões que enfatiza (criticamente)
intuições de senso comum e da linguagem natural, não nos força a permanecer em
um estágio pré-teorético superficial. O que se inicia como uma vaga apresentação
panorâmica da gramática conceitual pode ser capaz de ser detalhado em direção a
um tratamento inevitavelmente mais sistemático e rigoroso, que ao final torne o
consenso entre especialistas geralmente possível, podendo por essa razão ser chamado
de ciência (e.g., a teoria dos atos
de fala fundada por J. L. Austin).
Creio que um resultado flagrante
da sistematização aqui esboçada é o de tornar possível uma reconfiguração mais
consistente e plausível de nossas ideias acerca dos mecanismos de referência. Dela
emerge um quadro mais complexo, no qual uma maneira de ver aparentemente
ultrapassada volta ao centro do palco, embora transfigurada, enquanto a outra
maneira de ver, para alguns talvez insofismável, acaba por ter seu seu papel
reescrito como provedora de métodos e desafios profundamente originais e dialeticamente
instigantes, senão imprescindíveis ao desenvolvimento das teses aqui defendidas,
ainda que isso não seja suficiente para torná-la verdadeira.
Ver Wittgenstein 1984b sec. 68. O problema com o
conceito de semelhanças de família é que ele só exige que entre diferentes
aplicações de um predicado seja preservada alguma semelhança, sem estabelecer seus
limites. O resultado é que, como qualquer coisa tem semelhança com qualquer outra
coisa sob algum ponto de vista, não há como estabelecer os limites de aplicação
de um termo com semelhanças de família. Isso nos poria diante de uma dificuldade
insuperável. Só o recurso a um paradigma de condições e a uma regra
meta-descritiva que vige sobre as condições constitutivas do paradigma (como no
exemplo da religião) permite-nos superar essa dificuldade.