II
O IDEALISMO PLATÔNICO
Em
comparação com os pré-socráticos Platão é um mundo. Ele e seu aluno Aristóteles
foram os dois grandes filósofos do mundo antigo, comparáveis a Hume, Kant e
Hegel na filosofia moderna. Eles foram os primeiros a construir grandes
sistemas filosóficos tentando explicar especulativamente o mundo como um todo e
o lugar que o homem nele ocupa. Ao fazê-lo desenvolveram amplas visões de mundo
(Weltanschauungen), ainda hoje influentes. Eles viveram em um tempo no
qual a cultura grega já começara a declinar devido à guerra do Peloponeso, uma
prolongada guerra fratricida entre as cidades-estados, que acabou com a tomada
de Atenas por Esparta. Aqui a história parece ter dado razão à observação de
Hegel de que a filosofia é como a coruja de Minerva, que só alça voo ao
anoitecer.
Platão (428-348 a.C.) pertenceu à
aristocracia ateniense. Era para ter-se tornado um político. Mas decepcionou-se
com as atrocidades da democracia ateniense, principalmente com a condenação de
Sócrates. Ele tentou influenciar politicamente Dionísio, o tirano grego de
Siracusa, o que quase lhe custou a vida. Acabou se conformando em viver o resto
de sua longa existência como professor na academia por ele fundada. As maiores
influências no pensamento de Platão foram os filósofos pré-socráticos, principalmente
Parmênides e Heráclito. Mas a principal influência foi a de Sócrates, de quem
foi admirador e discípulo.
1
Sócrates.
É difícil explicar uma personalidade como a de
Sócrates (469-399). Ele nunca deixou palavra escrita, segundo a lenda porque
queria que a própria força de seu dizer se imprimisse nas mentes das pessoas. Acredita-se
que na época cerca de dois terços de Atenas era constituído de escravos. Assim,
mesmo com poucos recursos, o honrado cidadão Sócrates, aposentado depois de
haver lutado na guerra e servido ao estado, pôde se dar ao luxo de viver pelas
ruas de Atenas discutindo filosofia. Segundo Nietzsche, um crítico sarcástico, o
responsável por tudo teria sido sua esposa Xantipa. Para se livrar da presença
dessa mulher difícil, quarenta anos mais jovem, que lhe dava muito trabalho e
nenhum prazer, Sócrates resolveu ir para as ruas de Atenas onde, conversando
com as outras pessoas, desenvolveu seu talento para a dialética. A mãe de
Sócrates era uma parteira. Sócrates não a decepcionou. Ele tornou-se, segundo suas
próprias palavras, um parteiro de ideias, que ele fazia nascer à fórceps das
cabeças das pessoas com as quais conversava.
Os interesses de Sócrates eram muito diferentes
dos interesses dos filósofos pré-socráticos. Enquanto aqueles tinham a
cosmologia como o centro de suas preocupações, Sócrates se interessava pela
ética. Ele defendia uma forma de intelectualismo moral. Para ele a moral é uma
forma de conhecimento radicada na natureza humana. Por isso, a má ação é sempre
resultado de alguma forma de ignorância. Quem age mal é uma pessoa que não sabe
fazer uma adequada estimativa do que tem a ganhar ou perder com sua ação.
Ninguém faz o mal sabendo-se ultimamente culpado. A pessoa espera obter algum ganho como a
riqueza, o poder ou o prazer, não percebendo que com isso ela está causando um dano
maior a si mesma. Sócrates acreditava que a perda da virtude é um mal que é
feito à integridade psicológica do agente. Por isso é melhor sofrer do que
praticar a injustiça. A conclusão de Sócrates foi a de que uma pessoa só é
capaz de ser feliz se for virtuosa. Não que a virtude seja o mesmo que a
felicidade. Mas é que a verdadeira felicidade pressupõe a virtude.
O
quanto Sócrates estava certo é uma questão difícil de ser respondida, uma vez
que o conceito de felicidade (digamos, a satisfação suficiente de necessidades
razoavelmente concebidas) é muito vago e não sabemos como mensurá-la. Além
disso, o que dizer de pessoas que possuem pouca ou nenhuma consciência moral, psicopatas
que não tem sentimento de culpa quando fazem coisas erradas? Não poderiam elas
ser felizes na ausência de virtudes? Ou a espécie de felicidade por elas
alcançada seria de ordem inferior?
Para além da ética, uma outra contribuição
de Sócrates foi a introdução do problema dos universais na filosofia. Ele
teria sido a primeira pessoa a sugerir que só podemos dizer um de muitos se
recorrermos a universais, ou seja, a conceitos gerais. Assim, podemos atribuir
justiça a muitas e muito diversas ações, bondade às mais diversas pessoas,
beleza a coisas as mais diversas. Mas isso só deve ser possível porque temos um
conceito geral do que seja a justiça, o bem e a beleza. Além disso, se somos
capazes de comparar, por exemplo, dizendo que uma ação é mais justa que outra,
é porque devemos ter algum modelo de justiça que permita a comparação. Como
consequência, o objetivo de Sócrates era investigar, não as coisas justas, boas
e belas, mas o que é a justiça, o bem, a beleza. Ele queria encontrar
definições para termos como ‘virtude’, ‘coragem’, ‘justiça’, ‘conhecimento’, ‘beleza’,
‘amizade’, etc.
Sócrates é um personagem constante nos
diálogos platônicos, sempre em busca de definições de termos gerais de importância
filosófica. Nesses diálogos encontramos sempre perguntas da forma “O que é X?”,
onde X está no lugar de um termo conceitual-geral que desempenha alguma função
central em nosso entendimento do mundo. Assim, a pergunta poderá ser “O que é a
virtude?” (Protágoras). “O que é a coragem?” (Laques), “O que é a
justiça?” (República), “O que é o conhecimento?” (Teeteto), e
assim por diante.
Por seu
questionamento moral Sócrates incomodava as pessoas que detinham poder em
Atenas. Ele incomodava os políticos por recusar-se a participar de ações
desonrosas. E incomodava os sofistas, que cobravam para ensinar a arte da
oratória às pessoas de modo a fazê-las obter sucesso na vida pública, uma vez
que ele mesmo nada cobrava pelos seus ensinamentos e desprezava os valores
mundanos. Decidiram livrar-se dele. Sócrates foi acusado de desdenhar os deuses
e corromper a juventude, devendo ser por isso condenado a morte. O objetivo teria
sido apenas o de fazer com que ele fugisse de Atenas. Mas como ele não foi
embora, tiveram de submetê-lo a um julgamento público. No final os juízes concluíram
que ele era culpado e que deveria ser condenado a morte, mas que teria o
direito de decidir por uma pena alternativa que não fosse a morte, mas que
fosse suficientemente severa, como a de ser banido de Atenas.
Sócrates reagiu argumentando que não só não
era culpado, como fez grandes favores ao estado através de ações e ensinamentos.
Por conseguinte, não deveria ser punido, mas recompensado. O que ele merecia era
viver dos favores do estado pelo resto da vida como os heróis da polis. Afrontado,
o júri não teve outra opção senão condená-lo à morte por envenenamento com
cicuta.
Platão foi testemunha desses acontecimentos e
podemos atribuir à influência de Sócrates seu ensinamento de que a ideia do bem
é a mais elevada de todas – algo semelhante ao sol que ilumina tudo o mais. A
ética de Platão era como a de Sócrates. Quando agimos mal nós fixamos nossa
atenção em algum bem, esquecendo-nos das consequências, que para nós mesmos costumam
ser piores.
2
As
ideias. Voltemos a Platão. O centro
radial de seu sistema, do qual emergem as explicações, foi sua doutrina das
ideias. Essa doutrina surgiu como uma maneira de conciliar a ideia proposta por
Heráclito de que o mundo se encontra em constante mudança com a doutrina proposta
por Parmênides de que o verdadeiro objeto de nosso conhecimento, o ser, é
imutável. A solução de Platão consiste na admissão da existência de dois mundos
completamente separados um do outro: o mundo visível e o mundo
inteligível. O mundo visível é o das aparências sensíveis, um mundo no qual
tudo se encontra em constante mudança, tal como Heráclito pensava. O verdadeiro
mundo, porém, é o mundo inteligível, que é o mundo do ser eterno e imutável. Esse
mundo inteligível do ser é para Platão constituído de ideias (idéa)
ou formas (eidos), elas mesmas eternas e imutáveis. E o
conhecimento só é possível porque tem por objeto, não as coisas do mundo
visível, em constante mudança, mas as próprias ideias, eternas e imutáveis.
Esse mundo das ideias era para ele o único verdadeiramente real. Os dois
mundos, o das ideias e o dos sentidos existem e sempre existirão paralelamente
um ao outro, ou seja, em completa independência um do outro.
Exemplos típicos de ideias são as do bem, da
beleza, da justiça, do conhecimento, da coragem, da amizade. Essas são ideias
sublimes, cuja definição foi buscada nos diálogos. Mas há também ideias mais
vulgares, como as de cama, homem, água ou fogo. Para Platão existe uma hierarquia
das ideias, a mais elevada de todas sendo a ideia do bem, que como o sol
ilumina todas as outras. Para ele, sem sabermos o que é o bem não seremos
capazes de compreender e definir as outras ideias de maneira adequada. Abaixo
do bem há ideias como a de ser, identidade, semelhança, movimento... e ainda as
da justiça, beleza e virtude. E ainda mais abaixo temos ideias como as de
homem, cama, água e fogo. Ideias que estão embaixo implicam nas que estão em
cima. Por exemplo: a ideia da justiça implica na ideia do bem. Não obstante, Platão
nunca conseguiu estruturar essa hierarquia de um modo coerente.
Para Platão as ideias possuem numerosos
atributos[1]: elas não se encontram nem
no espaço nem no tempo, mesmo assim sendo objetivas. Elas são essências
eternas, imutáveis, indivisíveis, absolutas, sublimes. Diversamente do ser de
Parmênides e das archai dos pré-socráticos elas são transcendentes em
relação à physis, nada possuindo de material. A transcendentalidade
das ideias é uma inovação original de Platão: ele as apresentou como existindo
em uma realidade suprassensível, para além da dimensão física, rompendo
definitivamente com o naturalismo dos pré-socráticos.
Note-se que no grego antigo a palavra ‘idéa’
significava forma, aparência, o aspecto visual de uma coisa. Foi Platão que lhe
deu o sentido filosófico de uma essência abstrata transcendente. Modernamente a
palavra ‘ideia’ diz respeito a entidades psicológicas que se encontram no
espaço e no tempo. Se digo “Acabei de ter uma ideia”, a ideia é algo que
aconteceu há alguns segundos e em um lugar específico, qual seja, na minha
cabeça. Mas as ideias de Platão não são entidades psicológicas. Elas são
entidades objetivas transcendentes, às quais todos nós podemos, em princípio, ter
acesso.
Além disso as ideias platônicas são entidades
singulares. Só existe uma ideia do belo, só uma ideia da justiça, uma da
virtude, uma do bem. É por isso que a ideia de um número não pode ser a mesma
coisa que os números, dado que os números se repetem e se adicionam – não é
possível que na soma 2 + 2 = 4 duas ideias do número 2 se juntem. Sendo
objetivas e singulares, as ideias são objetos, mesmo que abstratos. Para
demonstrar isso Platão usava o recurso de substantivar ou nominalizar
predicados que designavam ideias. Assim, no enunciado “Sócrates é sábio” a
ideia de sabedoria comparece de modo secundário. Nós só nos referimos mesmo à
sabedoria quando colocamos a palavra no lugar do sujeito em um enunciado como
“A sabedoria é uma virtude”, nominalizando o predicado. Aqui a palavra
‘sabedoria’ se refere primariamente a um objeto abstrato: a ideia de sabedoria.
Para evidenciar esse ponto Platão usava em grego expressões que podem ser
traduzidas como “o X-em-si-mesmo”, “a X-idade”, ou “aquela coisa própria que é
X”.
Outra propriedade das ideias é que elas são autopredicativas.
O belo-em-si-mesmo é belo, a justiça-em-si-mesma é justa. As muitas coisas que
são ditas belas são belas de modo aspectual. Sócrates era feio de rosto, mas possuía
beleza interior. Mas o belo em si mesmo é belo em todos os aspectos.
Por serem unitárias as ideias desempenham o
papel fundamental de universais, permitindo-nos dizer o mesmo de
muitos, em outras palavras, permitindo a espécie de síntese característica
da predicação. Como Platão escreveu: “nós temos o hábito
de considerar uma simples ideia ou forma no caso das variadas multiplicidades
para as quais damos o mesmo nome.”[2] Isso fica claro quando consideramos enunciados do tipo
Fa, como “Sócrates é sábio”, “Parmênides é sábio”, “Heráclito é sábio”.
Podemos predicar a sabedoria de muitas coisas. Segundo Platão essas coisas
participam da sabedoria no sentido de que elas são cópias ou imitações da Sabedoria-em-si-mesma.
Seguindo o tratamento que Sócrates deu aos
conceitos, Platão considerava as ideias passíveis de definição. Por
exemplo, existem muitos triângulos com as mais variadas formas. A ideia de
triângulo não possui uma forma específica. Mas ela pode ser definida: “o
triângulo é um polígono com três lados”. Filósofos analíticos contemporâneos
falariam de análise conceitual ao invés de definição, o que demonstra que a
assim chamada tradição analítica, em seus melhores momentos, não se distingue
de uma continuação mais rigorosa da filosofia tradicional.
Particularmente importante é a maneira pela
qual as ideias se relacionam às coisas do mundo visível. Platão tinha duas
metáforas: a da participação (méthexis) e a da cópia ou imitação
(mímesis). A ideia é uma coisa única. Mas muitas coisas do mundo visível
podem participar dela, ou, se preferirem, copiá-la. Assim, as muitas coisas
belas participam da ideia de beleza, assim como as muitas coisas justas
participam da ideia de justiça. Ou então dizemos que coisas sensíveis belas e
justas contém cópias imperfeitas das ideias de beleza e de justiça
respectivamente. Para Platão nós só podemos conhecer o mundo sensível porque
ele contém cópias, mesmo que imperfeitas, das ideias ou formas. O substrato material
não ideativo, não formal do mundo sensível é completamente incognoscível.
3
Reminiscência.
Mas por que razão o mundo visível é constituído de
cópias das ideias? Platão respondeu especulativamente a isso através de um mito
da formação do mundo. Para ele, tanto o mundo das ideias como o mundo sensível
sempre existiram. Mas eles existiam em paralelo e o mundo sensível era um caos
primevo incognoscível e indefinível, não podendo ser considerado real. O
Deus-Demiurgo, guiado pela ideia do bem, decidiu tomar como modelos as ideias
do mundo inteligível e por meio delas dar forma à matéria caótica do mundo
primevo, de modo a produzir indivíduos que fossem cópias, ainda que imperfeitas,
das ideias perfeitas. O Demiurgo pode ser entendido como o símbolo da razão
operando no universo. É só por formarem cópias imperfeitas das ideias que as
coisas do mundo sensível se tornam reais e, portanto, cognoscíveis. As ideias ou
formas doam realidade às coisas que enformam.
Essa maneira de entender o mundo sensível
permitia a Platão oferecer uma explicação inteiramente racionalista da
aquisição do conhecimento. Ele acreditava na ideia da transmigração das almas
ensinada pelos místicos pitagóricos. Para ele enquanto as nossas almas
estiveram vagando no mundo das ideias ou enquanto pertenciam a outros seres
vivos elas tiveram acesso ao mundo das ideias. Mas uma vez incorporadas elas
foram como que apagadas, de modo que perdemos a consciência delas. Contudo, a
experiência nos leva a rememorar as ideias. Quando temos a experiência sensível
de coisas no mundo visível, por exemplo, de ações justas, somos levados a
rememorar a ideia de justiça com a qual tivemos contato no mundo das ideias ou em
outras encarnações.[3]
A conclusão impressionante é que todo nosso conhecimento não passa de reminiscência
(anamnesis). Usando o conceito kantiano de conhecimento a priori,
a ser entendido como aquele conhecimento que não é proveniente da experiência,
mesmo que dela indiretamente dependa para ser constituído, podemos dizer que
todo o conhecimento humano é para Platão a priori. No diálogo Menon
ele ofereceu uma comprovação de sua teoria no exemplo de um escravo que é
induzido por Sócrates a desenhar na areia a prova de um teorema de geometria.
Para Platão ele só conseguiu essa proeza por ter se recordado da geometria
euclidiana que sua alma já conhecia desde sempre.
Hoje
estamos em condições de oferecer uma explicação diferente. Nós diremos que o processo seletivo da evolução
natural produziu em nossas mentes a capacidade inata de aplicação geometria
euclidiana, que usamos o tempo inteiro ao agirmos no mundo ao nosso redor. A
experiência pode nos fazer tomar consciência dos procedimentos de aplicação da
geometria euclidiana e de como provar um teorema a partir de axiomas. Mas a
espécie humana aprendeu essa geometria através de um processo de seleção
natural que é em última análise empírico.
4
Objeções
tradicionais. Na primeira parte
do diálogo Parmênides, um estrangeiro apresenta ao jovem Sócrates uma
série de importantes objeções à doutrina das ideias que ele não consegue
responder. Parece que Platão continuou acreditando em sua doutrina das ideias
depois disso, uma vez que ele continuou a mencioná-las e a tê-las em alta conta.[4] No que se segue irei expor
as principais objeções tradicionalmente levantadas contra a doutrina.
Uma primeira objeção foi a de que se
admitimos que termos gerais remitem a ideias, então assim como admitimos as
ideias de bem e de virtude, precisamos admitir ideias como as de cabelo, lama e
sujeira. Só que essa é uma admissão repugnante ao jovem Sócrates, que a rejeita
sem saber respondê-la.
Há também uma objeção de simetria contra a
metáfora da cópia. Como nota Parmênides, se as coisas brancas são como a ideia
de brancura, então a ideia de brancura deve ser como as coisas brancas. Mas
isso não é correto. A favor de Platão é possível responder que a relação de semelhança
não é realmente simétrica. Afinal, embora a face que vejo no espelho seja
reflexão de minha face, a minha face não é reflexão da face que vejo no
espelho. A relação de cópia é de semelhança por derivação.
Uma terceira objeção diz respeito à participação.
Se as coisas precisam participar da ideia, então ela perde a sua unidade e
homogeneidade. A imagem proposta por Parmênides é a de vários marinheiros
carregando uma vela sobre as costas. Outra imagem seria a do bolo de passas.
Imaginando que as coisas particulares sejam como os marinheiros ou como as
passas no bolo, cada qual participa de parte da ideia e não do todo e a ideia
precisa dividir-se por partes, cada qual contendo coisas diversas. A
alternativa é dizer que a ideia se multiplica pertencendo por completo a cada
coisa que dela participa. Seja por divisão ou por multiplicação a ideia perde a
sua unidade e homogeneidade original. Sócrates tenta retrucar sugerindo que a
ideia deve ser como o sol que ilumina o dia e todas as coisas que nele se
encontram.[5] Essa é uma bela metáfora,
mas não sabemos como resgatá-la.
Ainda outra
objeção presente no Parmênides foi mais tarde reapresentada por
Aristóteles como o argumento do terceiro homem. Se os homens particulares H1,
H2… Hn são todos eles cópias de HI, que é a ideia de homem, então parece que é
preciso haver uma nova ideia de homem HI1, da qual tanto os homens
particulares quando a ideia de homem são cópias. Mas se for assim, então
precisaremos de ainda outra ideia para garantir a última relação e assim por
diante. Aqui seria ainda possível responder que o argumento deixa de se aplicar
se admitirmos que a ideia de homem não é autopredicativa: se ela não for um
homem. Dizer que a ideia de homem é autopredicativa é tratá-la como uma coisa
visível entre outras. A ideia é algo sui generis.
Vale ainda lembrar uma objeção importante
feita por Aristóteles contra a doutrina das ideias. Trata-se da objeção de que
Platão duplica os mundos.[6] Além do mundo empírico
precisamos de um mundo inteligível, contendo um número igualmente grande de
ideias. Mas isso não é parcimonioso. A solução de Aristóteles será a de colar o
mundo inteligível ao mundo sensível, de maneira a formar um único mundo. Por
isso uma maneira trivial de distinguirmos a ontologia de Platão da ontologia
proposta por Aristóteles consiste em dizer que para Platão, no caso de o mundo físico
deixar de existir o mundo das ideias permanecerá existindo; mas para
Aristóteles, se o mundo físico deixar de existir, como ele desaparecerá também
o próprio mundo das ideias ou formas.
5
Objeções
contemporâneas. Há também objeções
contemporâneas à doutrina. Quero considerar três. A primeira é algo que poderia
ocorrer a qualquer estudante de lógica simbólica: Platão não poderia ter conhecimento
da revolucionária lógica predicativa desenvolvida por Gottlob Frege no final do
século XIX. Por isso ele confundia nossa gramática de superfície com a
gramática lógica no que diz respeito à nominalização de predicados. Para o que Platão
sabia, um enunciado como (1) “Sócrates é sábio” teria a mesma estrutura que (2)
“A sabedoria é uma virtude”, ou seja, tanto (1) quanto (2) teriam uma estrutura
do tipo Sujeito-Predicado ou Fa (onde a está para o sujeito e F
para o predicado). Ora, como Platão conseguia encontrar os referentes de
sujeitos como ‘Sócrates’ no mundo visível, e mesmo os referentes de pessoas e
ações virtuosas, mas não encontrava no mundo visível nenhum referente para o
termo ‘sabedoria’ na posição do sujeito, ele concluiu que deve existir um mundo
puramente inteligível no qual se encontra a sabedoria-em-si-mesma, ou seja, a
ideia da sabedoria.
A lógica dos predicados, por sua vez, nos
sugere algo muito diferente. Em sua interpretação mais intuitiva, um termo como
‘a sabedoria’ é apenas uma forma nominalizada do predicado ‘...é sábio’,
remetendo por isso a ele. Sabendo disso, quando analisamos completamente os
dois enunciados acima vemos que embora as suas estruturas gramaticais sejam
idênticas, as suas estruturas ou formas lógicas fundamentais (aquilo que realmente
somos capazes de pensar através) são completamente diversas. A frase “Sócrates
é virtuoso” tem a estrutura ou forma lógica do tipo Fa. Mas a frase “A
sabedoria é uma virtude” apenas parece ter a estrutura lógica de Fa.
O que com ela realmente queremos dizer é: “Tudo o que é sábio é virtuoso”, ou
ainda: “Para todo x, se x é sábio, então x é virtuoso”.
Ou, por fim, chamando ‘...é sábio’ de ‘S’ e ‘...é virtuoso’ de ‘V’, e ‘para
todo x’ de ‘(x)’, podemos simbolizar apresentando a forma lógica da frase como:
(x) (Sx → Vx)
Mas
isso nada mais tem a ver com a forma lógica Fa instanciada por “Sócrates
é sábio”. Aqui o sujeito ‘A sabedoria’ deixou de existir. Ao falarmos da
sabedoria estávamos na verdade apenas nos reportando de maneira elíptica a
todas as pessoas sábias, gente de carne e osso como Sócrates, Platão, etc. que
existe no mundo visível. E a propriedade de “ser sábio” pode muito bem ser a
propriedade experiencial do comportamento, das palavras e processos mentais
dessas pessoas, o que não parece ter nada misterioso. É assim que Platão foi
confundido pela gramática de superfície da linguagem, sendo levado a
hipotetizar entidades controversas. Essa análise tem a virtude de satisfazer o
princípio da parcimônia conhecido como a navalha de Ockham, segundo o qual as
entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (Entia non sunt
multiplicanda praeter necessitatem).
Um outro erro lógico elementar consistiu em
não distinguir predicados relacionais como ‘ser grande’ e ‘ser igual’. Para
Platão um objeto sensível pode ser grande e também pequeno enquanto só a ideia
do grande é sempre grande, dado que ideias são autopredicativas. Mas ‘...é
grande’ é um predicado que só faz sentido quando aplicado na relação entre
objetos: um filhote de elefante é pequeno em relação a um elefante, mas é
grande em relação a um rato... Trata-se aqui do mesmo predicado relacional ‘é
grande’ aplicado a duplas diferentes de objetos visíveis e não mais a um único
objeto, daí resultando que um mesmo objeto pode ser pequeno e grande em
asserções diferentes. Se a ideia do grande é grande em relação a tudo, como a
doutrina das ideias parece sugerir, então ela deve ser infinitamente grande. Nem
a metáfora da cópia nem a da participação parecem capazes de resgatar essa
dificuldade.
Uma objeção muito diversa veio de Nietzsche,
que foi um crítico mordaz da cultura cristã que ele via como negadora do mundo
(ver cap. XVI, sec. 7). Para Nietzsche Sócrates foi o primeiro cristão e o
cristianismo é o platonismo do povo. Como notei, no início do século V a.C. Atenas
havia caído sob o jugo de Esparta, seguindo um caminho de decadência do qual nunca
mais se recuperou. Platão pertencia à antiga nobreza prejudicada no processo. Para
Nietzsche ele Platão foi um escapista, o prisioneiro do que ele chamou de ideal
ascético, através do qual buscava suportar as duras vicissitudes de uma
realidade que se encontrava além de seu controle. Ele criou então, para si e
seus discípulos, a ilusão de que esse amargo mundo sensível que tão pouco nos
traz é pouco mais do que aparência, deslocando a realidade para um mundo
puramente intelectual, que seria seu fantasioso mundo das ideias. Esse transcendente
mundo das ideias passaria a possuir a realidade pura – a plenitude apolínea do
ser – com a qual ele não desejava ter de se confrontar no mundo empírico. Freud
pode ser aqui chamado para reforçar Nietzsche. Platão nunca se casou e chegou a
afirmar que o intercurso sexual só deveria ser mantido com vistas à reprodução...
A psicanálise freudiana veria na negação do mundo sensível uma justificação
inconsciente para a rejeição dos impulsos eróticos. Aristóteles, que rejeitava
a existência de um mundo separado de ideias, teve duas esposas consecutivas e um
casal de filhos.
A Terceira objeção poderia vir da filosofia
terapêutica de Wittgenstein, para quem muito de nossa filosofia consiste na
produção de “nós do pensamento”, de “castelos de carta” com palavras, e que a
função crítica do filósofo é desatar os nós do pensamento ao desfazer os
castelos de carta da linguagem, trazendo as palavras de suas férias metafísicas
de volta para o seu labor cotidiano (cap. XVII, sec. 3)
Para um filósofo como Wittgenstein, o
conceito platônico de ideia seria irresgatável. Platão inventa um novo sentido
para a palavra ‘idéa’, atribuindo-lhe objetividade e máxima realidade fora do
mundo visível. Como não há suporte intuitivo nem justificação suficiente para
essa inversão de valores semânticos, a ideia platônica corre o risco de não
passar de uma fata morgana intelectual. Se a introdução da noção de
ideia for teoreticamente produtiva, ela poderá ser útil e aceitável. Caso
contrário, ela estará apenas roubando seu sentido da linguagem comum,
reduzindo-se, quando considerada propriamente, a um conceito ininteligível.[7] Veremos no capítulo XIX
que pode haver uma alternativa ontológica mais razoável à disposição.
Para testar a influência dos sentidos
ordinários sugiro invertermos as sílabas dos termos: ideia passa a ser aiedi,
forma passa a ser amrof, o uno passa a ser onu, o ser passa a ser
res, a realidade passa a ser edadilaer. Em seguida substituímos
as palavras no texto platônico. Assim, ao invés de uma frase como “as ideias
são a causa da realidade de todas as coisas e o uno é a causa da realidade de
todas as ideias” termos a frase “as saiedis (ou samrofs) são a causa da edadilaer
de todas as coisas e o onu é a causa e a essência de todas as saiedis (ou
samorfs). A primeira frase é obscura, a segunda é ridícula.
Uma última tentativa de dar sentido às
ideias seria dizer que elas possuem um status similar ao das leis da
natureza. Como tais elas seriam objetivas, imutáveis. A lei da gravidade, por
exemplo, precisa ser distinguida de nossas expressões conceituais dessa lei na
física (por Newton e por Einstein) que podem sempre serem falsas. Por que não
poderíamos dizer o mesmo de ideias como as de conhecimento e justiça? Ainda
assim, que sentido teria atribuir realidade a essas estruturas conceituais? Não
seriam elas inseparáveis da maneira como as coisas sensíveis são?
6
Conhecimento.
Além da contribuição para a ontologia através da
doutrina das ideias, Platão contribuiu para a teoria do conhecimento ou
epistemologia através de sua teoria dos graus de conhecimento e de sua análise
das ideias de conhecimento e crença. A primeira é apresentada nas bem
conhecidas analogias da linha dividida e na alegoria da caverna. Contudo, quero
me restringir aqui a algumas observações sobre sua análise da ideia de
conhecimento e de suas consequências epistemológicas, principalmente pelo fato
de que ela demonstra o quanto a filosofia tradicional ainda é capaz de alcançar
problemas contemporâneos.
No diálogo Teeteto Platão analisa a
ideia de conhecimento. A conclusão de sua análise é que a ideia de conhecimento
se define como sendo a de uma crença verdadeira à qual se adiciona um logos.
Mas logos é uma palavra grega multiplamente ambígua, o que termina
fazendo o diálogo terminar inconcluso. Mais tarde a palavra ‘logos’ foi
substituída pelas palavras ‘justificação’ ou ‘evidência’, mais precisas, definindo
o conhecimento como a crença verdadeira justificada. Essa
definição foi aceita por Kant e atravessou intacta mais de dois mil anos de
filosofia. Desde a década de 1960, porém, essa definição tradicional tem sido
objeto de críticas devido à invenção de contraexemplos que parecem demonstrá-la
insuficiente. No que se segue quero abrir parênteses para expor as críticas,
analisar melhor a definição já sugerida por Platão e, por fim, mostrar que após
um aprofundamento ela é capaz de sobreviver incólume aos contraexemplos.
Comecemos com a exigência de que a crença
seja verdadeira. Se uma pessoa sabe que p (sendo p uma proposição qualquer), é
preciso que p seja verdadeira. Uma pessoa pode saber que a Lua tem pedras, pois
isso é verdadeiro, mas ninguém pode saber que a Lua é feita de queijo suíço, posto
que isso é falso. Também não é possível que uma pessoa saiba que p e não
acredite que p verdadeira. É contraditório dizer: “Sei que ensino filosofia,
mas não acredito nisso”. Se não acredito é porque não sei, ao menos em
circunstâncias normais. Finalmente, se uma pessoa sabe que p então ela é
tipicamente capaz de justificar, ou seja, supostamente capaz de apresentar
evidência justificadora razoável para sua afirmação.[8] Por exemplo: se digo que
sei que Villa Lobos compôs as Bachianas Brasileiras é porque sou capaz
de justificar isso dizendo que assisti uma apresentação das Bachianas no
Youtube. Mesmo que em muitos casos eu tenha esquecido a justificação de algo
que sei, se eu sei é porque de alguma forma alguma vez apreendi a justificação.
Por exemplo, Maria diz saber que Fernando Pessoa escreveu a frase “Tudo vale a
pena se a alma não é pequena”, mas não se recorda de como chegou a saber disso.
Mas basta que alguém abra um livro de poemas de Pessoa para se certificar de
que Maria se encontra bem justificada em dizer que sabe, pois a coincidência é
aqui demasiado improvável. O que não parece possível é que uma pessoa prescinda
por completo de qualquer experiência justificacional aceitável ou se valha de uma
justificação que não seja reconhecível por outros como sendo razoável. Não
posso dizer, por exemplo: “Estive na Lua enquanto dormia porque me recordo
claramente disso”, pois nossa comunidade epistêmica não consideraria essa
justificação razoável.
Até
aqui as objeções são contornáveis. Contudo, a definição tradicional de
conhecimento como crença verdadeira justificada foi desafiada através de alguns
exemplos sugeridos por Edmund Gettier, que em um pequeno artigo publicado em
1963 apresentou casos nos quais parecia haver crença verdadeira justificada,
mas sem conhecimento. Desde então uma enorme quantidade de artigos foi escrita
na tentativa de remendar, substituir ou eliminar de vez o insight platônico.
Eis um contraexemplo do tipo Gettier:
Suponhamos que ontem Maria ouviu da boca do professor Pedro que hoje ele
estaria pela manhã na universidade para avaliar uma defesa de tese. Como Pedro
é petreamente sério, Maria está certa de que sabe que ele se encontra agora na
universidade. E de fato, ele se encontra agora na universidade. Maria tem,
assim, uma crença verdadeira justificada. Mas na verdade ela não sabe! E a
razão é que durante a madrugada os três filhos adolescentes de Pedro sofreram
um sério acidente de carro e se encontram agora hospitalizados. No início da
manhã Pedro suspendeu todos os seus compromissos para hoje e foi para o
hospital. Contudo, por mero acaso ele realmente se encontra na universidade,
pois ele veio rapidamente à sua sala pegar alguns documentos. Maria tem uma
crença verdadeira razoavelmente justificada, mas não sabe.
Embora existam dezenas de soluções
inteligentes para o problema, elas parecem todas insatisfatórias. De minha
parte não tenho dúvidas de que a solução existe, é bastante intuitiva e
preserva o essencial da definição tradicional. Ela foi vagamente aventada desde
o início, mas só foi suficientemente desenvolvida por Robert Fogelin[9] e aperfeiçoada por mim
mesmo.[10] Para chegar a ela basta notarmos
que em nenhum contraexemplo do tipo Gettier a justificação é suficiente para
tornar a proposição verdadeira. Assim, dizer que o confiável Pedro havia
afirmado ontem que viria hoje à universidade... quando adicionado ao conhecimento
do fato de que seus três filhos foram acidentados e que por causa disso ele
suspendeu todos os seus compromissos... pode ser razoável, mas deixa de ser uma
justificação suficiente para tornar verdadeiro que ele se encontra agora na
universidade. Mas se outra pessoa diz que Pedro se encontra na universidade por
tê-lo visto passar no corredor há alguns minutos, isso é uma justificação
razoável e suficiente, pois realmente torna a proposição verdadeira. A solução
consiste, pois, em exigir que a terceira condição, a condição de justificação, seja
suficiente para tornar a proposição verdadeira da perspectiva de um sujeito
avaliador e no momento de sua avaliação. O sujeito avaliador é sempre
alguém que tem tanta ou mais informação sobre o fato do que a pessoa que
pretende ter conhecimento, o que inclui as razões para considerar a
justificação por ela dada insuficiente para a verdade. No caso acima, o sujeito
avaliador é uma pessoa que sabe que os filhos de Pedro foram acidentados e que
ele suspendeu seus compromissos para hoje na universidade... Esse sujeito dirá
que Maria não sabe, posto que a justificação por ela dada, mesmo que razoável,
não é para ele suficiente para tornar sua afirmação verdadeira. Se ela tivesse
dito, por exemplo, que viu Pedro estacionar o seu carro alguns minutos antes,
sua justificação seria plenamente aceita pelo sujeito avaliador. Concluímos,
pois, que:
Uma pessoa S sabe que p se e somente se:
(i)
é verdade
que p,
(ii)
a pessoa S
acredita que é verdade que p,
(iii)
a
justificação que a pessoa S oferece para p é considerada por um sujeito avaliador
A (que pode ser até mesmo o próprio S em um momento posterior) em um tempo t
como suficiente para tornar a proposição p verdadeira.
Há
muito mais a se dizer sobre isso, mas me parece certo de que bem aplicada essa
formulação resolve qualquer problema do tipo Gettier. Em suma: a definição de
conhecimento aventada por Platão sempre foi essencialmente correta, não demandando
revisão, mas aprimoramento.
7
Quero agora resumir a psicologia de Platão. Ele tomou dos pitagóricos a
sugestão de que a alma (psiqué) possui três partes: uma parte apetitiva
outra volitiva e outra racional.[11] A parte apetitiva
concerne ao desejo, ao apetite, ao impulso instintivo. A parte volitiva
concerne à emoção, ao espírito, à coragem, à energia. E a parte racional
concerne ao pensamento, ao entendimento, ao intelecto, à razão. As primeiras
duas são compartilhadas com os animais, sendo a última propriamente humana.
(Daí a definição grega do homem como animal racional.)
Para elucidar a interação entre
essas três partes Platão sugeriu a imagem de uma biga celeste com um condutor –
que seria a razão – e ainda dois cavalos, um bom – a alma volitiva – que quer
alçar-se aos céus, e outro mau – a alma apetitiva – que dá muito trabalho ao
seu condutor e precisa ser chicoteado.
Platão associa essas partes da
alma ao que os gregos tinham como sendo as quatro virtudes cardinais. A virtude
da parte racional é a sabedoria. A virtude da alma volitiva é a coragem.
Da união da parte apetitiva com a parte volicional surge a virtude da temperança.
Finalmente, da harmonia de cada uma dessas partes da alma de modo a formar um
todo temos a virtude da justiça.
A teoria da tripartição da alma
tem equivalentes contemporâneos. Um primeiro deles se encontra na divisão
freudiana do psiquismo de forma mais refinada em três instâncias: a do Id
(Es), das pulsões instintivas, a do Ego (Ich), que possui
a vontade, sendo o responsável pelo controle motor, e a do Super-Ego
(Über-Ich) responsável pela repressão e controle das pulsões.[12] Parece claro que a parte
apetitiva da alma corresponde ao Id, a parte volitiva corresponde ao Ego e a
parte racional corresponde, ao menos em parte, ao Super-Ego, que tem como parte
o Ideal-do-Ego, herdeiro das aspirações de realização dos pais.
Há também diferenças. Uma delas
é o grande papel que Freud atribui ao inconsciente, tanto no Ego quanto no
Super-Ego. Outra é que em Freud o Ego é o condutor, parcialmente
racional, mediando entre a razão e as pulsões instintivas, enquanto para Platão
o condutor deve ser a razão, ou seja, algo que corresponde em grande parte ao
Super-Ego.
Há, por fim, uma razoável fundamentação
neurocientífica para a tripartição platônica da alma. Trata-se da distinção proposta
pelo grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean em sua teoria do
cérebro triúno.[13]
Segundo essa teoria, nosso cérebro é constituído por três computadores
inter-relacionados e evolucionariamente originados. O arquiencéfalo,
correspondente ao bulbo raquidiano e ao cerebelo, responsável pelas disposições
instintivas do organismo, como a fome e o desejo sexual... O mesencéfalo é
constituído pelo sistema límbico e responsável pelas emoções e motivações. Há
por fim o neoencéfalo, que constitui o córtex e que no ser humano ocupa cerca
de 78% da massa encefálica, sendo responsável pelo pensamento, pela
racionalidade e pela consciência. A teoria do cérebro triúno não deixa, pois,
de demonstrar a existência de divisões neurofisiológicas suficientemente
próximas daquilo que Platão havia sugerido como as partes apetitiva, volitiva e
racional.
Vemos que a neurofisiologia contemporânea
suporta a teoria da tripartição da alma e que a psicanálise freudiana a
desenvolve e corrige, o que por sua vez confirma a tese de que a filosofia
antecipa a ciência. Ainda mais curioso é o fato de que essas teorias não parecem
ter substituído por completo a teoria da tripartição da alma. Falar de
substituição sem mais pode nos fazer recair em cientismo, na crença de
que essa ou aquela teoria científica (ou supostamente científica) seja capaz de
tomar o lugar epistêmico da filosofia tout court.
Platão acreditava na
imortalidade da alma, o que em uma época pré-científica era uma ideia menos
implausível do que na nossa. Ele acreditava que a alma vive no corpo como em
uma prisão: O corpo é como a casa de um caramujo, a alma, devendo ser por ela
carregado até a sua libertação final. O corpo é a origem dos males. Ele é a
sede de preocupações, doenças, paixões e fantasias, que conduzem aos conflitos
que na sociedade conduzem às guerras. Para ele se a alma é boa nesse mundo, ela
irá viver após a morte em alguma maravilhosa ilha bem aventurada, mas se ela é
má, ela será castigada no Tártaro, que era o nome que os gregos tinham para o
inferno, posto que só o sofrimento purifica a alma. Tudo isso é platonismo.
8
Filosofia política. Na antiguidade e durante o
período medieval os diálogos políticos que receberam maior atenção foram O
Timeu e As Leis, escritos na velhice de Platão. Foi só depois do
renascimento que a importância da República foi descoberta. Nesse
diálogo colossal, pela primeira vez na história um estado utópico é experimentalmente
construído; um estado que deveria ser capaz de realizar plenamente a sua função
própria de prover a felicidade de seus cidadãos.
A questão fundamental que
percorre a República é sobre como devemos definir a justiça. Em uma das
definições iniciais, a justiça acontece quando cada um recebe o que merece. Mas
isso nos diz muito pouco. Após serem testadas várias sugestões implausíveis, Sócrates
sugere que a justiça seja investigada em grande escala. Como a justiça se dá sempre
dentro de uma sociedade, nós devemos procurar saber qual será a forma de um
estado ideal, pois o estado ideal será aquele no qual reina a justiça. Sendo
assim, uma vez conhecido o estado ideal, dele poderemos mais facilmente
depreender o que é a justiça.
Ao considerar como é uma cidade-estado
Platão observa que ela tem como princípio operante a divisão do trabalho.
Ninguém pode fazer bem todas as coisas. Assim, cada segmento da sociedade se
especializa em fazer uma coisa e troca as coisas que faz pelas coisas de que
precisa.
A divisão de trabalho resulta de
uma divisão de classes. Ele teve a ideia de fazer uso da teoria da tripartição
da alma para dividir os cidadãos do estado ideal em três classes, segundo o
predomínio das partes apetitiva, volitiva e racional da alma. As pessoas com
predomínio da parte apetitiva da alma devem formar a classe trabalhadora dos
agricultores e artesões, o que inclui mercadores e qualquer coisa que envolva alguma
atividade física laboral. (Em nosso mundo atual isso incluiria a classe dos
comerciantes e mesmo a dos trabalhadores da indústria.) As pessoas com predomínio
da parte volitiva da alma formam a segunda classe, a dos auxiliares, ou seja, a
dos militares encarregados da defesa da cidade-estado, indispensável no mundo
antigo. E as pessoas com predomínio da parte racional da alma formam a terceira
classe, a dos governantes-filósofos. No pensamento de Platão, assim como a
parte racional da alma deve ter domínio sobre as partes apetitiva e volitiva, a
classe que representa a parte racional do estado, representando a virtude da
sabedoria, deve ter domínio sobre as classes que representam a busca de honras e
de lucros.
Para que as pessoas não se sentissem
ressentidas ao serem escolhidas como pertencentes a classes inferiores, mesmo
que isso fosse feito para seu próprio bem, os governantes recorriam a uma “nobre
mentira”, que é a de que por decisão dos deuses, os trabalhadores tem uma alma
de bronze, os militares tem alma de prata, e os filósofos tem almas de ouro.
A favor de Platão pode ser notado que em seu
sistema há tanto igualdade de oportunidades quanto mobilidade social, coisas
que frequentemente nos faltam hoje. Até os vinte anos todos devem estudar
educação física e artes no sentido amplo (os gregos aprendiam a ler através da
poesia). E o aprendizado não deve ser forçado, pois nesse caso as pessoas
esquecem. Ele deve ser baseado no puro prazer de aprender. Quanto à mobilidade
social, ele lembrou que os pais não podem por antecipação saber a predominância
da parte da alma que terão os filhos. Pode ocorrer que o filho de um guardião
tenha a alma de bronze, ou que o filho de um agricultor tenha uma alma de ouro.
Por isso, após um período inicial de educação universal deve haver um primeiro
exame, quando os jovens completam vinte anos. Quem for reprovado ficará pertencendo
à classe trabalhadora, tornando-se agricultor, artesão, comerciante ou coisa do
gênero. Quem for aprovado continuará aprendendo ciências como matemática e
astronomia por mais dez anos, até um segundo exame, quando completarem trinta
anos. Só quem for aprovado nesse segundo exame terá o direito de aprender
filosofia. Para Platão a filosofia não pertence ao início, mas ao final do
processo de aprendizado. Com efeito, mesmo hoje é desejável que o filósofo,
enquanto filósofo, seja possuidor de uma ampla gama de pressupostos para ser
capaz de desempenhar adequadamente seu oficio.
É interessante o que Platão tinha a dizer
sobre os prazeres e bens materiais. Os cidadãos pertencentes à classe dos
guardiões e auxiliares não podem ter posses. Eles devem receber o suficiente
para viverem confortavelmente e de maneira igualitária. Eles não beberão em
copos de ouro, pois o ouro eles deverão trazer em suas almas. Isso é essencial
para que não haja corrupção, nem ambição demeritória. Quem poderá adquirir
posses serão as pessoas da classe dos agricultores, artesãos, comerciantes... Elas
poderão acumular riquezas em medida suficiente, pois pela inclinação de suas
naturezas não buscam integridade nem honras, mas principalmente os prazeres
físicos. O estado zelosamente administrado pelos guardiões será benéfico para a
classe apetitiva. A ideia aqui implícita, de que a riqueza não deve ser usada
para corromper a política, é perfeitamente atual.
Mulheres terão os mesmos direitos dos homens
na escala social; elas poderão ir para a guerra e se tornarem guardiãs. Entre
os auxiliares e guardiões não haverá casamento, o sexo será controlado com objetivos
principalmente eugênicos, filhos não desejados sendo postos à parte. As
crianças serão educadas em creches, sem saberem quem são os seus pais. Ele
acreditava que isso implementaria maior senso comunitário de união entre os
membros da classe... Entre os quarenta e os cinquenta anos, além de estudarem
ciências, os guardiões deveriam ganhar experiência do mundo juntando-se à
classe trabalhadora. Só depois dos cinquenta anos os guardiões poderiam concorrer
para que um deles se tornasse o rei, que seria então um rei-filósofo, capaz de
saber o que pode proporcionar a boa vida aos seus concidadãos.
Platão acreditava que só quando os governantes
forem sábios e o rei for filósofo uma república terá cidadãos felizes. Ele bem
sabia que seu estado ideal é apenas um experimento imaginativo. Mas esse
experimento pode ser uma maneira de orientar pessoas com relação à ideia de
justiça.
O estado idealizado por Platão como
produzindo o máximo de felicidade para os seus cidadãos seria um estado justo.
Mas o que caracteriza a justiça que ele encerra? Ora, ela se caracteriza pela comunhão
do indivíduo com a comunidade, pela harmonia entre as classes, uma harmonia que
resulta de cada um fazer aquilo que melhor lhe compete, recebendo como
recompensa aquilo que por natureza mais deseja.[14] O estado ideal proposto
por Platão é projetado para permitir que seus membros floresçam naquilo que
eles possuem de melhor de modo a maximizar a cooperação social. E um homem
justo é aquele que ocupa o lugar que lhe é próprio na sociedade. A resultante harmonia
entre as partes de sua alma fará dele uma pessoa justa, refletindo assim a
justiça social como a harmonia entre as classes do estado. Por ser a justiça um
conceito social, não faz sentido as pessoas se perguntarem se são justas em uma
sociedade injusta. O grande exercício de pensamento que que foi a construção de
um estado supostamente perfeito possibilita ao seu autor uma explicação
plausível da natureza da justiça.
Mas essa não é a única conclusão importante
do diálogo. Já vimos que a virtude da parte racional da alma é a sabedoria, a
virtude da alma volitiva é a coragem, a virtude da alma apetitiva unida à parte
volitiva é a temperança, e que a harmonia das partes da alma dá lugar à virtude
da justiça. Como consequência, cada classe do estado ideal incorpora em si uma
das virtudes consideradas cardinais: os guardiões incorporam a sabedoria;
os auxiliares incorporam a fortaleza ou coragem; a classe trabalhadora
incorpora a temperança. E a justiça consiste, como dissemos, na
harmonia entre as classes, no fato de que cada classe perfaz a tarefa que lhe é
apropriada.
Finalmente, com base nessas ideias Platão
distinguiu cinco tipos de constituição política que tendem a se seguir uma à
outra, decrescendo em virtude: monarquia (ou aristocracia), timocracia,
oligarquia, democracia e tirania. A melhor forma de
constituição era para ele a monarquia ou aristocracia, que preserva todas as
virtudes sob o timão a sabedoria. O estado ideal concebido por Platão pertence
a esse primeiro tipo, sob o suposto de que o monarca e os aristocratas sejam sábios.
Quando os governantes deixam de ser sábios, o que temos é a timocracia: aqui o
governo é feito por militares, pelos que mantém a virtude da fortaleza ou coragem.
A timocracia tende a degenerar, dando lugar a uma forma de governo ainda
inferior, qual seja, a oligarquia. Esta ainda conserva alguma virtude de
temperança, mas perdeu a virtude da coragem. A oligarquia degenera-se em
democracia, que se caracteriza pela rejeição da temperança, ainda mantendo a
ideia de justiça. Na democracia as pessoas agem por amor ao lucro, pois o
dinheiro é o que permite a satisfação dos desejos materiais. Por fim, como as
pessoas na democracia perderam a temperança, elas são facilmente enganadas por
um líder demagogo que se alça ao poder e acaba por aprisionar os cidadãos em um
meio totalitário. É assim que a democracia se degenera em tirania, que é o
governo de déspotas que perderam até mesmo a ideia de justiça.
9
Objeções. Karl Popper responsabilizou Platão, Hegel e Marx por
rejeitarem a democracia, influenciando as pessoas no sentido de fazê-las crer
em estados totalitários. Popper nos lembrou que Platão e Heráclito pertenciam à
velha aristocracia grega que havia perdido o poder para a democracia. Dois de
seus tios foram mortos nessa disputa ao defenderem o governo dos trinta tiranos.
A herança aristocrática de Platão o fazia sentir-se ressentido com a
democracia.
A favor de Platão é preciso
lembrar que a República foi um trabalho especulativo que tinha como fio
condutor a tentativa de aclarar o que deve ser entendido como justiça em uma
sociedade. Ele via a especulação filosófica como aquilo que ela é capaz de ser:
a busca da verdade como uma forma de “entretenimento” intelectual. Diversamente
de Marx, ele já havia por experiência própria perdido a ambição de mudar o
mundo através da filosofia.
Afora isso, a democracia grega que condenou
Sócrates à morte e que mais tarde forçou Aristóteles a se exilar de Atenas de
maneira a salvar a sua vida, pouco tinha a seu favor. E a crítica feita por
Platão à democracia ateniense como o governo de uma multidão de pessoas cujo
objetivo é a satisfação de desejos materiais, sem as virtudes de temperança,
fortaleza e sabedoria, justifica-se ainda hoje como uma crítica às formas
atuais de democracia. Philip Kitcher, um filósofo contemporâneo, defende que as
pessoas precisam ser educadas para a democracia, e que ela precisa ser cientificamente
refinada de modo a possibilitar aos eleitores escolherem como governantes
aqueles cujas ações realmente correspondam aos seus interesses, o que muitas
vezes não acontece.[15]
O maior clássico da filosofia
política do século XX foi o livro de John Rawls intitulado Uma teoria da
justiça.[16]
Para que possamos conceber uma sociedade verdadeiramente justa Rawls idealizou
uma famosa experiência em pensamento. Imagine que você tenha várias
alternativas de sociedade para escolher e que você deva escolher entrar em uma
delas. Você conhece a natureza humana e sabe como as diversas sociedades
funcionam. Mas você não sabe como irá entrar em uma dessas sociedades: se rico
ou pobre, se jovem ou velho, se inteligente ou tolo, se branco ou negro... Você
deverá escolher entrar na sociedade coberto pelo que Rawls chamou de “véu da
ignorância”. Nesse caso, que sociedade você escolheria? A resposta é que você irá
preferir entrar em uma sociedade social-democrática no sentido da em que a
expressão é usada com respeito ao sistema dos países nórdicos... Pois essa será
a sociedade onde, em qualquer situação, você estará mais seguro. Você não
escolherá entrar em uma sociedade sem mobilidade como a da Roma antiga, onde
terá boas chances de entrar como escravo, não lhe sendo jamais possível mudar
seu destino.
Uma questão é saber quantos de
nós, sob o véu da ignorância, escolheriam entrar na sociedade ideal proposta
por Platão. Desconfio que não seriam muitos. Apenas para começar, suponha que
você tenha nascido com as partes racional e apetitiva da alma desenvolvidas,
mas que a parte volitiva seja bastante fraca. Nesse caso você não terá lugar na
sociedade ideal de Platão, pois não estará bem nem entre os agricultores nem
entre os guardiões. Não há lugar na sociedade platônica para a combinação de
ouro com ferro.
10
Arte.
No incômodo capítulo X da República Platão
condena a arte. De acordo com ele a arte é mímesis, que significa
‘cópia’. Mas como as coisas visíveis já são cópias das ideias e a arte é cópia
dessas cópias, trata-se de algo demasiado imperfeito e enganador. Platão
aceitava em sua república apenas poesias e hinos patrióticos. Como foi
exatamente essa a forma de arte que as mais lamentáveis ditaduras do último século
apoiavam, é muito difícil concordar com ele nesse ponto.
Uma razão externa para discordarmos de
Platão consiste no fato de que os artistas se encontram em geral voltados para
o mundo sensível: seu material de trabalho é a vida como ela é, sem anestesias
ou consolações filosóficas. Voltados como estavam para experiências emocionais
e sensórias, eles eram os maiores críticos da ascese platônica. Se o estudo das
matemáticas a facilitava, a experiência estética a dificultava.
Mas existem razões internas para
discordarmos de Platão, concernentes a limitações em seu argumento. Para
esclarecer o que há de mais falso na concepção de arte de Platão quero fazer
uma comparação com o que o filósofo R. G. Collingwood distinguia como sendo três
formas de arte: a arte como entretenimento, a arte sacra e o que ele chamou de arte
própria, a mais elevada forma de arte, que pode ter aqui como modelo a
tragédia grega ou Shakespeare. Para ele a única forma de arte verdadeiramente merecedora
do nome seria a arte própria, cujo objetivo era o de despertar a consciência:
reavivar nas pessoas aquilo que elas procuram esconder de si mesmas e que por
isso adoece a sociedade. Como ele mesmo escreveu:
Conhecer
a nós mesmos é a fundação de toda a vida que se desenvolve além do nível de
experiência meramente físico. Uma consciência verdadeira dá ao intelecto uma
fundação firme; uma consciência corrompida força o intelecto a construir sobre
areia movediça.[17]
Por isso o artista deve ser
um profeta:
...não
no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ele conta à sua
audiência, sob o risco de desagradá-la, os segredos de seus próprios corações.
(...) Como porta-voz de sua comunidade, os segredos que ele precisa pronunciar
são os dela mesma. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma comunidade
conhece o seu próprio coração; e por falhar em conhecê-lo, uma comunidade
engana-se a si mesma sobre uma matéria em relação a qual a ignorância significa
morte... A arte é a medicina comunitária para a pior doença da mente, que é a
corrupção da consciência.[18]
Quero
exemplificar essa função terapêutica da arte lembrando de uma música cantada
por Billie Holiday, intitulada “Estranho Fruto” (Strange Fruit). Traduzo
livremente[19]:
Árvores do sul dão um estranho fruto
Sangue nas folhas, sangue nas raízes
Corpos negros balançando à brisa do sul
Estranho fruto pendurado sob os álamos.
Cena pastoral do galante sul
Olhos abaulados, bocas retorcidas
Perfume de magnólia, doce e fresco
E o repentino odor de carne queimada.
Um fruto para os corvos arrancarem
Para a chuva lavar e o vento sugar
Para o sol apodrecer e da árvore tombar
Aqui se dá uma estranha e amarga colheita.
O
estranho fruto são dois negros que foram linchados e enforcados sob uma árvore
na Carolina do Sul, em meio a uma multidão festiva que se orgulhava do feito. Não
havia leis proibindo o linchamento. A cantora foi perseguida e até mesmo presa
por ter tido a ousadia de continuar cantando a música. Mas a sua letra amplia o
sentimento de injustiça ao denunciar pelo antagonismo de uma metáfora, com
irônica elevação de alma, um cenário cruel e desumano.
Aqui não encontramos nada que possa ser
identificado com uma cópia da realidade, diversamente, digamos, de um artigo de
jornal noticiando o acontecimento. O que percebemos é uma maneira de se denunciar
uma injustiça concreta colocada em contraposição flagrante ao ideal de justiça
– algo cuja força é ampliada pela polissemia da metáfora.
Quero oferecer apenas mais dois outros
exemplos de arte própria. A primeiro diz respeito a Machado de Assis, tal como
ele é interpretado pelo crítico literário Roberto Schwarz. Segundo Schwarz, a
segunda fase da obra machadiana é uma sofisticada crítica social, tão sutil que
passou quase despercebida. Isso acontece com o personagem Brás Cubas, o defunto
autor da peça literária incomparável que se chama As memórias póstumas de
Brás Cubas. Ele é um homem rico, inteligente, perspicaz e crítico, orgulhando-se
de ter aurido seus valores no mais progressista pensamento europeu da época.
Mas ao mesmo tempo ele se gaba de nunca ter ganhado a vida com o suor do
próprio corpo, arranja como amante uma senhora casada e dá importância a toda
espécie de superficialidade, como quando rejeita uma pretendente ao saber que
ela é manca ou mesmo quando inventa um emplastro supostamente capaz de curar
qualquer tipo de doença com o objetivo único de obter notoriedade. Algo
semelhante é o caso do mimado Bentinho, o personagem moralizador do romance Dom
Casmurro, cuja mãe era por ele considerada um exemplo ímpar de doçura e
bondade, mas que vivia do aluguel de escravos. Para Schwarz Machado de Assis
está ironizando as contradições de nossa classe abastada, que em suas
convicções se pretende progressista, mas que em suas ações está disposta a ceder
a toda espécie de baixeza.
Meu último exemplo são os filmes fortes de
Cláudio Assis, acima de todos O baixio das bestas, em que ele denuncia a
desumanidade nos canaviais pobres de Pernambuco. Como ele mesmo comentou a
respeito: “As piores coisas acontecem diante dos olhos de todos e ninguém faz nada
para impedir”.
Em todos os casos acima não há qualquer intenção
de copiar a realidade, a menos que seja para denunciá-la, opondo a ela a ideia
mesma de justiça que tanta importância tinha para Platão.
[1] Ver Fedon 74-78. República
V, 476, 479.
[2] República 596 a-b.
[3] Menon, 81 c-d.
[4] Ver Sofista 246 a-e; Timeu
51b-e.
[5] Parmênides 131b.
[6] Aristoteles, Metafísica A 9, 990b.
[7] Veremos no capítulo XIX que pode haver uma alternativa
ontológica não comprometida com o ascetismo platônico.
[8] Digo “tipicamente” porque no
caso do conhecimento dos assim chamados enunciados básicos a
justificação é desnecessária. Assim, se digo “Estou com dor de cabeça” não
preciso nem tenho como justificar, pois sei disso por experiência imediata.
[9] Ver Robert
Fogelin: Pyrronian Reflexions on Knowledge and Justification (Oxford:
Oxford University Press 1994).
[10] Minha versão da mesma solução, que é formalmente mais
rigorosa, foi primeiramente publicada sob o título de “A Perspectival
Definition of Knowledge”, in Ratio 23 (2): 2010, pp. 151-167. Uma versão
corrigida encontra-se no capítulo V de meu livro Lines of Thought (Newcastle
Upon Tyne: CSP 2014), cap. 5.
[11] República 435e- 441c,
[12] Sigmund Freud: O Ego e o Id e outros trabalhos
(1923-1925) (vol. 19) (Rio de Janeiro: Imago 1996).
[13] Paul D. McLean: The
History of Neuroscience in Autobiography, ed. L. R. Squire (London:
Academic Press 1988), vol. II, cap. 20.
[14] República IV, 433, 443 d-e.
[15] Philip Kitcher: Science, Truth, and
Democracy (Oxford: Oxford University Press 2003).
[16]
John Rawls: A Theory of Justice (Cambridge MA: Harvard University Press
1971).
[17] R. G. Collingwood: The Principles of Art (Oxford: Oxford
University Press) p. 284.
[18] R. G. Collingwood:
Ibid., p. 336.
[19] Eis o poema
original de Abel Meerpool:
“Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the Southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolia sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is a fruit for the crow to pluck
For the rain to wither, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop.”