Draft para o livro "Introdução histórica à filosofia", a ser lançado.
II
O IDEALISMO PLATÔNICO
Podemos facilmente perdoar uma criança por ter medo do
escuro; a verdadeira tragédia da vida é que os adultos tenham medo da luz.
Platão
Em
comparação com os pré-socráticos Platão é um mundo. Ele e seu aluno Aristóteles
foram os dois grandes filósofos do mundo antigo, comparáveis em influência a Kant
e Hegel na filosofia moderna. Eles foram os primeiros a construir grandes
sistemas filosóficos tentando explicar especulativamente o mundo como um todo e
o lugar que o homem nele ocupa. Ao fazê-lo desenvolveram amplas visões de mundo
(Weltanschauungen), ainda hoje influentes. Eles viveram em um tempo no
qual a cultura grega já começara a declinar devido à guerra do Peloponeso, uma
prolongada guerra fratricida entre as cidades-estados, que acabou com a tomada
de Atenas por Esparta. Aqui a história parece ter dado razão à observação de
Hegel de que a filosofia é como a coruja de Minerva, que só alça voo ao
anoitecer.
Platão (428-348 a.C.) pertenceu à
aristocracia ateniense. Era para se ter tornado um político. Mas decepcionou-se
com as atrocidades da democracia ateniense, em especial com a condenação de
Sócrates. Ele tentou influenciar politicamente Dionísio, o tirano grego de
Siracusa, o que quase lhe custou a vida. Acabou se conformando em viver o resto
de sua longa existência como professor na academia por ele fundada. As maiores
influências no pensamento de Platão foram os filósofos pré-socráticos,
principalmente Parmênides e Heráclito, além da tradição mística do pitagorismo.
Mas a principal influência foi a de Sócrates, de quem foi admirador e discípulo.
1
Sócrates.
É difícil explicar uma personalidade como a de
Sócrates (469-399). Ele nunca deixou palavra escrita, segundo a lenda porque
queria que a própria força de seu dizer se imprimisse nas mentes das pessoas. Ele
era pobre. Acredita-se que na época cerca de dois terços de Atenas era constituído
de escravos. Assim, mesmo com poucos recursos, o honrado cidadão Sócrates, aposentado
depois de haver lutado na guerra e servido ao estado, pôde se dar ao luxo de
viver pelas ruas de Atenas discutindo filosofia. Segundo Nietzsche, um crítico sarcástico,
a culpa teria sido de sua esposa Xantipa. Para se livrar da presença dessa
mulher difícil, quarenta anos mais jovem, que lhe dava muito trabalho e nenhum
prazer, Sócrates resolveu ir às ruas de Atenas onde, conversando com as outras
pessoas, desenvolveu seu talento para a dialética. A mãe de Sócrates era uma
parteira. Sócrates não a decepcionou. Ele tornou-se, segundo suas próprias
palavras, um parteiro de ideias, que fazia nascer à fórceps das cabeças das
pessoas com as quais conversava.
Os interesses de Sócrates eram muito diferentes
dos interesses dos filósofos pré-socráticos. Enquanto aqueles tinham a
cosmologia como o centro de suas preocupações, Sócrates se interessava pela
ética. Ele defendia uma forma de intelectualismo moral. Para ele a moral é uma espécie
de conhecimento radicada na natureza humana. Por isso, a má ação é sempre
resultado de alguma forma de ignorância. Quem age mal é uma pessoa que não sabe
fazer uma adequada estimativa do que tem a ganhar ou perder com sua ação.
Ninguém faz o mal sabendo-se ultimamente culpado. A pessoa espera obter algum ganho como a
riqueza, poder ou prazer, não percebendo que com isso ela está causando um dano
maior a si mesma. Sócrates acreditava que a perda da virtude é um mal que é
feito à integridade psicológica do agente. Esse é o caso de tiranos que
escravizam seu povo. Eles são infelizes porque são forçados a viver à mercê
daquilo que há de mais baixo e desprezível em si mesmos. Por isso é melhor
sofrer do que praticar a injustiça. A conclusão de Sócrates foi a de que uma
pessoa só é capaz de ser feliz se for virtuosa. Não que a virtude seja o mesmo
que a felicidade, mas é que a verdadeira felicidade pressupõe a virtude.
O
quanto Sócrates estava certo é uma questão difícil de ser respondida. O que
dizer, por exemplo, de pessoas que possuem pouca ou nenhuma consciência moral, psicopatas
que não tem sentimento de culpa por fazerem coisas erradas? Não poderiam essas
pessoas ser felizes na ausência de virtudes? Uma resposta seria a de que a
espécie de felicidade por elas alcançada é de ordem inferior, pois fazer o bem
pode ser uma fonte de felicidade cuja riqueza é vedada aos que são maus.
Para além da ética, uma outra contribuição
de Sócrates foi a introdução do problema dos universais na filosofia. Ele
teria sido a primeira pessoa a sugerir que só podemos dizer o mesmo de muitos se
recorrermos a universais, aqui entendidos no sentido de conceitos gerais.
Assim, podemos atribuir justiça a muitas e muito diversas ações, bondade às
mais diversas pessoas, beleza a coisas as mais diversas. Mas isso só deve ser
possível porque temos conceitos gerais do que seja a justiça, o bem e a beleza.
Além disso, se somos capazes de comparar, por exemplo, dizendo que uma ação é
mais justa que outra, é porque devemos ter algum modelo de justiça que permita
a comparação. Como consequência, o objetivo de Sócrates era investigar, não as
coisas justas, boas e belas, mas o que é a justiça, o bem, a beleza. Ele queria
encontrar definições para termos como ‘virtude’, ‘coragem’, ‘justiça’,
‘conhecimento’, ‘beleza’, ‘amizade’, etc.
Sócrates é um personagem constante nos
diálogos platônicos, sempre em busca de definições de termos gerais de interesse
filosófico. Nesses diálogos encontramos sempre perguntas da forma “O que é X?”,
onde X está no lugar de um termo conceitual-geral que desempenha alguma função
central em nosso entendimento do mundo. Assim, a pergunta poderá ser “O que é a
virtude?” (Protágoras). “O que é a coragem?” (Laques), “O que é a
justiça?” (República), “O que é o conhecimento?” (Teeteto), e
assim por diante.
Por seu
questionamento moral Sócrates incomodava as pessoas que detinham poder em
Atenas. Ele incomodava os políticos por recusar-se a participar de ações
desonrosas. E incomodava os sofistas, que cobravam para ensinar a arte da
oratória às pessoas de modo a fazê-las obter sucesso na vida pública, uma vez
que ele mesmo nada cobrava pelos seus ensinamentos e desprezava os valores
mundanos. Decidiram livrar-se dele. Sócrates foi acusado de desdenhar os deuses
e corromper a juventude, devendo ser por isso condenado a morte. O objetivo teria
sido apenas o de fazer com que ele fugisse de Atenas. Mas como ele não foi
embora, tiveram de submetê-lo a um julgamento público. No final os juízes concluíram
que ele era culpado e que deveria ser condenado a morte, mas que teria o
direito de decidir por uma pena alternativa que não fosse a morte, mas que
fosse suficientemente severa, como a de ser banido de Atenas.
Sócrates reagiu argumentando que não só não
era culpado, como fez grandes favores ao estado através de ações e ensinamentos.[1] Por conseguinte, não
deveria ser punido, mas recompensado. O que ele merecia era viver dos favores
do estado pelo resto da vida, tal como acontecia com os benfeitores da polis.
Afrontado, o júri não teve outra opção senão condená-lo à morte por
envenenamento com cicuta.
Platão foi
testemunha desses acontecimentos e podemos atribuir à influência de Sócrates seu
ensinamento de que a ideia do bem é a mais elevada de todas – algo semelhante
ao sol que ilumina tudo o mais. A ética de Platão era como a de Sócrates.
Quando agimos mal nós fixamos nossa atenção em algum bem, esquecendo-nos das
consequências, que para nós mesmos costumam ser piores.
2
As
ideias. Voltemos a Platão. O centro
radial de seu sistema, do qual emergem as explicações, foi sua doutrina das
ideias. Essa doutrina surgiu como uma maneira de conciliar a ideia proposta por
Heráclito de que o mundo se encontra em constante mudança com a doutrina proposta
por Parmênides de que o verdadeiro objeto de nosso conhecimento, o ser, é
imutável. A solução de Platão consistiu na admissão da existência de dois
mundos completamente distintos: o mundo visível e o mundo inteligível.
O mundo visível (ou sensível) é o das aparências sensíveis, um mundo no qual
tudo se encontra em constante mudança, tal como Heráclito supunha. O verdadeiro
mundo, porém, é o mundo inteligível, que é o mundo do ser, eterno e imutável. Esse
mundo inteligível do ser é para Platão constituído de ideias (idéa)
ou formas (eidos), elas mesmas eternas e imutáveis. E o
conhecimento só é possível porque tem por objeto, não as coisas do mundo
visível, em constante mudança, mas as próprias ideias, eternas e imutáveis.
Esse mundo das ideias era para ele o único verdadeiramente real. Os dois
mundos, o das ideias e o dos sentidos, existem e sempre existirão paralelamente
um ao outro, ou seja, em completa independência um do outro.
Exemplos típicos de ideias são as do bem, da
beleza, da justiça, do conhecimento, da coragem, da amizade. Essas são ideias
sublimes, cuja definição foi buscada nos diálogos. Mas há também ideias mais
vulgares, como as de cama, homem, água e fogo. Para Platão existe uma hierarquia
das ideias, a mais elevada de todas sendo a ideia do bem, que como o sol
ilumina todas as outras. Para ele, sem sabermos o que é o bem não seremos
capazes de compreender e definir as outras ideias de maneira adequada. Abaixo
do bem há ideias como a de ser, identidade, semelhança, movimento... e ainda as
da justiça, beleza e virtude. E ainda mais abaixo temos ideias como as de
homem, cama, água e fogo. Ideias que estão embaixo implicam nas que estão em
cima. Por exemplo: a ideia da justiça implica na ideia do bem. Não obstante, Platão
nunca conseguiu estruturar essa hierarquia de um modo coerente.
Para
Platão as ideias possuem numerosos atributos[2]: elas não se encontram nem
no espaço nem no tempo, sendo ainda assim objetivas. Elas são essências únicas,
eternas, imutáveis, absolutas, indivisíveis, puras, sublimes. Diversamente do
ser de Parmênides e das archai dos pré-socráticos elas são
transcendentes em relação à physis, nada possuindo de material. A transcendentalidade
das ideias é uma inovação original de Platão: ele as apresentou como existindo
em uma realidade suprassensível, para além da dimensão física, rompendo
definitivamente com o naturalismo dos pré-socráticos.
Note-se que no grego antigo a palavra ‘idéa’
significava forma, aparência, o aspecto visual de uma coisa. Foi Platão que lhe
deu o sentido filosófico de uma essência abstrata e transcendente. Modernamente
a palavra ‘ideia’ diz respeito a entidades psicológicas que se encontram no
espaço e no tempo. Se digo “Acabei de ter uma ideia”, a ideia é algo que
aconteceu há alguns segundos e em um lugar específico, qual seja, na minha
cabeça. Mas as ideias de Platão não são entidades psicológicas. Elas são
entidades objetivas transcendentes, às quais todos nós podemos, em princípio, ter
acesso.
Além disso, as ideias platônicas são entidades
singulares. Só existe uma ideia do belo, só uma ideia da justiça, uma da
virtude, uma do bem. É por isso que a ideia de um número não pode ser a mesma
coisa que os números, dado que os números se repetem e se adicionam: não é
possível que na soma “2 + 2 = 4” duas ideias do número 2 se juntem. Sendo
objetivas e singulares, as ideias são objetos, mesmo que abstratos. Para
demonstrar isso Platão usava o recurso de nominalizar predicados que
designavam ideias. Assim, no enunciado “Sócrates é sábio” a ideia de sabedoria comparece
de modo secundário. Nós só nos referimos diretamente à sabedoria quando colocamos
a palavra no lugar do sujeito em um enunciado como “A sabedoria é uma virtude”,
nominalizando o predicado. Aqui a palavra ‘sabedoria’ se refere primariamente a
um objeto abstrato: a ideia de sabedoria. Para evidenciar esse ponto Platão
usava em grego expressões que podem ser traduzidas como “o X-em-si-mesmo”, “a
X-idade”, ou “aquela coisa própria que é X”.
Outra propriedade das ideias é que elas são autopredicativas.
A justiça-em-si-mesma é ela mesma justa e seria uma blasfêmia acreditar que o
sagrado-em-si-mesmo não é sagrado.[3] Uma razão para ele ter
pensado assim é que as coisas possuem as ideias de modo imperfeito e aspectual.
Muitas coisas são belas de modo aspectual: Sócrates era feio de rosto, mas possuía
beleza interior. Mas o belo-em-si-mesmo deve ser belo em todos os aspectos.
Por serem unitárias as ideias desempenham o
papel fundamental de universais, permitindo-nos dizer o mesmo de
muitos, em outras palavras, permitindo a espécie de síntese característica
da predicação. Como Platão escreveu: “nós temos o hábito
de considerar uma simples ideia ou forma no caso das variadas multiplicidades
para as quais damos o mesmo nome.”[4] Isso fica claro quando consideramos enunciados do tipo
Fa, como “Sócrates é sábio”, “Parmênides é sábio”, “Heráclito é sábio”.
Podemos predicar a sabedoria de muitas coisas. Segundo Platão essas coisas
participam da sabedoria no sentido de que elas são cópias ou imitações da Sabedoria-em-si-mesma.
Seguindo o tratamento que Sócrates deu aos
conceitos, Platão considerava as ideias passíveis de definição. Por
exemplo, existem muitos triângulos com as mais variadas formas. A ideia de
triângulo não possui uma forma específica. Mas ela pode ser definida: “o
triângulo é um polígono com três lados”. Filósofos analíticos contemporâneos
falariam de análise conceitual ao invés de definição, o que demonstra que a
assim chamada tradição analítica, em seus melhores momentos, não se distingue
de uma continuação mais rigorosa da filosofia tradicional.
Particularmente importante é a maneira pela
qual as ideias se relacionam às coisas do mundo visível. Platão tinha duas
metáforas: a da participação (méthexis) e a da cópia ou imitação
(mímesis). A ideia é uma coisa única. Mas muitas coisas do mundo visível
podem participar dela, ou, se preferirem, copiá-la. Desse modo, as muitas
coisas belas participam da ideia de beleza, assim como as muitas coisas justas
participam da ideia de justiça. Ou então dizemos que coisas sensíveis belas e
justas contém cópias imperfeitas das ideias de beleza e de justiça
respectivamente. Para Platão nós só podemos conhecer o mundo sensível porque
ele contém cópias, ainda que inevitavelmente imperfeitas, das ideias ou formas.
O substrato material não ideativo, não formal, do mundo sensível, é completamente
incognoscível.
3
Reminiscência.
Mas por que razão o mundo visível é constituído de
cópias das ideias? Platão respondeu especulativamente a isso recorrendo a um
mito da formação do mundo. Para ele, tanto o mundo das ideias como o mundo visível
sempre existiram. Mas eles existiam em paralelo e o mundo sensível era um caos
primevo incognoscível e indefinível, não podendo por isso ser considerado real.
O Deus-Demiurgo, guiado pela ideia do bem, decidiu tomar como modelos as ideias
do mundo inteligível e por meio delas dar forma à matéria caótica do mundo
primevo, de modo a produzir entidades particulares que fossem cópias, ainda que
imperfeitas, das ideias perfeitas. O Demiurgo pode ser entendido como o símbolo
da razão operando no universo. É só por formarem cópias imperfeitas das ideias
que as coisas do mundo sensível se tornam reais e cognoscíveis. As ideias ou
formas doam realidade às coisas que enformam.
Essa maneira de entender o mundo sensível
permitiu a Platão oferecer uma explicação inteiramente racionalista da
aquisição do conhecimento. Ele tendia a crer na ideia da transmigração das
almas ensinada pelos místicos pitagóricos. Para ele nossas almas tiveram
contato com o mundo das ideias enquanto pertenciam a outros seres vivos ou
quando vagavam no mundo das ideias. Mas uma vez incorporadas, nossas almas
perderam a consciência das ideias, que foram como que apagadas para ela. Contudo,
a experiência nos leva a rememorar as ideias. Quando temos a experiência
sensível do que se dá no mundo visível ou quando aprendemos teoremas
geométricos, somos levados a rememorar as ideias.[5] Por exemplo: ao
percebermos ações justas somos levados a rememorar a ideia de justiça. A
conclusão impressionante foi a de que todo nosso conhecimento não passa de reminiscência
(anamnesis). Usando o conceito kantiano de conhecimento a priori,
a ser entendido como aquele conhecimento que não é proveniente da experiência,
mesmo que dela indiretamente dependa para ser formado, podemos dizer que todo o
conhecimento humano é para Platão a priori. No diálogo Menon ele
ofereceu uma comprovação de sua teoria no exemplo de um escravo que é induzido
por Sócrates a desenhar na areia a prova de um teorema de geometria. Para
Platão ele só conseguiu essa proeza por ter se recordado da geometria euclidiana
que sua alma de algum modo já conhecia desde sempre.
Quanto
ao exemplo acima, ao menos, estamos hoje em condições de oferecer uma
explicação muito mais aceitável. Nós diremos
que o processo seletivo da evolução natural produziu em nossas mentes a
capacidade inata de aplicação geometria euclidiana, que usamos o tempo inteiro
ao agirmos no mundo ao nosso redor. A experiência pode nos fazer tomar
consciência dos procedimentos de aplicação da geometria euclidiana e de como
provar um teorema a partir de axiomas. Mas a espécie humana aprendeu essa
geometria através de um processo de seleção natural que é em última análise empírico.
4
Objeções
tradicionais. Na primeira parte
do diálogo Parmênides, um estrangeiro apresenta ao jovem Sócrates uma
série de importantes objeções à doutrina das ideias sem que ele consiga
responder. Teria Platão, após esse diálogo, abandonado a doutrina das ideias? Parece
que não, pois ele continuou tendo as ideias em alta conta.[6] No que se segue irei expor
e comentar as principais objeções.
Uma primeira objeção foi a de que se
admitimos que termos gerais remitem a ideias, então assim como admitimos as
ideias de bem e de virtude, precisamos admitir ideias como as de cabelo, lama e
sujeira. Só que essa é uma admissão repugnante ao jovem Sócrates, que a rejeita
sem saber respondê-la. As ideias deixariam de ser sublimes.
Uma segunda objeção diz respeito à metáfora
da participação. Se as coisas precisam participar da ideia, então ela perde a
sua unidade e homogeneidade. A imagem proposta por Parmênides é a de vários
marinheiros carregando uma vela sobre as costas. Outra imagem seria a do bolo
de passas. Imaginando que as coisas particulares sejam como os marinheiros ou
como as passas no bolo, cada qual participa de parte da ideia e não do todo e a
ideia precisa dividir-se em partes, cada qual contendo coisas diversas. A
alternativa seria dizer que a ideia se multiplica, pertencendo por completo a
cada coisa que dela participa. Mas nesse caso a função unificadora da ideia se
perderia. Assim, seja pela divisão ou pela multiplicação a ideia parece perder a
sua unidade e homogeneidade original. Sócrates tentou retrucar sugerindo que a
ideia deve ser como o sol que ilumina o dia e todas as coisas que nele se
encontram.[7] Essa é uma bela metáfora,
mas seria possível resgatá-la?
Há também uma objeção de simetria contra a
metáfora da cópia. Como nota Parmênides, se as coisas brancas são como a ideia
de brancura, então a ideia de brancura deve ser como as coisas brancas. Mas
então elas devem compartilhar um mesmo caráter, que não pode ser outra coisa
senão uma nova ideia de brancura e assim ad indefinitum. Uma resposta a
favor de Platão (Proclus) é que a relação de semelhança não é realmente
simétrica. Afinal, embora o rosto que vejo no espelho seja reflexão do meu, o
meu rosto não é reflexão do rosto que vejo no espelho. A relação de cópia é de
semelhança por derivação.
Ainda outra
objeção presente no Parmênides foi mais tarde desenvolvida por
Aristóteles como o argumento do terceiro homem.[8] Se os homens particulares H1,
H2… Hn são todos eles cópias de I-H, que é a ideia de homem, então
parece que é preciso existir uma nova ideia de homem, I-H1, da qual
tanto os homens particulares quando a ideia de homem são cópias. Mas se for assim,
então precisaremos de ainda outra ideia para garantir a última relação e assim
por diante.
Aqui ainda parece possível responder que o
argumento deixa de se aplicar se admitirmos que as ideias não precisam se
comportar da mesma maneira que os objetos dos quais são predicadas. Elas são simplesmente
entidades sui generis, não demandando reiteração para sua
identificação.
Uma raiz do
problema (pace Vlastos) pode se encontrar no fato de Platão tratar as
ideias como se fossem autopredicativas. Claro que a ideia de homem não é um
homem. Não faz sentido algum dizer “A ideia de homem é um homem”, nem “A ideia
de justiça é justa”, nem “A ideia do grande é grande”. A autopredicação é na
verdade uma propriedade concernente a particulares dados, no sentido de que
posso dizer “Esse homem é um homem”, “Essa ação justa é justa”, “Essa coisa
grande é grande” e mesmo “Esse número é um número.” Um filósofo platonista que
rejeite a sugestão de que as ideias são autopredicativas poderá dizer que o
argumento do terceiro homem só vale enquanto as ideias forem assimiladas às
coisas de que são ideias. A impossibilidade de autopredicação aponta para o
caráter sui generis das ideias, que resistem ao argumento do terceiro
homem por não serem coisas entre a coisas.
A mais importante objeção à teoria das ideias
foi talvez a de que Platão duplica os mundos, mais tarde apresentada por
Aristóteles.[9]
Para ele, além do mundo empírico nós precisamos de um mundo inteligível,
contendo um número igualmente grande de ideias. Mas isso não é nada parcimonioso.
A solução de Aristóteles será a de colar o mundo inteligível ao mundo sensível,
de maneira a formar um único mundo. Por isso, uma maneira trivial de
distinguirmos a ontologia de Platão da ontologia proposta por Aristóteles
consiste em dizer que para Platão, no caso de o mundo físico deixar de existir,
o mundo das ideias permanecerá existindo; mas para Aristóteles, se o mundo físico
deixar de existir, como ele desaparecerá também o próprio mundo das ideias ou
formas.
5
Objeções
contemporâneas. Há também objeções
contemporâneas à doutrina. Quero considerar três. A primeira é algo que poderia
ocorrer a qualquer estudante de lógica simbólica: Platão não poderia ter conhecimento
da revolucionária lógica quantificada desenvolvida por Gottlob Frege no final
do século XIX. Isso o levou a confundir nossa gramática de superfície com a
gramática lógica no que concerne à nominalização de predicados. Para esclarecer
isso, considere os seguintes enunciados:
A
(1) Sócrates é justo.
(2) O Partenon é um templo.
(3) Atenas é uma cidade.
Com
base na gramática Platão sabia que todos esses enunciados tem uma estrutura do
tipo Sujeito-Predicado cuja forma geral é:
Fa
Onde
a está para o sujeito e F para o predicado. Essa é não só a forma
gramatical como também a forma lógica das sentenças do tipo A. Isso posto, ele intuitivamente
as comparava com enunciados como:
B
(1) A justiça deve ser buscada.
(2) A beleza faz bem aos olhos.
(3) O bem é admirável.
Nesses
enunciados os predicados ‘...é justo’, ‘...é belo’ e ‘...é bom’ são nominalizados,
encontrando-se no lugar dos sujeitos. Ora, como as sentenças dos exemplos do
tipo B tem a mesma forma gramatical que os exemplos do tipo A, ele concluiu que
eles também tinham a estrutura lógica Fa. Mas essa constatação deve ter
suscitado o problema. Platão encontrava Sócrates, o Partenon e Atenas no mundo
visível, podendo até apontar para essas coisas. Mas ele não conseguia encontrar
a justiça, a beleza e o bem nesse mundo visível, ainda que encontrasse coisas
justas, belas e boas. A conclusão não se fazia esperar. Como não se fazia
visível nenhum referente para termos-sujeitos como ‘o bem’, ‘a beleza’ e ‘a
justiça’, ele concluiu ser razoável supor a existência de um mundo não visível,
mas puramente inteligível, no qual poderia ser encontrado o que ele chamou de ‘o
bem-em-si-mesmo’, etc.
A lógica quantificada desqualificou essa
ilação. As sentenças do tipo A possuem realmente a mesma forma lógica Fa,
que é idêntica à forma gramatical. Mas as sentenças do tipo B possuem uma forma
lógica completamente diferente. Uma sentença como “O bem é admirável”
nominalizando o predicado ‘...é bom’ deixa-se mais economicamente analisar como
“Tudo o que é bom é admirável”, ou ainda, “Para todo x, se x é bom, então x é
admirável”. Ou, por fim, simbolizando ‘...é bom’ como F, ‘...é admirável’ como
G e ‘para todo x’ como (x), podemos formalizar a frase como: “(x) (Fx → Gx).” Contudo,
esse procedimento desfaz a exigência de que o predicado nominalizado possua
referência, em uma análise que se estende a qualquer sentença do tipo B. Todas
elas são analisáveis como possuindo a estrutura lógica geral:
(x) (Fx → Gx)[10]
O
importante é notar que essa é uma estrutura completamente diferente de Fa.
E o ponto crucial é que (x) (Fx → Gx) é uma sentença universal
que não demanda a existência de nenhum objeto no mundo visível que precise ser
apontado como referente de algum sujeito! Como Platão não conhecia lógica quantificada,
ele foi enganado pela estrutura gramatical, que é a mesma tanto para as
sentenças do tipo A quanto para as do tipo B. Pode ser que essa confusão não
tenha sido a única razão de sua postulação de um mundo de ideias, mas foi certamente
um fator de maior importância.
Ao falarmos da justiça, da beleza e do bem, estávamos
na verdade apenas nos reportando de maneira elíptica às inúmeras coisas e
eventos existentes no mundo visível com a propriedade de serem justas, belas e
boas. Tais propriedades, físicas e mentais, nada possuem de misterioso. A
conclusão óbvia é que, confundido pela gramática de superfície, Platão foi levado
a hipotetizar entidades controversas.
Por fim, alguém poderia perguntar se a
análise dos enunciados do tipo B são realmente compelentes. Não poderia, além
dos predicados ‘...é justo’, etc., existir ‘a justiça-em-si-mesma’ como objeto
do sujeito ‘A justiça’? A resposta está no bem conhecido princípio da
parcimônia; na chamada navalha de Ockham, segundo a qual as entidades não devem
ser multiplicadas sem necessidade (Entia non sunt multiplicanda praeter
necessitatem). Não é econômico postular a existência do referente do
predicado nominalizado para além dos portadores das propriedades que esses
predicados normalmente designam.
Um outro problema lógico diz respeito a
predicados relacionais como ‘ser grande’ e ‘ser igual’. Para Platão um objeto
sensível pode ser grande e também pequeno enquanto só a ideia do grande é
sempre grande, dado que ideias para ele são autopredicativas. Mas ‘...é grande’
é um predicado que só faz sentido quando aplicado na relação entre objetos: um
filhote de elefante é pequeno em relação a um elefante, mas é grande em relação
a um rato... Trata-se aqui do mesmo predicado relacional ‘é grande’ aplicado a
duplas diferentes de objetos visíveis e não mais a um único objeto, daí
resultando que um mesmo objeto pode ser pequeno e grande em asserções
diferentes. Contudo, se a ideia do grande é grande em relação a tudo, como a
doutrina das ideias parece sugerir, então ela deve ser infinitamente grande. Nem
a metáfora da cópia nem a da participação parecem capazes de resgatar essa
dificuldade.
Uma objeção muito diversa veio
de Nietzsche, que foi um crítico mordaz da cultura cristã, na qual ele via um
escapismo negador da vida (ver cap. XVI, sec. 5). Para Nietzsche, Sócrates foi
o primeiro cristão e o cristianismo é o platonismo do povo. Ele o via como um
produto do ressentimento, alguém que tinha um prazer sádico em vencer seus
opositores na discussão. “Sócrates era feio”, escreveu Nietzsche.[11]
Apesar do exagero, há algo de convincente no
dizer de Nietzsche. Quando consideramos a atitude de Sócrates em seu
julgamento, parece claro que ele queria que os juízes o condenassem. Já preso,
ele ouviu de seus discípulos que seria fácil corromper os guardas de modo que
ele pudesse fugir. Ao invés, ele preferiu não fazer nada, pois acreditava que,
como cidadão, tinha o dever de aceitar as decisões do estado. Há, porém, uma
óbvia inconsistência entre desafiar frontalmente seus juízes de estarem sendo
propositadamente injustos por razões escusas e depois considerar um dever
curvar-se a suas decisões.[12] Ao que parece, ele
preferiu ser condenado porque era corajoso, se sabia já velho e, acima de tudo,
porque queria ser visto pela posteridade como um herói da moralidade. Foi muito
bem sucedido nesse intento, mas seu modus operandi pesa a favor de
Nietzsche.
Como já
notei, no ano 404 a.C. Atenas havia caído sob o jugo de Esparta, seguindo um
caminho de decadência do qual nunca mais se recuperou. Platão pertencia à
antiga nobreza prejudicada no processo. Para Nietzsche Platão tornou-se um
escapista, um prisioneiro do que ele chamou de ideal ascético, através
do qual buscava suportar as duras vicissitudes de uma realidade que se
encontrava para além de seu controle. Ele criou então, para si e seus
discípulos, a ilusão de que esse amargo mundo sensível que tão pouco nos traz é
pouco mais do que aparência, deslocando a realidade, que é por definição
espaço-temporal e originariamente sensível, para um mundo puramente
intelectual, que seria seu fantasioso mundo das ideias. Esse transcendente mundo
das ideias passaria a possuir a mais pura realidade – a plenitude apolínea do
ser – do interior da qual não era mais preciso ser confrontado com o mundo empírico.
Freud poderia
ser aqui chamado para reforçar Nietzsche. Platão nunca se casou e chegou a
afirmar que o intercurso sexual só deveria ser mantido com vistas à reprodução...
A psicanálise freudiana veria na negação do mundo sensível uma justificação
inconsciente para a rejeição dos impulsos eróticos. Aristóteles, que rejeitava
a existência de um mundo separado de ideias, teve duas esposas consecutivas e um
casal de filhos. Essa espécie de crítica só se deixa amenizar pelo fato de que
na época de Platão a ciência se encontrava muito menos desenvolvida, sendo por
isso mesmo muito mais fácil acreditar em coisas como a metempsicose.
Uma terceira objeção poderia vir da
filosofia terapêutica de Wittgenstein, para quem filósofo podem ser possuído de
uma tentação irresistível de produzir “nós do pensamento” ou “castelos de carta”
com palavras, e que o trabalho crítico posterior da própria filosofia é o de
desatar os nós do pensamento ao desfazer os castelos de carta da linguagem,
trazendo as palavras de suas férias metafísicas de volta para o seu labor
cotidiano (cap. XVIII, sec. 3).
Para um filósofo como Wittgenstein, o
conceito platônico de ideia seria irresgatável. Platão inventou um novo sentido
para a palavra ‘idéa’, atribuindo-lhe objetividade e máxima realidade
fora do mundo visível. Como não há suporte intuitivo nem justificação
suficiente para essa inversão de valores semânticos, a ideia platônica corre o grande
risco de não passar de uma fata morgana intelectual. Se a introdução da
noção platônica de ideia for teoreticamente produtiva, ela poderá se tornar uma
inovação semântica aceitável. Caso contrário, ela estará apenas roubando seu
sentido da linguagem ordinária, reduzindo-se, quando propriamente considerada, a
um conceito ininteligível. Veremos no capítulo XIX que pode haver uma
alternativa ontológica mais razoável e que aponta para essa direção.
Uma última tentativa de dar sentido às
ideias platônicas seria dizer que elas possuem um status similar ao das leis
da natureza. Como tais elas seriam objetivas, imutáveis. A lei da gravidade,
por exemplo, precisaria ser distinguida de nossas formulações conceituais dessa
lei na física (por Newton e por Einstein...), as quais podem ser sempre falsas.
Por que não poderíamos dizer o mesmo de ideias como as de conhecimento e
justiça? Isso não parece impossível: pode bem ser que tais conceitos possuam
uma estrutura imutável, tanto quanto a de uma lei física. Mesmo assim, não
parece fazer sentido atribuir realidade a essas estruturas no sentido próprio
da palavra, nem deixar de tratá-las como propriedades estruturais para
nominalizá-las como se fossem objetos particulares.
6
Conhecimento.
Além da contribuição para a ontologia através da
doutrina das ideias, Platão contribuiu para a epistemologia (teoria do
conhecimento) através de sua teoria dos graus de conhecimento e de sua análise
das ideias de conhecimento e crença. A primeira é apresentada nas bem
conhecidas analogias da linha dividida e na alegoria da caverna. Quero me
restringir aqui a algumas observações sobre sua análise da ideia de
conhecimento e de suas consequências epistemológicas, principalmente pelo fato
de que ela demonstra o quanto a filosofia tradicional ainda é capaz de alcançar
problemas contemporâneos.
No diálogo Teeteto Platão analisou a
ideia de conhecimento. A conclusão de sua análise é que essa ideia se define
como sendo a de uma crença verdadeira à qual se adiciona um logos. Mas logos
é uma palavra grega multiplamente ambígua, o que termina fazendo o diálogo
terminar inconcluso. Mais tarde a palavra ‘logos’ foi substituída na definição
sugerida por Platão pelas palavras ‘justificação’ ou ‘evidência’, mais
precisas, definindo o conhecimento como a crença verdadeira
justificada. Essa definição foi aceita por Kant e atravessou intacta mais
de dois mil anos de filosofia. Desde a década de 1960, porém, essa definição
tradicional tem sido objeto de críticas devido à invenção de contraexemplos que
parecem demonstrá-la insuficiente. No que se segue quero abrir parênteses para expor
as críticas, analisar melhor a definição já sugerida por Platão e, por fim,
mostrar que após algum aprofundamento ela é capaz de sobreviver incólume aos
contraexemplos.
Comecemos com a exigência de que a crença
seja verdadeira. Se uma pessoa sabe que p (sendo p uma proposição
qualquer), é preciso que p seja verdadeira. Uma pessoa pode saber que a
Lua tem pedras, pois isso é verdadeiro, mas ninguém pode saber que a Lua é
feita de queijo suíço, posto que isso é falso. Também não é possível que uma
pessoa saiba que p e não acredite que p seja verdadeira. É
contraditório dizer: “Sei que ensino filosofia, mas não acredito nisso”. Se não
acredito é porque não sei, ao menos em circunstâncias normais. Finalmente, se uma
pessoa sabe que p então ela é tipicamente capaz de justificar, vale
dizer, supostamente capaz de apresentar evidência justificadora razoável para
sua afirmação.[13]
Por exemplo: se digo que sei que Villa Lobos compôs as Bachianas Brasileiras
é porque sou capaz de justificar isso dizendo que assisti uma apresentação das
Bachianas no Youtube, ou mesmo de dizer que ouvi falar que assim o
compositor se chama (testemunho). Mesmo que em muitos casos eu tenha esquecido
a justificação de algo que sei, se eu sei é porque alguma vez apreendi a
justificação. Por exemplo, Maria diz saber que Fernando Pessoa escreveu a frase
“Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas foi nele que espelhou o céu”, mas não
se recorda de onde e como chegou a saber disso. Entretanto, basta que alguém
abra um livro de poemas de Pessoa para se certificar de que Maria se encontra bem
justificada em dizer que sabe, pois uma mera coincidência seria aqui demasiado
improvável. O que não parece possível é que uma pessoa prescinda por completo
de qualquer experiência justificacional aceitável ou que se valha de uma justificação
que não seja reconhecível por outros como sendo razoável. Não posso dizer, por
exemplo: “Estive na Lua enquanto dormia porque me recordo claramente disso”,
pois nossa comunidade epistêmica não admitiria essa justificação como sendo razoável.
Até
aqui as objeções são contornáveis. Contudo, a definição tradicional de
conhecimento como crença verdadeira justificada foi desafiada através de alguns
exemplos sugeridos por Edmund Gettier, que em um breve artigo publicado em 1963.
Nesse artigo ele apresentou alguns contra-exemplos em que parecia haver crença
verdadeira justificada, mas sem conhecimento.[14] Desde então uma imensa
quantidade de artigos foi escrita na tentativa de remendar, substituir ou
eliminar de vez o insight platônico.
Eis um contraexemplo do tipo Gettier:
Suponhamos que ontem Maria ouviu da boca do professor Pedro que hoje ele
estaria pela manhã na universidade para avaliar uma defesa de tese. Como Pedro
é petreamente sério, Maria está certa de que sabe que ele se encontra agora na
universidade. E de fato, ele se encontra agora na universidade. Maria tem,
assim, uma crença verdadeira justificada. Mas na verdade ela não sabe! E a
razão é que durante a madrugada os três filhos adolescentes de Pedro sofreram
um sério acidente de carro e se encontram agora hospitalizados. No início da
manhã Pedro suspendeu todos os seus compromissos para hoje e foi para o
hospital. Contudo, por mero acaso ele realmente se encontra na universidade,
pois ele veio rapidamente à sua sala pegar alguns documentos. Maria tem uma
crença verdadeira razoavelmente justificada; mas não sabe.
Embora existam dezenas de soluções
inteligentes para o problema, elas parecem todas insatisfatórias. De minha
parte não tenho dúvidas de que a solução existe, é bastante intuitiva e
preserva o essencial da definição tradicional. Embora aventada desde o início,[15] ela só foi
suficientemente desenvolvida por Robert Fogelin[16] e aperfeiçoada por mim
mesmo.[17] Para chegar a ela basta notarmos
que em nenhum contraexemplo do tipo Gettier a justificação é suficiente para
tornar a proposição verdadeira. Assim, dizer que o confiável Pedro havia
afirmado ontem que viria hoje à universidade... parece ser uma justificação prima
facie razoável. Contudo, ela se revela insuficiente quando a ela é
adicionada a informação de que os três filhos de Pedro foram acidentados e que
por causa disso ele suspendeu todos os seus compromissos para hoje. Mas se
outra pessoa disser que Pedro se encontra na universidade por tê-lo visto
passar no corredor há alguns minutos, ou por ter visto seu carro estacionado
diante do escritório, isso deve ser uma justificação razoável e suficiente,
pois realmente torna a proposição verdadeira.
A
solução do problema de Gettier consiste em exigir que a terceira condição, a de
justificação, seja suficiente para tornar a proposição verdadeira da
perspectiva do conteúdo informacional possuído por um sujeito avaliador e no
momento de sua avaliação. O sujeito avaliador é alguém que tem informação
sobre o fato de que a pessoa que pretende ter conhecimento que são tais que
incluem razões para considerar a justificação por ela dada insuficiente
para a verdade. No caso acima, o sujeito avaliador é uma pessoa que sabe que os
filhos de Pedro foram acidentados e que ele suspendeu seus compromissos para
hoje na universidade... Esse sujeito dirá que Maria não sabe, posto que a
justificação por ela dada, mesmo que razoável, não é para ele suficiente para
tornar sua afirmação verdadeira. Se ela tivesse dito, por exemplo, que viu
Pedro estacionar o seu carro alguns minutos antes, sua justificação seria
plenamente aceita pelo sujeito avaliador. Concluímos, pois, que:
Uma pessoa S sabe que p para um avaliador A se
e somente se:
(i)
é verdade
que p,
(ii)
a pessoa S
acredita que é verdade que p,
(iii)
a
justificação que a pessoa S oferece para p é considerada por um sujeito avaliador
A (que pode ser até mesmo o próprio S em um momento posterior) em um tempo t
como suficiente para tornar a proposição p verdadeira.
Há
muito mais a se dizer sobre isso, por exemplo, é preciso responder à objeção
relativista de que aquilo que julgamos ser conhecimento depende totalmente de
quem for o sujeito avaliador. A resposta sumária a isso é que devemos dar
preferência ao avaliador epistemicamente melhor preparado, o que deve incluir a
posse de maior informação e o livre acesso à discussão crítica... Mas isso não
é admitir relativismo. Assim, a definição uma vez proposta por Platão continua
plausível. Ela não demanda rejeição, mas aprimoramento.
7
Quero agora considerar brevemente a psicologia de Platão. Ele tomou dos
pitagóricos a sugestão de que a alma (psiqué) possui três partes: uma
parte apetitiva outra volitiva e outra racional.[18] A parte apetitiva
concerne ao desejo, ao apetite, ao impulso instintivo. A parte volitiva
concerne à emoção, ao espírito, à coragem, à energia. E a parte racional
concerne ao pensamento, ao entendimento, ao intelecto, à razão. As primeiras
duas são compartilhadas com os animais, sendo só a última propriamente humana.
(Daí a definição grega do ser humano como “animal racional.”)
Para elucidar a interação entre
essas três partes Platão sugeriu a imagem de uma biga celeste com um condutor –
que seria a razão – e ainda dois cavalos, um bom – a alma volitiva – que quer
alçar-se aos céus, e outro mau – a alma apetitiva – que dá muito trabalho ao
seu condutor e precisa ser chicoteado.
Platão associou essas três partes
da alma ao que os gregos identificam como as virtudes cardinais. A virtude da
parte racional é a sabedoria. A virtude da alma volitiva é a coragem.
A virtude a alma apetitiva sob o controle da vontade é a temperança. Finalmente,
da harmonia de cada uma dessas partes da alma, de modo a formar um todo, temos
a virtude da justiça.
A teoria da tripartição da alma
tem equivalentes contemporâneos. Um primeiro deles se encontra na refinada divisão
freudiana do psiquismo de forma em três instâncias, que são as do:
Id (Es), das pulsões instintivas
Ego (Ich), que possui a vontade, sendo o
responsável pelo controle motor, e
Super-Ego (Über-Ich) responsável pela
repressão e controle das pulsões.[19]
Parece claro que a parte apetitiva da alma corresponde ao Id, a parte
volitiva corresponde ao Ego e a parte racional corresponde, ao menos em parte,
ao Super-Ego, que tem como constituinte importante o Ideal-do-Ego,
herdeiro das aspirações de realização dos pais.
Há também diferenças. Uma delas
é o grande papel que Freud atribuiu ao inconsciente, tanto no Ego quanto no
Super-Ego. Outra é que em Freud o Ego é o condutor parcialmente
racional, mediando entre um Super-Ego coibidor e as pulsões instintivas,
enquanto para Platão o condutor deve ser a razão, ou seja, algo que corresponderia
em grande parte ao Super-Ego...
Podemos encontrar também uma
razoável fundamentação neurocientífica para a tripartição platônica da alma.
Trata-se da distinção proposta pelo grande neurofisiologista norte-americano
Paul McLean com sua teoria do cérebro triúno.[20] Segundo essa teoria,
nosso cérebro é constituído por três computadores inter-relacionados e evolucionariamente
originados. O arquiencéfalo, correspondente ao bulbo raquidiano e ao
cerebelo, responsável pelas disposições instintivas do organismo, como a fome e
o desejo sexual... O mesencéfalo é constituído pelo sistema límbico e
responsável pelas emoções e motivações. Há por fim o neoencéfalo, que
constitui o córtex e que no ser humano ocupa cerca de 78% da massa encefálica, sendo
responsável pelo pensamento, pela racionalidade e pela consciência. A teoria do
cérebro triúno não deixa, pois, de demonstrar a existência de divisões neurofisiológicas
suficientemente próximas daquilo que Platão havia sugerido como sendo 1as
partes apetitiva (arquiencéfalo), volitiva (mesencéfalo) e racional
(neoencéfalo).
Vemos que a neurofisiologia contemporânea
suporta a teoria da tripartição da alma e que a psicanálise freudiana a
desenvolve e em certa medida busca corrigi-la, o que por sua vez confirma a nossa
tese de que a filosofia antecipa a ciência. Mas o fato importante e curioso é
que essas teorias não parecem ter substituído por completo a teoria da
tripartição da alma. A psicanálise, mesmo com a vantagem de ter introduzido o
inconsciente, não introduz a relação com as virtudes. E a teoria do cérebro
triúno é rudimentar demais do ponto de vista psicológico. Falar de substituição
sem mais pode nos fazer recair no reducionismo – na crença que uma só
dessas teorias vale – ou no cientismo – na crença de que só a teoria produzida
segundo métodos e parâmetros científicos é que merece ser discutida. Somente um
estudo comparativo aprofundado seria talvez capaz de trazer maior clareza sobre
o que há de certo e errado em cada uma dessas abordagens;
Afora isso Platão pretendeu
demonstrar no diálogo Fédon a imortalidade da alma, o que em uma época
pré-científica era uma ideia menos implausível do que na nossa. Ele acreditava
que a alma vive no corpo como em uma prisão: O corpo é como a casa de um caramujo,
a alma, devendo ser por ela carregado até a sua libertação final. O corpo é,
aliás, a origem dos males. Ele é a sede de doenças, preocupações, paixões e
fantasias que conduzem a conflitos que na sociedade conduzem às guerras. Para
ele se a alma é boa nesse mundo, ela irá viver após a morte em alguma
maravilhosa ilha bem aventurada, mas se é má, ela será castigada no Tártaro,
que era o nome que os gregos tinham para o inferno, posto que só o sofrimento
purifica a alma. Tudo isso é platonismo.
8
Filosofia política. Na antiguidade e durante o
período medieval os diálogos políticos que receberam maior atenção foram O
Timeu e As Leis, escritos na velhice de Platão. Foi só depois do
renascimento que a importância da República foi descoberta. Nesse
diálogo colossal, pela primeira vez na história um estado utópico foi experimentalmente
construído; um estado que deveria ser capaz de realizar plenamente a sua função
própria de prover a felicidade de seus cidadãos.
A questão fundamental que
percorre a República é sobre como devemos definir a justiça. Em uma das
definições iniciais, a justiça acontece quando cada um recebe o que merece. Mas
isso nos diz muito pouco. Após serem testadas várias sugestões implausíveis, Sócrates
sugere que a justiça seja investigada em grande escala. Como a justiça se dá sempre
dentro de uma sociedade, nós devemos procurar saber qual será a forma de um
estado ideal, uma vez que ele será aquele no qual reina a justiça. Sendo assim,
uma vez conhecido o estado ideal, dele poderemos mais facilmente depreender o
que é a justiça.
Ao considerar como deve ser uma
cidade-estado Platão observa que ela tem como princípio operante a divisão
do trabalho. Ninguém pode fazer bem todas as coisas. Assim, cada segmento
da sociedade se especializa em fazer uma coisa e troca as coisas que faz pelas coisas
de que precisa.
A divisão de trabalho resulta de
uma divisão de classes. Ele teve a ideia de fazer uso da teoria da tripartição
da alma para dividir os cidadãos do estado ideal em três classes, segundo o
predomínio das partes apetitiva, volitiva e racional da alma. As pessoas com
predomínio da parte apetitiva da alma devem formar a classe trabalhadora dos
agricultores e artesãos, o que inclui mercadores e qualquer coisa que envolva alguma
atividade física laboral. (Em nosso mundo atual isso incluiria a classe dos que
trabalham no comércio e na indústria.) As pessoas com predomínio da parte
volitiva da alma formam a segunda classe, a dos auxiliares, ou seja, a dos
militares encarregados da defesa da cidade-estado, indispensável no mundo
antigo. E as pessoas com predomínio da parte racional da alma formam a terceira
classe, a dos governantes-filósofos. Assim como a parte racional da alma deve
ter domínio sobre as partes apetitiva e volitiva, a classe que representa a
parte racional do estado, representando a virtude e a sabedoria, deve ter
domínio sobre as classes que representam a busca de honras e de lucros.
Platão era elitista: poucas pessoas são
capazes de ter acesso à razão filosófica. Para que a maioria das pessoas não se
sentissem ressentidas ao serem escolhidas como pertencentes a classes inferiores,
mesmo que isso fosse feito para seu próprio bem, os governantes deveriam
recorrer a uma “nobre mentira”, que é a de que por decisão dos deuses, os trabalhadores
tem alma de bronze, os militares alma de prata e os filósofos tem alma de ouro.
A favor de Platão pode ser notado que em sua
república há tanto igualdade de oportunidades quanto mobilidade social, coisas
que ainda hoje geralmente nos faltam. Até os vinte anos todos devem estudar
educação física e artes no sentido amplo (os gregos eram alfabetizados através
da poesia). E o aprendizado não deve ser forçado, pois nesse caso as pessoas
esquecem. Ele deve ser baseado no puro prazer de aprender. Quanto à mobilidade
social, ele lembrou que os pais não podem por antecipação saber a predominância
da parte da alma que terão os filhos. Pode ocorrer que o filho de um guardião
tenha a alma de bronze, ou que o filho de um agricultor tenha uma alma de ouro.
Por isso, após um período inicial de educação universal deve haver um primeiro
exame, quando os jovens completam vinte anos. Quem for reprovado ficará pertencendo
à classe trabalhadora, tornando-se agricultor, artesão, comerciante ou coisa do
gênero. Quem for aprovado continuará aprendendo ciências como matemática e
astronomia até um segundo exame, quando completarem trinta anos. Só quem for
aprovado nesse segundo exame terá o direito de aprender filosofia. Para Platão
a filosofia não pertence ao início, mas ao final do processo de aprendizado,
sem o que ela não passaria de jogo infantil e estéril. Sempre foi assim. Mesmo
hoje é necessário que o filósofo, enquanto tal, acumule uma ampla gama de
conhecimentos para ser capaz de desempenhar adequadamente seu oficio.
É interessante o que Platão tinha a dizer
sobre os prazeres e bens materiais. Os cidadãos pertencentes à classe dos
guardiões e auxiliares não podem ter posses. Eles devem receber o suficiente
para viverem confortavelmente e de maneira igualitária. Eles não beberão em
copos de ouro, pois o ouro eles deverão trazer em suas almas. Isso é essencial
para que não haja corrupção, nem ambição demeritória. Quem poderá adquirir
posses serão as pessoas da classe dos agricultores, artesãos, comerciantes... Elas
poderão acumular riquezas em medida suficiente, pois pela inclinação de suas
naturezas não buscam integridade nem honras, mas principalmente os prazeres
físicos. O estado zelosamente administrado pelos guardiões será benéfico para a
classe apetitiva. A ideia aqui de que a riqueza não deve ser usada para
corromper a política é perfeitamente atual.
Mulheres terão os mesmos direitos dos homens
na escala social; elas poderão ir para a guerra e se tornarem guardiãs. Entre
os auxiliares e guardiões não haverá casamento, o sexo será controlado com objetivos
principalmente eugênicos, filhos não desejados sendo postos à parte. As
crianças serão educadas em creches, sem saberem quem são os seus pais. Ele
acreditava que isso implementaria maior senso comunitário de união entre os
membros da classe... Entre os quarenta e os cinquenta anos, além de estudarem
ciências, os guardiões deveriam ganhar experiência do mundo juntando-se à
classe trabalhadora. Só depois dos cinquenta anos os guardiões poderiam concorrer
para que um deles se tornasse o rei, que seria então um rei-filósofo, capaz de
saber o que pode proporcionar a boa vida aos seus concidadãos.
Platão acreditava que só quando os governantes
forem sábios e o rei for filósofo uma república terá cidadãos felizes. Ele
tinha plena consciência de que seu estado ideal não era mais que um experimento
imaginativo. Mas esse experimento seria uma maneira de orientar nossos
pensamentos com relação a ideias como a de justiça.
O estado idealizado por Platão como
produzindo o máximo de felicidade para os seus cidadãos é o estado justo. Mas o
que caracteriza sua justiça? Ora, ela se caracteriza pela comunhão do indivíduo
com a comunidade, pela harmonia entre as classes, uma harmonia que resulta de cada
um fazer aquilo que melhor lhe compete, recebendo como recompensa aquilo que por
natureza mais deseja.[21] O estado ideal proposto
por Platão é projetado para permitir que seus membros floresçam naquilo que
eles possuem de melhor de modo a maximizar a cooperação social. E um homem
justo é aquele que ocupa o lugar que lhe é próprio na sociedade. A resultante harmonia
entre as partes de sua alma fará dele uma pessoa justa e, por consequência,
virtuosa, refletindo em si a justiça social como a harmonia entre as classes. Por
ser a justiça um conceito social, não faz sentido as pessoas se perguntarem se
são justas em uma sociedade injusta. O grande exercício de pensamento que foi a
construção de um estado supostamente perfeito possibilitou ao seu autor uma
explicação plausível da natureza da justiça.
Mas essa não é a única conclusão importante
do diálogo. Já vimos que a virtude da parte racional da alma é a sabedoria, a
virtude da alma volitiva é a coragem, a virtude da alma apetitiva unida à parte
volitiva é a temperança, e que a harmonia das partes da alma dá lugar à virtude
da justiça. Como consequência, cada classe do estado ideal incorpora em si uma
das virtudes consideradas cardinais: os guardiões incorporam a sabedoria;
os auxiliares incorporam a fortaleza ou coragem; a classe trabalhadora
incorpora a temperança. E a justiça consiste, como já foi dito, consiste
na harmonia entre as classes, no fato de que cada classe perfaz a tarefa que
lhe é apropriada.
Finalmente, com base nessas ideias Platão
distinguiu cinco tipos de constituição política que tendem a se seguir uma à
outra, decrescendo em virtude: monarquia (ou aristocracia), timocracia,
oligarquia, democracia e tirania. A melhor forma de
constituição era para ele a monarquia ou aristocracia, que preserva todas as
virtudes sob o timão a sabedoria. O estado ideal concebido por Platão pertence
a esse primeiro tipo, sob o suposto de que o monarca e os aristocratas sejam sábios.
Quando os governantes deixam de ser sábios, o que temos é a timocracia: aqui o
governo é dominado por militares, pelos que mantém a virtude da fortaleza ou
coragem. A timocracia tende a degenerar, dando lugar a uma forma de governo
ainda inferior, qual seja, a oligarquia. Esta ainda conserva alguma virtude de
temperança, mas perdeu a virtude da coragem. A oligarquia degenera-se em
democracia, que se caracteriza pela rejeição da temperança, ainda mantendo a
ideia de justiça. Na democracia as pessoas agem por amor ao lucro, pois o
dinheiro é o que permite a satisfação dos desejos materiais. Por fim, como as
pessoas na democracia perderam a temperança, elas são facilmente enganadas por
um líder demagogo que se alça ao poder e acaba por aprisionar os cidadãos em um
meio totalitário. É assim que a democracia se degenera em tirania, que é o
governo de déspotas que perderam até mesmo a ideia de justiça.
9
Observações. Já se notou que a República de Platão foi em alguma
medida realizada na prática durante a Idade Média. A divisão entre uma classe
clerical, celibatária, dentro da qual era preservado o saber, uma classe dos
príncipes e nobres, preparados para ir à guerra e proteger os seus reinos pela
força, e uma classe dos servos dedicados à agricultura, lembra-nos da divisão
tripartite das classes proposta na República de Platão. Resguardando as
diferenças óbvias, a projeção social da tripartição da alma proposta por Platão
pareceu encontrar aqui uma tênue concretização na história.
Karl Popper responsabilizou Platão, Hegel e
Marx por rejeitarem a democracia, influenciando as pessoas no sentido de
fazê-las crer em estados totalitários.[22] Popper nos lembrou que
Platão e Heráclito pertenciam à velha aristocracia grega que havia perdido o
poder para a democracia. Dois de seus tios foram mortos nessa disputa ao
defenderem o governo dos trinta tiranos. A herança aristocrática de Platão o
fazia sentir-se ressentido com a democracia... A crítica de Popper tem a ver
com a falha central do experimento platônico: a impossibilidade de se saber
quem decide quem será o rei será o rei-filósofo. Quem decide, por exemplo, como
serão as avaliações para a escolha dos guardiões? Essa espécie de questão nunca
foi respondida por Platão.
O maior clássico da filosofia
política do século XX, o livro de John Rawls intitulado Uma teoria da
justiça,[23]
também tinha como objetivo identificar a forma de uma sociedade verdadeiramente
justa. Para que possamos concebê-la, Rawls idealizou uma famosa experiência em
pensamento. Imagine que você tenha várias alternativas de sociedade para
escolher e que você deva escolher entrar em uma delas. Você conhece a natureza
humana e sabe como as diversas sociedades funcionam. Mas você não sabe como
irá entrar em uma dessas sociedades: se rico ou pobre, se homem ou mulher, se
jovem ou velho, se inteligente ou tolo, se branco ou negro... Você deverá escolher
entrar em uma sociedade coberto pelo que Rawls chamou de “o véu da ignorância”.
Nesse caso, que sociedade você escolherá? A resposta é que você irá preferir
entrar em uma sociedade onde impere a justiça social. Muito provavelmente você
escolherá entrar em uma sociedade social-democrática no sentido em que a
expressão é usada com respeito ao sistema dos países nórdicos... Pois essa será
a sociedade onde, em qualquer situação, você estará mais seguro. Você não
escolherá entrar em uma sociedade sem mobilidade como a da Roma antiga, onde
terá boas chances de entrar como escravo, não lhe sendo possível fazer qualquer
coisa que lhe permita mudar o seu destino.
Uma questão é saber quantos de
nós, sob o véu da ignorância, escolheriam entrar na sociedade ideal proposta
por Platão, imaginando como alternativa as sociedades existentes na época.
Desconfio que a maioria de nós escolheria a república de Platão, ainda que com
reservas. Pois suponha um de nós tenha nascido com as partes racional e
apetitiva da alma bem desenvolvidas, mas com a parte volitiva bastante fraca.
Nesse caso essa pessoa não terá lugar na sociedade ideal de Platão, pois não
estará bem nem entre os agricultores nem entre os guardiões. Não há lugar na
sociedade platônica para a combinação de ouro com ferro.
10
Arte.
No incômodo capítulo X da República Platão
condenou a arte. O artista não sabe do que fala. De acordo com ele a arte é mímesis,
que significa ‘cópia’. Mas como as coisas visíveis já são cópias das ideias e a
arte é cópia dessas cópias, trata-se de algo demasiado imperfeito e enganador.
Platão aceitava em sua república apenas poesias e hinos patrióticos. Como foi
exatamente essa a forma de arte que as mais lamentáveis ditaduras do último século
apoiaram, torna-se para nós difícil concordar com ele.
Uma razão externa para pensarmos que Platão
possuía uma visão distorcida do papel da arte é que os artistas se encontram em
geral voltados para o mundo sensível: seu material de trabalho é a vida como
ela é, sem anestesias ou consolações filosóficas. Voltados como estavam para
experiências emocionais e sensórias, eles eram os maiores críticos da ascese
platônica. Se o estudo das matemáticas a facilitava, a experiência estética a
dificultava.
Há, porém, algo de verdadeiro no que Platão
escreveu, que diz respeito à má arte. Ele percebeu que o artista pinta uma cama
sem entender como o carpinteiro a construiu e pinta um sapateiro em seu
trabalho sem nada entender da arte de fazer sapatos, o mesmo acontecendo com um
dramaturgo que representa as ações de um grande general sem entender nada da
estratégia militar.[24] O resultado é que ele
tenderá a confundir o espectador, que também nada sabe acerca do que está por
trás daquilo que vê.
Para esclarecer o que há de falso na
concepção de arte de Platão quero fazer uma comparação com o que o filósofo R.
G. Collingwood distinguia como sendo três formas de arte: a arte como
entretenimento, a arte sacra e o que ele chamou de arte própria, a mais
elevada forma de arte, tal como a tragédia grega ou os melhores textos de
Shakespeare. Para ele a única forma de arte verdadeiramente merecedora do nome
seria a arte própria, cujo objetivo era o de despertar a consciência: reavivar
nas pessoas aquilo que elas procuram esconder de si mesmas e que por isso
adoece a sociedade. Como ele mesmo escreveu:
Conhecer
a nós mesmos é a fundação de toda a vida que se desenvolve para além do nível
de experiência meramente físico. Uma consciência verdadeira dá ao intelecto uma
fundação firme; uma consciência corrompida força o intelecto a construir sobre
areia movediça.[25]
Por isso o artista deve ser
um profeta:
...não
no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ele conta à sua
audiência, sob o risco de desagradá-la, os segredos de seus próprios corações.
(...) Como porta-voz de sua comunidade, os segredos que ele precisa pronunciar
são os dela mesma. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma comunidade
conhece seu próprio coração; e por falhar em conhecê-lo, uma comunidade
engana-se a si mesma sobre uma matéria em relação a qual a ignorância significa
morte... A arte é a medicina comunitária para a pior doença da mente, que é a
corrupção da consciência.[26]
Quero
exemplificar essa função terapêutica da arte lembrando uma música cantada por
Billie Holiday, intitulada “Estranho Fruto” (Strange Fruit). Traduzo livremente[27]:
Árvores do sul dão um estranho fruto
Sangue nas folhas, sangue nas raízes
Corpos negros balançando à brisa do sul
Estranho fruto pendurado sob os álamos.
Cena pastoral do galante sul
Olhos abaulados, bocas retorcidas
Perfume de magnólia, doce e fresco
E o repentino odor de carne queimada.
Um fruto para os corvos arrancarem
Para a chuva lavar e o vento sugar
Para o sol apodrecer e da árvore tombar
Aqui se dá uma estranha e amarga colheita.
O
estranho fruto são dois negros que foram linchados e enforcados sob uma árvore
na Carolina do Sul, em meio a uma multidão festiva que se orgulhava do feito. Não
havia leis proibindo o linchamento. A cantora foi perseguida e até mesmo presa
por ter tido a ousadia de continuar cantando a música. Mas a sua letra amplia o
sentimento de injustiça ao denunciar pelo antagonismo de uma metáfora, com
irônica elevação de alma, um cenário cruel e desumano.
Aqui não encontramos nada que possa ser
identificado com uma cópia da realidade, diversamente, digamos, de um artigo de
jornal noticiando o acontecimento. O que percebemos é uma maneira de denunciar
uma injustiça concreta colocada em contraposição flagrante ao ideal de justiça
– algo cuja força é ampliada pelo lirismo irônico da meáfora.
Quero oferecer ainda mais dois outros
exemplos de arte própria. A primeiro diz respeito a Machado de Assis, tal como
ele foi interpretado pelo crítico literário Roberto Schwarz, para quem a
segunda fase da obra machadiana contém uma refinada crítica social, tão sutil que
passou quase despercebida. Isso acontece com o personagem Brás Cubas, o defunto
autor da peça literária incomparável chamada As memórias póstumas de Brás
Cubas. Ele é um homem rico, inteligente, perspicaz e crítico, orgulhando-se
de ter aurido seus valores no mais progressista pensamento europeu da época.
Mas ao mesmo tempo ele se gaba de nunca ter ganhado a vida com o suor do
próprio corpo e arranja como amante uma senhora casada, sem falar no fato de
que ele dá importância a toda espécie de superficialidade, como quando rejeita
uma pretendente ao descobrir que ela é manca ou mesmo quando inventa um emplastro
supostamente capaz de curar qualquer tipo de doença com o objetivo único de
obter notoriedade. Algo semelhante se dá no caso do mimado Bentinho, o
personagem moralizador do romance Dom Casmurro, cuja mãe era por ele considerada
um exemplo ímpar de doçura e bondade, mas que vivia do aluguel de escravos.
Para Schwarz, Machado de Assis estava ironizando as contradições de nossa
classe abastada, que em suas convicções se pretende progressista, mas que em
suas ações está disposta a ceder a toda espécie de baixeza.
Meu último exemplo são os filmes fortes de
Cláudio Assis, acima de todos O baixio das bestas, em que ele denuncia a
desumanidade nos canaviais pobres de Pernambuco. Como ele mesmo comentou a
respeito: “As piores coisas acontecem diante dos olhos de todos e ninguém faz nada
para impedir.”
Em todos os casos acima não há qualquer intenção
de copiar a realidade, a menos que seja para denunciá-la, opondo a ela a ideia
mesma de justiça que tanta importância tinha para Platão.
[1] Platão: Apologia de Sócrates 36-37. Ver Socrates’
Defense (Apology), in Plato: Collected Dialogues. Ed.
Edith Hamilton & Huntington Cairns (Princeton: Princeton University Press
1963).
[2] Ver Fedon 74-78. República
V, 476, 479.
[3] Protágoras 330 c-d.
[4] República 596 a-b.
[5] Menon, 81 c-d.
[6] Ver Sofista 246 a-e; Timeu
51b-e.
[7] Parmênides 131b.
[8] Aristóteles: Metafísica,
livro 13, cap. 4.
[9] Aristóteles, Metafísica A 9, 990b.
[10] Uso F e
G em itálico para indicar quaisquer propriedades que diferem entre si.
[11] O crepúsculo dos ídolos, O problema de
Sócrates, sec. 3. Em outras passagens Nietzsche demonstra-se muito mais
simpático à figura de Sócrates.
[12] Sócrates foi condenado por um júri popular de 501
membros, dos quais. 360 votaram
pela pena capital e 140 por uma multa.
[13] Digo “tipicamente” porque no
caso do conhecimento dos assim chamados enunciados básicos a
justificação é desnecessária. Assim, se digo “Estou com dor de cabeça” não
preciso nem tenho como justificar, pois sei disso por experiência imediata.
[14] Edmund Gettier: “Is
Justified True Belief Knowledge?” Analysis 23, 1963, pp. 121-123
[15] Como escreveram ... em 1968:
[16] Ver Robert
Fogelin: Pyrronian Reflexions on Knowledge and Justification (Oxford:
Oxford University Press 1994).
[17] Minha versão da mesma solução, mais detalhada e
rigorosa, foi publicada pela primeira vez sob o título de “A Perspectival
Definition of Knowledge”, in Ratio 23 (2): 2010, pp. 151-167. Ela foi
republicada com correções em Lines of Thought: Rethinking Philosophical
Assumptions (CSP 2014), Cap. V.
[18] República 435e- 441c,
[19] Sigmund Freud: O Ego e o Id e outros trabalhos
(1923-1925) (vol. 19) (Rio de Janeiro: Imago 1996).
[20] Paul D. McLean: The
History of Neuroscience in Autobiography, ed. L. R. Squire (London:
Academic Press 1988), vol. II, cap. 20.
[21] República IV, 433, 443 d-e.
[22] Karl Popper: The Open Society and its
Enemies (Princeton: Princeton University Press 2013), vol. I: The Spell
of Plato.
[23] John Rawls: A
Theory of Justice (Cambridge MA: Harvard University Press 1971).
[24] Ver Ion 540-542.
[25] R. G. Collingwood: The Principles of Art (Oxford: Oxford
University Press) p. 284.
[26] R. G. Collingwood:
The Principles of Art. Ibid., p. 336.
[27] Eis o poema
original de Abel Meerpool:
“Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the Southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolia, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is a fruit for the crow to pluck
For the rain to wither, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop.”
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