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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O IDEALISMO PLATÔNICO (Introdução; draft para o livro "introdução histórica à filosofia"

  

  Draft para o livro "Introdução histórica à filosofia", a ser lançado.

 

 

 

 

 

II

O IDEALISMO PLATÔNICO

 

Podemos facilmente perdoar uma criança por ter medo do escuro; a verdadeira tragédia da vida é que os adultos tenham medo da luz.

Platão

 

Em comparação com os pré-socráticos Platão é um mundo. Ele e seu aluno Aristóteles foram os dois grandes filósofos do mundo antigo, comparáveis em influência a Kant e Hegel na filosofia moderna. Eles foram os primeiros a construir grandes sistemas filosóficos tentando explicar especulativamente o mundo como um todo e o lugar que o homem nele ocupa. Ao fazê-lo desenvolveram amplas visões de mundo (Weltanschauungen), ainda hoje influentes. Eles viveram em um tempo no qual a cultura grega já começara a declinar devido à guerra do Peloponeso, uma prolongada guerra fratricida entre as cidades-estados, que acabou com a tomada de Atenas por Esparta. Aqui a história parece ter dado razão à observação de Hegel de que a filosofia é como a coruja de Minerva, que só alça voo ao anoitecer.

   Platão (428-348 a.C.) pertenceu à aristocracia ateniense. Era para se ter tornado um político. Mas decepcionou-se com as atrocidades da democracia ateniense, em especial com a condenação de Sócrates. Ele tentou influenciar politicamente Dionísio, o tirano grego de Siracusa, o que quase lhe custou a vida. Acabou se conformando em viver o resto de sua longa existência como professor na academia por ele fundada. As maiores influências no pensamento de Platão foram os filósofos pré-socráticos, principalmente Parmênides e Heráclito, além da tradição mística do pitagorismo. Mas a principal influência foi a de Sócrates, de quem foi admirador e discípulo.

 

1

 

Sócrates. É difícil explicar uma personalidade como a de Sócrates (469-399). Ele nunca deixou palavra escrita, segundo a lenda porque queria que a própria força de seu dizer se imprimisse nas mentes das pessoas. Ele era pobre. Acredita-se que na época cerca de dois terços de Atenas era constituído de escravos. Assim, mesmo com poucos recursos, o honrado cidadão Sócrates, aposentado depois de haver lutado na guerra e servido ao estado, pôde se dar ao luxo de viver pelas ruas de Atenas discutindo filosofia. Segundo Nietzsche, um crítico sarcástico, a culpa teria sido de sua esposa Xantipa. Para se livrar da presença dessa mulher difícil, quarenta anos mais jovem, que lhe dava muito trabalho e nenhum prazer, Sócrates resolveu ir às ruas de Atenas onde, conversando com as outras pessoas, desenvolveu seu talento para a dialética. A mãe de Sócrates era uma parteira. Sócrates não a decepcionou. Ele tornou-se, segundo suas próprias palavras, um parteiro de ideias, que fazia nascer à fórceps das cabeças das pessoas com as quais conversava.

   Os interesses de Sócrates eram muito diferentes dos interesses dos filósofos pré-socráticos. Enquanto aqueles tinham a cosmologia como o centro de suas preocupações, Sócrates se interessava pela ética. Ele defendia uma forma de intelectualismo moral. Para ele a moral é uma espécie de conhecimento radicada na natureza humana. Por isso, a má ação é sempre resultado de alguma forma de ignorância. Quem age mal é uma pessoa que não sabe fazer uma adequada estimativa do que tem a ganhar ou perder com sua ação. Ninguém faz o mal sabendo-se ultimamente culpado.  A pessoa espera obter algum ganho como a riqueza, poder ou prazer, não percebendo que com isso ela está causando um dano maior a si mesma. Sócrates acreditava que a perda da virtude é um mal que é feito à integridade psicológica do agente. Esse é o caso de tiranos que escravizam seu povo. Eles são infelizes porque são forçados a viver à mercê daquilo que há de mais baixo e desprezível em si mesmos. Por isso é melhor sofrer do que praticar a injustiça. A conclusão de Sócrates foi a de que uma pessoa só é capaz de ser feliz se for virtuosa. Não que a virtude seja o mesmo que a felicidade, mas é que a verdadeira felicidade pressupõe a virtude.

   O quanto Sócrates estava certo é uma questão difícil de ser respondida. O que dizer, por exemplo, de pessoas que possuem pouca ou nenhuma consciência moral, psicopatas que não tem sentimento de culpa por fazerem coisas erradas? Não poderiam essas pessoas ser felizes na ausência de virtudes? Uma resposta seria a de que a espécie de felicidade por elas alcançada é de ordem inferior, pois fazer o bem pode ser uma fonte de felicidade cuja riqueza é vedada aos que são maus.

   Para além da ética, uma outra contribuição de Sócrates foi a introdução do problema dos universais na filosofia. Ele teria sido a primeira pessoa a sugerir que só podemos dizer o mesmo de muitos se recorrermos a universais, aqui entendidos no sentido de conceitos gerais. Assim, podemos atribuir justiça a muitas e muito diversas ações, bondade às mais diversas pessoas, beleza a coisas as mais diversas. Mas isso só deve ser possível porque temos conceitos gerais do que seja a justiça, o bem e a beleza. Além disso, se somos capazes de comparar, por exemplo, dizendo que uma ação é mais justa que outra, é porque devemos ter algum modelo de justiça que permita a comparação. Como consequência, o objetivo de Sócrates era investigar, não as coisas justas, boas e belas, mas o que é a justiça, o bem, a beleza. Ele queria encontrar definições para termos como ‘virtude’, ‘coragem’, ‘justiça’, ‘conhecimento’, ‘beleza’, ‘amizade’, etc.

   Sócrates é um personagem constante nos diálogos platônicos, sempre em busca de definições de termos gerais de interesse filosófico. Nesses diálogos encontramos sempre perguntas da forma “O que é X?”, onde X está no lugar de um termo conceitual-geral que desempenha alguma função central em nosso entendimento do mundo. Assim, a pergunta poderá ser “O que é a virtude?” (Protágoras). “O que é a coragem?” (Laques), “O que é a justiça?” (República), “O que é o conhecimento?” (Teeteto), e assim por diante.

   Por seu questionamento moral Sócrates incomodava as pessoas que detinham poder em Atenas. Ele incomodava os políticos por recusar-se a participar de ações desonrosas. E incomodava os sofistas, que cobravam para ensinar a arte da oratória às pessoas de modo a fazê-las obter sucesso na vida pública, uma vez que ele mesmo nada cobrava pelos seus ensinamentos e desprezava os valores mundanos. Decidiram livrar-se dele. Sócrates foi acusado de desdenhar os deuses e corromper a juventude, devendo ser por isso condenado a morte. O objetivo teria sido apenas o de fazer com que ele fugisse de Atenas. Mas como ele não foi embora, tiveram de submetê-lo a um julgamento público. No final os juízes concluíram que ele era culpado e que deveria ser condenado a morte, mas que teria o direito de decidir por uma pena alternativa que não fosse a morte, mas que fosse suficientemente severa, como a de ser banido de Atenas.

   Sócrates reagiu argumentando que não só não era culpado, como fez grandes favores ao estado através de ações e ensinamentos.[1] Por conseguinte, não deveria ser punido, mas recompensado. O que ele merecia era viver dos favores do estado pelo resto da vida, tal como acontecia com os benfeitores da polis. Afrontado, o júri não teve outra opção senão condená-lo à morte por envenenamento com cicuta.

   Platão foi testemunha desses acontecimentos e podemos atribuir à influência de Sócrates seu ensinamento de que a ideia do bem é a mais elevada de todas – algo semelhante ao sol que ilumina tudo o mais. A ética de Platão era como a de Sócrates. Quando agimos mal nós fixamos nossa atenção em algum bem, esquecendo-nos das consequências, que para nós mesmos costumam ser piores.

 

2

 

As ideias. Voltemos a Platão. O centro radial de seu sistema, do qual emergem as explicações, foi sua doutrina das ideias. Essa doutrina surgiu como uma maneira de conciliar a ideia proposta por Heráclito de que o mundo se encontra em constante mudança com a doutrina proposta por Parmênides de que o verdadeiro objeto de nosso conhecimento, o ser, é imutável. A solução de Platão consistiu na admissão da existência de dois mundos completamente distintos: o mundo visível e o mundo inteligível. O mundo visível (ou sensível) é o das aparências sensíveis, um mundo no qual tudo se encontra em constante mudança, tal como Heráclito supunha. O verdadeiro mundo, porém, é o mundo inteligível, que é o mundo do ser, eterno e imutável. Esse mundo inteligível do ser é para Platão constituído de ideias (idéa) ou formas (eidos), elas mesmas eternas e imutáveis. E o conhecimento só é possível porque tem por objeto, não as coisas do mundo visível, em constante mudança, mas as próprias ideias, eternas e imutáveis. Esse mundo das ideias era para ele o único verdadeiramente real. Os dois mundos, o das ideias e o dos sentidos, existem e sempre existirão paralelamente um ao outro, ou seja, em completa independência um do outro.

   Exemplos típicos de ideias são as do bem, da beleza, da justiça, do conhecimento, da coragem, da amizade. Essas são ideias sublimes, cuja definição foi buscada nos diálogos. Mas há também ideias mais vulgares, como as de cama, homem, água e fogo. Para Platão existe uma hierarquia das ideias, a mais elevada de todas sendo a ideia do bem, que como o sol ilumina todas as outras. Para ele, sem sabermos o que é o bem não seremos capazes de compreender e definir as outras ideias de maneira adequada. Abaixo do bem há ideias como a de ser, identidade, semelhança, movimento... e ainda as da justiça, beleza e virtude. E ainda mais abaixo temos ideias como as de homem, cama, água e fogo. Ideias que estão embaixo implicam nas que estão em cima. Por exemplo: a ideia da justiça implica na ideia do bem. Não obstante, Platão nunca conseguiu estruturar essa hierarquia de um modo coerente.

   Para Platão as ideias possuem numerosos atributos[2]: elas não se encontram nem no espaço nem no tempo, sendo ainda assim objetivas. Elas são essências únicas, eternas, imutáveis, absolutas, indivisíveis, puras, sublimes. Diversamente do ser de Parmênides e das archai dos pré-socráticos elas são transcendentes em relação à physis, nada possuindo de material. A transcendentalidade das ideias é uma inovação original de Platão: ele as apresentou como existindo em uma realidade suprassensível, para além da dimensão física, rompendo definitivamente com o naturalismo dos pré-socráticos.

   Note-se que no grego antigo a palavra ‘idéa’ significava forma, aparência, o aspecto visual de uma coisa. Foi Platão que lhe deu o sentido filosófico de uma essência abstrata e transcendente. Modernamente a palavra ‘ideia’ diz respeito a entidades psicológicas que se encontram no espaço e no tempo. Se digo “Acabei de ter uma ideia”, a ideia é algo que aconteceu há alguns segundos e em um lugar específico, qual seja, na minha cabeça. Mas as ideias de Platão não são entidades psicológicas. Elas são entidades objetivas transcendentes, às quais todos nós podemos, em princípio, ter acesso.

   Além disso, as ideias platônicas são entidades singulares. Só existe uma ideia do belo, só uma ideia da justiça, uma da virtude, uma do bem. É por isso que a ideia de um número não pode ser a mesma coisa que os números, dado que os números se repetem e se adicionam: não é possível que na soma “2 + 2 = 4” duas ideias do número 2 se juntem. Sendo objetivas e singulares, as ideias são objetos, mesmo que abstratos. Para demonstrar isso Platão usava o recurso de nominalizar predicados que designavam ideias. Assim, no enunciado “Sócrates é sábio” a ideia de sabedoria comparece de modo secundário. Nós só nos referimos diretamente à sabedoria quando colocamos a palavra no lugar do sujeito em um enunciado como “A sabedoria é uma virtude”, nominalizando o predicado. Aqui a palavra ‘sabedoria’ se refere primariamente a um objeto abstrato: a ideia de sabedoria. Para evidenciar esse ponto Platão usava em grego expressões que podem ser traduzidas como “o X-em-si-mesmo”, “a X-idade”, ou “aquela coisa própria que é X”.

   Outra propriedade das ideias é que elas são autopredicativas. A justiça-em-si-mesma é ela mesma justa e seria uma blasfêmia acreditar que o sagrado-em-si-mesmo não é sagrado.[3] Uma razão para ele ter pensado assim é que as coisas possuem as ideias de modo imperfeito e aspectual. Muitas coisas são belas de modo aspectual: Sócrates era feio de rosto, mas possuía beleza interior. Mas o belo-em-si-mesmo deve ser belo em todos os aspectos.

    Por serem unitárias as ideias desempenham o papel fundamental de universais, permitindo-nos dizer o mesmo de muitos, em outras palavras, permitindo a espécie de síntese característica da predicação. Como Platão escreveu: “nós temos o hábito de considerar uma simples ideia ou forma no caso das variadas multiplicidades para as quais damos o mesmo nome.”[4] Isso fica claro quando consideramos enunciados do tipo Fa, como “Sócrates é sábio”, “Parmênides é sábio”, “Heráclito é sábio”. Podemos predicar a sabedoria de muitas coisas. Segundo Platão essas coisas participam da sabedoria no sentido de que elas são cópias ou imitações da Sabedoria-em-si-mesma.

   Seguindo o tratamento que Sócrates deu aos conceitos, Platão considerava as ideias passíveis de definição. Por exemplo, existem muitos triângulos com as mais variadas formas. A ideia de triângulo não possui uma forma específica. Mas ela pode ser definida: “o triângulo é um polígono com três lados”. Filósofos analíticos contemporâneos falariam de análise conceitual ao invés de definição, o que demonstra que a assim chamada tradição analítica, em seus melhores momentos, não se distingue de uma continuação mais rigorosa da filosofia tradicional.

   Particularmente importante é a maneira pela qual as ideias se relacionam às coisas do mundo visível. Platão tinha duas metáforas: a da participação (méthexis) e a da cópia ou imitação (mímesis). A ideia é uma coisa única. Mas muitas coisas do mundo visível podem participar dela, ou, se preferirem, copiá-la. Desse modo, as muitas coisas belas participam da ideia de beleza, assim como as muitas coisas justas participam da ideia de justiça. Ou então dizemos que coisas sensíveis belas e justas contém cópias imperfeitas das ideias de beleza e de justiça respectivamente. Para Platão nós só podemos conhecer o mundo sensível porque ele contém cópias, ainda que inevitavelmente imperfeitas, das ideias ou formas. O substrato material não ideativo, não formal, do mundo sensível, é completamente incognoscível.

 

3

 

Reminiscência. Mas por que razão o mundo visível é constituído de cópias das ideias? Platão respondeu especulativamente a isso recorrendo a um mito da formação do mundo. Para ele, tanto o mundo das ideias como o mundo visível sempre existiram. Mas eles existiam em paralelo e o mundo sensível era um caos primevo incognoscível e indefinível, não podendo por isso ser considerado real. O Deus-Demiurgo, guiado pela ideia do bem, decidiu tomar como modelos as ideias do mundo inteligível e por meio delas dar forma à matéria caótica do mundo primevo, de modo a produzir entidades particulares que fossem cópias, ainda que imperfeitas, das ideias perfeitas. O Demiurgo pode ser entendido como o símbolo da razão operando no universo. É só por formarem cópias imperfeitas das ideias que as coisas do mundo sensível se tornam reais e cognoscíveis. As ideias ou formas doam realidade às coisas que enformam.

   Essa maneira de entender o mundo sensível permitiu a Platão oferecer uma explicação inteiramente racionalista da aquisição do conhecimento. Ele tendia a crer na ideia da transmigração das almas ensinada pelos místicos pitagóricos. Para ele nossas almas tiveram contato com o mundo das ideias enquanto pertenciam a outros seres vivos ou quando vagavam no mundo das ideias. Mas uma vez incorporadas, nossas almas perderam a consciência das ideias, que foram como que apagadas para ela. Contudo, a experiência nos leva a rememorar as ideias. Quando temos a experiência sensível do que se dá no mundo visível ou quando aprendemos teoremas geométricos, somos levados a rememorar as ideias.[5] Por exemplo: ao percebermos ações justas somos levados a rememorar a ideia de justiça. A conclusão impressionante foi a de que todo nosso conhecimento não passa de reminiscência (anamnesis). Usando o conceito kantiano de conhecimento a priori, a ser entendido como aquele conhecimento que não é proveniente da experiência, mesmo que dela indiretamente dependa para ser formado, podemos dizer que todo o conhecimento humano é para Platão a priori. No diálogo Menon ele ofereceu uma comprovação de sua teoria no exemplo de um escravo que é induzido por Sócrates a desenhar na areia a prova de um teorema de geometria. Para Platão ele só conseguiu essa proeza por ter se recordado da geometria euclidiana que sua alma de algum modo já conhecia desde sempre.

   Quanto ao exemplo acima, ao menos, estamos hoje em condições de oferecer uma explicação muito mais aceitável.  Nós diremos que o processo seletivo da evolução natural produziu em nossas mentes a capacidade inata de aplicação geometria euclidiana, que usamos o tempo inteiro ao agirmos no mundo ao nosso redor. A experiência pode nos fazer tomar consciência dos procedimentos de aplicação da geometria euclidiana e de como provar um teorema a partir de axiomas. Mas a espécie humana aprendeu essa geometria através de um processo de seleção natural que é em última análise empírico.

 

4

 

Objeções tradicionais. Na primeira parte do diálogo Parmênides, um estrangeiro apresenta ao jovem Sócrates uma série de importantes objeções à doutrina das ideias sem que ele consiga responder. Teria Platão, após esse diálogo, abandonado a doutrina das ideias? Parece que não, pois ele continuou tendo as ideias em alta conta.[6] No que se segue irei expor e comentar as principais objeções.

   Uma primeira objeção foi a de que se admitimos que termos gerais remitem a ideias, então assim como admitimos as ideias de bem e de virtude, precisamos admitir ideias como as de cabelo, lama e sujeira. Só que essa é uma admissão repugnante ao jovem Sócrates, que a rejeita sem saber respondê-la. As ideias deixariam de ser sublimes.

   Uma segunda objeção diz respeito à metáfora da participação. Se as coisas precisam participar da ideia, então ela perde a sua unidade e homogeneidade. A imagem proposta por Parmênides é a de vários marinheiros carregando uma vela sobre as costas. Outra imagem seria a do bolo de passas. Imaginando que as coisas particulares sejam como os marinheiros ou como as passas no bolo, cada qual participa de parte da ideia e não do todo e a ideia precisa dividir-se em partes, cada qual contendo coisas diversas. A alternativa seria dizer que a ideia se multiplica, pertencendo por completo a cada coisa que dela participa. Mas nesse caso a função unificadora da ideia se perderia. Assim, seja pela divisão ou pela multiplicação a ideia parece perder a sua unidade e homogeneidade original. Sócrates tentou retrucar sugerindo que a ideia deve ser como o sol que ilumina o dia e todas as coisas que nele se encontram.[7] Essa é uma bela metáfora, mas seria possível resgatá-la?

   Há também uma objeção de simetria contra a metáfora da cópia. Como nota Parmênides, se as coisas brancas são como a ideia de brancura, então a ideia de brancura deve ser como as coisas brancas. Mas então elas devem compartilhar um mesmo caráter, que não pode ser outra coisa senão uma nova ideia de brancura e assim ad indefinitum. Uma resposta a favor de Platão (Proclus) é que a relação de semelhança não é realmente simétrica. Afinal, embora o rosto que vejo no espelho seja reflexão do meu, o meu rosto não é reflexão do rosto que vejo no espelho. A relação de cópia é de semelhança por derivação.

    Ainda outra objeção presente no Parmênides foi mais tarde desenvolvida por Aristóteles como o argumento do terceiro homem.[8] Se os homens particulares H1, H2… Hn são todos eles cópias de I-H, que é a ideia de homem, então parece que é preciso existir uma nova ideia de homem, I-H1, da qual tanto os homens particulares quando a ideia de homem são cópias. Mas se for assim, então precisaremos de ainda outra ideia para garantir a última relação e assim por diante.

   Aqui ainda parece possível responder que o argumento deixa de se aplicar se admitirmos que as ideias não precisam se comportar da mesma maneira que os objetos dos quais são predicadas. Elas são simplesmente entidades sui generis, não demandando reiteração para sua identificação.

   Uma raiz do problema (pace Vlastos) pode se encontrar no fato de Platão tratar as ideias como se fossem autopredicativas. Claro que a ideia de homem não é um homem. Não faz sentido algum dizer “A ideia de homem é um homem”, nem “A ideia de justiça é justa”, nem “A ideia do grande é grande”. A autopredicação é na verdade uma propriedade concernente a particulares dados, no sentido de que posso dizer “Esse homem é um homem”, “Essa ação justa é justa”, “Essa coisa grande é grande” e mesmo “Esse número é um número.” Um filósofo platonista que rejeite a sugestão de que as ideias são autopredicativas poderá dizer que o argumento do terceiro homem só vale enquanto as ideias forem assimiladas às coisas de que são ideias. A impossibilidade de autopredicação aponta para o caráter sui generis das ideias, que resistem ao argumento do terceiro homem por não serem coisas entre a coisas.

   A mais importante objeção à teoria das ideias foi talvez a de que Platão duplica os mundos, mais tarde apresentada por Aristóteles.[9] Para ele, além do mundo empírico nós precisamos de um mundo inteligível, contendo um número igualmente grande de ideias. Mas isso não é nada parcimonioso. A solução de Aristóteles será a de colar o mundo inteligível ao mundo sensível, de maneira a formar um único mundo. Por isso, uma maneira trivial de distinguirmos a ontologia de Platão da ontologia proposta por Aristóteles consiste em dizer que para Platão, no caso de o mundo físico deixar de existir, o mundo das ideias permanecerá existindo; mas para Aristóteles, se o mundo físico deixar de existir, como ele desaparecerá também o próprio mundo das ideias ou formas.

 

5

 

Objeções contemporâneas. Há também objeções contemporâneas à doutrina. Quero considerar três. A primeira é algo que poderia ocorrer a qualquer estudante de lógica simbólica: Platão não poderia ter conhecimento da revolucionária lógica quantificada desenvolvida por Gottlob Frege no final do século XIX. Isso o levou a confundir nossa gramática de superfície com a gramática lógica no que concerne à nominalização de predicados. Para esclarecer isso, considere os seguintes enunciados:

 

     A

(1)  Sócrates é justo.

(2)  O Partenon é um templo.

(3)  Atenas é uma cidade.

 

Com base na gramática Platão sabia que todos esses enunciados tem uma estrutura do tipo Sujeito-Predicado cuja forma geral é:

 

Fa

 

Onde a está para o sujeito e F para o predicado. Essa é não só a forma gramatical como também a forma lógica das sentenças do tipo A. Isso posto, ele intuitivamente as comparava com enunciados como:

 

      B

(1)  A justiça deve ser buscada.

(2)  A beleza faz bem aos olhos.

(3)  O bem é admirável.

 

Nesses enunciados os predicados ‘...é justo’, ‘...é belo’ e ‘...é bom’ são nominalizados, encontrando-se no lugar dos sujeitos. Ora, como as sentenças dos exemplos do tipo B tem a mesma forma gramatical que os exemplos do tipo A, ele concluiu que eles também tinham a estrutura lógica Fa. Mas essa constatação deve ter suscitado o problema. Platão encontrava Sócrates, o Partenon e Atenas no mundo visível, podendo até apontar para essas coisas. Mas ele não conseguia encontrar a justiça, a beleza e o bem nesse mundo visível, ainda que encontrasse coisas justas, belas e boas. A conclusão não se fazia esperar. Como não se fazia visível nenhum referente para termos-sujeitos como ‘o bem’, ‘a beleza’ e ‘a justiça’, ele concluiu ser razoável supor a existência de um mundo não visível, mas puramente inteligível, no qual poderia ser encontrado o que ele chamou de ‘o bem-em-si-mesmo’, etc.

   A lógica quantificada desqualificou essa ilação. As sentenças do tipo A possuem realmente a mesma forma lógica Fa, que é idêntica à forma gramatical. Mas as sentenças do tipo B possuem uma forma lógica completamente diferente. Uma sentença como “O bem é admirável” nominalizando o predicado ‘...é bom’ deixa-se mais economicamente analisar como “Tudo o que é bom é admirável”, ou ainda, “Para todo x, se x é bom, então x é admirável”. Ou, por fim, simbolizando ‘...é bom’ como F, ‘...é admirável’ como G e ‘para todo x’ como (x), podemos formalizar a frase como: “(x) (Fx → Gx).” Contudo, esse procedimento desfaz a exigência de que o predicado nominalizado possua referência, em uma análise que se estende a qualquer sentença do tipo B. Todas elas são analisáveis como possuindo a estrutura lógica geral:

 

(x) (Fx → Gx)[10]

 

O importante é notar que essa é uma estrutura completamente diferente de Fa. E o ponto crucial é que (x) (Fx → Gx) é uma sentença universal que não demanda a existência de nenhum objeto no mundo visível que precise ser apontado como referente de algum sujeito! Como Platão não conhecia lógica quantificada, ele foi enganado pela estrutura gramatical, que é a mesma tanto para as sentenças do tipo A quanto para as do tipo B. Pode ser que essa confusão não tenha sido a única razão de sua postulação de um mundo de ideias, mas foi certamente um fator de maior importância.

   Ao falarmos da justiça, da beleza e do bem, estávamos na verdade apenas nos reportando de maneira elíptica às inúmeras coisas e eventos existentes no mundo visível com a propriedade de serem justas, belas e boas. Tais propriedades, físicas e mentais, nada possuem de misterioso. A conclusão óbvia é que, confundido pela gramática de superfície, Platão foi levado a hipotetizar entidades controversas.

   Por fim, alguém poderia perguntar se a análise dos enunciados do tipo B são realmente compelentes. Não poderia, além dos predicados ‘...é justo’, etc., existir ‘a justiça-em-si-mesma’ como objeto do sujeito ‘A justiça’? A resposta está no bem conhecido princípio da parcimônia; na chamada navalha de Ockham, segundo a qual as entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem). Não é econômico postular a existência do referente do predicado nominalizado para além dos portadores das propriedades que esses predicados normalmente designam.

   Um outro problema lógico diz respeito a predicados relacionais como ‘ser grande’ e ‘ser igual’. Para Platão um objeto sensível pode ser grande e também pequeno enquanto só a ideia do grande é sempre grande, dado que ideias para ele são autopredicativas. Mas ‘...é grande’ é um predicado que só faz sentido quando aplicado na relação entre objetos: um filhote de elefante é pequeno em relação a um elefante, mas é grande em relação a um rato... Trata-se aqui do mesmo predicado relacional ‘é grande’ aplicado a duplas diferentes de objetos visíveis e não mais a um único objeto, daí resultando que um mesmo objeto pode ser pequeno e grande em asserções diferentes. Contudo, se a ideia do grande é grande em relação a tudo, como a doutrina das ideias parece sugerir, então ela deve ser infinitamente grande. Nem a metáfora da cópia nem a da participação parecem capazes de resgatar essa dificuldade.

   Uma objeção muito diversa veio de Nietzsche, que foi um crítico mordaz da cultura cristã, na qual ele via um escapismo negador da vida (ver cap. XVI, sec. 5). Para Nietzsche, Sócrates foi o primeiro cristão e o cristianismo é o platonismo do povo. Ele o via como um produto do ressentimento, alguém que tinha um prazer sádico em vencer seus opositores na discussão. “Sócrates era feio”, escreveu Nietzsche.[11]

   Apesar do exagero, há algo de convincente no dizer de Nietzsche. Quando consideramos a atitude de Sócrates em seu julgamento, parece claro que ele queria que os juízes o condenassem. Já preso, ele ouviu de seus discípulos que seria fácil corromper os guardas de modo que ele pudesse fugir. Ao invés, ele preferiu não fazer nada, pois acreditava que, como cidadão, tinha o dever de aceitar as decisões do estado. Há, porém, uma óbvia inconsistência entre desafiar frontalmente seus juízes de estarem sendo propositadamente injustos por razões escusas e depois considerar um dever curvar-se a suas decisões.[12] Ao que parece, ele preferiu ser condenado porque era corajoso, se sabia já velho e, acima de tudo, porque queria ser visto pela posteridade como um herói da moralidade. Foi muito bem sucedido nesse intento, mas seu modus operandi pesa a favor de Nietzsche.

   Como já notei, no ano 404 a.C. Atenas havia caído sob o jugo de Esparta, seguindo um caminho de decadência do qual nunca mais se recuperou. Platão pertencia à antiga nobreza prejudicada no processo. Para Nietzsche Platão tornou-se um escapista, um prisioneiro do que ele chamou de ideal ascético, através do qual buscava suportar as duras vicissitudes de uma realidade que se encontrava para além de seu controle. Ele criou então, para si e seus discípulos, a ilusão de que esse amargo mundo sensível que tão pouco nos traz é pouco mais do que aparência, deslocando a realidade, que é por definição espaço-temporal e originariamente sensível, para um mundo puramente intelectual, que seria seu fantasioso mundo das ideias. Esse transcendente mundo das ideias passaria a possuir a mais pura realidade – a plenitude apolínea do ser – do interior da qual não era mais preciso ser confrontado com o mundo empírico.

   Freud poderia ser aqui chamado para reforçar Nietzsche. Platão nunca se casou e chegou a afirmar que o intercurso sexual só deveria ser mantido com vistas à reprodução... A psicanálise freudiana veria na negação do mundo sensível uma justificação inconsciente para a rejeição dos impulsos eróticos. Aristóteles, que rejeitava a existência de um mundo separado de ideias, teve duas esposas consecutivas e um casal de filhos. Essa espécie de crítica só se deixa amenizar pelo fato de que na época de Platão a ciência se encontrava muito menos desenvolvida, sendo por isso mesmo muito mais fácil acreditar em coisas como a metempsicose.

   Uma terceira objeção poderia vir da filosofia terapêutica de Wittgenstein, para quem filósofo podem ser possuído de uma tentação irresistível de produzir “nós do pensamento” ou “castelos de carta” com palavras, e que o trabalho crítico posterior da própria filosofia é o de desatar os nós do pensamento ao desfazer os castelos de carta da linguagem, trazendo as palavras de suas férias metafísicas de volta para o seu labor cotidiano (cap. XVIII, sec. 3).

   Para um filósofo como Wittgenstein, o conceito platônico de ideia seria irresgatável. Platão inventou um novo sentido para a palavra ‘idéa’, atribuindo-lhe objetividade e máxima realidade fora do mundo visível. Como não há suporte intuitivo nem justificação suficiente para essa inversão de valores semânticos, a ideia platônica corre o grande risco de não passar de uma fata morgana intelectual. Se a introdução da noção platônica de ideia for teoreticamente produtiva, ela poderá se tornar uma inovação semântica aceitável. Caso contrário, ela estará apenas roubando seu sentido da linguagem ordinária, reduzindo-se, quando propriamente considerada, a um conceito ininteligível. Veremos no capítulo XIX que pode haver uma alternativa ontológica mais razoável e que aponta para essa direção.

   Uma última tentativa de dar sentido às ideias platônicas seria dizer que elas possuem um status similar ao das leis da natureza. Como tais elas seriam objetivas, imutáveis. A lei da gravidade, por exemplo, precisaria ser distinguida de nossas formulações conceituais dessa lei na física (por Newton e por Einstein...), as quais podem ser sempre falsas. Por que não poderíamos dizer o mesmo de ideias como as de conhecimento e justiça? Isso não parece impossível: pode bem ser que tais conceitos possuam uma estrutura imutável, tanto quanto a de uma lei física. Mesmo assim, não parece fazer sentido atribuir realidade a essas estruturas no sentido próprio da palavra, nem deixar de tratá-las como propriedades estruturais para nominalizá-las como se fossem objetos particulares.

 

6

 

Conhecimento. Além da contribuição para a ontologia através da doutrina das ideias, Platão contribuiu para a epistemologia (teoria do conhecimento) através de sua teoria dos graus de conhecimento e de sua análise das ideias de conhecimento e crença. A primeira é apresentada nas bem conhecidas analogias da linha dividida e na alegoria da caverna. Quero me restringir aqui a algumas observações sobre sua análise da ideia de conhecimento e de suas consequências epistemológicas, principalmente pelo fato de que ela demonstra o quanto a filosofia tradicional ainda é capaz de alcançar problemas contemporâneos.

   No diálogo Teeteto Platão analisou a ideia de conhecimento. A conclusão de sua análise é que essa ideia se define como sendo a de uma crença verdadeira à qual se adiciona um logos. Mas logos é uma palavra grega multiplamente ambígua, o que termina fazendo o diálogo terminar inconcluso. Mais tarde a palavra ‘logos’ foi substituída na definição sugerida por Platão pelas palavras ‘justificação’ ou ‘evidência’, mais precisas, definindo o conhecimento como a crença verdadeira justificada. Essa definição foi aceita por Kant e atravessou intacta mais de dois mil anos de filosofia. Desde a década de 1960, porém, essa definição tradicional tem sido objeto de críticas devido à invenção de contraexemplos que parecem demonstrá-la insuficiente. No que se segue quero abrir parênteses para expor as críticas, analisar melhor a definição já sugerida por Platão e, por fim, mostrar que após algum aprofundamento ela é capaz de sobreviver incólume aos contraexemplos.

   Comecemos com a exigência de que a crença seja verdadeira. Se uma pessoa sabe que p (sendo p uma proposição qualquer), é preciso que p seja verdadeira. Uma pessoa pode saber que a Lua tem pedras, pois isso é verdadeiro, mas ninguém pode saber que a Lua é feita de queijo suíço, posto que isso é falso. Também não é possível que uma pessoa saiba que p e não acredite que p seja verdadeira. É contraditório dizer: “Sei que ensino filosofia, mas não acredito nisso”. Se não acredito é porque não sei, ao menos em circunstâncias normais. Finalmente, se uma pessoa sabe que p então ela é tipicamente capaz de justificar, vale dizer, supostamente capaz de apresentar evidência justificadora razoável para sua afirmação.[13] Por exemplo: se digo que sei que Villa Lobos compôs as Bachianas Brasileiras é porque sou capaz de justificar isso dizendo que assisti uma apresentação das Bachianas no Youtube, ou mesmo de dizer que ouvi falar que assim o compositor se chama (testemunho). Mesmo que em muitos casos eu tenha esquecido a justificação de algo que sei, se eu sei é porque alguma vez apreendi a justificação. Por exemplo, Maria diz saber que Fernando Pessoa escreveu a frase “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas foi nele que espelhou o céu”, mas não se recorda de onde e como chegou a saber disso. Entretanto, basta que alguém abra um livro de poemas de Pessoa para se certificar de que Maria se encontra bem justificada em dizer que sabe, pois uma mera coincidência seria aqui demasiado improvável. O que não parece possível é que uma pessoa prescinda por completo de qualquer experiência justificacional aceitável ou que se valha de uma justificação que não seja reconhecível por outros como sendo razoável. Não posso dizer, por exemplo: “Estive na Lua enquanto dormia porque me recordo claramente disso”, pois nossa comunidade epistêmica não admitiria essa justificação como sendo razoável.

   Até aqui as objeções são contornáveis. Contudo, a definição tradicional de conhecimento como crença verdadeira justificada foi desafiada através de alguns exemplos sugeridos por Edmund Gettier, que em um breve artigo publicado em 1963. Nesse artigo ele apresentou alguns contra-exemplos em que parecia haver crença verdadeira justificada, mas sem conhecimento.[14] Desde então uma imensa quantidade de artigos foi escrita na tentativa de remendar, substituir ou eliminar de vez o insight platônico.

   Eis um contraexemplo do tipo Gettier: Suponhamos que ontem Maria ouviu da boca do professor Pedro que hoje ele estaria pela manhã na universidade para avaliar uma defesa de tese. Como Pedro é petreamente sério, Maria está certa de que sabe que ele se encontra agora na universidade. E de fato, ele se encontra agora na universidade. Maria tem, assim, uma crença verdadeira justificada. Mas na verdade ela não sabe! E a razão é que durante a madrugada os três filhos adolescentes de Pedro sofreram um sério acidente de carro e se encontram agora hospitalizados. No início da manhã Pedro suspendeu todos os seus compromissos para hoje e foi para o hospital. Contudo, por mero acaso ele realmente se encontra na universidade, pois ele veio rapidamente à sua sala pegar alguns documentos. Maria tem uma crença verdadeira razoavelmente justificada; mas não sabe.

   Embora existam dezenas de soluções inteligentes para o problema, elas parecem todas insatisfatórias. De minha parte não tenho dúvidas de que a solução existe, é bastante intuitiva e preserva o essencial da definição tradicional. Embora aventada desde o início,[15] ela só foi suficientemente desenvolvida por Robert Fogelin[16] e aperfeiçoada por mim mesmo.[17] Para chegar a ela basta notarmos que em nenhum contraexemplo do tipo Gettier a justificação é suficiente para tornar a proposição verdadeira. Assim, dizer que o confiável Pedro havia afirmado ontem que viria hoje à universidade... parece ser uma justificação prima facie razoável. Contudo, ela se revela insuficiente quando a ela é adicionada a informação de que os três filhos de Pedro foram acidentados e que por causa disso ele suspendeu todos os seus compromissos para hoje. Mas se outra pessoa disser que Pedro se encontra na universidade por tê-lo visto passar no corredor há alguns minutos, ou por ter visto seu carro estacionado diante do escritório, isso deve ser uma justificação razoável e suficiente, pois realmente torna a proposição verdadeira.

   A solução do problema de Gettier consiste em exigir que a terceira condição, a de justificação, seja suficiente para tornar a proposição verdadeira da perspectiva do conteúdo informacional possuído por um sujeito avaliador e no momento de sua avaliação. O sujeito avaliador é alguém que tem informação sobre o fato de que a pessoa que pretende ter conhecimento que são tais que incluem razões para considerar a justificação por ela dada insuficiente para a verdade. No caso acima, o sujeito avaliador é uma pessoa que sabe que os filhos de Pedro foram acidentados e que ele suspendeu seus compromissos para hoje na universidade... Esse sujeito dirá que Maria não sabe, posto que a justificação por ela dada, mesmo que razoável, não é para ele suficiente para tornar sua afirmação verdadeira. Se ela tivesse dito, por exemplo, que viu Pedro estacionar o seu carro alguns minutos antes, sua justificação seria plenamente aceita pelo sujeito avaliador. Concluímos, pois, que:

 

Uma pessoa S sabe que p para um avaliador A se e somente se:

(i)             é verdade que p,

(ii)           a pessoa S acredita que é verdade que p,

(iii)         a justificação que a pessoa S oferece para p é considerada por um sujeito avaliador A (que pode ser até mesmo o próprio S em um momento posterior) em um tempo t como suficiente para tornar a proposição p verdadeira.

 

Há muito mais a se dizer sobre isso, por exemplo, é preciso responder à objeção relativista de que aquilo que julgamos ser conhecimento depende totalmente de quem for o sujeito avaliador. A resposta sumária a isso é que devemos dar preferência ao avaliador epistemicamente melhor preparado, o que deve incluir a posse de maior informação e o livre acesso à discussão crítica... Mas isso não é admitir relativismo. Assim, a definição uma vez proposta por Platão continua plausível. Ela não demanda rejeição, mas aprimoramento.

 

7

 

Quero agora considerar brevemente a psicologia de Platão. Ele tomou dos pitagóricos a sugestão de que a alma (psiqué) possui três partes: uma parte apetitiva outra volitiva e outra racional.[18] A parte apetitiva concerne ao desejo, ao apetite, ao impulso instintivo. A parte volitiva concerne à emoção, ao espírito, à coragem, à energia. E a parte racional concerne ao pensamento, ao entendimento, ao intelecto, à razão. As primeiras duas são compartilhadas com os animais, sendo só a última propriamente humana. (Daí a definição grega do ser humano como “animal racional.”)

   Para elucidar a interação entre essas três partes Platão sugeriu a imagem de uma biga celeste com um condutor – que seria a razão – e ainda dois cavalos, um bom – a alma volitiva – que quer alçar-se aos céus, e outro mau – a alma apetitiva – que dá muito trabalho ao seu condutor e precisa ser chicoteado.

   Platão associou essas três partes da alma ao que os gregos identificam como as virtudes cardinais. A virtude da parte racional é a sabedoria. A virtude da alma volitiva é a coragem. A virtude a alma apetitiva sob o controle da vontade é a temperança. Finalmente, da harmonia de cada uma dessas partes da alma, de modo a formar um todo, temos a virtude da justiça.

   A teoria da tripartição da alma tem equivalentes contemporâneos. Um primeiro deles se encontra na refinada divisão freudiana do psiquismo de forma em três instâncias, que são as do:

 

Id (Es), das pulsões instintivas

Ego (Ich), que possui a vontade, sendo o responsável pelo controle motor, e

Super-Ego (Über-Ich) responsável pela repressão e controle das pulsões.[19]

 

Parece claro que a parte apetitiva da alma corresponde ao Id, a parte volitiva corresponde ao Ego e a parte racional corresponde, ao menos em parte, ao Super-Ego, que tem como constituinte importante o Ideal-do-Ego, herdeiro das aspirações de realização dos pais.

   Há também diferenças. Uma delas é o grande papel que Freud atribuiu ao inconsciente, tanto no Ego quanto no Super-Ego. Outra é que em Freud o Ego é o condutor parcialmente racional, mediando entre um Super-Ego coibidor e as pulsões instintivas, enquanto para Platão o condutor deve ser a razão, ou seja, algo que corresponderia em grande parte ao Super-Ego...

  Podemos encontrar também uma razoável fundamentação neurocientífica para a tripartição platônica da alma. Trata-se da distinção proposta pelo grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean com sua teoria do cérebro triúno.[20] Segundo essa teoria, nosso cérebro é constituído por três computadores inter-relacionados e evolucionariamente originados. O arquiencéfalo, correspondente ao bulbo raquidiano e ao cerebelo, responsável pelas disposições instintivas do organismo, como a fome e o desejo sexual... O mesencéfalo é constituído pelo sistema límbico e responsável pelas emoções e motivações. Há por fim o neoencéfalo, que constitui o córtex e que no ser humano ocupa cerca de 78% da massa encefálica, sendo responsável pelo pensamento, pela racionalidade e pela consciência. A teoria do cérebro triúno não deixa, pois, de demonstrar a existência de divisões neurofisiológicas suficientemente próximas daquilo que Platão havia sugerido como sendo 1as partes apetitiva (arquiencéfalo), volitiva (mesencéfalo) e racional (neoencéfalo).

   Vemos que a neurofisiologia contemporânea suporta a teoria da tripartição da alma e que a psicanálise freudiana a desenvolve e em certa medida busca corrigi-la, o que por sua vez confirma a nossa tese de que a filosofia antecipa a ciência. Mas o fato importante e curioso é que essas teorias não parecem ter substituído por completo a teoria da tripartição da alma. A psicanálise, mesmo com a vantagem de ter introduzido o inconsciente, não introduz a relação com as virtudes. E a teoria do cérebro triúno é rudimentar demais do ponto de vista psicológico. Falar de substituição sem mais pode nos fazer recair no reducionismo – na crença que uma só dessas teorias vale – ou no cientismo – na crença de que só a teoria produzida segundo métodos e parâmetros científicos é que merece ser discutida. Somente um estudo comparativo aprofundado seria talvez capaz de trazer maior clareza sobre o que há de certo e errado em cada uma dessas abordagens;

   Afora isso Platão pretendeu demonstrar no diálogo Fédon a imortalidade da alma, o que em uma época pré-científica era uma ideia menos implausível do que na nossa. Ele acreditava que a alma vive no corpo como em uma prisão: O corpo é como a casa de um caramujo, a alma, devendo ser por ela carregado até a sua libertação final. O corpo é, aliás, a origem dos males. Ele é a sede de doenças, preocupações, paixões e fantasias que conduzem a conflitos que na sociedade conduzem às guerras. Para ele se a alma é boa nesse mundo, ela irá viver após a morte em alguma maravilhosa ilha bem aventurada, mas se é má, ela será castigada no Tártaro, que era o nome que os gregos tinham para o inferno, posto que só o sofrimento purifica a alma. Tudo isso é platonismo.

 

8

 

Filosofia política. Na antiguidade e durante o período medieval os diálogos políticos que receberam maior atenção foram O Timeu e As Leis, escritos na velhice de Platão. Foi só depois do renascimento que a importância da República foi descoberta. Nesse diálogo colossal, pela primeira vez na história um estado utópico foi experimentalmente construído; um estado que deveria ser capaz de realizar plenamente a sua função própria de prover a felicidade de seus cidadãos.

   A questão fundamental que percorre a República é sobre como devemos definir a justiça. Em uma das definições iniciais, a justiça acontece quando cada um recebe o que merece. Mas isso nos diz muito pouco. Após serem testadas várias sugestões implausíveis, Sócrates sugere que a justiça seja investigada em grande escala. Como a justiça se dá sempre dentro de uma sociedade, nós devemos procurar saber qual será a forma de um estado ideal, uma vez que ele será aquele no qual reina a justiça. Sendo assim, uma vez conhecido o estado ideal, dele poderemos mais facilmente depreender o que é a justiça.

   Ao considerar como deve ser uma cidade-estado Platão observa que ela tem como princípio operante a divisão do trabalho. Ninguém pode fazer bem todas as coisas. Assim, cada segmento da sociedade se especializa em fazer uma coisa e troca as coisas que faz pelas coisas de que precisa.

   A divisão de trabalho resulta de uma divisão de classes. Ele teve a ideia de fazer uso da teoria da tripartição da alma para dividir os cidadãos do estado ideal em três classes, segundo o predomínio das partes apetitiva, volitiva e racional da alma. As pessoas com predomínio da parte apetitiva da alma devem formar a classe trabalhadora dos agricultores e artesãos, o que inclui mercadores e qualquer coisa que envolva alguma atividade física laboral. (Em nosso mundo atual isso incluiria a classe dos que trabalham no comércio e na indústria.) As pessoas com predomínio da parte volitiva da alma formam a segunda classe, a dos auxiliares, ou seja, a dos militares encarregados da defesa da cidade-estado, indispensável no mundo antigo. E as pessoas com predomínio da parte racional da alma formam a terceira classe, a dos governantes-filósofos. Assim como a parte racional da alma deve ter domínio sobre as partes apetitiva e volitiva, a classe que representa a parte racional do estado, representando a virtude e a sabedoria, deve ter domínio sobre as classes que representam a busca de honras e de lucros.

   Platão era elitista: poucas pessoas são capazes de ter acesso à razão filosófica. Para que a maioria das pessoas não se sentissem ressentidas ao serem escolhidas como pertencentes a classes inferiores, mesmo que isso fosse feito para seu próprio bem, os governantes deveriam recorrer a uma “nobre mentira”, que é a de que por decisão dos deuses, os trabalhadores tem alma de bronze, os militares alma de prata e os filósofos tem alma de ouro.

   A favor de Platão pode ser notado que em sua república há tanto igualdade de oportunidades quanto mobilidade social, coisas que ainda hoje geralmente nos faltam. Até os vinte anos todos devem estudar educação física e artes no sentido amplo (os gregos eram alfabetizados através da poesia). E o aprendizado não deve ser forçado, pois nesse caso as pessoas esquecem. Ele deve ser baseado no puro prazer de aprender. Quanto à mobilidade social, ele lembrou que os pais não podem por antecipação saber a predominância da parte da alma que terão os filhos. Pode ocorrer que o filho de um guardião tenha a alma de bronze, ou que o filho de um agricultor tenha uma alma de ouro. Por isso, após um período inicial de educação universal deve haver um primeiro exame, quando os jovens completam vinte anos. Quem for reprovado ficará pertencendo à classe trabalhadora, tornando-se agricultor, artesão, comerciante ou coisa do gênero. Quem for aprovado continuará aprendendo ciências como matemática e astronomia até um segundo exame, quando completarem trinta anos. Só quem for aprovado nesse segundo exame terá o direito de aprender filosofia. Para Platão a filosofia não pertence ao início, mas ao final do processo de aprendizado, sem o que ela não passaria de jogo infantil e estéril. Sempre foi assim. Mesmo hoje é necessário que o filósofo, enquanto tal, acumule uma ampla gama de conhecimentos para ser capaz de desempenhar adequadamente seu oficio.

   É interessante o que Platão tinha a dizer sobre os prazeres e bens materiais. Os cidadãos pertencentes à classe dos guardiões e auxiliares não podem ter posses. Eles devem receber o suficiente para viverem confortavelmente e de maneira igualitária. Eles não beberão em copos de ouro, pois o ouro eles deverão trazer em suas almas. Isso é essencial para que não haja corrupção, nem ambição demeritória. Quem poderá adquirir posses serão as pessoas da classe dos agricultores, artesãos, comerciantes... Elas poderão acumular riquezas em medida suficiente, pois pela inclinação de suas naturezas não buscam integridade nem honras, mas principalmente os prazeres físicos. O estado zelosamente administrado pelos guardiões será benéfico para a classe apetitiva. A ideia aqui de que a riqueza não deve ser usada para corromper a política é perfeitamente atual.

   Mulheres terão os mesmos direitos dos homens na escala social; elas poderão ir para a guerra e se tornarem guardiãs. Entre os auxiliares e guardiões não haverá casamento, o sexo será controlado com objetivos principalmente eugênicos, filhos não desejados sendo postos à parte. As crianças serão educadas em creches, sem saberem quem são os seus pais. Ele acreditava que isso implementaria maior senso comunitário de união entre os membros da classe... Entre os quarenta e os cinquenta anos, além de estudarem ciências, os guardiões deveriam ganhar experiência do mundo juntando-se à classe trabalhadora. Só depois dos cinquenta anos os guardiões poderiam concorrer para que um deles se tornasse o rei, que seria então um rei-filósofo, capaz de saber o que pode proporcionar a boa vida aos seus concidadãos.

   Platão acreditava que só quando os governantes forem sábios e o rei for filósofo uma república terá cidadãos felizes. Ele tinha plena consciência de que seu estado ideal não era mais que um experimento imaginativo. Mas esse experimento seria uma maneira de orientar nossos pensamentos com relação a ideias como a de justiça.

   O estado idealizado por Platão como produzindo o máximo de felicidade para os seus cidadãos é o estado justo. Mas o que caracteriza sua justiça? Ora, ela se caracteriza pela comunhão do indivíduo com a comunidade, pela harmonia entre as classes, uma harmonia que resulta de cada um fazer aquilo que melhor lhe compete, recebendo como recompensa aquilo que por natureza mais deseja.[21] O estado ideal proposto por Platão é projetado para permitir que seus membros floresçam naquilo que eles possuem de melhor de modo a maximizar a cooperação social. E um homem justo é aquele que ocupa o lugar que lhe é próprio na sociedade. A resultante harmonia entre as partes de sua alma fará dele uma pessoa justa e, por consequência, virtuosa, refletindo em si a justiça social como a harmonia entre as classes. Por ser a justiça um conceito social, não faz sentido as pessoas se perguntarem se são justas em uma sociedade injusta. O grande exercício de pensamento que foi a construção de um estado supostamente perfeito possibilitou ao seu autor uma explicação plausível da natureza da justiça.

   Mas essa não é a única conclusão importante do diálogo. Já vimos que a virtude da parte racional da alma é a sabedoria, a virtude da alma volitiva é a coragem, a virtude da alma apetitiva unida à parte volitiva é a temperança, e que a harmonia das partes da alma dá lugar à virtude da justiça. Como consequência, cada classe do estado ideal incorpora em si uma das virtudes consideradas cardinais: os guardiões incorporam a sabedoria; os auxiliares incorporam a fortaleza ou coragem; a classe trabalhadora incorpora a temperança. E a justiça consiste, como já foi dito, consiste na harmonia entre as classes, no fato de que cada classe perfaz a tarefa que lhe é apropriada.

   Finalmente, com base nessas ideias Platão distinguiu cinco tipos de constituição política que tendem a se seguir uma à outra, decrescendo em virtude: monarquia (ou aristocracia), timocracia, oligarquia, democracia e tirania. A melhor forma de constituição era para ele a monarquia ou aristocracia, que preserva todas as virtudes sob o timão a sabedoria. O estado ideal concebido por Platão pertence a esse primeiro tipo, sob o suposto de que o monarca e os aristocratas sejam sábios. Quando os governantes deixam de ser sábios, o que temos é a timocracia: aqui o governo é dominado por militares, pelos que mantém a virtude da fortaleza ou coragem. A timocracia tende a degenerar, dando lugar a uma forma de governo ainda inferior, qual seja, a oligarquia. Esta ainda conserva alguma virtude de temperança, mas perdeu a virtude da coragem. A oligarquia degenera-se em democracia, que se caracteriza pela rejeição da temperança, ainda mantendo a ideia de justiça. Na democracia as pessoas agem por amor ao lucro, pois o dinheiro é o que permite a satisfação dos desejos materiais. Por fim, como as pessoas na democracia perderam a temperança, elas são facilmente enganadas por um líder demagogo que se alça ao poder e acaba por aprisionar os cidadãos em um meio totalitário. É assim que a democracia se degenera em tirania, que é o governo de déspotas que perderam até mesmo a ideia de justiça.

 

9

 

Observações. Já se notou que a República de Platão foi em alguma medida realizada na prática durante a Idade Média. A divisão entre uma classe clerical, celibatária, dentro da qual era preservado o saber, uma classe dos príncipes e nobres, preparados para ir à guerra e proteger os seus reinos pela força, e uma classe dos servos dedicados à agricultura, lembra-nos da divisão tripartite das classes proposta na República de Platão. Resguardando as diferenças óbvias, a projeção social da tripartição da alma proposta por Platão pareceu encontrar aqui uma tênue concretização na história.

   Karl Popper responsabilizou Platão, Hegel e Marx por rejeitarem a democracia, influenciando as pessoas no sentido de fazê-las crer em estados totalitários.[22] Popper nos lembrou que Platão e Heráclito pertenciam à velha aristocracia grega que havia perdido o poder para a democracia. Dois de seus tios foram mortos nessa disputa ao defenderem o governo dos trinta tiranos. A herança aristocrática de Platão o fazia sentir-se ressentido com a democracia... A crítica de Popper tem a ver com a falha central do experimento platônico: a impossibilidade de se saber quem decide quem será o rei será o rei-filósofo. Quem decide, por exemplo, como serão as avaliações para a escolha dos guardiões? Essa espécie de questão nunca foi respondida por Platão.

   O maior clássico da filosofia política do século XX, o livro de John Rawls intitulado Uma teoria da justiça,[23] também tinha como objetivo identificar a forma de uma sociedade verdadeiramente justa. Para que possamos concebê-la, Rawls idealizou uma famosa experiência em pensamento. Imagine que você tenha várias alternativas de sociedade para escolher e que você deva escolher entrar em uma delas. Você conhece a natureza humana e sabe como as diversas sociedades funcionam. Mas você não sabe como irá entrar em uma dessas sociedades: se rico ou pobre, se homem ou mulher, se jovem ou velho, se inteligente ou tolo, se branco ou negro... Você deverá escolher entrar em uma sociedade coberto pelo que Rawls chamou de “o véu da ignorância”. Nesse caso, que sociedade você escolherá? A resposta é que você irá preferir entrar em uma sociedade onde impere a justiça social. Muito provavelmente você escolherá entrar em uma sociedade social-democrática no sentido em que a expressão é usada com respeito ao sistema dos países nórdicos... Pois essa será a sociedade onde, em qualquer situação, você estará mais seguro. Você não escolherá entrar em uma sociedade sem mobilidade como a da Roma antiga, onde terá boas chances de entrar como escravo, não lhe sendo possível fazer qualquer coisa que lhe permita mudar o seu destino.

   Uma questão é saber quantos de nós, sob o véu da ignorância, escolheriam entrar na sociedade ideal proposta por Platão, imaginando como alternativa as sociedades existentes na época. Desconfio que a maioria de nós escolheria a república de Platão, ainda que com reservas. Pois suponha um de nós tenha nascido com as partes racional e apetitiva da alma bem desenvolvidas, mas com a parte volitiva bastante fraca. Nesse caso essa pessoa não terá lugar na sociedade ideal de Platão, pois não estará bem nem entre os agricultores nem entre os guardiões. Não há lugar na sociedade platônica para a combinação de ouro com ferro.

 

10

 

Arte. No incômodo capítulo X da República Platão condenou a arte. O artista não sabe do que fala. De acordo com ele a arte é mímesis, que significa ‘cópia’. Mas como as coisas visíveis já são cópias das ideias e a arte é cópia dessas cópias, trata-se de algo demasiado imperfeito e enganador. Platão aceitava em sua república apenas poesias e hinos patrióticos. Como foi exatamente essa a forma de arte que as mais lamentáveis ditaduras do último século apoiaram, torna-se para nós difícil concordar com ele.

   Uma razão externa para pensarmos que Platão possuía uma visão distorcida do papel da arte é que os artistas se encontram em geral voltados para o mundo sensível: seu material de trabalho é a vida como ela é, sem anestesias ou consolações filosóficas. Voltados como estavam para experiências emocionais e sensórias, eles eram os maiores críticos da ascese platônica. Se o estudo das matemáticas a facilitava, a experiência estética a dificultava.

  Há, porém, algo de verdadeiro no que Platão escreveu, que diz respeito à má arte. Ele percebeu que o artista pinta uma cama sem entender como o carpinteiro a construiu e pinta um sapateiro em seu trabalho sem nada entender da arte de fazer sapatos, o mesmo acontecendo com um dramaturgo que representa as ações de um grande general sem entender nada da estratégia militar.[24] O resultado é que ele tenderá a confundir o espectador, que também nada sabe acerca do que está por trás daquilo que vê.

   Para esclarecer o que há de falso na concepção de arte de Platão quero fazer uma comparação com o que o filósofo R. G. Collingwood distinguia como sendo três formas de arte: a arte como entretenimento, a arte sacra e o que ele chamou de arte própria, a mais elevada forma de arte, tal como a tragédia grega ou os melhores textos de Shakespeare. Para ele a única forma de arte verdadeiramente merecedora do nome seria a arte própria, cujo objetivo era o de despertar a consciência: reavivar nas pessoas aquilo que elas procuram esconder de si mesmas e que por isso adoece a sociedade. Como ele mesmo escreveu:

 

Conhecer a nós mesmos é a fundação de toda a vida que se desenvolve para além do nível de experiência meramente físico. Uma consciência verdadeira dá ao intelecto uma fundação firme; uma consciência corrompida força o intelecto a construir sobre areia movediça.[25]

 

 

Por isso o artista deve ser um profeta:

 

 

...não no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ele conta à sua audiência, sob o risco de desagradá-la, os segredos de seus próprios corações. (...) Como porta-voz de sua comunidade, os segredos que ele precisa pronunciar são os dela mesma. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma comunidade conhece seu próprio coração; e por falhar em conhecê-lo, uma comunidade engana-se a si mesma sobre uma matéria em relação a qual a ignorância significa morte... A arte é a medicina comunitária para a pior doença da mente, que é a corrupção da consciência.[26]

 

Quero exemplificar essa função terapêutica da arte lembrando uma música cantada por Billie Holiday, intitulada “Estranho Fruto” (Strange Fruit). Traduzo livremente[27]:

 

Árvores do sul dão um estranho fruto

Sangue nas folhas, sangue nas raízes

Corpos negros balançando à brisa do sul

Estranho fruto pendurado sob os álamos.

Cena pastoral do galante sul

Olhos abaulados, bocas retorcidas

Perfume de magnólia, doce e fresco

E o repentino odor de carne queimada.

Um fruto para os corvos arrancarem

Para a chuva lavar e o vento sugar

Para o sol apodrecer e da árvore tombar

Aqui se dá uma estranha e amarga colheita.

 

O estranho fruto são dois negros que foram linchados e enforcados sob uma árvore na Carolina do Sul, em meio a uma multidão festiva que se orgulhava do feito. Não havia leis proibindo o linchamento. A cantora foi perseguida e até mesmo presa por ter tido a ousadia de continuar cantando a música. Mas a sua letra amplia o sentimento de injustiça ao denunciar pelo antagonismo de uma metáfora, com irônica elevação de alma, um cenário cruel e desumano.

   Aqui não encontramos nada que possa ser identificado com uma cópia da realidade, diversamente, digamos, de um artigo de jornal noticiando o acontecimento. O que percebemos é uma maneira de denunciar uma injustiça concreta colocada em contraposição flagrante ao ideal de justiça – algo cuja força é ampliada pelo lirismo irônico da meáfora.

   Quero oferecer ainda mais dois outros exemplos de arte própria. A primeiro diz respeito a Machado de Assis, tal como ele foi interpretado pelo crítico literário Roberto Schwarz, para quem a segunda fase da obra machadiana contém uma refinada crítica social, tão sutil que passou quase despercebida. Isso acontece com o personagem Brás Cubas, o defunto autor da peça literária incomparável chamada As memórias póstumas de Brás Cubas. Ele é um homem rico, inteligente, perspicaz e crítico, orgulhando-se de ter aurido seus valores no mais progressista pensamento europeu da época. Mas ao mesmo tempo ele se gaba de nunca ter ganhado a vida com o suor do próprio corpo e arranja como amante uma senhora casada, sem falar no fato de que ele dá importância a toda espécie de superficialidade, como quando rejeita uma pretendente ao descobrir que ela é manca ou mesmo quando inventa um emplastro supostamente capaz de curar qualquer tipo de doença com o objetivo único de obter notoriedade. Algo semelhante se dá no caso do mimado Bentinho, o personagem moralizador do romance Dom Casmurro, cuja mãe era por ele considerada um exemplo ímpar de doçura e bondade, mas que vivia do aluguel de escravos. Para Schwarz, Machado de Assis estava ironizando as contradições de nossa classe abastada, que em suas convicções se pretende progressista, mas que em suas ações está disposta a ceder a toda espécie de baixeza.

   Meu último exemplo são os filmes fortes de Cláudio Assis, acima de todos O baixio das bestas, em que ele denuncia a desumanidade nos canaviais pobres de Pernambuco. Como ele mesmo comentou a respeito: “As piores coisas acontecem diante dos olhos de todos e ninguém faz nada para impedir.”

   Em todos os casos acima não há qualquer intenção de copiar a realidade, a menos que seja para denunciá-la, opondo a ela a ideia mesma de justiça que tanta importância tinha para Platão.

 

 

 

 



[1] Platão: Apologia de Sócrates 36-37. Ver Socrates’ Defense (Apology), in Plato: Collected Dialogues. Ed. Edith Hamilton & Huntington Cairns (Princeton: Princeton University Press 1963).

[2] Ver Fedon 74-78. República V, 476, 479.

[3] Protágoras 330 c-d.

[4] República 596 a-b.

[5]  Menon, 81 c-d.

[6] Ver Sofista 246 a-e; Timeu 51b-e.

[7] Parmênides 131b.

[8]  Aristóteles: Metafísica, livro 13, cap. 4.

[9] Aristóteles, Metafísica A 9, 990b.

[10] Uso F e G em itálico para indicar quaisquer propriedades que diferem entre si.

[11] O crepúsculo dos ídolos, O problema de Sócrates, sec. 3. Em outras passagens Nietzsche demonstra-se muito mais simpático à figura de Sócrates.

[12] Sócrates foi condenado por um júri popular de 501 membros, dos quais. 360 votaram pela pena capital e 140 por uma multa.

[13] Digo “tipicamente” porque no caso do conhecimento dos assim chamados enunciados básicos a justificação é desnecessária. Assim, se digo “Estou com dor de cabeça” não preciso nem tenho como justificar, pois sei disso por experiência imediata.

[14] Edmund Gettier: “Is Justified True Belief Knowledge?” Analysis 23, 1963, pp. 121-123

[15] Como escreveram ... em 1968:

[16] Ver Robert Fogelin: Pyrronian Reflexions on Knowledge and Justification (Oxford: Oxford University Press 1994).

[17] Minha versão da mesma solução, mais detalhada e rigorosa, foi publicada pela primeira vez sob o título de “A Perspectival Definition of Knowledge”, in Ratio 23 (2): 2010, pp. 151-167. Ela foi republicada com correções em Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (CSP 2014), Cap. V.

[18] República 435e- 441c,

[19] Sigmund Freud: O Ego e o Id e outros trabalhos (1923-1925) (vol. 19) (Rio de Janeiro: Imago 1996).

[20] Paul D. McLean: The History of Neuroscience in Autobiography, ed. L. R. Squire (London: Academic Press 1988), vol. II, cap. 20.

[21]  República IV, 433, 443 d-e.

[22] Karl Popper: The Open Society and its Enemies (Princeton: Princeton University Press 2013), vol. I: The Spell of Plato.

[23] John Rawls: A Theory of Justice (Cambridge MA: Harvard University Press 1971).

[24] Ver Ion 540-542.

[25] R. G. Collingwood:  The Principles of Art (Oxford: Oxford University Press) p. 284.

[26] R. G. Collingwood: The Principles of Art. Ibid., p. 336.

[27] Eis o poema original de Abel Meerpool:

 

“Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the Southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees.


Pastoral scene of the gallant South
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolia, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh.


Here is a fruit for the crow to pluck
For the rain to wither, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop.”




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