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OS
TRÊS AXIOMAS FUNDAMENTAIS DA LÓGICA CLÁSSICA
As leis da identidade, do
meio excluído e da não-contradição foram tradicionalmente chamadas de “leis do
pensamento”. Como é bem sabido, isso é incorreto, dado que processos de
pensamento são psicológicos e não possuem a invariabilidade da lógica, a menos
que você seja um fregeano. Melhor seria chamá-las de leis ou princípios do
raciocínio ou da argumentação, ou ainda, como veremos, axiomas fundamentais da
lógica clássica. A questão que nos interessa aqui é a de seu verdadeiro status
e da maneira como eles podem ser inter-relacionados.
A primeira coisa as fazer é enunciá-los. Isso
pode ser feito tanto em termos ontológicos quanto linguísticos. Na formulação
ontológica a lei da identidade fica sendo: “uma coisa é ela mesma”, ou “o que
for que é, é” (“Whatever is, is”, no dizer de Locke), ou ainda, “uma
coisa é idêntica a si mesma”. Em sua formulação linguística ele fica sendo “A =
A” ou, como muitos preferem: “A → A”, ou ainda “A ↔ A”, onde ‘A’ exprime um
enunciado.
A segunda lei do pensamento é o princípio do
meio excluído. A sua formulação ontológica é: “uma coisa é ou não é ela mesma”.
A sua formulação linguística é “A v ~A”.
A terceira lei do pensamento é o princípio
da não-contradição. Ontologicamente formulado ele nos diz que “Uma coisa não
pode ser e não ser ela mesma” ou “Uma coisa não pode ser idêntica e diferente
de si mesma”. Sua formulação linguística fica sendo “~(A & ~A)”.
Em resumo, os princípios são:
(1)
Uma coisa é ela mesma: A → A
(2)
Uma coisa é ou não é ela mesma: A v ~A,
(3)
Uma coisa não pode ser e não ser ela
mesma: ~(A & ~A).
Cumpre ainda notar que é
possível definir esses princípios usando os conceitos de identidade e diferença
ao invés dos operadores verofuncionais. Para tal precisamos entender o
princípio da identidade “A = A” como “(A = A) = (A = A)”. Essa redundância não
parece prejudicar a afirmação do princípio. Mas uma vez aceito isso podemos
reformular o princípio do meio excluído como “(A = A) v (A ≠ A)”, pois dizer
isso é o mesmo que dizer “A v ~A”. E podemos reformular o princípio da
não-contradição como dizendo que ~[(A = A) & (A ≠ A)], o que é o mesmo que
dizer que “~(A & ~A)”.
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As primeiras formulações
desses princípios surgiram já entre os gregos. Em seu poema Parmênides escreveu
que “o ser é e o não ser não é...” e que não se pode dizer que “o que não é é e
que o não-ser é necessário” (DK 28 B 2. 1-7), o que são formulações do
princípio da identidade e da não-contradição respectivamente. Também podemos
encontra-los em Platão. O princípio da não-contradição é formulado na República
como: “É óbvio que a mesma coisa não sofrerá opostos sob o mesmo aspecto em
relação à mesma coisa ao mesmo tempo” (4: 436b). E Aristóteles discursou
longamente sobre os princípios da não-contradição e do meio excluído no livro
IV de sua Metafísica. Como ele escreveu sobre o princípio da
não-contradição, repetindo Platão: “Evidentemente, tal princípio é o mais certo
de todos. Ele pode ser expresso assim: o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo
pertencer e não pertencer ao mesmo sujeito sob o mesmo aspecto” (1005b 18-20).
Aristóteles não tem como demonstrar o
princípio da não-contradição, uma vez que ele é pressuposto por qualquer
demonstração. Mas ele nos lembra que esse princípio não pode ser negado. Quem
nega o princípio, escreveu ele, precisa ficar mudo como uma planta, pois
qualquer coisa que diga o irá contradizer. Hoje diríamos que o princípio da
não-contradição é tão primário que se encontra embutido em nosso comportamento.
Se nós nos comportamos racionalmente, nós o afirmamos. Sua ausência é
incompatível com a vida: uma zebra que não possua esse princípio não terá como fugir
de seu arqui-inimigo, o leão. Pois ao perceber um leão que se aproxima ela ao
mesmo tempo não o percebe, até que seja tarde demais. Mesmo uma ameba não será
capaz de realizar a fagocitose se ela for capaz e ao mesmo tempo não for capaz
de reconhecer seu alimento. O princípio da não-contradição é ubíquo.
Tanto na formulação de Platão quanto na de
Aristóteles o enunciado A é substituído por um enunciado do tipo Fa, onde a
está para um sujeito e F está para seu atributo. A formulação do princípio da
não-contradição fica sendo então: “~(Fa & ~Fa)”, a do princípio do meio
excluído fica sendo “Fa v ~Fa” e a do princípio da identidade fica sendo Fa →
Fa. Fica mais claro ao entendimento instanciar o princípio da identidade em um
enunciado como “Se o céu é azul então o céu é azul”. Mas como o A não precisa
estar no lugar de um enunciado predicativo singular, mas de um enunciado
quantificado, é mais correto nos restringirmos à letra sentencial A.
Fundamental, porém, é a adição complementar
de que o princípio da contradição só vale se for considerado em um só tempo e
sob o mesmo aspecto. Claro que com o passar do tempo uma coisa pode deixar de
ser ela mesma e que a mesma coisa pode, se considerada sob perspectivas
diversas, deixar de possuir certos atributos. Essa adição deve ser estendida
também para os outros princípios. Bem entendido, o princípio da identidade nos
diz que uma coisa é ela mesma ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto e o
princípio do meio excluído nos diz que uma coisa é ou não é ela mesma ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto. Afinal, uma coisa pode passar a ser apenas
parcialmente no correr do tempo ou assim ser concebida.
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Fundamental é notarmos que precisamos aplicar
esses três princípios ao construirmos nossas tabelas de verdade. Afinal, o
valor-verdade de A deve permanecer o mesmo em cada reaparecimento da letra nas
linhas horizontais, o que demanda a aplicação do princípio da identidade. Além
disso o valor-verdade de A não pode mudar do verdadeiro para o falso ou
vice-versa, conservando o princípio da não contradição. Finalmente, o valor
será ou verdadeiro ou falso, não podendo ser intermediário, seguindo o
princípio do meio excluído.
Quero agora mostrar que
esses três princípios se condicionam mutuamente. Do ponto de vista ontológico
esses princípios se condicionam mutuamente no sentido de que o princípio da
identidade, dizendo que uma coisa é se ela é e que ela não é se ela não é,
equivale a afirmar o princípio do meio excluído, segundo o qual dizer que se
ela é se ela é e se ela não é se ela não é, então ela é ou não é. O que é o
mesmo que afirmar o princípio da não-contradição, segundo o qual a coisa não
pode ser e não ser ela mesma. Já do ponto de vista linguístico, afirmar o
princípio da identidade dizendo que um enunciado se bicondiciona a si mesmo
equivale a afirmar o princípio do meio excluído dizendo que o enunciado é ou
verdadeiro ou falso, o que equivale ao princípio da não-contradição, segundo
qual ele não pode ser verdadeiro e falso.
Para verificarmos a equivalência entre esses
princípios basta notarmos equivalência nos resultados tautológicos das tabelas
de verdade para cada princípio:
A (A ↔ A)
≡ (A
v ~A) ≡ ~
(A v
~ A)
v v v v v
v
f v v v v
v
Como já foi notado os
princípios são necessários à construção das tabelas de verdade. Ainda assim,
elas podem ser aplicadas para demonstrar a equivalência lógica entre esses
princípios como é mostrado acima.
O próximo ponto é que esses princípios
servem de axiomas para toda a lógica clássica. Contra essa ideia poder-se-ia
objetar que eles são tautologias e que o número de tautologias geradas pela
lógica clássica é infinito e são todas equivalentes. Considere o seguinte
exemplo de uma tautologia equivalente ao princípio da identidade:
A (A ↔ A)
≡ [(A & ~A)
→ (A v ~A)]
v v v v
f v v v
A resposta a essa objeção
é simples: os três princípios da lógica clássica são as tautologias mais
simples que somos capazes de imaginar e por essa mesma razão eles servem como
axiomas. Eles servem de axiomas porque eles nos permitem construir as tabelas
de verdade que definem os operadores do cálculo sentencial. E por essa mesma
razão esses princípios terminam por definir as regras tautológicas, como a do modus
ponens, etc. que permitem a construção das derivações no cálculo
sentencial. Com isso fica clara a função axiomática dos princípios.
3
Todos os três princípios
têm sido questionados pela lógica contemporânea, muito embora não exista
consenso algum acerca da validade desses questionamentos. O princípio do
terceiro excluído é o que tem sido mais questionado, razão pela qual quero
considerá-lo aqui.
A principal questão diz respeito às fronteiras
indivisas (blurred boundaries) entre a aplicação e não-aplicação de
um conceito ou enunciado. Que dizer de uma sentença como “Está chovendo” em uma
situação na qual não podemos saber se está chovendo ou não? Imagine que seja
noite e que exista uma névoa ao redor, com pequenas gotículas de água suspensas
no ar, talvez descendo levemente. A resposta parece poder ser: dita em tal
situação não podemos dizer nem que ela é verdadeira nem que ela é falsa. Sob
essa consideração lógicos como Lukasievicz sugeriram uma lógica trivaluada com
um valor neutro entre o verdadeiro e o falso. Outros sugeriram lógicas
multivaluadas. E outros ainda chegaram a sugerir que em tal caso a frase é
verdadeira e também falsa (dialetheismo). Afinal, a frase “nem está chovendo
nem não está chovendo” pode ser interpretada como significando “Não está
chovendo e está chovendo”, devido à dupla negação. Não pretendo discutir essas
alternativas. Quero apenas mostrar como o problema das fronteiras indivisas
pode ser acomodado dentro da lógica clássica.
A primeira coisa a ser notada é que a lógica
clássica trata de sentenças que são abstrações formais de juízos ou asserções
nas quais existe pretensão de verdade. Essa é a razão pela qual sempre
atribuímos valor-verdade a suas sentenças. O juízo ou sua expressão verbal na
asserção carrega consigo a ideia da verificação do valor-verdade da sentença, o
que de modo algum interessa ao lógico. Contudo, essa origem verificacional do
valor-verdade das sentenças não deve ser esquecida. Considere agora o caso da sentença
“Está chovendo” dita em uma situação na qual não se tem como verificar se está
ou não chovendo. Essa frase não terá valor-verdade. E a razão disso é que ela
não é abstração de uma situação na qual ela possa ser afirmada e ajuizada. O
problema com essa frase é que ela não possui nenhuma relevância pragmática.
Como não há meios de verificá-la, sequer significado cognitivo ela possui. Seu
significado é meramente gramatical. A conclusão é que sentenças produzidas no
terreno das fronteiras indivisas não possuem qualquer relevância semântica.
Essa é a razão pela qual a lógica clássica não as considera.
Pode ser considerada uma limitação a
existência de fronteiras indivisas relativas no interior das quais as sentenças
não possuem aplicabilidade. Mas essa limitação, caso seja sentido, é facilmente
sanável através do estreitamento das fronteiras. É sempre possível a instalação
de um aparelho pluviométrico capaz de determinar com maior precisão se está ou
não chovendo. Imagine, para considerar outro exemplo, que uma espécie de chuva
ácida caia sobre Nova York e que o verde da Estátua da Liberdade (que, como
todos sabem, em sua origem foi cor de bronze) e que essa cor se desbote de tal
maneira que não sejamos mais capazes de saber que cor a estátua agora tem.
Nesse caso uma frase como “A Estátua da Liberdade é verde” não passou a ter um
valor-verdade neutro, mas simplesmente deixou de ter sentido. Ela não possui
mais qualquer função pragmática pelo fato de se ter tornado inverificável.
Certamente, um especialista em cores poderá encontrar uma cor que corresponda
ao desbotamento da estátua dizendo que ela é, digamos, “#vb4377”. Nesse caso a
afirmação “A Estátua da Liberdade é #vb4377” será verdadeira e a razão disso é
que ela está abstraindo o valor-verdade de um juízo.
Uma última reflexão: se a lógica clássica é
imbatível e as outras ou lhe são complementares ou são lógicas ilógicas, então
o fundamento de toda a lógica é fácil de ser encontrado e não demanda nenhuma maior elocubração intelectual. Ele se resume aos três axiomas fundamentais aqui
sumariamente discutidos.
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