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terça-feira, 12 de novembro de 2024

A REVOLUÇÃO CARTESIANA (V)

  Draft para o livro "Introção histórica à filosofia" (a ser publicado).

  

  

 

V

A REVOLUÇÃO CARTESIANA

 

Vive bem quem vive bem escondido.

Descartes

 

 

Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria analítica, que permite representar figuras da geometria plana através de fórmulas algébricas. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é tido como o fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a chamada revolução cartesiana, que mudou o eixo de investigação em filosofia teórica da metafísica para a epistemologia.

   As filosofias helenista, romana e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles, que punha a metafísica no centro da filosofia. Além de ser primordial, a filosofia teórica tinha como ponto de partida a investigação metafísica dos constituintes últimos da realidade, das ideias em Platão e do ser enquanto ser em Aristóteles. Só secundariamente era desenvolvida uma investigação epistemológica sobre a natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas. O vetor da filosofia teórica vinha do ser para o pensamento. Com Descartes isso se inverteu. Ele já era ciente do quanto nossa capacidade de fazer investigações metafísicas dependia de nossa capacidade de conhecer, o que tornou razoável que se começasse por investigar nossas capacidades cognitivas. Ele começou se perguntando pelo que somos capazes de saber com certeza, para só então, com mais segurança, chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de mais fundamental. O resultado foi a construção de um edifício filosófico completamente novo, muito diferente daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro. Com isso ele deslocou o vetor da filosofia teórica do pensamento para o ser. E aqui também a filosofia se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no crepúsculo do renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos renascentistas com o homem uma parte essencial de seu programa.

 

1

 

O cogito. O culprit do desenvolvimento da filosofia cartesiana foi a disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo o ceticismo pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio do ceticismo é o de que tudo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado, então também os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o ceticismo colocar em questão a eternidade da alma ou até mesmo a existência de Deus... Descartes era um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La Flèxe, o mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado por amigos a fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do ceticismo. A culminação de tudo isso foi o grande clássico de argumentação filosófica e requinte estilístico chamado Meditações de filosofia primeira Filosofia.[1]

   O objetivo de Descartes nas Meditações era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e, como veremos, com base nela ele de fato erigiu toda a sua filosofia. Para chegar a essa certeza ele começou por estabelecer um método, o da dúvida. Segundo esse método, tudo o que puder ser duvidado deve ser tratado como se fosse falso. Para começar ele decidiu aplicar esse método a coisas vistas à distância. Claro, podemos nos enganar quanto a elas. Uma árvore vista na neblina à distância é por vezes confundida com um ser humano. Mas não parece que possamos nos enganar quanto a coisas que se encontram muito próximas de nós. Descartes inventou então o argumento do sonho. Já aconteceu, notou ele, de eu estar aqui diante dessa lareira sonhando que o fogo está a crepitar quando na verdade ele já se apagou há algum tempo. Nada nos garante que a vida não seja um sonho e que as coisas ao nosso redor na verdade não existam. Se é possível que eu esteja sonhando, posso descartar o mundo sensível ao meu redor como objeto de certeza. Para magnificar seu raciocínio ele desenvolveu então a dúvida hiperbólica, que é a dúvida estendida a regiões acima de qualquer suspeita. Para aplicá-la ele imaginou um gênio maligno imensamente poderoso, que empregaria toda a sua astúcia para o enganar. O gênio maligno produziria em Descartes a alucinação de ser um filósofo vivendo na França no século XVII, quando na verdade ele poderia não passar de uma alma flutuando isolada no espaço vazio e sendo sistematicamente confundida. O gênio seria tão malevolente que até mesmo em seu pensamento matemático Descartes estaria sendo enganado. Ao somar 3 + 2 o gênio o levaria a concluir que o resultado é 5, quando na verdade todos sabem que é 6 (se você discorda, prezado leitor, pode bem ser que também esteja sendo confundido pelo gênio maligno).

   Contudo, imediatamente após isso Descartes descobriu algo capaz de resistir às mais incríveis artimanhas do gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que alguém se engane, fazer com que esse alguém não exista. Afinal, para alguém ser enganado é preciso que exista e mesmo que pense (como escreveu Agostinho: “Si fallor sum”). Se alguém pensar que 3 + 2 = 7, esse alguém está obviamente enganado, mas não é possível que ao cometer esse erro de cálculo ele não exista ou que não esteja pensando. Descartes resume sua grande descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito ergo sum) em seu Discurso do Método,[2] e no enunciado “Eu sou, eu existo” nas Meditações.[3] Ao menos no presente, enquanto estou pensando, não é possível duvidar de que eu existo como ser que pensa. Trata-se de uma certeza indevassável. Não pode ser falso que eu sou uma coisa que pensa, ao menos enquanto estou pensando. Intérpretes contemporâneos identificaram o cogito com uma verdade “autoverificável” (Jaakko Hintikka) ou “necessária a posteriori” (Harry Frankfurt). Para Descartes, tal como o ponto fixo da alavanca, que permitiria a Arquimedes levantar o mundo, a certeza do cogito é o que lhe permitiria erigir seu sistema metafísico.

   Nos passos seguintes de seu argumento Descartes cuidou de construir seu sistema. Vou resumir. Uma vez que ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de pensar algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui, pois, uma ideia inata de Deus. Mas Deus é um ser infinitamente superior a ele mesmo. Como ele é um ser humano limitado, ele não pode ser capaz de pensar algo infinitamente superior a si mesmo, a menos que esse ser infinitamente superior exista e que ele tenha posto em sua na mente a ideia de si mesmo. Por conseguinte, Deus existe. Além disso Descartes apresenta sua versão própria da prova ontológica da existência de Deus proposta por Anselmo: já que concebemos Deus como um ser com infinitas perfeições, ele deve possuir a perfeição da existência, caso contrário não seríamos capazes de concebê-lo... Deus, possuindo infinitas perfeições, precisa também ser infinitamente bom. Ora, sendo Deus infinitamente bom, ele não permitirá o engano sistemático, nem a existência do gênio maligno a nos fazer alucinar um mundo externo que na verdade não existe, ou a nos enganar na mais simples operação aritmética. Eis porque podemos estar certos de que o mundo externo existe e de que ideias claras e distintas como 3 + 2 = 5 são verdadeiras.

 

2

 

Elvino. A muitos também parece intuitivo que nada daquilo que é conhecimento empírico poderia ser totalmente imune ao erro. Mas o conhecimento do cogito é empírico. Cabe então a pergunta: seria possível imaginar uma situação na qual ele é falso? Talvez sim, por uma identificação enganosa. Para tornar esse ponto compreensível, imagine que um senhor idoso e um pouco caduco chamado Elvino desapareça nas mãos de um cientista do mal. Esse cientista substitui Elvino por um androide extremamente sofisticado e perfeitamente idêntico a Elvino, que fala e age como se fosse ele, mas que não tem nada na cabeça, a não ser um mecanismo implantado que faz com que seu comportamento seja inteiramente controlado à distância pelo cientista. Os familiares de Elvino não conseguem explicar seu súbito desaparecimento. Mas um certo dia o androide do Elvino bate à porta de sua casa. Quando ela é aberta ele se apresenta dizendo: “Sou eu mesmo, o Elvino; e fiquem sabendo que eu ainda existo e que além disso eu sou um ser pensante”. Todos ficam felizes por tê-lo de volta... Mas o proferimento “eu... existo como um ser pensante” é agora falso, pois Elvino já não existe mais e não há nenhuma consciência pensante ocupando o autômato... Logo, parece que o cogito falso é possível!

   A isso o defensor de Descartes poderá responder que o proferimento “Eu existo como ser pensante” continua sendo verdadeiro, mas com relação ao cientista maligno que controla o androide, pois é ele o verdadeiro autor do pensamento expresso pela frase, o qual só precisa ser apenas reinterpretado.

   Mas aqui surge um problema. Se o cientista maligno estivesse se referindo a si mesmo, o “Eu existo como ser pensante” por ele pensado seria verdadeiro. Mas o seu objetivo é precisamente o de enganar as pessoas, pondo essas palavras na boca do androide e fazendo com que o pronome pessoal ‘eu’ se refira a uma cópia mecânica de Elvino e não ao próprio Elvino, de modo que é errado dizer que com esse pronome o cientista do mal está se referindo a si mesmo. Ele se refere ao eu que ele tem em mente e quer que os outros tenham em mente, ou seja, a uma pessoa que não existe e que está sendo apenas mimetizada pelo androide. Por conseguinte, esse continua sendo um caso no qual o proferimento “Eu penso, eu existo” traduz um pensamento que é simplesmente falso.

   Contra essa conclusão, o defensor de Descartes ainda poderá objetar que a função do pronome pessoal ‘eu’ é sempre a de se referir àquele que fala no momento em que fala, ou seja, ao emissor do som, seja ele o que for. Como no exemplo de Elvino quem emite o som é um autômato, o ‘eu’ de “Eu existo” se refere ao autômato que de fato existe, e não a Elvino, o que torna o proferimento outra vez verdadeiro.

    Mas aqui surge um novo problema. É que ao usar o pronome pessoal ‘eu’ Descartes tinha em mente um sentido rico da palavra, no qual ele se referia a uma consciência ou mente pensante, e não a algo que seria satisfeito por um autômato ou um papagaio ou mesmo por um autofalante que proferisse os sons “Eu existo”. Ou seja: se, no proferimento do autômato o sentido cartesiano da palavra ‘eu’ for coerentemente preservado, o “Eu existo” por ele referido ou não se refere a mais nada ou continuará sendo expressão do pensamento do cientista maligno que, por sua vez, está se referindo a uma pessoa que não existe, o que o torna de um ou de outro modo falso. Assim, se o autômato dissesse “Penso, logo existo”, isso seria falso, pois a pessoa tomada por Elvino nem pensa nem existe. Será que o cogito cartesiano é capaz de resistir a esse argumento? Deixo a resposta por conta do leitor.

 

3

 

Interacionismo. É importante em Descartes a defesa do dualismo interacionista quanto ao que hoje é chamado de problema da relação mente-corpo. Para ele existem duas substâncias, (i) a substância extensa (res extensa) e (ii) a substância pensante (res cogitans). A substância extensa constitui o que hoje chamamos de mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera o atributo da extensão como sendo o mais distintivo do mundo físico, uma vez que podemos ter uma ideia clara e distinta da extensão. Já a substância pensante é constituída pelas mentes e por seus conteúdos, incluindo não só pensamentos, mas também emoções e sensações. A substância pensante pode ser de dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que são nossas almas e as substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante infinita, que é Deus.

   Descartes tinha uma prova do dualismo de substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o contexto opaco introduzido por verbos de atitude proposicional como ‘duvidar’, ‘acreditar’, ‘ordenar’. Considere o seguinte argumento plenamente válido:

 

          (1)

O objeto a tem a propriedade F.

a = b.

O objeto b tem a propriedade F.

 

Compare esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar, que é um verbo de atitude proposicional:

 

          (2)

Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.

Zorro = Dom Diego.

Maria duvida que Dom Diego existe.

 

O problema é que, como é sabido, na estória ninguém sabe que Zorro é Dom Diego, nem mesmo a Maria. O uso do verbo ‘duvidar’ introduz um contexto opaco que torna a conclusão inválida. O mesmo acontece no argumento:

 

          (3)

Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.

Corpo = mente

Descartes pode duvidar da existência de sua mente.

 

Como a conclusão é obviamente falsa e a primeira premissa verdadeira, Descartes concluiu que a segunda premisa é que precisa ser falsa: a alma tem de ser algo diverso do corpo. Mas seu raciocínio é enganoso por assimilar a forma do argumento (3) à forma do argumento (1), quando na verdade sua forma é idêntica a (2) por conter o verbo duvidar. O argumento (3) é tornado igualmente inválido pelo fato de conter um verbo de atitude proposicional que introduz um contexto opaco.

   Um outro problema é a maneira como Descartes soluciona o assim chamado problema mente-corpo: o problema da relação entre a res cogitans e a res extensa. Ele acreditava que a mente se relaciona com o corpo através de uma interação causal. Assim, se eu piso em um caco de vidro isso causa um evento mental, que é a sensação de dor. Essa sensação desagradável me faz levantar o pé, pensar no que fazer e, em seguida, procurar um curativo. O problema que aqui surge é o de explicar como é possível a interação entre algo que não ocupa espaço, o pensamento, e o mundo extenso, físico. A brilhante princesa Elisabeth da Bohemia colocou a questão em uma carta a Descartes:

 

(...) parece que toda determinação do movimento se dá por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por aquela que a move, ou bem, pela qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas primeiras condições e a extensão pela terceira. [4]

 

Frente a semelhante objeção Descartes não conseguiu ir muito além do reconhecimento de que há coisas que precisam ser aceitas como mistério.

 

4

 

Ceticismo. Um outro ponto de ligação entre a filosofia de Descartes e a discussão contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o mundo externo. A hipótese do gênio maligno é o que hoje chamamos de uma hipótese cética. Há outras hipóteses céticas globais com o mesmo efeito, como a do mundo como sonho ou de uma alucinação coerente. A versão preferida hoje é, aliás, a de que você seja um cérebro em uma cuba com os nervos aferentes e eferentes ligados a um supercomputador que lhe faz alucinar uma realidade virtual que se estende a sua inteira vida pregressa. Com base em qualquer uma dessas hipóteses céticas (escolho aqui a do gênio maligno) o seguinte argumento cético pode ser construído:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho duas mãos.

 

Esse argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas mãos” pode ser aqui substituído por qualquer outro enunciado trivial: eu não sei se estou sentado, eu não sei se estou escrevendo, eu não sei se a terra é redonda... O ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não saber que a hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma sobre o mundo externo.

   A contraposição do argumento cético é o argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial qualquer, digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a hipótese cética assim:

 

Eu sei que tenho duas mãos.

Se eu sei que tenho duas mãos então sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

O argumento anticético possui tanta força quanto o argumento cético. A questão fica sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Mas não o suficiente, pois a inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto direito de estar certo quanto o anticético.

   Minha maneira de refutar o argumento cético é reminiscente da distinção feita por Rudolph Carnap entre questões internas e externas de existência, embora sem os seus defeitos.[5] Trata-se da introdução de uma distinção entre dois conceitos de realidade externa: inerente e aderente.[6] Vou explicá-la.

   A realidade inerente do mundo externo é a usual. Ela depende do fato de que o aparecimento e a ordem de nossa experiência sensível não dependem de nossas mentes. A atribuição de realidade externa depende minimamente de critérios herdados da tradição, os principais deles sendo;

 

(i)             Critério de intensidade: máxima intensidade sensorial,

(ii)           Critério de independência: independência da vontade,

(iii)         Critério de intersubjetividade: possibilidade de comprovação por acesso interpessoal,

(iv)         Critério de regularidade: seguimento de leis da natureza e regularidades contextuais.

               (para maiores detalhes ver cap. XI, sec. 14).

Minha proposta é que se esses critérios forem satisfeitos conjuntamente por uma dada entidade por tempo suficiente, então essa entidade pode ser afirmada como sendo externamente real no sentido inerente, que é o sentido normalmente aplicado por nós no dia a dia. Tais são os critérios que implicitamente temos em mente ao dizermos que as coisas ao nosso redor são “reais”. Podemos, aliás, sem muita dificuldade estender esses critérios para coisas indiretamente acessíveis, como eventos passados ou objetos microscópicos, ou ainda acontecimentos testemunhados por outros, na medida em que sabemos que é possível produzir evidências sensíveis possuidoras das propriedades acima descritas (nisso se baseia o realismo científico).

   É fundamental notar que a satisfação isolada de um ou dois desses critérios nunca é suficiente, pois todos podem falhar. Uma pessoa é hoje capaz de mover objetos externos através de sua vontade com auxílio de eletrodos colocados próximos das áreas motores de do córtex parietal. Em uma alucinação realista, como a que se dá na alucinose alcóolica, a pessoa vê um cavalo branco com a máxima intensidade sensorial, sendo essa visão independente de sua vontade. Além disso, o animal pode mesmo se comportar como é esperado de um cavalo, satisfazendo regularidades contextuais esperadas, embora não seja interpessoalmente acessível: outras pessoas lhe dirão que não existe cavalo algum. Só isso já basta para evidenciar a alucinação. Alucinações coletivas podem existir, mas são pouco duráveis e consistentes... Mas se todos os critérios acima arrolados são plenamente satisfeitos, somos forçados a admitir que aquilo que os satisfaz possui realidade, ao menos no sentido inerente.

   Mas o que dizer da atribuição/desatribuição de realidade externa em cenários céticos? Aqui entra em questão o sentido aderente do conceito de realidade externa, que é feito para se aplicar a cenários céticos de maior ou menor extensão. Tal critério pouco tem a ver com o critério inerente usual. Se eu for uma alma vagando no espaço e enganada por um gênio maligno, os critérios de (i) a (iv) estarão sendo todos satisfeitos envolvendo, pois, intensidade, independência, intersubjetividade e regularidade da experiência. Mas em princípio eu posso vir a saber disso por comparação. Por exemplo: se minha alma deixar de ser enganada e eu me encontrar em uma das esferas celestes descritas por Dante, outras almas poderão ter sucesso em me convencer convencerem de que eu havia vivido minha vida inteira sob a sistemática alucinação de ser um pobre professor de filosofia do planeta terra... O critério de realidade externa é aqui comparativo e coerencial, bem diferente dos critérios inerentes encontrados acima.

   De posse dessa distinção podemos agora refazer os argumentos cético e anticético demonstrando que eles são ambos equívocos, uma vez que os significados de suas sentenças não mantêm identidade. Chamando a realidade aderente de realidade-A e realidade inerente de realidade-I, eis como fica o argumento cético:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho realmente-A duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho realmente-I duas mãos.

 

Eis como fica agora o argumento anticético:

 

Eu sei que tenho realmente-A duas mãos.

Se eu sei que tenho realmente-I duas mãos então não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

Ambos os argumentos são equívocos e, portanto, falaciosos. A conclusão é que podemos demonstrar que nosso mundo é inerentemente real. Mas não podemos demonstrar que ele é real em um sentido absoluto (na independência da intromissão de possíveis cenários céticos), pois isso implicaria em demonstrar sua realidade aderente. O que fazemos, uma vez que não temos qualquer razão para admitir que nosso mundo não seja aderentemente irreal é que no caso de não encontrarmos razões para admitir nenhum cenário cético tomar como um postulado semântico acerca do mundo a ideia de que ele é não só inerentemente, mas também aderentemente real. Esse postulado só poderá ser contestado se encontrarmos razões para colocá-lo em dúvida. Esse será o caso se tivermos evidências de que a hipótese cética é verdadeira. Mas esse não é o caso, nem tem sido esse o caso em toda a história da espécie humana. (Voltaremos à questão quando tratarmos da filosofia de David Hume.)

   Vale notar que Wittgenstein desenvolveu um rationale capaz de justificar o postulado semântico acima proposto. Em um manuscrito de grande importância intitulado Sobre a Certeza[7] ele defendeu que a dúvida só pode existir sob um fundo de certeza que é dado pelo sistema de crenças socialmente instituído em uma forma de vida; caso contrário a dúvida não faz qualquer sentido. Em nosso caso isso significa que uma hipótese cética só se justifica se houver alguma razão que a justifique, por exemplo, alguma evidência de que sejamos almas enganadas pelo gênio maligno ou que sejamos cérebros em cubas, etc. É por isso que a hipótese cartesiana do gênio maligno não deixa de fazer sentido. Como nada disso tem acontecido, a postulação semântica de que nosso mundo é também aderentemente real deve ser aceita. Além disso, a postulação semântica tem a vantagem de ser a melhor explicação no sentido de ser a mais simples. Tentar ir além disso seria transgredir fundamentos últimos da crença racional.

 

5

 

Racionalismo. Não quis entrar em detalhes sobre o sistema de Descartes aqui sinopticamente resumido. Quero apenas assinalar a importância de sua filosofia para a libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele destampou a garrafa da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade, cada qual criando uma concepção de mundo própria.

   Os filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas. Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento matemático herdado da axiomatização da geometria por Euclides. Esse foi o caso dos filósofos continentais, como Spinoza, Leibniz e do próprio Descartes. Os empiristas, por sua vez, foram os que puseram ênfase na experiência empírica como a fonte principal (senão a única) do conhecimento humano, minimizando a participação da razão, quando não a excluindo. Eles importavam para a filosofia o modo de pensar de cientistas empíricos, como Galileu e Newton. Esse foi o caso dos filósofos britânicos como Locke, Berkeley, Hume e Stuart Mill. Kant foi quem tentou a grande síntese entre racionalismo e empirismo, fechando assim o ciclo iniciado por Descartes.

 

 

 

 



[1] Meditationes de prima philosophia. Trad. port. René Descartes: Meditações concernentes à primeira filosofia. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Coleção Os Pensadores XV (São Paulo: Abril Cultural 1973).

[2] Discurso do Método (Discourse de la Méthode), Quarta Parte 4.

[3] Meditações, Meditação Segunda, sec. 4.

[4] Tradução de Rafael Teruel Coelho para a Revista Instauratio Magna, da Universidade Federal do ABC, v. 1, n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” – 6/16 Mai 1643.

[5] Ver Rudolph Carnap: “Empiricism, Semantics, and Ontology,” publicado como suplemento a Meaning and Necessity (Chicago: The University of Chicago Press 1958).

[6] A forma mais desenvolvida desse argumento encontra-se em meu artigo republicado de forma revisada como “The Sceptical Deal with our Concept of External Reality,” in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014), cap. 6. Há muitas tentativas mais imaginativas de solucionar o problema, mas nenhuma tão plausível.

[7] Ludwig Wittgenstein: Über Gewissheit. Trad. port. Sobre a certeza (Fósforo Editora 2023).



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