Draft para o livro "Introção histórica à filosofia" (a ser publicado).
V
A REVOLUÇÃO CARTESIANA
Vive bem quem vive bem escondido.
Descartes
Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria
analítica, que permite representar figuras da geometria plana através de fórmulas
algébricas. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é tido como o
fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a chamada revolução
cartesiana, que mudou o eixo de investigação em filosofia teórica da
metafísica para a epistemologia.
As filosofias helenista, romana
e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles,
que punha a metafísica no centro da filosofia. Além de ser primordial, a
filosofia teórica tinha como ponto de partida a investigação metafísica dos
constituintes últimos da realidade, das ideias em Platão e do ser enquanto ser
em Aristóteles. Só secundariamente era desenvolvida uma investigação
epistemológica sobre a natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas.
O vetor da filosofia teórica vinha do ser para o pensamento. Com
Descartes isso se inverteu. Ele já era ciente do quanto nossa capacidade de
fazer investigações metafísicas dependia de nossa capacidade de conhecer, o que
tornou razoável que se começasse por investigar nossas capacidades cognitivas.
Ele começou se perguntando pelo que somos capazes de saber com certeza, para só
então, com mais segurança, chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de
mais fundamental. O resultado foi a construção de um edifício filosófico
completamente novo, muito diferente daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro.
Com isso ele deslocou o vetor da filosofia teórica do pensamento para o ser.
E aqui também a filosofia se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no
crepúsculo do renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos
renascentistas com o homem uma parte essencial de seu programa.
1
O cogito. O culprit do desenvolvimento da filosofia cartesiana
foi a disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo
o ceticismo pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio
do ceticismo é o de que tudo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado,
então também os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o
ceticismo colocar em questão a eternidade da alma ou até mesmo a existência de
Deus... Descartes era um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La
Flèxe, o mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado
por amigos a fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do
ceticismo. A culminação de tudo isso foi o grande clássico de argumentação filosófica
e requinte estilístico chamado Meditações de filosofia primeira Filosofia.[1]
O objetivo de Descartes nas Meditações
era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de
dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e,
como veremos, com base nela ele de fato erigiu toda a sua filosofia. Para
chegar a essa certeza ele começou por estabelecer um método, o da dúvida.
Segundo esse método, tudo o que puder ser duvidado deve ser tratado como se
fosse falso. Para começar ele decidiu aplicar esse método a coisas vistas à
distância. Claro, podemos nos enganar quanto a elas. Uma árvore vista na
neblina à distância é por vezes confundida com um ser humano. Mas não parece
que possamos nos enganar quanto a coisas que se encontram muito próximas de
nós. Descartes inventou então o argumento do sonho. Já aconteceu, notou ele, de
eu estar aqui diante dessa lareira sonhando que o fogo está a crepitar quando
na verdade ele já se apagou há algum tempo. Nada nos garante que a vida não
seja um sonho e que as coisas ao nosso redor na verdade não existam. Se é
possível que eu esteja sonhando, posso descartar o mundo sensível ao meu redor
como objeto de certeza. Para magnificar seu raciocínio ele desenvolveu então a
dúvida hiperbólica, que é a dúvida estendida a regiões acima de qualquer
suspeita. Para aplicá-la ele imaginou um gênio maligno imensamente poderoso,
que empregaria toda a sua astúcia para o enganar. O gênio maligno produziria em
Descartes a alucinação de ser um filósofo vivendo na França no século XVII,
quando na verdade ele poderia não passar de uma alma flutuando isolada no
espaço vazio e sendo sistematicamente confundida. O gênio seria tão malevolente
que até mesmo em seu pensamento matemático Descartes estaria sendo enganado. Ao
somar 3 + 2 o gênio o levaria a concluir que o resultado é 5, quando na verdade
todos sabem que é 6 (se você discorda, prezado leitor, pode bem ser que também
esteja sendo confundido pelo gênio maligno).
Contudo, imediatamente após
isso Descartes descobriu algo capaz de resistir às mais incríveis artimanhas do
gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que alguém se engane, fazer com
que esse alguém não exista. Afinal, para alguém ser enganado é preciso que
exista e mesmo que pense (como escreveu Agostinho: “Si fallor sum”). Se alguém
pensar que 3 + 2 = 7, esse alguém está obviamente enganado, mas não é possível que
ao cometer esse erro de cálculo ele não exista ou que não esteja pensando. Descartes
resume sua grande descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito
ergo sum) em seu Discurso do Método,[2] e no enunciado “Eu sou, eu
existo” nas Meditações.[3] Ao menos no presente,
enquanto estou pensando, não é possível duvidar de que eu existo como ser que
pensa. Trata-se de uma certeza indevassável. Não pode ser falso que eu sou uma
coisa que pensa, ao menos enquanto estou pensando. Intérpretes contemporâneos
identificaram o cogito com uma verdade “autoverificável” (Jaakko Hintikka)
ou “necessária a posteriori” (Harry Frankfurt). Para Descartes, tal como o
ponto fixo da alavanca, que permitiria a Arquimedes levantar o mundo, a certeza
do cogito é o que lhe permitiria erigir seu sistema metafísico.
Nos passos seguintes de seu
argumento Descartes cuidou de construir seu sistema. Vou resumir. Uma vez que
ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de pensar
algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui, pois, uma
ideia inata de Deus. Mas Deus é um ser infinitamente superior a ele mesmo. Como
ele é um ser humano limitado, ele não pode ser capaz de pensar algo
infinitamente superior a si mesmo, a menos que esse ser infinitamente superior exista
e que ele tenha posto em sua na mente a ideia de si mesmo. Por conseguinte,
Deus existe. Além disso Descartes apresenta sua versão própria da prova
ontológica da existência de Deus proposta por Anselmo: já que concebemos Deus
como um ser com infinitas perfeições, ele deve possuir a perfeição da
existência, caso contrário não seríamos capazes de concebê-lo... Deus,
possuindo infinitas perfeições, precisa também ser infinitamente bom. Ora,
sendo Deus infinitamente bom, ele não permitirá o engano sistemático, nem a
existência do gênio maligno a nos fazer alucinar um mundo externo que na
verdade não existe, ou a nos enganar na mais simples operação aritmética. Eis
porque podemos estar certos de que o mundo externo existe e de que ideias
claras e distintas como 3 + 2 = 5 são verdadeiras.
2
Elvino. A muitos também parece intuitivo que nada daquilo que
é conhecimento empírico poderia ser totalmente imune ao erro. Mas o conhecimento
do cogito é empírico. Cabe então a pergunta: seria possível imaginar uma
situação na qual ele é falso? Talvez sim, por uma identificação enganosa. Para
tornar esse ponto compreensível, imagine que um senhor idoso e um pouco caduco
chamado Elvino desapareça nas mãos de um cientista do mal. Esse cientista
substitui Elvino por um androide extremamente sofisticado e perfeitamente idêntico
a Elvino, que fala e age como se fosse ele, mas que não tem nada na cabeça, a
não ser um mecanismo implantado que faz com que seu comportamento seja
inteiramente controlado à distância pelo cientista. Os familiares de Elvino não
conseguem explicar seu súbito desaparecimento. Mas um certo dia o androide do
Elvino bate à porta de sua casa. Quando ela é aberta ele se apresenta dizendo:
“Sou eu mesmo, o Elvino; e fiquem sabendo que eu ainda existo e que além disso
eu sou um ser pensante”. Todos ficam felizes por tê-lo de volta... Mas o
proferimento “eu... existo como um ser pensante” é agora falso, pois Elvino já
não existe mais e não há nenhuma consciência pensante ocupando o autômato...
Logo, parece que o cogito falso é possível!
A isso o defensor de Descartes poderá responder que o proferimento
“Eu existo como ser pensante” continua sendo verdadeiro, mas com relação ao
cientista maligno que controla o androide, pois é ele o verdadeiro autor do
pensamento expresso pela frase, o qual só precisa ser apenas reinterpretado.
Mas aqui surge um problema. Se o cientista
maligno estivesse se referindo a si mesmo, o “Eu existo como ser pensante” por
ele pensado seria verdadeiro. Mas o seu objetivo é precisamente o de enganar as
pessoas, pondo essas palavras na boca do androide e fazendo com que o pronome
pessoal ‘eu’ se refira a uma cópia mecânica de Elvino e não ao próprio Elvino,
de modo que é errado dizer que com esse pronome o cientista do mal está se
referindo a si mesmo. Ele se refere ao eu que ele tem em mente e quer que os
outros tenham em mente, ou seja, a uma pessoa que não existe e que está sendo
apenas mimetizada pelo androide. Por conseguinte, esse continua sendo um caso
no qual o proferimento “Eu penso, eu existo” traduz um pensamento que é
simplesmente falso.
Contra essa conclusão, o defensor de Descartes ainda poderá
objetar que a função do pronome pessoal ‘eu’ é sempre a de se referir àquele
que fala no momento em que fala, ou seja, ao emissor do som, seja ele o que
for. Como no exemplo de Elvino quem emite o som é um autômato, o ‘eu’ de “Eu
existo” se refere ao autômato que de fato existe, e não a Elvino, o que torna o
proferimento outra vez verdadeiro.
Mas aqui surge um novo problema. É que ao usar
o pronome pessoal ‘eu’ Descartes tinha em mente um sentido rico da palavra, no
qual ele se referia a uma consciência ou mente pensante, e não a
algo que seria satisfeito por um autômato ou um papagaio ou mesmo por um autofalante
que proferisse os sons “Eu existo”. Ou seja: se, no proferimento do autômato o
sentido cartesiano da palavra ‘eu’ for coerentemente preservado, o “Eu existo”
por ele referido ou não se refere a mais nada ou continuará sendo expressão do
pensamento do cientista maligno que, por sua vez, está se referindo a uma
pessoa que não existe, o que o torna de um ou de outro modo falso. Assim, se o
autômato dissesse “Penso, logo existo”, isso seria falso, pois a pessoa tomada por
Elvino nem pensa nem existe. Será que o cogito cartesiano é capaz de resistir a esse
argumento? Deixo a resposta por conta do leitor.
3
Interacionismo.
É importante em Descartes a defesa do dualismo
interacionista quanto ao que hoje é chamado de problema da relação mente-corpo.
Para ele existem duas substâncias, (i) a substância extensa (res extensa)
e (ii) a substância pensante (res cogitans). A substância extensa constitui
o que hoje chamamos de mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera
o atributo da extensão como sendo o mais distintivo do mundo físico, uma vez
que podemos ter uma ideia clara e distinta da extensão. Já a substância
pensante é constituída pelas mentes e por seus conteúdos, incluindo não só
pensamentos, mas também emoções e sensações. A substância pensante pode ser de
dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que são nossas almas e as
substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante infinita, que é Deus.
Descartes tinha uma prova do dualismo de
substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque
podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos
mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o
contexto opaco introduzido por verbos de atitude proposicional como ‘duvidar’,
‘acreditar’, ‘ordenar’. Considere o seguinte argumento plenamente válido:
(1)
O objeto a tem a propriedade F.
a = b.
O objeto b tem a propriedade F.
Compare
esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar,
que é um verbo de atitude proposicional:
(2)
Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.
Zorro = Dom Diego.
Maria duvida que Dom Diego existe.
O
problema é que, como é sabido, na estória ninguém sabe que Zorro é Dom Diego,
nem mesmo a Maria. O uso do verbo ‘duvidar’ introduz um contexto opaco que
torna a conclusão inválida. O mesmo acontece no argumento:
(3)
Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.
Corpo = mente
Descartes pode duvidar da existência de sua mente.
Como
a conclusão é obviamente falsa e a primeira premissa verdadeira, Descartes
concluiu que a segunda premisa é que precisa ser falsa: a alma tem de ser algo
diverso do corpo. Mas seu raciocínio é enganoso por assimilar a forma do
argumento (3) à forma do argumento (1), quando na verdade sua forma é idêntica
a (2) por conter o verbo duvidar. O argumento (3) é tornado igualmente inválido
pelo fato de conter um verbo de atitude proposicional que introduz um contexto
opaco.
Um outro problema é a maneira como Descartes
soluciona o assim chamado problema mente-corpo: o problema da relação entre a res
cogitans e a res extensa. Ele acreditava que a mente se relaciona
com o corpo através de uma interação causal. Assim, se eu piso em um caco de
vidro isso causa um evento mental, que é a sensação de dor. Essa sensação
desagradável me faz levantar o pé, pensar no que fazer e, em seguida, procurar
um curativo. O problema que aqui surge é o de explicar como é possível a
interação entre algo que não ocupa espaço, o pensamento, e o mundo extenso,
físico. A brilhante princesa Elisabeth da Bohemia colocou a questão em uma
carta a Descartes:
(...) parece que toda determinação do movimento se dá
por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por
aquela que a move, ou bem, pela
qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas
primeiras condições e a extensão pela terceira. [4]
Frente
a semelhante objeção Descartes não conseguiu ir muito além do reconhecimento de
que há coisas que precisam ser aceitas como mistério.
4
Ceticismo.
Um outro ponto de ligação entre a filosofia de
Descartes e a discussão contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o
mundo externo. A hipótese do gênio maligno é o que hoje chamamos de uma hipótese
cética. Há outras hipóteses céticas globais com o mesmo efeito, como a do
mundo como sonho ou de uma alucinação coerente. A versão preferida hoje é, aliás,
a de que você seja um cérebro em uma cuba com os nervos aferentes e eferentes ligados
a um supercomputador que lhe faz alucinar uma realidade virtual que se estende
a sua inteira vida pregressa. Com base em qualquer uma dessas hipóteses céticas
(escolho aqui a do gênio maligno) o seguinte argumento cético pode ser
construído:
Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu
não sei se tenho duas mãos.
Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu não sei se tenho duas mãos.
Esse
argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas
mãos” pode ser aqui substituído por qualquer outro enunciado trivial: eu não
sei se estou sentado, eu não sei se estou escrevendo, eu não sei se a terra é
redonda... O ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não
saber que a hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma
sobre o mundo externo.
A contraposição do argumento cético é o
argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial
qualquer, digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a
hipótese cética assim:
Se eu sei que tenho duas mãos então sei que não estou
sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu sei que não estou sendo enganado por um gênio
maligno.
O
argumento anticético possui tanta força quanto o argumento cético. A questão
fica sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Mas não o
suficiente, pois a inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto
direito de estar certo quanto o anticético.
Minha maneira de refutar o argumento cético
é reminiscente da distinção feita por Rudolph Carnap entre questões internas
e externas de existência, embora sem os seus defeitos.[5] Trata-se da introdução de
uma distinção entre dois conceitos de realidade externa: inerente e aderente.[6] Vou explicá-la.
A
realidade inerente do mundo externo é a usual. Ela depende do fato de que o aparecimento
e a ordem de nossa experiência sensível não dependem de nossas mentes. A
atribuição de realidade externa depende minimamente de critérios herdados da
tradição, os principais deles sendo;
(i)
Critério
de intensidade: máxima
intensidade sensorial,
(ii)
Critério
de independência: independência
da vontade,
(iii)
Critério
de intersubjetividade: possibilidade
de comprovação por acesso interpessoal,
(iv)
Critério
de regularidade: seguimento de
leis da natureza e regularidades contextuais.
(para maiores detalhes ver cap.
XI, sec. 14).
Minha
proposta é que se esses critérios forem satisfeitos conjuntamente por uma
dada entidade por tempo suficiente, então essa entidade pode ser afirmada como
sendo externamente real no sentido inerente, que é o sentido normalmente
aplicado por nós no dia a dia. Tais são os critérios que implicitamente temos
em mente ao dizermos que as coisas ao nosso redor são “reais”. Podemos, aliás,
sem muita dificuldade estender esses critérios para coisas indiretamente
acessíveis, como eventos passados ou objetos microscópicos, ou ainda acontecimentos
testemunhados por outros, na medida em que sabemos que é possível produzir
evidências sensíveis possuidoras das propriedades acima descritas (nisso se
baseia o realismo científico).
É fundamental notar que a satisfação isolada
de um ou dois desses critérios nunca é suficiente, pois todos podem falhar. Uma
pessoa é hoje capaz de mover objetos externos através de sua vontade com
auxílio de eletrodos colocados próximos das áreas motores de do córtex
parietal. Em uma alucinação realista, como a que se dá na alucinose alcóolica,
a pessoa vê um cavalo branco com a máxima intensidade sensorial, sendo essa
visão independente de sua vontade. Além disso, o animal pode mesmo se comportar
como é esperado de um cavalo, satisfazendo regularidades contextuais esperadas,
embora não seja interpessoalmente acessível: outras pessoas lhe dirão que não
existe cavalo algum. Só isso já basta para evidenciar a alucinação. Alucinações
coletivas podem existir, mas são pouco duráveis e consistentes... Mas se todos
os critérios acima arrolados são plenamente satisfeitos, somos forçados a
admitir que aquilo que os satisfaz possui realidade, ao menos no sentido
inerente.
Mas o
que dizer da atribuição/desatribuição de realidade externa em cenários céticos?
Aqui entra em questão o sentido aderente do conceito de realidade externa, que
é feito para se aplicar a cenários céticos de maior ou menor extensão. Tal
critério pouco tem a ver com o critério inerente usual. Se eu for uma alma vagando
no espaço e enganada por um gênio maligno, os critérios de (i) a (iv) estarão
sendo todos satisfeitos envolvendo, pois, intensidade, independência,
intersubjetividade e regularidade da experiência. Mas em princípio eu posso vir
a saber disso por comparação. Por exemplo: se minha alma deixar de ser
enganada e eu me encontrar em uma das esferas celestes descritas por Dante,
outras almas poderão ter sucesso em me convencer convencerem de que eu havia
vivido minha vida inteira sob a sistemática alucinação de ser um pobre
professor de filosofia do planeta terra... O critério de realidade externa é
aqui comparativo e coerencial, bem diferente dos critérios inerentes
encontrados acima.
De posse dessa distinção podemos agora
refazer os argumentos cético e anticético demonstrando que eles são ambos equívocos,
uma vez que os significados de suas sentenças não mantêm identidade. Chamando a
realidade aderente de realidade-A e realidade inerente de realidade-I,
eis como fica o argumento cético:
Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu
não sei se tenho realmente-A duas mãos.
Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu não sei se tenho realmente-I duas mãos.
Eis
como fica agora o argumento anticético:
Eu sei que tenho realmente-A duas mãos.
Se eu sei que tenho realmente-I duas mãos então não estou sendo enganado
por um gênio maligno.
Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Ambos
os argumentos são equívocos e, portanto, falaciosos. A conclusão é que podemos
demonstrar que nosso mundo é inerentemente real. Mas não podemos demonstrar que
ele é real em um sentido absoluto (na independência da intromissão de
possíveis cenários céticos), pois isso implicaria em demonstrar sua realidade
aderente. O que fazemos, uma vez que não temos qualquer razão para admitir que
nosso mundo não seja aderentemente irreal é que no caso de não encontrarmos
razões para admitir nenhum cenário cético tomar como um postulado semântico acerca do
mundo a ideia de que ele
é não só inerentemente, mas também aderentemente real. Esse postulado só poderá ser contestado se
encontrarmos razões para colocá-lo em dúvida. Esse será o caso se
tivermos evidências de que a hipótese cética é verdadeira. Mas esse não
é o caso, nem tem sido esse o caso em toda a história da espécie humana. (Voltaremos
à questão quando tratarmos da filosofia de David Hume.)
Vale
notar que Wittgenstein desenvolveu um rationale capaz de justificar o
postulado semântico acima proposto. Em um manuscrito de grande importância
intitulado Sobre a Certeza[7] ele
defendeu que a dúvida só pode existir sob um fundo de certeza que é dado pelo
sistema de crenças socialmente instituído em uma forma de vida; caso contrário
a dúvida não faz qualquer sentido. Em nosso caso isso significa que uma
hipótese cética só se justifica se houver alguma razão que a justifique, por
exemplo, alguma evidência de que sejamos almas enganadas pelo gênio maligno ou que
sejamos cérebros em cubas, etc. É por isso que a hipótese cartesiana do gênio
maligno não deixa de fazer sentido. Como nada disso tem acontecido, a
postulação semântica de que nosso mundo é também aderentemente real deve ser
aceita. Além disso, a postulação semântica tem a vantagem de ser a melhor
explicação no sentido de ser a mais simples. Tentar ir além disso seria
transgredir fundamentos últimos da crença racional.
5
Racionalismo.
Não quis entrar em detalhes sobre o sistema de
Descartes aqui sinopticamente resumido. Quero apenas assinalar a importância de
sua filosofia para a libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele
destampou a garrafa da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade,
cada qual criando uma concepção de mundo própria.
Os
filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas.
Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos
poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação
da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento
matemático herdado da axiomatização da geometria por Euclides. Esse foi o caso
dos filósofos continentais, como Spinoza, Leibniz e do próprio Descartes. Os
empiristas, por sua vez, foram os que puseram ênfase na experiência
empírica como a fonte principal (senão a única) do conhecimento humano,
minimizando a participação da razão, quando não a excluindo. Eles importavam
para a filosofia o modo de pensar de cientistas empíricos, como Galileu e
Newton. Esse foi o caso dos filósofos britânicos como Locke, Berkeley, Hume e
Stuart Mill. Kant foi quem tentou a grande síntese entre racionalismo e
empirismo, fechando assim o ciclo iniciado por Descartes.
[1] Meditationes de prima philosophia. Trad.
port. René Descartes:
Meditações concernentes à primeira filosofia. Trad. J. Guinsburg e Bento
Prado Júnior. Coleção Os Pensadores XV (São Paulo: Abril Cultural 1973).
[2] Discurso do Método (Discourse de la Méthode), Quarta Parte
4.
[3] Meditações, Meditação Segunda, sec. 4.
[4] Tradução de Rafael Teruel Coelho para a Revista Instauratio Magna,
da Universidade Federal do ABC, v. 1, n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” –
6/16 Mai 1643.
[5] Ver Rudolph Carnap:
“Empiricism, Semantics, and Ontology,” publicado como suplemento a Meaning
and Necessity (Chicago: The University of Chicago Press 1958).
[6] A forma mais
desenvolvida desse argumento encontra-se em meu artigo republicado de forma
revisada como “The Sceptical Deal with our Concept of External Reality,” in Lines
of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP
2014), cap. 6. Há muitas tentativas mais imaginativas de solucionar o problema,
mas nenhuma tão plausível.
[7] Ludwig Wittgenstein: Über Gewissheit. Trad.
port. Sobre a certeza (Fósforo Editora 2023).
Nenhum comentário:
Postar um comentário