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terça-feira, 12 de novembro de 2024

A REVOLUÇÃO CARTESIANA

  Draft para Introção histórica à filosofia...

 

V

A REVOLUÇÃO CARTESIANA

 

Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria analítica, que permite representar figuras da geometria plana através de fórmulas algébricas. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é tido como o fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a chamada revolução cartesiana, que mudou o eixo de investigação em filosofia teórica da metafísica para a epistemologia.

   As filosofias helenista, romana e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles, que punha a metafísica no centro da filosofia. O ponto de partida da filosofia teórica era a investigação metafísica dos constituintes últimos da realidade, do ser enquanto ser. Só secundariamente era desenvolvida uma investigação epistemológica sobre os a natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas. O vetor da filosofia teórica vinha do ser para o pensamento. Com Descartes isso se inverteu. Ele já era ciente do quanto nossa capacidade de fazer investigações metafísicas dependia de nossa capacidade de conhecer, o que tornou razoável que começasse por investigar nossas capacidades cognitivas. Ele começou se perguntando pelo que somos capazes de saber com certeza, para só então, com mais segurança, chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de mais fundamental. O resultado foi a construção de um edifício filosófico completamente novo, muito diferente daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro. Com isso ele deslocou o vetor da filosofia teórica do pensamento para o ser. E aqui também a filosofia se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no crepúsculo do renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos renascentistas com o homem uma parte essencial do programa da filosofia.

 

1

 

O cogito. O culprit do desenvolvimento da filosofia cartesiana foi a disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo o ceticismo pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio do ceticismo é o de quedo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado, então também os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o ceticismo colocar em questão a sobrevivência da alma ou até mesmo a existência de Deus... Descartes era um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La Flèxe, o mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado por amigos a fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do ceticismo. O resultado terminou sendo a grande obra de argumentação filosófica e requinte estilístico chamada de Meditações de filosofia primeira (Meditationes de Prima Philosophia).

   O objetivo de Descartes nas Meditações era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e, como veremos, com base nela ele de fato erigiu toda a sua filosofia. Para chegar a essa certeza ele começou por estabelecer um método, o da dúvida. Segundo esse método, tudo o que puder ser duvidado deve ser considerado como se fosse falso. Assim, Descartes começou por aplicar esse método a coisas vistas à distância. Claro, podemos nos enganar quanto a elas. Uma árvore vista na neblina à distância é por vezes confundida com um ser humano. Mas não parece que possamos nos enganar quanto a coisas que se encontram muito próximas de nós. Descartes apresentou então o argumento do sonho. Já aconteceu, notou ele, de eu estar aqui diante dessa lareira sonhando que o fogo está a crepitar quando na verdade ele já havia se apagado há algum tempo. Nada nos garante que a vida não seja um sonho e que as coisas ao nosso redor na verdade não existam. Se é possível que eu esteja sonhando, posso descartar o mundo sensível ao meu redor como objeto de certeza. Para magnificar seu raciocínio ele desenvolveu então a dúvida hiperbólica, que é a dúvida estendida a regiões acima de qualquer suspeita. Para aplicá-la ele imaginou um gênio maligno imensamente poderoso, que empregaria toda a sua astúcia para o enganar. O gênio maligno produziria em Descartes a alucinação de ser um filósofo vivendo na França no século XVII, quando na verdade ele poderia não passar de uma alma flutuando isolada no espaço vazio e sendo constantemente confundida. O gênio seria tão malevolente que até mesmo em seu pensamento matemático Descartes estaria sendo enganado. Ao somar 3 + 2 o gênio o levaria a concluir que o resultado é 5, quando na verdade todos sabem que é 6 (se você discorda, prezado leitor, pode bem ser que também esteja sendo confundido pelo gênio maligno).

   Contudo, imediatamente após isso Descartes descobriu algo capaz de resistir às mais incríveis artimanhas do gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que alguém se engane, fazer com que esse alguém não exista. Afinal, para alguém ser enganado é preciso que exista e mesmo que pense (como escreveu Agostinho: “Si fallor sum”). Se alguém pensar que 3 + 2 = 7, esse alguém está obviamente enganado, mas não é possível que ao cometer esse erro de cálculo ele não exista ou não esteja pensando. Descartes resume sua grande descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito ergo sum) em seu Discurso do Método,[1] e no enunciado “Eu sou, eu existo” nas Meditações.[2] Ao menos no presente, enquanto estou pensando, não é possível duvidar de que eu existo como ser que pensa. Trata-se de algo que não pode ser falso, a certeza indevassável de que eu sou uma coisa que pensa (enquanto penso). Intérpretes contemporâneos identificaram o cogito com uma verdade “autoverificável” (Hintikka) ou “necessária a posteriori” (Harry Frankfurt). Veremos que para Descartes, tal como o ponto fixo da alavanca, que permitiria a Arquimedes levantar o mundo, a certeza do cogito é o que lhe permitirá erigir seu sistema metafísico.

   Nos passos seguintes de seu argumento Descartes cuida de construir seu sistema. Vou resumir. Uma vez que ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de pensar algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui, pois, uma ideia inata de Deus. Mas como ele é um ser humano limitado, ele não seria capaz de pensar Deus, algo infinitamente superior a si mesmo, a menos que existisse esse ser infinitamente superior e que ele tivesse posto em sua na mente a ideia de si mesmo, a ideia de Deus. Por conseguinte, Deus existe. Além disso Descartes apresenta sua versão própria da prova ontológica da existência de Deus de Anselmo: já que concebemos Deus como um ser com infinitas perfeições, ele deve possuir a perfeição da existência, caso contrário não seríamos capazes de concebê-lo. Deus, possuindo infinitas perfeições, precisa também ser infinitamente bom. Ora, sendo Deus infinitamente bom, ele não permitiria o engano sistemático, nem a existência do gênio maligno a nos fazer alucinar um mundo externo que na verdade não existe, ou a nos enganar na mais simples operação aritmética. Eis porque podemos estar certos de que o mundo externo existe e de que ideias claras e distintas como 3 + 2 = 5 são verdadeiras.

 

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Elvino. A muitos também parece intuitivo que nada daquilo que é conhecimento empírico deve ser totalmente imune ao erro. O conhecimento do cogito é empírico. Cabe então a pergunta: seria possível imaginar uma situação na qual ele é falso? Talvez sim, por uma identificação enganosa. Para tornar esse ponto compreensível, imagine que um senhor idoso e um pouco caduco chamado Elvino desapareça nas mãos de um cientista do mal. Esse cientista substitui Elvino por um androide extremamente sofisticado e perfeitamente idêntico a Elvino, que fala e age como ele, mas que não tem nada na cabeça, a não ser um mecanismo implantado que faz com que seu comportamento seja inteiramente controlado à distância pelo cientista. Os familiares de Elvino não conseguem explicar seu súbito desaparecimento. Mas um certo dia o androide do Elvino bate à porta de sua casa. Quando lhe abrem ele se apresenta dizendo: “Sou eu mesmo, o Elvino; e fiquem sabendo que eu ainda existo como um ser pensante”. Todos ficam felizes por o terem de volta... Mas o proferimento “eu... existo como um ser pensante” é agora falso, pois Elvino já não existe mais e não há nenhuma consciência pensante ocupando o autômato... Logo, o cogito falso é possível!

   A isso o defensor de Descartes poderá responder que o proferimento “Eu existo como ser pensante” continua sendo verdadeiro, mas com relação ao cientista maligno que controla o androide e que é o verdadeiro autor desse pensamento, precisando ser apenas reinterpretado.

   Mas aqui surge um problema. Se o cientista maligno estivesse se referindo a si mesmo, o “Eu existo como ser pensante” por ele pensado seria verdadeiro. Mas o seu objetivo é precisamente o de enganar as pessoas, pondo essas palavras na boca do androide e fazendo com que o pronome pessoal ‘eu’ se refira a uma cópia mecânica de Elvino e não ao próprio Elvino, de modo que é errado dizer que com esse pronome pessoal o cientista do mal está se referindo a si mesmo. Ele se refere ao eu que ele tem em mente e quer que os outros tenham em mente, ou seja, a uma pessoa que não existe e que está sendo apenas mimetizado pelo androide. Por conseguinte, esse continua sendo um caso no qual o proferimento “Eu penso, eu existo” é simplesmente falso.

   Contra essa conclusão o defensor de Descartes poderá ainda objetar que a função do pronome pessoal ‘eu’ é sempre a de se referir àquele que fala no momento em que fala, ou seja, ao emissor do som, seja ele o que for. Como no exemplo de Elvino quem emite o som é um autômato, o ‘eu’ de “Eu existo” se refere ao autômato que de fato existe, e não a Elvino, o que torna o proferimento outra vez verdadeiro.

    Aqui surge um novo problema. É que ao usar o pronome pessoal ‘eu’ Descartes tinha em mente um sentido rico da palavra, no qual ele se referia a uma consciência ou mente pensante, e não a algo que seria satisfeito por um autômato ou um papagaio ou por um autofalante que proferisse os sons “Eu existo”. Ou seja: se, no proferimento do autômato for coerentemente preservado o sentido cartesiano da palavra ‘eu’, o “Eu existo” por ele referido ou não se refere a mais nada ou continuará sendo expressão do pensamento do cientista maligno que, por sua vez, está se referindo a uma pessoa que não existe, o que o torna de um ou de outro modo falso. Assim, se o autômato dissesse “Penso, logo existo”, isso seria falso, pois a pessoa tomada por Elvino nem pensa nem existe. Será essa conclusão correta? Deixo a resposta por conta do leitor.[3]

 

3

 

Interacionismo. É importante em Descartes a defesa do dualismo interacionista quanto ao que é hoje chamado de problema da relação mente-corpo. Para ele existem duas substâncias, (i) a substância extensa (res extensa) e (ii) a substância pensante (res cogitans). A substância extensa constitui o que hoje chamamos de mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera o atributo da extensão como sendo o mais distintivo do mundo físico, uma vez que podemos ter uma ideia clara e distinta da extensão. Já a substância pensante é constituída pelas mentes e por seus conteúdos, incluindo não só pensamentos, mas também emoções e sensações. A substância pensante pode ser de dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que são nossas almas e as substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante infinita, que é simplesmente Deus.

   Descartes tinha uma prova do dualismo de substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o contexto opaco introduzido por verbos de atitude proposicional como ‘duvidar’, ‘acreditar’, ‘ordenar’. Considere o seguinte argumento plenamente válido:

 

          (1)

O objeto a tem a propriedade F.

a = b.

O objeto b tem a propriedade F.

 

Compare esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar, que é um verbo de atitude proposicional:

 

          (2)

Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.

Zorro = Dom Diego.

Maria duvida que Dom Diego existe.

 

O problema é que, como é sabido, ninguém sabe que Zorro é Dom Diego, nem mesmo a Maria. O uso do verbo de crença proposicional introduz um contexto opaco que torna a conclusão falaciosa. O mesmo acontece no argumento:

 

          (3)

Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.

Corpo = mente

Descartes pode duvidar da existência de sua mente.

 

Como a conclusão é obviamente falsa, Descartes concluiu que a segunda premissa precisa é que precisa ser falsa: a alma tem de ser algo diverso do corpo. Mas seu raciocínio é enganoso por assimilar a forma do argumento (3) à forma do argumento (1), quando na verdade sua forma é idêntica a (2). O argumento (3) é tornado inválido pelo fato de conter um verbo de atitude proposicional que introduz um contexto opaco.

   Um outro problema é a maneira como Descartes soluciona o assim chamado problema mente-corpo, o problema da relação entre a res cogitans e a res extensa. Ele acreditava que a mente se relaciona com o corpo através de uma interação causal. Assim, se eu piso em um caco de vidro isso causa um evento mental, que é a sensação de dor. Essa sensação desagradável me faz levantar o pé, pensar no que fazer e, em seguida, me pôr a fazer um curativo. O problema que aqui surge é o de explicar como é possível a interação entre algo que não ocupa espaço, o pensamento, e o mundo extenso, físico. A brilhante princesa Elisabeth da Bohemia colocou a questão em uma carta a Descartes:

 

(...) parece que toda determinação do movimento se dá por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por aquela que a move, ou bem, pela qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas primeiras condições e a extensão pela terceira. [4]

 

Frente a essa objeção Descartes não conseguiu ir muito além do reconhecimento de que há coisas que precisam ser aceitas como um mistério.

 

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Ceticismo. Um outro ponto de ligação entre a filosofia de Descartes e a discussão contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o mundo externo. A hipótese do gênio maligno é o que hoje chamamos de uma hipótese cética. Há outras hipóteses céticas globais com o mesmo efeito, como a do mundo como sonho ou uma alucinação coerente. A versão preferida hoje é, aliás, a de que a pessoa seja um cérebro em uma cuba com os nervos aferentes e eferentes ligados a um supercomputador que lhe faz alucinar uma realidade virtual... com o mesmo efeito. Com base em qualquer uma dessas hipóteses céticas (escolho aqui a do gênio maligno) o seguinte argumento cético pode ser construído:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho duas mãos.

 

Esse argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas mãos” pode ser aqui substituído por qualquer outro enunciado trivial: eu não sei se estou sentado, eu não sei se estou escrevendo, eu não sei se a terra é realmente redonda... O ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não saber que a hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma sobre o mundo externo.

   A contraposição do argumento cético é o argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial qualquer, digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a hipótese cética assim:

 

Eu sei que tenho duas mãos.

Se eu sei que tenho duas mãos então sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

O argumento anticético prova tanto quanto o argumento cético. A questão fica sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Ainda assim, a inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto direito de estar certo quanto o anticético.

   Tenho uma maneira de refutar o argumento cético que é reminiscente da distinção feita por Rudolph Carnap entre questões internas e externas de existência, embora sem os seus defeitos.[5] Trata-se da introdução de uma distinção entre dois conceitos de realidade externa: inerente e aderente.[6] Vou explicá-la.

   A realidade inerente do mundo externo tem a ver com o fato de que o aparecimento e a ordem de nossa experiência sensível não dependem de nossas mentes. A atribuição de realidade externa depende minimamente de critérios herdados da tradição, os principais deles sendo;

 

(i)             Critério de intensidade: máxima intensidade sensorial,

(ii)           Critério de independência: independência da vontade,

(iii)         Critério de intersubjetividade: possibilidade de comprovação por acesso interpessoal,

(iv)         Critério de regularidade: seguimento de leis da natureza e regularidades...

               (para maiores detalhes ver cap. XI, sec. 14).

Minha proposta é que se esses critérios forem satisfeitos conjuntamente por uma dada entidade e pelo contexto no qual ela se encontra, então essa entidade pode ser afirmada como sendo externamente real no sentido inerente, que é o sentido normalmente aplicado por nós no dia a dia. Tais são os critérios que implicitamente temos em mente ao dizermos que as coisas ao nosso redor são “reais”. Podemos, aliás, sem muita dificuldade estender esses critérios para coisas indiretamente acessíveis, como eventos passados ou objetos microscópicos ou ainda coisas testemunhadas por outros, na medida em que seja possível produzir evidências sensíveis com as propriedades acima descritas (nisso se baseia o realismo científico).

   É fundamental notar que esses critérios precisam ser conjuntamente satisfeitos. Em uma alucinação realista, como a que se dá na alucinose alcóolica, a pessoa vê um cavalo branco com a máxima intensidade sensorial, essa visão é independente de sua vontade, o animal pode mesmo se comportar como é esperado de um cavalo, mas ele não será interpessoalmente acessível: outras pessoas lhe dirão que não existe cavalo algum. E só isso basta para evidenciar a alucinação.

   O sentido aderente do conceito de realidade externa, por sua vez, é o que diz respeito a cenários céticos de maior ou menor extensão, obedecendo critérios muito diversos. Se eu for uma alma vagando no espaço e enganada por um gênio maligno, os critérios de (i) a (iv) estarão sendo satisfeitos em toda a sua intensidade, independência, intersubjetividade e regularidade. Mas em princípio eu posso vir a saber disso por comparação, se essa alma deixar de ser enganada e as outras almas me convencerem que eu havia vivido minha vida inteira sob a sistemática alucinação de ser um habitante do planeta terra... O critério de realidade externa é aqui comparativo e coerencial, bem diferente dos critérios inerentes encontrados acima.

   De posse dessa distinção podemos agora refazer os argumentos cético e anticético demonstrando que eles são ambos equívocos, uma vez que os significados de suas sentenças não mantêm identidade. Chamando a realidade aderente de realidade(A) e realidade inerente de realidade(I), eis como fica o argumento cético:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho realmente(A) duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho realmente(I) duas mãos.

 

Eis como fica agora o argumento anticético:

 

Eu sei que tenho realmente(A) duas mãos.

Se eu sei que tenho realmente(I) duas mãos então não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

Ambos os argumentos são equívocos e, portanto, falaciosos. A conclusão é que podemos demonstrar que nosso mundo é inerentemente real. Mas não podemos demonstrar que ele é real em um sentido absoluto, pois isso implicaria em demonstrar sua realidade aderente. O que fazemos, uma vez que não temos qualquer razão para admitir que nosso mundo não seja aderentemente irreal, é tomar como uma postulação semântica do mundo, segundo a qual ele é não só inerentemente, mas também aderentemente real. Essa postulação só poderá ser contestada se encontrarmos razões para colocá-la em dúvida. Isso acontecerá no caso de termos evidências de que a hipótese cética é verdadeira. Mas esse não é o caso. Voltaremos à questão quando tratarmos da filosofia de David Hume.

   Foi Wittgenstein desenvolveu um rationale que torna aceitável o que chamo de postulação semântica do mundo em um manuscrito inusitado intitulado Sobre a Certeza (Über Gewissheit). Ele defendeu que a dúvida só pode existir sob um fundo de certezas que é dado pelo sistema de crenças socialmente instituído em uma forma de vida; caso contrário a dúvida não faz sentido. Em nosso caso isso significa que uma hipótese cética só se justifica se houver alguma razão que a justifique, por exemplo, alguma evidência de que sejamos almas enganadas pelo gênio maligno ou cérebros em cubas. Como isso não acontece, a postulação semântica de que nosso mundo é também aderentemente real deve ser aceita como certa.

 

 

5

 

Racionalismo. Não quis entrar em detalhes sobre o sistema de Descartes aqui sinopticamente resumido. Quero apenas assinalar a importância de sua filosofia para a libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele destampou a garrafa da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade, cada qual criando uma concepção de mundo própria.

   Os filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas. Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento matemático herdado da axiomatização da geometria por Euclides. Esse foi o caso dos filósofos continentais, como Spinoza, Leibniz e do próprio Descartes. Os empiristas, por sua vez, foram os que puseram ênfase na experiência empírica como a fonte principal (senão a única) do conhecimento humano, minimizando a participação da razão, quando não a excluindo. Eles importavam para a filosofia o modo de pensar de cientistas empíricos, como Galileu e Newton. Esse foi o caso dos filósofos britânicos como Locke, Berkeley, Hume e Stuart Mill. Kant foi quem tentou a grande síntese entre racionalismo e empirismo, fechando assim o ciclo iniciado por Descartes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Discurso do Método, Quarta Parte 4.

[2] Meditações Metafísicas, Meditação Segunda, sec. 4.

[3] Uma resposta seria a de que o cogito não precisa ser proferido: o androide poderia ser capaz de ser levado a pensar “eu sou, eu existo”. Mas se ele está se pensando como sendo o Elvino isso é falso, dado que Elvino nem existe nem pensa.

[4] Tradução de Rafael Teruel Coelho para a Revista Instauratio Magna, da Universidade Federal do ABC, v. 1, n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” – 6/16 Mai 1643. In Oeuv. Res. De Descartes, vol III, Correspondance. Org. Charles Adam & Paul Tannery, Paris: Libraria Philosophique, J. Vrin, pp. 660-2, 1996.

[5] Ver Rudolph Carnap: “Empiricism, Semantics, and Ontology,” publicado como suplemento a Meaning and Necessity (Chicago: The University of Chicago Press 1958).

[6] A forma mais desenvolvida desse argumento encontra-se em meu artigo “The Sceptical Deal with our Concept of External Reality,” in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014), cap. 6. Há muitas tentativas de solucionar o problema, mas creio que a minha é de fato a mais plausível.

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