DRAFT PARA O LIVRO IHF
XIX
DONALD WILLIAMS:
A ONTOLOGIA DOS
TROPOS
Qualquer mundo possível, e, portanto, claro, esse mesmo, é completamente
constituído de seus tropos...
Donald Williams
Donald Cary Williams (1899-1983) foi um filósofo norte-americano com
particular interesse pela metafísica. Ele foi um grande estilista e também um
pensador obstinado, o que pode ser uma grande qualidade quando alguém percebe
algo que os outros não se acham muito dispostos a ver. Ele defendeu tenazmente
uma ideia profundamente original em ontologia. Uma ideia que se puder ser adequadamente
desenvolvida representará o ponto de inflexão em toda a investigação ontológica,
uma vez que será capaz de possibilitar aos filósofos saírem do lodaçal argumentativo
no qual a ontologia vem patinando desde os tempos de Platão. Trata-se da assim
chamada teoria dos tropos.[1] No que se segue quero
apresentar primeiro um resumo da teoria, tal como defendida por Williams. Esse
resumo será seguido de uma breve apresentação da maneira como creio que ela
poderá ser mais eficazmente desenvolvida.
1
Tropos. Há um conceito que já existe pelo menos desde os
inícios da filosofia ocidental, que é o de propriedade espaço-temporalmente
localizável. Aristóteles, por exemplo, admitia a existência de qualidades presentes
nas substâncias como a palidez de um certo homem e Edmund Husserl chamou a
parte de um indivíduo concreto de momento. Mas esse conceito sempre exerceu
um papel secundário.[2] A ninguém ocorreu a ideia
genialmente simples de construir toda a realidade ontológica a partir de
propriedades espaço-temporalmente localizáveis. Essa foi a grande originalidade
de Williams. Ele chamava as propriedades espaço-temporalmente localizáveis de
tropos ou “particulares abstratos”, dado que ele os definiu como aquilo que abstraímos
de particulares concretos ou coisas. Sua tese metafísica fundamental foi a de
que:
Qualquer mundo possível e, naturalmente, também o
nosso, é totalmente constituído de seus tropos e suas conexões de localização e
similaridade e quaisquer outras que possam existir.[3]
Alguns exemplos de tropos, todos apresentados por Williams, tornarão
mais compreensível a extraordinária extensão do conceito:
Cor, forma, superfície, odor, vermelho, tamanho,
triangularidade... dor, amor, tristeza, prazer, emoção, crença, serenidade,
percepção, discriminação, intenção, disposição, poder, processos mentais,
sequências de pensamentos... um sorriso, um espirro... uma eleição, uma
performance musical, um caso de amor, uma decisão moral, um ato de contrição,
uma peça de impudência... a beleza de Maria, Maria sendo bela, a figura de uma
mulher, sua compleição, sua digestão...[4]
Vemos por esses exemplos que as propriedades espaço-temporalmente
localizáveis, ou seja, os tropos, podem ser de muitos tipos: externos (a forma,
a cor, o odor, o peso), internos (uma intenção, uma crença, uma disposição
mental, um pensamento), simples (o apito de uma fábrica, uma pontada de dor),
complexos (um caso de amor, a digestão de uma pessoa...), homogêneos (um solo
de violino...), heterogêneos (um ato de contrição...). Para Williams os tropos
devem contrastar com particulares concretos como, usando outros exemplos seus:
Maria, uma igreja, uma nação, a raça humana.[5]
Mas como então foi ele capaz de
fundamentar a proposta de que todo nosso mundo é completamente constituído de
seus tropos? Primeiro, pela sugestão de que podemos construir universais apenas
com base em tropos. Segundo, pela sugestão de que podemos construir
particulares concretos também apenas com base em tropos. Trata-se de um
programa ontológico empirista e radicalmente naturalista, que pode ser
justamente considerado uma tentativa de virar Platão de cabeça para baixo. No
que se segue veremos como ele pretendeu fazer isso.
2
Comecemos com a maneira como Williams construiu os universais com base
em tropos. O universal não é para ele nada além de um conjunto ou classe ou
mesmo grupo de tropos precisamente similares entre si.[6] Considere, por exemplo, o
universal do vermelho, aquilo que Platão chamaria de “o-vermelho-em-si-mesmo.”
Williams diria que o correspondente formal do universal abstrato ou “essência”
na ontologia dos tropos nada mais é do que um conjunto de todos os tropos
precisamente similares entre si.[7] Uma frase como “O vermelho
é uma cor” seria por ele analisada como: “O conjunto dos tropos precisamente
similares de vermelho está contido no conjunto dos tropos precisamente
similares de cor”. O mesmo se poderia dizer de uma ideia universal como a de justiça:
trata-se apenas do conjunto de tropos de justiça precisamente similares entre
si (naquilo que realmente conta) e não da ideia abstrata da justiça-em-si-mesma.
Também com base em conjuntos
Williams pretendeu construir particulares concretos, melhor dizendo, pela soma
de tropos concordantes (concurrents) ou compresentes (compresents)
no sentido de que essa soma se encontra (aproximadamente) em um mesmo lugar e
no mesmo tempo.[8]
Assim, uma cadeira é algo constituído de tropos de cor, rigidez, maciez,
dureza, forma, peso... que se encontram sistematicamente conjugados uns aos
outros em uma localização espaço-temporal específica. E particulares concretos
como Maria, uma certa igreja, a raça humana, uma nação... também são,
minimamente, somatórios de tropos compresentes, ao que poderíamos adicionar uma
organização interna maior (um animal, uma cadeira) ou menor (uma pedra, uma
montanha).
3
Há um grande número de objeções à proposta de Williams, umas melhores,
outras piores.
Quanto à ideia de que o
universal é um conjunto de tropos precisamente idênticos uns aos outros há uma
objeção que tem sua origem em Russell. Digamos que os tropos {T1, T2, T3... Tn}
são precisamente similares entre si. O que é, afinal, a similaridade precisa?
Para um teorista dos tropos que acredita que tudo são tropos, a similaridade
não deve ser outra coisa senão um outro tropo (uma outra propriedade
espaço-temporalmente localizável) que pode ser simbolizado como ‘Ts’. Mas nesse
caso, considerando que T1 e T2 são precisamente similares entre si e que T2 e
T3 também são precisamente similares entre si, temos dois tropos de
similaridade precisa, que podem ser simbolizados como ‘Ts1’ associando T1 e T2
e ‘Ts2’, associando T2 e T3. O tropo de similaridade precisa Ts1 existe porque
pode ser espaço-temporalmente localizado entre T1 e T2, algo similar ocorrendo
com Ts2. Considerando os outros tropos temos uma primeira classe de tropos de
similaridade entre similaridades. Contudo, tropos como Ts1 e Ts2 também precisam
ser precisamente similares entre si, não? E essa similaridade também parece ser
de algum modo espaço-temporal. Por conseguinte, precisaremos recorrer a uma
segunda classe de tropo de similaridade precisa, contendo o tropo Tss1, que é o
da similaridade precisa entre Ts1 e Ts2, etc. Isso já basta para concluirmos
que estamos sendo conduzidos a um regresso ao infinito.
Seria isso um mal? Não
necessariamente, pois um regresso ao infinito pode ser vicioso ou virtuoso.
Ao que parece, um regresso vicioso é aquele no qual cada novo nível é
insuficiente, demandando continuação em um nível superior, enquanto o regresso
virtuoso é aquele que pode ser sustado quando ele nos parecer explicativamente
suficiente. Por exemplo: podemos dizer que é verdade que 2 + 2 = 4. Mas também
é certo dizer que é verdade que é verdade que 2 + 2 = 4. Claro que podemos
reiterar ‘é verdade que’ quantas vezes quisermos. Esse procedimento conduz a um
regresso ao infinito, mas não se trata de um regresso vicioso, uma vez que
depois de dizermos “É verdade que 2 + 2 = 4” não sentimos mais nenhuma pressão
cognitiva que nos induza a continuar reiterando a atribuição de verdade. Mesmo
admitindo que possa haver uma infinita regressão de atribuições de verdade não
precisamos nos preocupar com isso. Algo similar pode ser dito com respeito à
similaridade precisa entre tropos qualitativos. O tropo de similaridade precisa
Ts1 é explicativamente necessário por justificar a existância de similaridade
precisa entre T1 e T2, o mesmo ocorrendo com todo o conjunto de tropos de
similaridade de primeiro nível. Mas não precisamos por causa disso recorrer a
conjuntos de tropos de similaridade de níveis superiores, na independência
deles existirem ou não.
s, pois eles justificam a existência de similaridade precisa entre os tropos
qualitativos T1 e T2 e T2 e T3. Mas esse primeiro nível de tropos de
similaridade precisa já será suficiente para justificar a existência do
conjunto de tropos qualitativos precisamente similares entre si. Não
precisamos, pois, nos preocupar com outros conjuntos superiores de similaridade
precisa.
Há, porém, outras dificuldades
que podem se tornar mais preocupantes. Qual é o status ontológico de um
conjunto ou soma de tropos precisamente similares entre si? Seria ele um tropo?
Outra objeção é a do tamanho. Universais não são maiores ou menores; universais
não parecem ter tamanho, à semelhança de conceitos. Mas conjuntos, classes ou
grupos sim. Além disso, um conjunto pode aumentar ou diminuir de tamanho.
Universais não. Uma alternativa seria tratar o universal como um conjunto
aberto. Mas parece que conjuntos abertos são construções que existem somente em
nossas mentes, enquanto porções da realidade costumam ser determinadas em
quantidade, mesmo quando não somos capazes de determiná-las. Afora isso, muitos
tropos existem em quantidades praticamente ilimitadas. Mas isso nos faz
concluir que na maioria dos casos não somos capazes de pensar os universais por
razões médicas... Como seria possível, por exemplo, pensar a classe dos tropos
de vermelho que se distribuem no universo inteiro? Que força explicativa pode
ter semelhante ficção? A maior objeção que pode ser feita ao conceito de
universal proposto por Williams é que ele é geralmente incognoscível. Em
oposição a isso, quando reduzimos universais a simples conceitos, o que parece
natural, eles nos parecem plenamente inteligíveis. Esse argumento contra a
cognoscibilidade dos universais é para mim decisivo.
Vejamos agora uma objeção ao
conceito de particular concreto. Sob o suposto de que o mundo é constituído de
tropos, a própria compresença deve ser também um tropo. Simbolizando o tropo de
compresença com ‘Tc’ e, supostamente, os tropos constitutivos de um objeto
material M como formando o conjunto {T1, T2... Tn}, deveremos dizer que a
condição necessária para se ter M é a de que {T1, T2... Tn} sejam unidos pelo
tropo Tc. Mas aí surge a questão. O que une T1, T2... Tn e Tc? Ora, para
respondermos a essa questão precisaremos recorrer a um novo tropo de
compresença, que será ‘Tc1’. Contudo, também o conjunto {T1, T2... Tn, Tc, Tc1}
precisará ser unificado por um novo tropo de compresença, Tc2, de modo que
também aqui parece que estamos sendo induzidos a um regresso ao infinito.[9]
4
Acredito não ser demasiado difícil responder às objeções até aqui
consideradas. Se isso for possível, a ontologia dos tropos passará a ter uma
perspectiva muito mais promissora do que as formas de realismo e nominalismo
com as quais temos convivido desde sempre, pois terá sido capaz de reduzir toda
a realidade ontológica a uma única e bastante intuitiva categoria. No que se
segue quero ensaiar algumas respostas.
Primeiro, se nos recordarmos
que o problema dos universais foi introduzido por Platão para resolver o
problema da predicação, ou seja, o de se saber como é possível dizer o mesmo
de muitos (cap. II, sec. 2), a resposta fica mais fácil. É útil aqui que
nos lembremos de como Berkeley (cap. X, sec. 1) e Hume (cap. XI, sec. 4) resolveram
o problema das ideias gerais (universais) sem admiti-las como sendo ideias
abstratas no sentido realista platônico ou aristotélico. Para eles tudo o que
precisamos é de ideias modelares que por convenção se encontram ligadas a um
termo geral, junto à habilidade de identificar quaisquer ideias
similares às ditas ideias modelares. Por exemplo: podemos associar à palavra
‘triângulo’ a ideia de um polígono de três lados e com base na imaginação de
variações dos ângulos desse triângulo sermos capazes de identificar qualquer
objeto triangular com base em sua precisa semelhança com as derivações do
modelo.
Minha sugestão pode ser aqui
vista como uma substituição da ‘ideia’ do particularismo empirista por ‘tropo’,
mas com a vantagem de que com a ideia de tropo não precisamos ficar restritos a
imagens mentais, como foi objetado contra os empiristas. Os tropos modelares
podem ser entendidos como partes das regras conceptuais que aplicamos ao
identificar tropos precisamente similares a ele. Ou seja, para se predicar um certo
nome de muitas coisas, basta compararmos um certo tropo associado ao nome que
já conhecemos com as coisas e ver se elas contêm tropos precisamente similares
ao primeiro tropo. Não precisamos recorrer a conjunto algum para realizarmos
essa operação. Ao invés de, por exemplo, recorrermos à similaridade entre uma
coisa dada à experiência e algo como a ideia platônica, nós recorremos à
similaridade precisa entre aquilo que é dado à experiência e um tropo modelar qualquer
do qual guardamos memória e ao qual associamos um nome. Ou seja: aquilo que alguns
chamam de um conceito geral pode ser reduzido à nossa capacidade
de realizar a operação mental de identificar tropos como precisamente similares
a um tropo (geralmente complexo) com o qual já estamos familiarizados.
Considere, para exemplificar,
um tropo muito simples como o da cor de terra de Siena queimada. Digamos que Maria
fez um curso de pintura e que tenha aprendido o nome e ganho familiaridade com
essa tonalidade de cor. Depois disso ela vai visitar a Itália e lá identifica
um bom número de edificações pintadas com essa mesma cor. Certamente, isso
bastará para que concordemos que ela tem o conceito geral da cor chamada
de terra de Siena queimada. Mas o que podemos querer dizer com isso?
Certamente, não que ela tem qualquer acesso ao imenso conjunto de tropos
precisamente similares de terra de Siena queimada que existe no mundo. Esse foi
o caminho seguido por Williams. Tudo o que queremos dizer é na verdade que ela
possui a memória do modelo de terra de Siena queimada associada ao termo geral
‘terra de Siena queimada’, uma memória resultante de seus múltiplos contatos
com essa cor associados à palavra que a nomeia quando fez seu curso de pintura,
e que agora é capaz de identificar esses tropos quando eles lhe são
apresentados. Podemos resumir nossa paráfrase do conceito universal como:
Uma pessoa S possui o conceito geral de um tropo T se
e somente se N é capaz de associar um certo termo geral a algum modelo T* desse
tropo e de realizar a operação de identificação de qualquer outro tropo que lhe
seja apresentado como sendo ou não sendo precisamente similar ao modelo T* que
possui.
O que temos aqui é a exposição de uma regra, de uma regra conceitual,
de um conceito, e conhecer um conceito é o mesmo que possuir a habilidade de
aplicar uma tal regra. Observe que o tropo que usamos como modelo pode variar
arbitrariamente. Além disso, o tropo considerado pode ser muito mais complexo,
caso no qual não será dado à experiência sensível da mesma forma direta que uma
cor. Mas isso pouco importa, pois na prática não precisamos identificar um
tropo dado à experiência como sendo precisamente similar ao tropo modelar como
um todo. Geralmente basta recorrermos a algum elemento identificador.
Pense, para usar uma analogia, na prova de que você não é um robô pelo Google,
através da qual você identifica motocicletas, veículos motorizados, pontes...
apenas com base em partes desses objetos. Afora isso deve ser notado que muitos
tropos não permitem representação imagética como o de Terra de Siena queimada.
Tropos de emoção ou cognição, intenção, disposição, tropos de espirro, tropos
de nomes contáveis, como o de ser humano, tropos de regras, de procedimentos,
podem à primeira vista parecerem requerer abstração platônica. Contudo, tudo o
que eles requerem são decomposições de caráter lockeano (ver Cap. IX, sec. 4).
Observe ainda que o
procedimento acima permite em princípio derivar a existência de um conjunto, nomeadamente,
o conjunto de todos os tropos que poderiam ser identificados como precisamente
similares ao tropo modelar que S tem em mente. Felizmente, esse conjunto é
geralmente irrelevante e não precisa ser experienciado por S nem por ninguém. Ele
seria a extensão da operação pela qual o tropo é universalizado. Em lógica,
pelo menos desde Stuart Mill, damos uma razoável importância ao conceito de
extensão. Contudo, a exigência de que o conceito de universal deva ser
assimilado ao da extensão de um conjunto resulta de um antiquado preconceito
formalista. Ao rejeitarmos a necessidade de nos valermos da extensão para
explicar os universais nós nos libertamos da exigência de que para concebermos
um universal precisamos nos preocupar com os problemas acima evocados. Tudo o
que precisamos é sermos capazes de perceber a similaridade entre algum modelo
de tropo e qualquer outro tropo que formos capazes de considerar precisamente
similar ao modelo. Também objeções de tamanho desaparecem, uma vez que tudo o
que se exige é a habilidade de distinguir tropes precisamente similares ao
modelo e sua associação convencional com seu signo linguístico. Finalmente,
desaparece a objeção de que não somos capazes de ter acesso cognitivo aos
universais, uma vez que eles não mais existem.
Finalmente, o status ontológico
daquilo que naturalmente chamamos de conceito passa a ser o de uma regra, não
no sentido de uma entidade abstrata, mas no sentido de uma disposição para,
dado certo input criterial, produzir um output cognitivo e/ou
procedimental. Esse conceito é o mesmo que uma ideia no sentido psicológico e
não-platonista. Ele não é autopredicável. Com efeito, não podemos dizer que a
regra conceitual para a palavra ‘vermelho’ é vermelha, nem que o conceito de
vermelho é vermelho, nem que a ideia (psicológica) do vermelho é vermelha (ver
cap. II, sec. 4).
Vejamos agora a objeção feita à
construção de particulares concretos, segundo a qual a adição do tropo de
compresença produz um novo conjunto de tropos, que demanda outro tropo de
compresença e assim indefinidamente. A objeção nos faz recordar do argumento do
terceiro homem aplicado às ideias platônicas, que já vimos no capítulo II (sec.
4). É o tropo de compresença compresente? Parece que sim. Então ele é
autopredicativo e isso parece nos levar a uma redução ao infinito. Contudo, mesmo
que esse seja o caso é possível argumentar que essa é uma redução virtuosa, uma
vez que a adição de novas compresenças, embora possível, não se faz necessária.
Do mesmo modo que os tropos de similaridade precisa não requerem a consideração
de tropos de similaridade precisa entre eles para justificar uma classe de
tropos precisamente similares, o tropo Tc é tudo o que precisamos para enlaçar
o conjunto de tropos em uma unidade. Como consequência podemos ficar
satisfeitos com o conjunto {T1, T2... Tn} parando aí mesmo sem que isso nos
cause maiores aflições. Afinal, até um tropo tão vulgar como o do
vermelho fisicamente dado é susceptível de um redutio
autopredicativo: “Isso é vermelho”; “Isso que é vermelho é vermelho”; “Isso que
é vermelho que é vermelho é vermelho”... Mas ninguém ousaria dizer que só por
causa dessa peculiaridade nós não podemos mais dizer que algo é vermelho.
5
Há ainda muitas outras objeções e questionamentos possíveis. Não parece
fácil, por exemplo, encontrarmos o critério de identificação para um tropo.
Afinal, quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? Quanto
aos objetos materiais, a compresença é uma condição necessária, mas não é
suficiente. Por exemplo, a cor vermelha de uma chama vem junto ao calor, mas
essas duas qualidades compresentes não constituem um objeto material. Como
classificar objetos da microfísica como os elétrons? O que dizer das forças da
natureza? O que dizer do espaço e do tempo? São eles tropos ou são constituídos
por tropos? E o que dizer de entidades abstratas como a existência, ou ainda de
entidades matemáticas como números ou, quem sabe, partículas lógicas?
Comecemos com a questão do
critério de identidade para os tropos. Não parece que exista um único, nem que
a questão seja tão relevante. Parece que convencionamos para diferentes
espécies de tropos critérios de identidade diferentes, dado que aquilo que
distingue uma espécie de tropo é seu próprio critério de individuação.
Uma pergunta insidiosa é: quantos tropos?
Quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? O critério
parece ser aqui a homogeneidade da parede, pois se ela for homogeneamente
branca seremos tentados a dizer que se trata apenas de um grande tropo (propriedade)
de brancura. Se a parede tivesse várias tonalidades de uma mesma cor
tenderíamos a falar de vários tropos. O ponto em questão além de vago parece
ser altamente convencional.
Que dizer do critério de
identidade para os particulares concretos? A mera compresença não é suficiente.
Considere, por exemplo, o caso de uma síndrome. Ela se caracteriza como um complexo
conjunto de sinais e sintomas interligados, que nada mais são que tropos atuais
ou disposicionais compresentes. Mas ela não é um particular concreto. A
resposta parece ser aqui aristotélica: quando temos de tratar um conjunto de
tropos compresentes como existindo de maneira independente e como objeto de
predicações sem que ele possa ser predicado de coisa alguma, então estamos
diante de um particular concreto, como no caso de Maria. Mas se ela sofre de
síndrome do pânico, podemos identificar nela o complexo tropo caracterizador dessa
síndrome, que pode ser decomposto como um conjunto de tropos disposicionais e
não-disposicionais; contudo, esse tropo não é um particular concreto, uma vez
que depende da existência de um outro grupamento de tropos que constitui o
particular concreto que é Maria, além de ser predicado dela. Isso significa que
para a identificação de particulares concretos, critérios derivados do
aristotelismo devem ser adicionados ao de compresença. Isso vale também para
particulares concretos espalhados, como uma nação ou a raça humana. Uma nação é
independente de sua propriedade de ser democrática. A raça humana é
independente de sua propriedade de se inventiva.
Curiosamente, se não interpretarmos o que Aristóteles
entendeu como sendo a forma substancial em termos de um universal, mas como algo
novo e distinto para cada indivíduo por ela classificado (cap. III, sec. 5),
ela se transforma em um particular abstrato, tanto quanto qualquer propriedade acidental
compresente em relação à substância. A matéria passa a ser um tropo
disposicional. Se não fosse pelo fato de Aristóteles admitir a existência de
substâncias suprassensíveis, ele poderia ser interpretado como um insigne defensor
da teoria dos tropos.
Quanto às forças da natureza é
fácil explicá-las em termos de tropos. Elas são todas espaço-temporalmente
localizáveis, logo são tropos, embora muito vagamente dispersos no espaço. Esse
é o caso das forças eletromagnéticas, dependentes de particulares concretos
como metais e também das forças forte e fraca, dependentes de partículas
subatômicas, que mesmo sendo muito pequenas podem ser vistas como minúsculos
particulares concretos. E se a gravidade é um encurvamento no espaço-tempo na
proximidade de corpos massivos então também podemos compreendê-la em termos de
tropos espaço-temporalmente localizáveis dependentes de particulares concretos.
E o que dizer do espaço e do tempo? Podemos
identificar as localizações espaciais e as durações temporais dos objetos
materiais à nossa volta em termos de distâncias e durações espaço-temporalmente
localizáveis. Logo, distâncias e durações são tropos! Por exemplo: o tampo dessa
mesa está a um metro e vinte centímetros do solo. Essa relação espacial se
encontra no espaço e tem uma duração no tempo, logo é espaço-temporal, logo é
um tropo. Também posso dizer que essa mesa foi colocada aqui há duas semanas. Ora,
o período de tempo decorrido desde que a mesa foi colocada na sala se encontra
no tempo, e como esse período é considerado com relação ao local em que a mesa
colocada, outra vez temos, por definição, um tropo espaço-temporal. Se
adotarmos uma concepção relacional do espaço e do tempo é possível construir as
noções de espaço e tempo como um todo como um somatório de pequenas relações.
Como esse somatório não é espaço-temporalmente localizável, ele não poderá ser concebido
como um tropo.
Que dizer de coisas geralmente
consideradas abstratas como um pensamento ou a existência? Considere primeiro o
caso do pensamento. Para Williams, o pensamento como um evento ou processo
mental é um tropo. Esse é o caso quando penso que Schliemann descobriu Troia.
Mas que dizer do pensamento abstrato de que Schliemann descobriu Troia, o qual
pode ser acessado por qualquer um de nós, o qual é sempre verdadeiro (se for
verdadeiro) e que aparentemente não está em nossas cabeças? A resposta de
Williams seria: o pensamento abstrato de que Schliemann descobriu Troia, ou
seja, a proposição expressa por “Schliemann descobriu Troia” tomada como
universal, nada mais deve ser do que o conjunto de todos os pensamentos de que Schliemann
descobriu Troia. Ou, seguindo a reformulação proposta acima: o pensamento
verdadeiro de que Schliemann descobriu Troia é um tropo e como tal nada mais é
do que nossa capacidade de pensar isso e de identificar qualquer outro
pensamento de que Schliemann descobriu Tróia como sendo precisamente similar a
ele, nada mais sendo necessário.
Consideremos agora o conceito
de existência. Como já vimos (cap. XII, sec. 13), dizemos que um objeto existe
quando a sua regra de identificação se demonstra garantidamente aplicável a
ele. Dito de outra forma, ele existe quando ele é tal que possui a disposição
de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesmo, não
sendo, por isso, um mero objeto ficcional... Em qualquer dos dois últimos casos,
a propriedade de efetiva aplicabilidade da regra de identificação é também localizável
lá onde a regra for aplicada, sendo por isso um tropo. Assim, se digo que a
nossa Lua existe é porque sei que sua regra de identificação é efetivamente
aplicável e que a aplicabilidade dessa regra não é uma propriedade (tropo) que
existe em uma outra galáxia, mas em algum lugar por aqui mesmo, entre nós, a
terra e a Lua. A existência é, portanto, um tropo. Um tropo de ordem superior,
mas nem por isso menos que um tropo.
Que dizer dos números? É fácil identificar
números aplicados com tropos. Os três patetas, os três blue-caps, as três
Marias... tudo isso são tropos de trios, uma vez que são espaço-temporalmente
identificáveis. O mesmo podemos dizer de uma soma aplicada como a soma das três
peras com as duas maçãs que se encontram dentro da cesta. Além disso, números
aplicados podem até mesmo se mover junto aos seus portadores: as 26 pedras que
constituem o Stonehenge foram em tempos remotos transportadas de Wiltshire para
Wales.
Mas o que dizer da soma 3 + 2 =
5 ou do número 3 in abstracto? Essas coisas não parecem estar situadas
em lugar algum. Contudo, um pouco de reflexão mostra que podemos aplicar aqui o
mesmo procedimento que já havíamos aplicado na identificação de universais. Eis
como podemos definir o número 3 in abstracto:
Uma pessoa S possui o conceito geral do número 3 se e
somente se ela associa o signo ‘3’ a uma tríade qualquer de entidades,
possuindo a capacidade de usá-la como modelo na identificação de qualquer outro
tropo equivalente (precisamente similar) a esse modelo.
Não estou dizendo que para conceber o número três in abstracto eu
precise me recordar de algo como as Três Marias (quando uso o número 3 em um
cálculo eu o trato como um mero sinal...). Mas em algum momento de minha vida
eu preciso ter tido contato com tríades espaço-temporalmente localizáveis que
eu mesmo contei. E qualquer nova tríade que me seja dada será também
espaço-temporalmente localizável. Mesmo que a definição do número 3 aqui
apresentada permita derivar um ilimitado conjunto extensional de tríades, isso
é secundário, pois o que importa é apenas a minha capacidade cognitiva de
universalização, a capacidade de dizer o mesmo de muitos, de produzir sínteses
conceituais, e não um universal extensional.
Uma questão seria a de como aplicar a
definição acima a grandes números, aqueles que vão muito além da capacidade
humana para contar. Aqui podemos recorrer a um artifício como o do construtor
ideal (ideal agent) proposto por Philip Kitcher. Ele seria capaz de
realizar por nós qualquer cálculo que fosse além de nossas limitações. Afora
isso, o tratamento da matemática como um mero jogo simbólico se torna legítimo
quando ela se subtrai a nossas capacidades cognitivas.
Adequadamente desenvolvido, semelhante
procedimento teria a grande vantagem de nos possibilitar uma solução de
princípio para o grande mistério que é o problema da aplicação da matemática
abstrata a um mundo empírico sensivelmente acessível e espaço-temporal. É que a
matemática (por vezes só em nossas mentes ou em computadores) também pertence
ao mundo empírico. Os tropos matemáticos, mesmo sendo de ordem superior, são
sempre espaço-temporalmente localizáveis, por mais dispersos que sejam e,
portanto, se encontram no mundo real tanto quanto as linhas dessa página.
5
O peso da tradição. Finalmente, resta uma
pergunta. Como é possível que a teoria dos tropos tenha precisado de mais de
dois mil anos para ser inventada? Ela não poderia ter sido inventada no século
XIX, quando a teoria dos conjuntos já havia sido desenvolvida? Ou, assumindo a
minha versão, não poderia a ela ter sido inventada ainda na Idade Média, quando
as pessoas já tinham uma noção bem definida do que fosse um ato mental?
A única resposta que consigo
imaginar para essa questão é nietzscheana: A solução proposta por Williams não
foi desenvolvida antes devido à força do ideal ascético no interior do
pensamento judaico-cristão ocidental. A ontologia era, ou asceticamente formulada
de cima para baixo, como no idealismo platônico, ou então, diante de sua
impossibilidade, reativamente negada nas diferentes formas de nominalismo. Só no
século XX, quando o desenvolvimento científico, econômico e técnico permitiu à mente
humana libertar-se das motivações teístas figurativas transcendentes, o ambiente
filosófico perdeu o suficiente de sua vinculação com formas de evasão herdadas
da tradição judaico-cristã para que nele se admitisse a abertura para uma
ontologia capaz de ser desenvolvida de baixo para cima: a ontologia dos tropos.
É por isso que, mesmo no interior do escolasticismo que permeia a discussão
contemporânea, a ideia aos poucos ganha força.
[1] D. C. Williams,
Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford:
Oxford University Press 2018).
[2] A lista de filósofos tradicionais que admitiram a
existência de propriedades espaço-temporalmente localizáveis é na verdade muito
grande, embora inversamente proporcional à importância que eles deram a essa
noção. Ver
Anna-Sofia Maurin: Tropes. In Stanford Encyclopedia of Philosophy (2023,
Internet).
[3] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns
of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 28.
[4] Ibid. p. 33-37.
[5] Ibid. p. 38.
[6] O conceito de similaridade
precisa ou exata pode ser aqui considerado o mesmo que o de identidade
qualitativa, que é a identidade (em grau aproximativo) entre duas coisas
situadas em lugares diferentes (ex.: “O meu e o seu são idênticos”). Ele deve
ser distinguido do conceito de identidade numérica, que é a da coisa
consigo mesma.
[7] D. C. Williams, The Elements and Patterns of Being.
A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 29.
[8] Ibid., p. 29.
[9] Christopher Daily:
“Tropes,” in D. H. Mellor & A. Oliver: Properties (Oxford: Oxford
University Press 1997), pp. 140- 159.
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