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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Donald Williams: a ontologia dos tropos

 XIX

DONALD WILLIAMS:

 A ONTOLOGIA DOS TROPOS

 

 

Donald Cary Williams (1899-1983) foi um filósofo norte-americano com particular interesse pela metafísica. Ele foi um grande estilista e também um pensador obstinado, o que pode ser uma grande qualidade quando alguém percebe algo que os outros não se acham muito dispostos a ver. Ele defendeu tenazmente uma ideia bastante original em ontologia. Uma ideia que se puder ser adequadamente desenvolvida representará o ponto de inflexão em toda a investigação ontológica, uma vez que pode ser capaz de possibilitar aos filósofos saírem do lodaçal argumentativo no qual a ontologia vem patinando desde os tempos de Platão. Trata-se da assim chamada teoria dos tropos.[1] No que se segue quero apresentar primeiro um resumo da teoria, tal como defendida por Williams. Esse resumo será seguido de uma breve apresentação da maneira como creio que ela poderia ser mais eficazmente desenvolvida.

 

1

 

Tropos. Há um conceito que já existe pelo menos desde os inícios da filosofia ocidental, que é o de propriedade espaço-temporalmente localizável. Aristóteles, por exemplo, admitia a existência de qualidades de substâncias como a palidez de um certo homem, e Edmund Husserl chamou a parte de um indivíduo concreto de momento. Mas esse conceito sempre exerceu um papel secundário.[2] A ninguém ocorreu a ideia genialmente simples de construir toda a realidade ontológica a partir de propriedades espaço-temporalmente localizáveis. Essa foi a grande originalidade de Williams. Ele chamava as propriedades espaço-temporalmente localizáveis de tropos ou “particulares abstratos”, dado que ele os definia como aquilo que abstraímos de particulares concretos ou coisas. Sua tese metafísica fundamental foi a de que:

 

Qualquer mundo possível e, naturalmente, também o nosso, é totalmente constituído de seus tropos e suas conexões de localização e similaridade e quaisquer outras que possam existir.[3]

 

Alguns exemplos de tropos, todos apresentados por Williams, tornarão mais compreensível a extraordinária extensão do conceito:

 

Cor, forma, superfície, odor, vermelho, tamanho, triangularidade... dor, amor, tristeza, prazer, emoção, crença, serenidade, percepção, discriminação, intenção, disposição, poder, processos mentais, sequências de pensamentos... um sorriso, um espirro... uma eleição, uma performance musical, um caso de amor, uma decisão moral, um ato de constrição, uma peça de impudência... a beleza de Maria, Maria sendo bela, a figura de uma mulher, sua compleição, sua digestão...[4]

 

Vemos por esses exemplos, que as propriedades espaço-temporalmente localizáveis, ou seja, os tropos, podem ser de muitos tipos: externos (a forma, a cor, o odor, o peso), internos (a intenção, a crença, o pensamento), simples (o apito de uma fábrica, uma pontada de dor), complexos (um caso de amor, a digestão de uma pessoa...), homogêneos (um solo de violino...), heterogêneos (um ato de constrição...). Para Williams os tropos devem contrastar com particulares concretos como, usando outros exemplos seus: Maria, uma igreja, uma nação, a raça humana.[5]

   Mas como então foi ele capaz de fundamentar a proposta de que todo nosso mundo é completamente constituído de seus tropos? Primeiro, pela sugestão de que podemos construir universais apenas com base em tropos. Segundo, pela sugestão de que podemos construir particulares concretos também apenas com base em tropos. Trata-se de um programa ontológico empirista e radicalmente naturalista, que pode ser justamente considerado uma tentativa de virar Platão de cabeça para baixo. No que se segue veremos como ele pretendeu fazer isso.

 

2

 

Comecemos com a maneira como Williams construiu os universais com base em tropos. O universal é para ele nada mais do que um conjunto ou classe ou mesmo grupo de tropos precisamente similares entre si.[6] Considere, por exemplo, o universal do vermelho, aquilo que Platão chamaria de “o-vermelho-em-si-mesmo.” Williams diria que o correspondente formal do universal abstrato ou “essência” na ontologia dos tropos nada mais é do que o conjunto de todos os tropos precisamente similares entre si como tropos de vermelho.[7] Uma frase como “O vermelho é uma cor” seria por ele analisada como: “O conjunto dos tropos precisamente similares de vermelho está contido no conjunto dos tropos precisamente similares de cor”. O mesmo se poderia dizer de um conceito universal como o de beleza: trata-se do conjunto de tropos de beleza precisamente similares entre si (naquilo que realmente conta) e não da ideia abstrata da beleza-em-si-mesma.

   Também com base em conjuntos Williams pretendeu construir particulares concretos, melhor dizendo, pela soma de tropos concordantes (concurrents) ou compresentes (compresents) no sentido de que essa soma se encontra (aproximadamente) em um mesmo lugar e no mesmo tempo.[8] Assim, uma cadeira é algo constituído de tropos de cor, rigidez, maciez, dureza, forma, peso... que se encontram sistematicamente conjugados uns aos outros em uma localização espaço-temporal específica. E particulares concretos como Maria, uma certa igreja, a raça humana, uma nação... também são, minimamente. somatórios de tropos compresentes, ao que poderíamos adicionar uma organização interna maior (um animal, uma cadeira) ou menor (uma pedra, uma montanha).

 

3

 

Há um grande número de objeções à proposta de Williams, umas melhores, outras piores.

   Quanto à ideia de que o universal é um conjunto de tropos precisamente idênticos uns aos outros há uma objeção que tem sua origem em Russell. Digamos que os tropos {T1, T2, T3... Tn} são precisamente similares entre si. O que é, afinal, a similaridade precisa? Para um teorista dos tropos que acredita que tudo são tropos, a similaridade não deve ser outra coisa senão um outro tropo (uma outra propriedade espaço-temporalmente localizável) que pode ser simbolizado como ‘Ts’. Mas nesse caso, considerando que T1 e T2 são precisamente similares entre si e que T2 e T3 são precisamente similares entre si, temos dois tropos de similaridade precisa, que podem ser simbolizados como ‘Ts1’ associando T1 e T2 e ‘Ts2’, associando T2 e T3. Ora, os tropos Ts1 e Ts2 precisam ser precisamente similares entre si, não? Mas nesse caso precisaremos recorrer a um tropo de similaridade precisa de ordem superior, que estabeleça que Ts1 é precisamente similar a Ts2, que podemos simbolizar como ‘Tss1’. Nada mais será preciso para concluirmos que estando sendo conduzidos a um regresso ao infinito.

   Seria isso um mal? Não necessariamente, pois um regresso ao infinito pode ser vicioso ou virtuoso. Ao que parece um regresso vicioso seria aquele no qual no qual cada novo nível demanda continuação em um nível superior, enquanto o regresso virtuoso é aquele que pode ser sustado quando acharmos melhor. Por exemplo: na construção de sua doutrina das ideias Platão usa ideias em um segundo nível para falar sobre ideias em geral. Mais tarde ele foi levado a usar ideias em um terceiro nível para criticar sua própria doutrina das ideias. Isso permite um regresso de ideias sobre ideias sobre ideias ad infinitum. Mas não se tratou de um regresso vicioso, uma vez que isso não o forçava a continuar considerando ideias sobre ideias sobre ideias... Defensores da concepção de universais esposada por Williams prometem que podemos dizer o mesmo do regresso dos tropos de similaridade precisa. Ele é virtuoso porque nada nos força a promovê-lo indefinidamente.

   Há, porém, outras dificuldades que podem se tornar mais preocupantes. Qual é o status ontológico do conjunto, classe, ou grupo de tropos? Seria ele um tropo? Outra objeção é a do tamanho. Universais não são maiores ou menores; universais não possuem tamanho. Mas conjuntos, classes ou grupos sim. Além disso, um conjunto pode aumentar ou diminuir de tamanho. Universais não. Uma alternativa seria tratar o universal como um conjunto aberto. Mas parece que conjuntos abertos são construções que existem somente em nossas mentes, enquanto porções da realidade costumam ser determinadas em quantidade, mesmo quando não somos capazes de determiná-las. Afora isso, muitos tropos existem em quantidades praticamente ilimitadas. Mas isso nos faz concluir que na maioria dos casos não somos capazes de pensar os universais por razões médicas, melhor dizendo, em geral os universais não são sequer cognitivamente acessíveis a nós. Como seria possível, por exemplo, pensar a classe dos tropos de vermelho do universo inteiro? Que força explicativa pode ter tal ficção? Ainda mais quando consideramos que se os universais fossem entendidos como simples conceitos eles nos parecem plenamente pensáveis.

   Vejamos agora uma objeção ao conceito de particular concreto. Sob o suposto de que o mundo é constituído de tropos, a própria compresença deve ser também um tropo. Simbolizando o tropo de compresença com ‘Tc’ e, supostamente, os tropos constitutivos de um objeto material M como formando o conjunto {T1, T2... Tn}, deveremos dizer que a condição necessária para se ter M é a de que {T1, T2... Tn} sejam unidos pelo tropo Tc. Mas aí surge a questão. O que une T1, T2... Tn e Tc? Ora, para respondermos a essa questão precisaremos recorrer a um novo tropo de compresença, que será ‘Tc1’. Contudo, também o conjunto {T1, T2... Tn, Tc, Tc1} precisará ser unificado por um novo tropo de compresença, Tc2, de modo que também aqui parece que estamos caindo em um regresso ao infinito.[9]

   Há, além dessas, muitas outras objeções possíveis. Não parece fácil, por exemplo, encontrarmos o critério de identificação para um tropo. Afinal, quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? Quanto aos objetos materiais, a compresença é uma condição necessária, mas não é suficiente. Por exemplo, a cor vermelha de uma chama vem junto ao calor, mas essas duas qualidades compresentes não constituem um objeto material. Como classificar objetos da microfísica como os elétrons? O que dizer das forças da natureza? O que dizer do espaço e do tempo? São eles tropos ou são constituídos por tropos? E o que dizer de entidades abstratas como a existência, ou ainda de entidades matemáticas como números ou, talvez, partículas lógicas?

 

4

 

Acredito não ser demasiado difícil responder às objeções. Se isso for possível, a ontologia dos tropos passará a ter uma perspectiva muito mais promissora do que as formas de realismo e nominalismo com as quais temos convivido desde sempre, pois terá sido capaz de reduzir toda a realidade ontológica a uma única categoria. No que se segue quero apenas ensaiar algumas respostas.

   Primeiro, se nos recordarmos que o problema dos universais foi introduzido por Platão para resolver o problema da predicação, ou seja, o de se saber como é possível que possamos dizer o mesmo de muitos (cap. II, sec. 2), a resposta fica mais fácil. É útil aqui que nos lembremos de como Berkeley (cap. X, sec. 1) e Hume (cap. XI, sec. 4) resolveram o problema das ideias gerais (universais) sem admiti-las como sendo ideias abstratas no sentido platônico. Para eles tudo o que precisamos é ideias modelares que por convenção se encontram ligadas a um termo geral, junto à habilidade de identificar quaisquer ideias similares aos membros da classe. Por exemplo: podemos associar à palavra ‘triângulo’ a ideia de um polígono de três lados e com base na imaginação de variações dos ângulos desse triângulo sermos capazes de identificar qualquer objeto triangular com base em sua precisa semelhança com as derivações do modelo.

   Minha sugestão pode ser aqui vista como uma substituição da ‘ideia’ do particularismo empirista por ‘tropo’, mas com a vantagem de que com a ideia de tropo não precisamos ficar restritos a imagens mentais. Os tropos modelares podem ser entendidos como partes das regras conceptuais que aplicamos ao identificar tropos precisamente similares a ele. Ou seja, para se predicar um certo nome de muitas coisas, basta compararmos um certo tropo associado ao nome que já conhecemos com as coisas e ver se elas contêm tropos precisamente similares ao primeiro tropo. Não precisamos recorrer a conjunto algum para realizarmos essa operação. Ao invés de, por exemplo, recorrermos à similaridade entre uma coisa dada à experiência e algo como a ideia platônica, nós recorremos à similaridade precisa entre aquilo que é dado à experiência e um tropo qualquer do qual guardamos memória e ao qual associamos um nome. Ou seja: aquilo que alguns chamam de um conceito geral pode ser reduzido à nossa capacidade de realizar a operação mental de identificar tropos como precisamente similares a um tropo (geralmente complexo) com o qual já estamos familiarizados.

   Considere, para exemplificar, um tropo bem específico como o da cor de terra de Siena queimada. Digamos que Maria fez um curso de pintura e que tenha aprendido o nome e ganho familiaridade com essa tonalidade de cor. Depois disso ela vai visitar a Itália e lá identifica um bom número de edificações pintadas com essa mesma cor. Certamente, isso bastará para que concordemos que ela tem o conceito geral da cor chamada de terra de Siena queimada. Mas o que podemos querer dizer com isso? Certamente, não que ela tem acesso ao imenso conjunto de tropos precisamente similares de terra de Siena queimada, ainda que esse conjunto exista. Esse foi o caminho seguido por Williams. Tudo o que queremos dizer é na verdade que ela possui a memória do modelo de terra de Siena queimada associada ao termo geral ‘terra de Siena queimada’, uma memória resultante de seus múltiplos contatos com essa cor associados à palavra que a nomeia quando fez seu curso de pintura, e que agora é capaz de identificar esses tropos quando eles lhe são apresentados. Podemos resumir nossa paráfrase do conceito universal como:

 

Uma pessoa S possui o conceito geral de um tropo T se e somente se N é capaz de associar um certo termo geral a algum modelo T* desse tropo e de realizar a operação de identificação de qualquer outro tropo que lhe seja apresentado como sendo ou não sendo precisamente similar ao modelo T* que possui.

 

Observe que o tropo que usamos como modelo pode variar arbitrariamente. Além disso geralmente o tropo considerado é complexo e na prática pode ser que não precisemos identificar um tropo dado à experiência como sendo precisamente similar ao tropo modelar como um todo. Geralmente basta recorrermos a algum critério identificador. Pense, para usar uma analogia, na prova de que você não é um robô pelo Google, através da qual você identifica motocicletas, veículos motorizados, pontes... apenas com base em partes desses objetos.

   Observe ainda que isso nos permite derivar a existência de um conjunto, nomeadamente, o conjunto de todos os tropos que poderiam ser identificados como precisamente similares ao tropo modelar que S tem em mente. Felizmente, esse conjunto é geralmente irrelevante e não precisa ser experienciado por S nem por ninguém. Esse conjunto seria a extensão da operação pela qual o tropo é universalizado. Em lógica, pelo menos desde Stuart Mill, damos uma razoável importância ao conceito de extensão. Contudo, a exigência de que o conceito de universal deva ser assimilado ao da extensão de um conjunto pode ser aqui vista como um antiquado preconceito formalista que vale a pena rejeitar. Ao rejeitarmos a necessidade disso nós nos libertamos da exigência de que para concebermos um universal precisamos nos preocupar com o acesso a tropos de similaridades precisas entre similaridades precisas. Tudo o que precisamos é sermos capazes de perceber a similaridade entre algum modelo de tropo e qualquer outro tropo que formos capazes de considerar precisamente similar ao modelo. Também objeções de tamanho desaparecem, uma vez que tudo o que se exige é a habilidade de distinguir tropes precisamente similares ao modelo e sua associação convencional com seu signo linguístico. Finalmente, desaparece a objeção de que não somos capazes de ter acesso cognitivo aos universais, uma vez que eles não mais existem.

   Vejamos agora a objeção feita à construção de particulares concretos, segundo a qual a adição do tropo de compresença produz um novo conjunto de tropos, que demanda outro tropo de compresença e assim indefinidamente. A objeção nos faz recordar do argumento do terceiro homem aplicado às ideias platônicas, que já vimos no capítulo II (sec. 4). É o tropo de compresença compresente? Parece que sim. Então ele é autopredicativo. Mas isso nos leva a uma redução ao infinito. Contudo, mesmo que esse seja o caso é possível argumentar que ela é uma redução virtuosa, uma vez que a adição de novas compresenças, embora possível, não é necessária. O tropo Tc não é como os outros, pois ele tem como função única enlaçar os outros tropos em uma unidade. Como consequência podemos ficar satisfeitos com o conjunto {T1, T2... Tn} entendendo Tc como o mesmo que {...}, sem que isso nos cause maiores aflições.[10]

   Quanto ao critério de identidade para os tropos, não parece que exista um único, nem que a questão seja tão relevante. Parece que convencionamos para diferentes espécies de tropos critérios de identidade diferentes, dado que aquilo que distingue uma espécie de tropo é seu próprio critério de individuação.

   Uma pergunta insidiosa é: quantos tropos? Quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? O critério aqui parece ser a homogeneidade da parede, pois se ela for homogeneamente branca seremos tentados a dizer que se trata apenas de um grande tropo (propriedade) de brancura. Se a parede tivesse várias tonalidades de uma mesma cor tenderíamos a falar de vários tropos. O ponto em questão além de vago parece ser altamente convencional.

   Que dizer do critério de identidade para os particulares concretos? A mera compresença não é suficiente. Considere, por exemplo, o caso de uma síndrome. Ela se caracteriza como um complexo conjunto de sinais e sintomas interligados, que nada mais são que tropos atuais ou disposicionais compresentes. Mas ela não é um particular concreto. A resposta parece ser aqui aristotélica: quando tratamos um conjunto de tropos compresentes como objeto de predicações sem que ele seja predicado de coisa alguma então estamos diante de um particular concreto, como no caso de Maria. Se ela sofre de síndrome metabólica podemos identificar nela o tropo dessa síndrome, mas esse tropo não é um particular concreto uma vez que depende da existência de um outro grupamento de tropos que constitui o particular concreto que é Maria.

   Quanto às forças da natureza é fácil explicá-las em termos de tropos. Elas são todas espaço-temporalmente localizáveis, logo são tropos, embora muito vagamente dispersos no espaço. Esse é o caso das forças eletromagnéticas. E se a gravidade é um encurvamento no espaço-tempo na proximidade de corpos massivos então também podemos compreendê-la em termos de tropos espaço-temporalmente localizáveis.

   E o que dizer do espaço e do tempo? Se admitirmos a concepção relacional do espaço e do tempo então poderemos identificar as localizações espaciais e as durações temporais dos objetos materiais à nossa volta em termos de distâncias e durações espaço-temporalmente localizáveis. Logo, distâncias e durações são tropos! Por exemplo: o tampo da mesa está a um metro e vinte centímetros do solo. Essa relação espacial se encontra no espaço e tem uma duração no tempo, logo é espaço-temporal, logo é um tropo. Também digo que a mesa foi colocada na sala há duas horas. Ora, o período de tempo decorrido desde que a mesa foi colocada na sala se encontra no tempo, e como esse período é considerado com relação ao local em que a mesa colocada, outra vez temos, por definição, um tropo espaço-temporal. Se adotarmos uma concepção relacional do espaço e do tempo é possível construir as noções de espaço e tempo como um todo como um somatório de pequenas relações. Como esse somatório não é espaço-temporalmente localizável, ele não poderá ser concebido como um tropo. Seria ele concebido como um particular concreto? A resposta parece ser em afirmativo, sob a suposição de que seus tropos podem ser concebidos como compresentes.

   Que dizer de coisas abstratas como um pensamento ou a existência? Considere primeiro o caso do pensamento. Para Williams o pensamento como um evento ou processo mental é um tropo. Esse é o caso quando penso que Schliemann descobriu Troia. Mas que dizer do pensamento abstrato de que Schliemann descobriu Troia, o qual pode ser acessado por qualquer um de nós, sendo sempre verdadeiro e que aparentemente não está em nossas cabeças? A resposta de Williams seria: o pensamento abstrato de que Schliemann descobriu Troia, ou seja, a proposição expressa por “Schliemann descobriu Troia” tomada como universal, nada mais deve ser do que o conjunto de todos os pensamentos de que Schliemann descobriu Troia. Ou, seguindo a reformulação proposta acima: o universal Schliemann descobriu Troia nada mais é do que nossa capacidade de pensar isso e de identificar qualquer outro pensamento de que Schliemann descobriu Tróia como sendo precisamente similar a ela, nada mais sendo necessário.

   Consideremos agora o conceito de existência. Como já vimos no cap. XII (sec. 14), na análise da existência como uma propriedade de nível superior, um objeto existe quando cai sob um conceito (Frege), ou então, quando a sua regra de identificação se demonstra efetivamente aplicável, ou então, quando ele é tal que possui a disposição de ter sua regra de identificação efetivamente ou garantidamente aplicável a si mesmo, não sendo, pois, um mero objeto ficcional... Em qualquer um dos casos, a propriedade de efetiva aplicabilidade da regra de identificação é também localizável lá onde a regra for aplicada. Assim, se digo que a nossa Lua existe é porque sei que sua regra de identificação é efetivamente aplicável e que a aplicabilidade dessa regra não é uma propriedade (tropo) que existe em uma outra galáxia, mas em algum lugar por aqui mesmo, entre nós, a terra e a Lua. A existência é, portanto, um tropo. Um tropo de ordem superior e nem por isso menos que um tropo.

   Que dizer dos números? É fácil identificar números aplicados com tropos. Os três patetas, os três blue-caps, as três Marias... tudo isso são tropos de trios, uma vez que são espaço-temporalmente identificáveis. O mesmo podemos dizer de uma soma aplicada como a soma das três peras com as duas maçãs que se encontram dentro da cesta. Mas o que dizer da soma 3 + 2 = 5 ou do número 3 in abstracto? Essas coisas não parecem estar situadas em lugar algum. Contudo, um pouco de reflexão mostra que podemos aplicar aqui o mesmo procedimento que já havíamos aplicado na identificação de universais. Eis como podemos definir o número 3 in abstracto:

 

Uma pessoa possui o geral do número 3 se e somente se associa o signo ‘3’ a uma tríade qualquer de entidades por ela contada, possuindo a capacidade de usá-la como modelo na identificação de qualquer outro tropo equivalente (precisamente similar) a esse modelo.

 

Não estou dizendo que para conceber o número três in abstracto eu precise me recordar de algo como as Três Marias (quando usamos o número 3 em um cálculo o tratamos como um mero sinal...). Mas em algum momento de minha vida eu preciso ter tido contato com tríades espaço-temporalmente localizáveis que eu mesmo contei. E qualquer nova tríade que me seja dada será também espaço-temporalmente localizável. Mesmo que a definição do número 3 aqui apresentada permita derivar um ilimitado conjunto extensional de tríades, isso é secundário, pois o que importa é nossa capacidade cognitiva de universalização, a capacidade de dizer o mesmo de muitos, de produzir sínteses conceituais, e não um possível resultado da universalização que conduza a um universal extensional.

   Uma questão seria a de como aplicar a definição acima a grandes números, aqueles que vão muito além da capacidade humana para contar. Aqui podemos recorrer a um artifício como o do construtor ideal (ideal agent) proposto por Philip Kitcher. Ele seria capaz de realizar por nós qualquer cálculo que fosse além de nossas limitações. Afora isso, o tratamento da matemática como um mero jogo simbólico se torna legítimo quando ela se subtrai a nossas capacidades cognitivas.

   Adequadamente desenvolvida essa espécie de procedimento teria a grande vantagem de nos possibilitar uma solução de princípio para o grande mistério que é o problema da aplicação da matemática ao mundo empírico. É que os tropos matemáticos, mesmo sendo de ordem superior, são sempre espaço-temporalmente localizáveis e, portanto, se encontram no mundo real tanto quanto as linhas dessa página.

 

5

 

O peso da tradição. Finalmente, resta uma pergunta. Como é possível que a teoria dos tropos tenha precisado de mais de dois mil anos para ser inventada? Ela não poderia ter sido inventada no século XIX, quando a teoria dos conjuntos já havia sido desenvolvida? Ou, assumindo a minha versão, não poderia a ela ter sido inventada ainda na Idade Média, quando as pessoas já tinham uma noção bem definida do que fosse um ato mental?

   A única resposta que consigo imaginar para essa questão é nietzscheana: A solução proposta por Williams não foi desenvolvida antes devido à força do ideal ascético no interior do pensamento judaico-cristão ocidental. A ontologia era, ou asceticamente formulada de cima para baixo, como no idealismo platônico, ou então, diante de sua impossibilidade, reativamente negada nas diferentes formas de nominalismo. Só no século XX, quando o desenvolvimento científico, econômico e técnico permitiu à mente humana libertar-se das motivações teístas figurativas transcendentes, o ambiente filosófico perdeu suficientemente sua vinculação com formas de evasão herdadas da tradição judaico-cristã para que nele se admitisse a abertura para uma ontologia capaz de ser desenvolvida de baixo para cima: a ontologia dos tropos. É por isso que, mesmo no interior do escolasticismo que permeia a discussão contemporânea, a ideia aos poucos ganha força.  

 

 

 

 

 



[1] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018).

[2] A lista de filósofos tradicionais que admitiram a existência de propriedades espaço-temporalmente localizáveis é na verdade muito grande, embora inversamente proporcional à importância que eles deram a essa noção. Ver Anna-Sofia Maurin: Tropes. In Stanford Encyclopedia of Philosophy (2023, Internet).

[3] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 28.

[4] Ibid. p. 33-37.

[5] Ibid. p. 38.

[6] O conceito de similaridade precisa ou exata pode ser aqui considerado o mesmo que o de identidade qualitativa, que é a identidade (em grau aproximativo) entre duas coisas situadas em lugares diferentes (ex.: “O meu e o seu carro são idênticos”). Ele deve ser distinguido do conceito de identidade numérica, que é a da coisa consigo mesma.

[7] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 29.

[8] Ibid., p. 29.

[9] Christopher Daily: “Tropes,” in D. H. Mellor & A. Oliver: Properties (Oxford: Oxford University Press 1997), pp. 140- 159.  

[10] Outros tropos, como o de vermelho, são autopredicativos e também são susceptíveis de redutio: “Esse vermelho é vermelho; esse vermelho que é vermelho é vermelho; esse vermelho que é vermelho e que é vermelho é vermelho... Mas essas reduções são benignas por também não nos forçarem a prosseguir. 

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