XIX
DONALD WILLIAMS:
A ONTOLOGIA DOS
TROPOS
Donald Cary Williams (1899-1983) foi um filósofo norte-americano com
particular interesse pela metafísica. Ele foi um grande estilista e também um
pensador obstinado, o que pode ser uma grande qualidade quando alguém percebe
algo que os outros não se acham muito dispostos a ver. Ele defendeu tenazmente
uma ideia bastante original em ontologia. Uma ideia que se puder ser adequadamente
desenvolvida representará o ponto de inflexão em toda a investigação ontológica,
uma vez que pode ser capaz de possibilitar aos filósofos saírem do lodaçal argumentativo
no qual a ontologia vem patinando desde os tempos de Platão. Trata-se da assim
chamada teoria dos tropos.[1] No que se segue quero
apresentar primeiro um resumo da teoria, tal como defendida por Williams. Esse
resumo será seguido de uma breve apresentação da maneira como creio que ela
poderia ser mais eficazmente desenvolvida.
1
Tropos. Há um conceito que já existe pelo menos desde os
inícios da filosofia ocidental, que é o de propriedade espaço-temporalmente
localizável. Aristóteles, por exemplo, admitia a existência de qualidades
de substâncias como a palidez de um certo homem, e Edmund Husserl chamou a
parte de um indivíduo concreto de momento. Mas esse conceito sempre exerceu
um papel secundário.[2] A ninguém ocorreu a ideia
genialmente simples de construir toda a realidade ontológica a partir de
propriedades espaço-temporalmente localizáveis. Essa foi a grande originalidade
de Williams. Ele chamava as propriedades espaço-temporalmente localizáveis de
tropos ou “particulares abstratos”, dado que ele os definia como aquilo que abstraímos
de particulares concretos ou coisas. Sua tese metafísica fundamental foi a de
que:
Qualquer mundo possível e, naturalmente, também o
nosso, é totalmente constituído de seus tropos e suas conexões de localização e
similaridade e quaisquer outras que possam existir.[3]
Alguns exemplos de tropos, todos apresentados por Williams, tornarão
mais compreensível a extraordinária extensão do conceito:
Cor, forma, superfície, odor, vermelho, tamanho,
triangularidade... dor, amor, tristeza, prazer, emoção, crença, serenidade,
percepção, discriminação, intenção, disposição, poder, processos mentais,
sequências de pensamentos... um sorriso, um espirro... uma eleição, uma
performance musical, um caso de amor, uma decisão moral, um ato de constrição,
uma peça de impudência... a beleza de Maria, Maria sendo bela, a figura de uma
mulher, sua compleição, sua digestão...[4]
Vemos por esses exemplos, que as propriedades espaço-temporalmente
localizáveis, ou seja, os tropos, podem ser de muitos tipos: externos (a forma,
a cor, o odor, o peso), internos (a intenção, a crença, o pensamento), simples
(o apito de uma fábrica, uma pontada de dor), complexos (um caso de amor, a
digestão de uma pessoa...), homogêneos (um solo de violino...), heterogêneos
(um ato de constrição...). Para Williams os tropos devem contrastar com
particulares concretos como, usando outros exemplos seus: Maria, uma igreja,
uma nação, a raça humana.[5]
Mas como então foi ele capaz de
fundamentar a proposta de que todo nosso mundo é completamente constituído de
seus tropos? Primeiro, pela sugestão de que podemos construir universais apenas
com base em tropos. Segundo, pela sugestão de que podemos construir
particulares concretos também apenas com base em tropos. Trata-se de um
programa ontológico empirista e radicalmente naturalista, que pode ser
justamente considerado uma tentativa de virar Platão de cabeça para baixo. No
que se segue veremos como ele pretendeu fazer isso.
2
Comecemos com a maneira como Williams construiu os universais com base
em tropos. O universal é para ele nada mais do que um conjunto ou classe ou
mesmo grupo de tropos precisamente similares entre si.[6] Considere, por exemplo, o
universal do vermelho, aquilo que Platão chamaria de “o-vermelho-em-si-mesmo.”
Williams diria que o correspondente formal do universal abstrato ou “essência”
na ontologia dos tropos nada mais é do que o conjunto de todos os tropos
precisamente similares entre si como tropos de vermelho.[7] Uma frase como “O vermelho
é uma cor” seria por ele analisada como: “O conjunto dos tropos precisamente
similares de vermelho está contido no conjunto dos tropos precisamente
similares de cor”. O mesmo se poderia dizer de um conceito universal como o de
beleza: trata-se do conjunto de tropos de beleza precisamente similares entre
si (naquilo que realmente conta) e não da ideia abstrata da beleza-em-si-mesma.
Também com base em conjuntos
Williams pretendeu construir particulares concretos, melhor dizendo, pela soma
de tropos concordantes (concurrents) ou compresentes (compresents)
no sentido de que essa soma se encontra (aproximadamente) em um mesmo lugar e
no mesmo tempo.[8]
Assim, uma cadeira é algo constituído de tropos de cor, rigidez, maciez,
dureza, forma, peso... que se encontram sistematicamente conjugados uns aos
outros em uma localização espaço-temporal específica. E particulares concretos
como Maria, uma certa igreja, a raça humana, uma nação... também são,
minimamente. somatórios de tropos compresentes, ao que poderíamos adicionar uma
organização interna maior (um animal, uma cadeira) ou menor (uma pedra, uma
montanha).
3
Há um grande número de objeções à proposta de Williams, umas melhores,
outras piores.
Quanto à ideia de que o
universal é um conjunto de tropos precisamente idênticos uns aos outros há uma
objeção que tem sua origem em Russell. Digamos que os tropos {T1, T2, T3... Tn}
são precisamente similares entre si. O que é, afinal, a similaridade precisa?
Para um teorista dos tropos que acredita que tudo são tropos, a similaridade
não deve ser outra coisa senão um outro tropo (uma outra propriedade
espaço-temporalmente localizável) que pode ser simbolizado como ‘Ts’. Mas nesse
caso, considerando que T1 e T2 são precisamente similares entre si e que T2 e
T3 são precisamente similares entre si, temos dois tropos de similaridade
precisa, que podem ser simbolizados como ‘Ts1’ associando T1 e T2 e ‘Ts2’,
associando T2 e T3. Ora, os tropos Ts1 e Ts2 precisam ser precisamente
similares entre si, não? Mas nesse caso precisaremos recorrer a um tropo de
similaridade precisa de ordem superior, que estabeleça que Ts1 é precisamente
similar a Ts2, que podemos simbolizar como ‘Tss1’. Nada mais será preciso para concluirmos
que estando sendo conduzidos a um regresso ao infinito.
Seria isso um mal? Não
necessariamente, pois um regresso ao infinito pode ser vicioso ou virtuoso.
Ao que parece um regresso vicioso seria aquele no qual no qual cada novo nível
demanda continuação em um nível superior, enquanto o regresso virtuoso é aquele
que pode ser sustado quando acharmos melhor. Por exemplo: na construção de sua
doutrina das ideias Platão usa ideias em um segundo nível para falar sobre
ideias em geral. Mais tarde ele foi levado a usar ideias em um terceiro nível
para criticar sua própria doutrina das ideias. Isso permite um regresso de
ideias sobre ideias sobre ideias ad infinitum. Mas não se tratou
de um regresso vicioso, uma vez que isso não o forçava a continuar considerando
ideias sobre ideias sobre ideias... Defensores da concepção de universais
esposada por Williams prometem que podemos dizer o mesmo do regresso dos tropos
de similaridade precisa. Ele é virtuoso porque nada nos força a promovê-lo
indefinidamente.
Há, porém, outras dificuldades
que podem se tornar mais preocupantes. Qual é o status ontológico do conjunto,
classe, ou grupo de tropos? Seria ele um tropo? Outra objeção é a do tamanho.
Universais não são maiores ou menores; universais não possuem tamanho. Mas
conjuntos, classes ou grupos sim. Além disso, um conjunto pode aumentar ou
diminuir de tamanho. Universais não. Uma alternativa seria tratar o universal
como um conjunto aberto. Mas parece que conjuntos abertos são construções que
existem somente em nossas mentes, enquanto porções da realidade costumam ser
determinadas em quantidade, mesmo quando não somos capazes de determiná-las.
Afora isso, muitos tropos existem em quantidades praticamente ilimitadas. Mas
isso nos faz concluir que na maioria dos casos não somos capazes de pensar os
universais por razões médicas, melhor dizendo, em geral os universais não são
sequer cognitivamente acessíveis a nós. Como seria possível, por exemplo,
pensar a classe dos tropos de vermelho do universo inteiro? Que força
explicativa pode ter tal ficção? Ainda mais quando consideramos que se os universais
fossem entendidos como simples conceitos eles nos parecem plenamente pensáveis.
Vejamos agora uma objeção ao
conceito de particular concreto. Sob o suposto de que o mundo é constituído de
tropos, a própria compresença deve ser também um tropo. Simbolizando o tropo de
compresença com ‘Tc’ e, supostamente, os tropos constitutivos de um objeto
material M como formando o conjunto {T1, T2... Tn}, deveremos dizer que a
condição necessária para se ter M é a de que {T1, T2... Tn} sejam unidos pelo
tropo Tc. Mas aí surge a questão. O que une T1, T2... Tn e Tc? Ora, para
respondermos a essa questão precisaremos recorrer a um novo tropo de
compresença, que será ‘Tc1’. Contudo, também o conjunto {T1, T2... Tn, Tc, Tc1}
precisará ser unificado por um novo tropo de compresença, Tc2, de modo que
também aqui parece que estamos caindo em um regresso ao infinito.[9]
Há, além dessas, muitas outras
objeções possíveis. Não parece fácil, por exemplo, encontrarmos o critério de
identificação para um tropo. Afinal, quantos tropos de branco existem na parede
branca à minha frente? Quanto aos objetos materiais, a compresença é uma
condição necessária, mas não é suficiente. Por exemplo, a cor vermelha de uma
chama vem junto ao calor, mas essas duas qualidades compresentes não constituem
um objeto material. Como classificar objetos da microfísica como os elétrons? O
que dizer das forças da natureza? O que dizer do espaço e do tempo? São eles
tropos ou são constituídos por tropos? E o que dizer de entidades abstratas
como a existência, ou ainda de entidades matemáticas como números ou, talvez,
partículas lógicas?
4
Acredito não ser demasiado difícil responder às objeções. Se isso for
possível, a ontologia dos tropos passará a ter uma perspectiva muito mais
promissora do que as formas de realismo e nominalismo com as quais temos
convivido desde sempre, pois terá sido capaz de reduzir toda a realidade
ontológica a uma única categoria. No que se segue quero apenas ensaiar algumas
respostas.
Primeiro, se nos recordarmos
que o problema dos universais foi introduzido por Platão para resolver o
problema da predicação, ou seja, o de se saber como é possível que possamos
dizer o mesmo de muitos (cap. II, sec. 2), a resposta fica mais fácil. É
útil aqui que nos lembremos de como Berkeley (cap. X, sec. 1) e Hume (cap. XI,
sec. 4) resolveram o problema das ideias gerais (universais) sem admiti-las
como sendo ideias abstratas no sentido platônico. Para eles tudo o que
precisamos é ideias modelares que por convenção se encontram ligadas a um termo
geral, junto à habilidade de identificar quaisquer ideias similares aos
membros da classe. Por exemplo: podemos associar à palavra ‘triângulo’ a ideia
de um polígono de três lados e com base na imaginação de variações dos ângulos
desse triângulo sermos capazes de identificar qualquer objeto triangular com
base em sua precisa semelhança com as derivações do modelo.
Minha sugestão pode ser aqui
vista como uma substituição da ‘ideia’ do particularismo empirista por ‘tropo’,
mas com a vantagem de que com a ideia de tropo não precisamos ficar restritos a
imagens mentais. Os tropos modelares podem ser entendidos como partes das
regras conceptuais que aplicamos ao identificar tropos precisamente similares a
ele. Ou seja, para se predicar um certo nome de muitas coisas, basta
compararmos um certo tropo associado ao nome que já conhecemos com as coisas e
ver se elas contêm tropos precisamente similares ao primeiro tropo. Não
precisamos recorrer a conjunto algum para realizarmos essa operação. Ao invés
de, por exemplo, recorrermos à similaridade entre uma coisa dada à experiência e
algo como a ideia platônica, nós recorremos à similaridade precisa entre aquilo
que é dado à experiência e um tropo qualquer do qual guardamos memória e ao
qual associamos um nome. Ou seja: aquilo que alguns chamam de um conceito geral
pode ser reduzido à nossa capacidade de realizar a operação mental de identificar
tropos como precisamente similares a um tropo (geralmente complexo) com o qual
já estamos familiarizados.
Considere, para exemplificar,
um tropo bem específico como o da cor de terra de Siena queimada. Digamos que Maria
fez um curso de pintura e que tenha aprendido o nome e ganho familiaridade com
essa tonalidade de cor. Depois disso ela vai visitar a Itália e lá identifica
um bom número de edificações pintadas com essa mesma cor. Certamente, isso
bastará para que concordemos que ela tem o conceito geral da cor chamada de
terra de Siena queimada. Mas o que podemos querer dizer com isso? Certamente,
não que ela tem acesso ao imenso conjunto de tropos precisamente similares de
terra de Siena queimada, ainda que esse conjunto exista. Esse foi o caminho
seguido por Williams. Tudo o que queremos dizer é na verdade que ela possui a
memória do modelo de terra de Siena queimada associada ao termo geral ‘terra de
Siena queimada’, uma memória resultante de seus múltiplos contatos com essa cor
associados à palavra que a nomeia quando fez seu curso de pintura, e que agora
é capaz de identificar esses tropos quando eles lhe são apresentados. Podemos
resumir nossa paráfrase do conceito universal como:
Uma pessoa S possui o conceito geral de um tropo T se
e somente se N é capaz de associar um certo termo geral a algum modelo T* desse
tropo e de realizar a operação de identificação de qualquer outro tropo que lhe
seja apresentado como sendo ou não sendo precisamente similar ao modelo T* que
possui.
Observe que o tropo que usamos como modelo pode variar arbitrariamente.
Além disso geralmente o tropo considerado é complexo e na prática pode ser que
não precisemos identificar um tropo dado à experiência como sendo precisamente
similar ao tropo modelar como um todo. Geralmente basta recorrermos a
algum critério identificador. Pense, para usar uma analogia, na prova de que
você não é um robô pelo Google, através da qual você identifica motocicletas,
veículos motorizados, pontes... apenas com base em partes desses objetos.
Observe ainda que isso nos
permite derivar a existência de um conjunto, nomeadamente, o conjunto de todos
os tropos que poderiam ser identificados como precisamente similares ao tropo
modelar que S tem em mente. Felizmente, esse conjunto é geralmente irrelevante
e não precisa ser experienciado por S nem por ninguém. Esse conjunto seria a
extensão da operação pela qual o tropo é universalizado. Em lógica, pelo menos
desde Stuart Mill, damos uma razoável importância ao conceito de extensão.
Contudo, a exigência de que o conceito de universal deva ser assimilado ao da
extensão de um conjunto pode ser aqui vista como um antiquado preconceito
formalista que vale a pena rejeitar. Ao rejeitarmos a necessidade disso nós nos
libertamos da exigência de que para concebermos um universal precisamos nos
preocupar com o acesso a tropos de similaridades precisas entre similaridades
precisas. Tudo o que precisamos é sermos capazes de perceber a similaridade
entre algum modelo de tropo e qualquer outro tropo que formos capazes de
considerar precisamente similar ao modelo. Também objeções de tamanho
desaparecem, uma vez que tudo o que se exige é a habilidade de distinguir
tropes precisamente similares ao modelo e sua associação convencional com seu
signo linguístico. Finalmente, desaparece a objeção de que não somos capazes de
ter acesso cognitivo aos universais, uma vez que eles não mais existem.
Vejamos agora a objeção feita à
construção de particulares concretos, segundo a qual a adição do tropo de
compresença produz um novo conjunto de tropos, que demanda outro tropo de
compresença e assim indefinidamente. A objeção nos faz recordar do argumento do
terceiro homem aplicado às ideias platônicas, que já vimos no capítulo II (sec.
4). É o tropo de compresença compresente? Parece que sim. Então ele é
autopredicativo. Mas isso nos leva a uma redução ao infinito. Contudo, mesmo
que esse seja o caso é possível argumentar que ela é uma redução virtuosa, uma
vez que a adição de novas compresenças, embora possível, não é necessária. O
tropo Tc não é como os outros, pois ele tem como função única enlaçar os outros
tropos em uma unidade. Como consequência podemos ficar satisfeitos com o
conjunto {T1, T2... Tn} entendendo Tc como o mesmo que {...}, sem que isso nos
cause maiores aflições.[10]
Quanto ao critério de
identidade para os tropos, não parece que exista um único, nem que a questão
seja tão relevante. Parece que convencionamos para diferentes espécies de
tropos critérios de identidade diferentes, dado que aquilo que distingue uma
espécie de tropo é seu próprio critério de individuação.
Uma pergunta insidiosa é: quantos tropos?
Quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? O critério
aqui parece ser a homogeneidade da parede, pois se ela for homogeneamente
branca seremos tentados a dizer que se trata apenas de um grande tropo (propriedade)
de brancura. Se a parede tivesse várias tonalidades de uma mesma cor
tenderíamos a falar de vários tropos. O ponto em questão além de vago parece
ser altamente convencional.
Que dizer do critério de
identidade para os particulares concretos? A mera compresença não é suficiente.
Considere, por exemplo, o caso de uma síndrome. Ela se caracteriza como um complexo
conjunto de sinais e sintomas interligados, que nada mais são que tropos atuais
ou disposicionais compresentes. Mas ela não é um particular concreto. A
resposta parece ser aqui aristotélica: quando tratamos um conjunto de tropos
compresentes como objeto de predicações sem que ele seja predicado de coisa
alguma então estamos diante de um particular concreto, como no caso de Maria.
Se ela sofre de síndrome metabólica podemos identificar nela o tropo dessa
síndrome, mas esse tropo não é um particular concreto uma vez que depende da
existência de um outro grupamento de tropos que constitui o particular concreto
que é Maria.
Quanto às forças da natureza é
fácil explicá-las em termos de tropos. Elas são todas espaço-temporalmente
localizáveis, logo são tropos, embora muito vagamente dispersos no espaço. Esse
é o caso das forças eletromagnéticas. E se a gravidade é um encurvamento no
espaço-tempo na proximidade de corpos massivos então também podemos
compreendê-la em termos de tropos espaço-temporalmente localizáveis.
E o que dizer do espaço e do tempo? Se
admitirmos a concepção relacional do espaço e do tempo então poderemos
identificar as localizações espaciais e as durações temporais dos objetos
materiais à nossa volta em termos de distâncias e durações espaço-temporalmente
localizáveis. Logo, distâncias e durações são tropos! Por exemplo: o tampo da
mesa está a um metro e vinte centímetros do solo. Essa relação espacial se
encontra no espaço e tem uma duração no tempo, logo é espaço-temporal, logo é
um tropo. Também digo que a mesa foi colocada na sala há duas horas. Ora, o
período de tempo decorrido desde que a mesa foi colocada na sala se encontra no
tempo, e como esse período é considerado com relação ao local em que a mesa
colocada, outra vez temos, por definição, um tropo espaço-temporal. Se
adotarmos uma concepção relacional do espaço e do tempo é possível construir as
noções de espaço e tempo como um todo como um somatório de pequenas relações.
Como esse somatório não é espaço-temporalmente localizável, ele não poderá ser concebido
como um tropo. Seria ele concebido como um particular concreto? A resposta
parece ser em afirmativo, sob a suposição de que seus tropos podem ser
concebidos como compresentes.
Que dizer de coisas abstratas
como um pensamento ou a existência? Considere primeiro o caso do pensamento.
Para Williams o pensamento como um evento ou processo mental é um tropo. Esse é
o caso quando penso que Schliemann descobriu Troia. Mas que dizer do pensamento
abstrato de que Schliemann descobriu Troia, o qual pode ser acessado por
qualquer um de nós, sendo sempre verdadeiro e que aparentemente não está em
nossas cabeças? A resposta de Williams seria: o pensamento abstrato de que Schliemann
descobriu Troia, ou seja, a proposição expressa por “Schliemann descobriu
Troia” tomada como universal, nada mais deve ser do que o conjunto de todos os
pensamentos de que Schliemann descobriu Troia. Ou, seguindo a reformulação
proposta acima: o universal Schliemann descobriu Troia nada mais é do que nossa
capacidade de pensar isso e de identificar qualquer outro pensamento de que
Schliemann descobriu Tróia como sendo precisamente similar a ela, nada mais
sendo necessário.
Consideremos agora o conceito
de existência. Como já vimos no cap. XII (sec. 14), na análise da existência
como uma propriedade de nível superior, um objeto existe quando cai sob um
conceito (Frege), ou então, quando a sua regra de identificação se demonstra
efetivamente aplicável, ou então, quando ele é tal que possui a disposição de
ter sua regra de identificação efetivamente ou garantidamente aplicável a si
mesmo, não sendo, pois, um mero objeto ficcional... Em qualquer um dos casos, a
propriedade de efetiva aplicabilidade da regra de identificação é também localizável
lá onde a regra for aplicada. Assim, se digo que a nossa Lua existe é porque
sei que sua regra de identificação é efetivamente aplicável e que a
aplicabilidade dessa regra não é uma propriedade (tropo) que existe em uma
outra galáxia, mas em algum lugar por aqui mesmo, entre nós, a terra e a Lua. A
existência é, portanto, um tropo. Um tropo de ordem superior e nem por isso
menos que um tropo.
Que dizer dos números? É fácil
identificar números aplicados com tropos. Os três patetas, os três blue-caps,
as três Marias... tudo isso são tropos de trios, uma vez que são espaço-temporalmente
identificáveis. O mesmo podemos dizer de uma soma aplicada como a soma das três
peras com as duas maçãs que se encontram dentro da cesta. Mas o que dizer da
soma 3 + 2 = 5 ou do número 3 in abstracto? Essas coisas não parecem
estar situadas em lugar algum. Contudo, um pouco de reflexão mostra que podemos
aplicar aqui o mesmo procedimento que já havíamos aplicado na identificação de
universais. Eis como podemos definir o número 3 in abstracto:
Uma pessoa possui o geral do número 3 se e somente se
associa o signo ‘3’ a uma tríade qualquer de entidades por ela contada,
possuindo a capacidade de usá-la como modelo na identificação de qualquer outro
tropo equivalente (precisamente similar) a esse modelo.
Não estou dizendo que para conceber o número três in abstracto eu
precise me recordar de algo como as Três Marias (quando usamos o número 3 em um
cálculo o tratamos como um mero sinal...). Mas em algum momento de minha vida
eu preciso ter tido contato com tríades espaço-temporalmente localizáveis que
eu mesmo contei. E qualquer nova tríade que me seja dada será também
espaço-temporalmente localizável. Mesmo que a definição do número 3 aqui
apresentada permita derivar um ilimitado conjunto extensional de tríades, isso
é secundário, pois o que importa é nossa capacidade cognitiva de
universalização, a capacidade de dizer o mesmo de muitos, de produzir sínteses
conceituais, e não um possível resultado da universalização que conduza a um
universal extensional.
Uma questão seria a de como aplicar a
definição acima a grandes números, aqueles que vão muito além da capacidade
humana para contar. Aqui podemos recorrer a um artifício como o do construtor
ideal (ideal agent) proposto por Philip Kitcher. Ele seria capaz de
realizar por nós qualquer cálculo que fosse além de nossas limitações. Afora
isso, o tratamento da matemática como um mero jogo simbólico se torna legítimo
quando ela se subtrai a nossas capacidades cognitivas.
Adequadamente desenvolvida essa espécie de
procedimento teria a grande vantagem de nos possibilitar uma solução de
princípio para o grande mistério que é o problema da aplicação da matemática ao
mundo empírico. É que os tropos matemáticos, mesmo sendo de ordem superior, são
sempre espaço-temporalmente localizáveis e, portanto, se encontram no mundo real
tanto quanto as linhas dessa página.
5
O peso da tradição. Finalmente, resta uma
pergunta. Como é possível que a teoria dos tropos tenha precisado de mais de
dois mil anos para ser inventada? Ela não poderia ter sido inventada no século
XIX, quando a teoria dos conjuntos já havia sido desenvolvida? Ou, assumindo a
minha versão, não poderia a ela ter sido inventada ainda na Idade Média, quando
as pessoas já tinham uma noção bem definida do que fosse um ato mental?
A única resposta que consigo
imaginar para essa questão é nietzscheana: A solução proposta por Williams não
foi desenvolvida antes devido à força do ideal ascético no interior do
pensamento judaico-cristão ocidental. A ontologia era, ou asceticamente formulada
de cima para baixo, como no idealismo platônico, ou então, diante de sua
impossibilidade, reativamente negada nas diferentes formas de nominalismo. Só no
século XX, quando o desenvolvimento científico, econômico e técnico permitiu à mente
humana libertar-se das motivações teístas figurativas transcendentes, o ambiente
filosófico perdeu suficientemente sua vinculação com formas de evasão herdadas
da tradição judaico-cristã para que nele se admitisse a abertura para uma
ontologia capaz de ser desenvolvida de baixo para cima: a ontologia dos tropos.
É por isso que, mesmo no interior do escolasticismo que permeia a discussão
contemporânea, a ideia aos poucos ganha força.
[1] D. C. Williams,
Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford:
Oxford University Press 2018).
[2] A lista de filósofos tradicionais que admitiram a
existência de propriedades espaço-temporalmente localizáveis é na verdade muito
grande, embora inversamente proporcional à importância que eles deram a essa
noção. Ver
Anna-Sofia Maurin: Tropes. In Stanford Encyclopedia of Philosophy (2023,
Internet).
[3] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns
of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 28.
[4] Ibid. p. 33-37.
[5] Ibid. p. 38.
[6] O conceito de similaridade
precisa ou exata pode ser aqui considerado o mesmo que o de identidade
qualitativa, que é a identidade (em grau aproximativo) entre duas coisas
situadas em lugares diferentes (ex.: “O meu e o seu carro são idênticos”). Ele
deve ser distinguido do conceito de identidade numérica, que é a da
coisa consigo mesma.
[7] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns
of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 29.
[8] Ibid., p. 29.
[9] Christopher Daily:
“Tropes,” in D. H. Mellor & A. Oliver: Properties (Oxford: Oxford
University Press 1997), pp. 140- 159.
[10] Outros tropos, como o de vermelho, são autopredicativos
e também são susceptíveis de redutio: “Esse vermelho é vermelho; esse
vermelho que é vermelho é vermelho; esse vermelho que é vermelho e que é
vermelho é vermelho... Mas essas reduções são benignas por também não nos
forçarem a prosseguir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário