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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

DONALD WILLIAMS: PLATÃO DE CABEÇA PARA BAIXO (XIX)

DRAFT PARA O LIVRO IHF 

 

 

 

XIX

DONALD WILLIAMS:

 A ONTOLOGIA DOS TROPOS

 

Qualquer mundo possível, e, portanto, claro, esse mesmo, é completamente constituído de seus tropos...

Donald Williams

 

 

Donald Cary Williams (1899-1983) foi um filósofo norte-americano com particular interesse pela metafísica. Ele foi um grande estilista e também um pensador obstinado, o que pode ser uma grande qualidade quando alguém percebe algo que os outros não se acham muito dispostos a ver. Ele defendeu tenazmente uma ideia profundamente original em ontologia. Uma ideia que se puder ser adequadamente desenvolvida representará o ponto de inflexão em toda a investigação ontológica, uma vez que será capaz de possibilitar aos filósofos saírem do lodaçal argumentativo no qual a ontologia vem patinando desde os tempos de Platão. Trata-se da assim chamada teoria dos tropos.[1] No que se segue quero apresentar primeiro um resumo da teoria, tal como defendida por Williams. Esse resumo será seguido de uma breve apresentação da maneira como creio que ela poderá ser mais eficazmente desenvolvida.

 

1

 

Tropos. Há um conceito que já existe pelo menos desde os inícios da filosofia ocidental, que é o de propriedade espaço-temporalmente localizável. Aristóteles, por exemplo, admitia a existência de qualidades presentes nas substâncias como a palidez de um certo homem e Edmund Husserl chamou a parte de um indivíduo concreto de momento. Mas esse conceito sempre exerceu um papel secundário.[2] A ninguém ocorreu a ideia genialmente simples de construir toda a realidade ontológica a partir de propriedades espaço-temporalmente localizáveis. Essa foi a grande originalidade de Williams. Ele chamava as propriedades espaço-temporalmente localizáveis de tropos ou “particulares abstratos”, dado que ele os definiu como aquilo que abstraímos de particulares concretos ou coisas. Sua tese metafísica fundamental foi a de que:

 

Qualquer mundo possível e, naturalmente, também o nosso, é totalmente constituído de seus tropos e suas conexões de localização e similaridade e quaisquer outras que possam existir.[3]

 

Alguns exemplos de tropos, todos apresentados por Williams, tornarão mais compreensível a extraordinária extensão do conceito:

 

Cor, forma, superfície, odor, vermelho, tamanho, triangularidade... dor, amor, tristeza, prazer, emoção, crença, serenidade, percepção, discriminação, intenção, disposição, poder, processos mentais, sequências de pensamentos... um sorriso, um espirro... uma eleição, uma performance musical, um caso de amor, uma decisão moral, um ato de contrição, uma peça de impudência... a beleza de Maria, Maria sendo bela, a figura de uma mulher, sua compleição, sua digestão...[4]

 

Vemos por esses exemplos que as propriedades espaço-temporalmente localizáveis, ou seja, os tropos, podem ser de muitos tipos: externos (a forma, a cor, o odor, o peso), internos (uma intenção, uma crença, uma disposição mental, um pensamento), simples (o apito de uma fábrica, uma pontada de dor), complexos (um caso de amor, a digestão de uma pessoa...), homogêneos (um solo de violino...), heterogêneos (um ato de contrição...). Para Williams os tropos devem contrastar com particulares concretos como, usando outros exemplos seus: Maria, uma igreja, uma nação, a raça humana.[5]

   Mas como então foi ele capaz de fundamentar a proposta de que todo nosso mundo é completamente constituído de seus tropos? Primeiro, pela sugestão de que podemos construir universais apenas com base em tropos. Segundo, pela sugestão de que podemos construir particulares concretos também apenas com base em tropos. Trata-se de um programa ontológico empirista e radicalmente naturalista, que pode ser justamente considerado uma tentativa de virar Platão de cabeça para baixo. No que se segue veremos como ele pretendeu fazer isso.

 

2

 

Comecemos com a maneira como Williams construiu os universais com base em tropos. O universal não é para ele nada além de um conjunto ou classe ou mesmo grupo de tropos precisamente similares entre si.[6] Considere, por exemplo, o universal do vermelho, aquilo que Platão chamaria de “o-vermelho-em-si-mesmo.” Williams diria que o correspondente formal do universal abstrato ou “essência” na ontologia dos tropos nada mais é do que um conjunto de todos os tropos precisamente similares entre si.[7] Uma frase como “O vermelho é uma cor” seria por ele analisada como: “O conjunto dos tropos precisamente similares de vermelho está contido no conjunto dos tropos precisamente similares de cor”. O mesmo se poderia dizer de uma ideia universal como a de justiça: trata-se apenas do conjunto de tropos de justiça precisamente similares entre si (naquilo que realmente conta) e não da ideia abstrata da justiça-em-si-mesma.

   Também com base em conjuntos Williams pretendeu construir particulares concretos, melhor dizendo, pela soma de tropos concordantes (concurrents) ou compresentes (compresents) no sentido de que essa soma se encontra (aproximadamente) em um mesmo lugar e no mesmo tempo.[8] Assim, uma cadeira é algo constituído de tropos de cor, rigidez, maciez, dureza, forma, peso... que se encontram sistematicamente conjugados uns aos outros em uma localização espaço-temporal específica. E particulares concretos como Maria, uma certa igreja, a raça humana, uma nação... também são, minimamente, somatórios de tropos compresentes, ao que poderíamos adicionar uma organização interna maior (um animal, uma cadeira) ou menor (uma pedra, uma montanha).

 

3

 

Há um grande número de objeções à proposta de Williams, umas melhores, outras piores.

   Quanto à ideia de que o universal é um conjunto de tropos precisamente idênticos uns aos outros há uma objeção que tem sua origem em Russell. Digamos que os tropos {T1, T2, T3... Tn} são precisamente similares entre si. O que é, afinal, a similaridade precisa? Para um teorista dos tropos que acredita que tudo são tropos, a similaridade não deve ser outra coisa senão um outro tropo (uma outra propriedade espaço-temporalmente localizável) que pode ser simbolizado como ‘Ts’. Mas nesse caso, considerando que T1 e T2 são precisamente similares entre si e que T2 e T3 também são precisamente similares entre si, temos dois tropos de similaridade precisa, que podem ser simbolizados como ‘Ts1’ associando T1 e T2 e ‘Ts2’, associando T2 e T3. O tropo de similaridade precisa Ts1 existe porque pode ser espaço-temporalmente localizado entre T1 e T2, algo similar ocorrendo com Ts2. Considerando os outros tropos temos uma primeira classe de tropos de similaridade entre similaridades. Contudo, tropos como Ts1 e Ts2 também precisam ser precisamente similares entre si, não? E essa similaridade também parece ser de algum modo espaço-temporal. Por conseguinte, precisaremos recorrer a uma segunda classe de tropo de similaridade precisa, contendo o tropo Tss1, que é o da similaridade precisa entre Ts1 e Ts2, etc. Isso já basta para concluirmos que estamos sendo conduzidos a um regresso ao infinito.

   Seria isso um mal? Não necessariamente, pois um regresso ao infinito pode ser vicioso ou virtuoso. Ao que parece, um regresso vicioso é aquele no qual cada novo nível é insuficiente, demandando continuação em um nível superior, enquanto o regresso virtuoso é aquele que pode ser sustado quando ele nos parecer explicativamente suficiente. Por exemplo: podemos dizer que é verdade que 2 + 2 = 4. Mas também é certo dizer que é verdade que é verdade que 2 + 2 = 4. Claro que podemos reiterar ‘é verdade que’ quantas vezes quisermos. Esse procedimento conduz a um regresso ao infinito, mas não se trata de um regresso vicioso, uma vez que depois de dizermos “É verdade que 2 + 2 = 4” não sentimos mais nenhuma pressão cognitiva que nos induza a continuar reiterando a atribuição de verdade. Mesmo admitindo que possa haver uma infinita regressão de atribuições de verdade não precisamos nos preocupar com isso. Algo similar pode ser dito com respeito à similaridade precisa entre tropos qualitativos. O tropo de similaridade precisa Ts1 é explicativamente necessário por justificar a existância de similaridade precisa entre T1 e T2, o mesmo ocorrendo com todo o conjunto de tropos de similaridade de primeiro nível. Mas não precisamos por causa disso recorrer a conjuntos de tropos de similaridade de níveis superiores, na independência deles existirem ou não.

 

s, pois eles justificam a existência de similaridade precisa entre os tropos qualitativos T1 e T2 e T2 e T3. Mas esse primeiro nível de tropos de similaridade precisa já será suficiente para justificar a existência do conjunto de tropos qualitativos precisamente similares entre si. Não precisamos, pois, nos preocupar com outros conjuntos superiores de similaridade precisa.

   Há, porém, outras dificuldades que podem se tornar mais preocupantes. Qual é o status ontológico de um conjunto ou soma de tropos precisamente similares entre si? Seria ele um tropo? Outra objeção é a do tamanho. Universais não são maiores ou menores; universais não parecem ter tamanho, à semelhança de conceitos. Mas conjuntos, classes ou grupos sim. Além disso, um conjunto pode aumentar ou diminuir de tamanho. Universais não. Uma alternativa seria tratar o universal como um conjunto aberto. Mas parece que conjuntos abertos são construções que existem somente em nossas mentes, enquanto porções da realidade costumam ser determinadas em quantidade, mesmo quando não somos capazes de determiná-las. Afora isso, muitos tropos existem em quantidades praticamente ilimitadas. Mas isso nos faz concluir que na maioria dos casos não somos capazes de pensar os universais por razões médicas... Como seria possível, por exemplo, pensar a classe dos tropos de vermelho que se distribuem no universo inteiro? Que força explicativa pode ter semelhante ficção? A maior objeção que pode ser feita ao conceito de universal proposto por Williams é que ele é geralmente incognoscível. Em oposição a isso, quando reduzimos universais a simples conceitos, o que parece natural, eles nos parecem plenamente inteligíveis. Esse argumento contra a cognoscibilidade dos universais é para mim decisivo.

   Vejamos agora uma objeção ao conceito de particular concreto. Sob o suposto de que o mundo é constituído de tropos, a própria compresença deve ser também um tropo. Simbolizando o tropo de compresença com ‘Tc’ e, supostamente, os tropos constitutivos de um objeto material M como formando o conjunto {T1, T2... Tn}, deveremos dizer que a condição necessária para se ter M é a de que {T1, T2... Tn} sejam unidos pelo tropo Tc. Mas aí surge a questão. O que une T1, T2... Tn e Tc? Ora, para respondermos a essa questão precisaremos recorrer a um novo tropo de compresença, que será ‘Tc1’. Contudo, também o conjunto {T1, T2... Tn, Tc, Tc1} precisará ser unificado por um novo tropo de compresença, Tc2, de modo que também aqui parece que estamos sendo induzidos a um regresso ao infinito.[9]

 

4

 

Acredito não ser demasiado difícil responder às objeções até aqui consideradas. Se isso for possível, a ontologia dos tropos passará a ter uma perspectiva muito mais promissora do que as formas de realismo e nominalismo com as quais temos convivido desde sempre, pois terá sido capaz de reduzir toda a realidade ontológica a uma única e bastante intuitiva categoria. No que se segue quero ensaiar algumas respostas.

   Primeiro, se nos recordarmos que o problema dos universais foi introduzido por Platão para resolver o problema da predicação, ou seja, o de se saber como é possível dizer o mesmo de muitos (cap. II, sec. 2), a resposta fica mais fácil. É útil aqui que nos lembremos de como Berkeley (cap. X, sec. 1) e Hume (cap. XI, sec. 4) resolveram o problema das ideias gerais (universais) sem admiti-las como sendo ideias abstratas no sentido realista platônico ou aristotélico. Para eles tudo o que precisamos é de ideias modelares que por convenção se encontram ligadas a um termo geral, junto à habilidade de identificar quaisquer ideias similares às ditas ideias modelares. Por exemplo: podemos associar à palavra ‘triângulo’ a ideia de um polígono de três lados e com base na imaginação de variações dos ângulos desse triângulo sermos capazes de identificar qualquer objeto triangular com base em sua precisa semelhança com as derivações do modelo.

   Minha sugestão pode ser aqui vista como uma substituição da ‘ideia’ do particularismo empirista por ‘tropo’, mas com a vantagem de que com a ideia de tropo não precisamos ficar restritos a imagens mentais, como foi objetado contra os empiristas. Os tropos modelares podem ser entendidos como partes das regras conceptuais que aplicamos ao identificar tropos precisamente similares a ele. Ou seja, para se predicar um certo nome de muitas coisas, basta compararmos um certo tropo associado ao nome que já conhecemos com as coisas e ver se elas contêm tropos precisamente similares ao primeiro tropo. Não precisamos recorrer a conjunto algum para realizarmos essa operação. Ao invés de, por exemplo, recorrermos à similaridade entre uma coisa dada à experiência e algo como a ideia platônica, nós recorremos à similaridade precisa entre aquilo que é dado à experiência e um tropo modelar qualquer do qual guardamos memória e ao qual associamos um nome. Ou seja: aquilo que alguns chamam de um conceito geral pode ser reduzido à nossa capacidade de realizar a operação mental de identificar tropos como precisamente similares a um tropo (geralmente complexo) com o qual já estamos familiarizados.

   Considere, para exemplificar, um tropo muito simples como o da cor de terra de Siena queimada. Digamos que Maria fez um curso de pintura e que tenha aprendido o nome e ganho familiaridade com essa tonalidade de cor. Depois disso ela vai visitar a Itália e lá identifica um bom número de edificações pintadas com essa mesma cor. Certamente, isso bastará para que concordemos que ela tem o conceito geral da cor chamada de terra de Siena queimada. Mas o que podemos querer dizer com isso? Certamente, não que ela tem qualquer acesso ao imenso conjunto de tropos precisamente similares de terra de Siena queimada que existe no mundo. Esse foi o caminho seguido por Williams. Tudo o que queremos dizer é na verdade que ela possui a memória do modelo de terra de Siena queimada associada ao termo geral ‘terra de Siena queimada’, uma memória resultante de seus múltiplos contatos com essa cor associados à palavra que a nomeia quando fez seu curso de pintura, e que agora é capaz de identificar esses tropos quando eles lhe são apresentados. Podemos resumir nossa paráfrase do conceito universal como:

 

Uma pessoa S possui o conceito geral de um tropo T se e somente se N é capaz de associar um certo termo geral a algum modelo T* desse tropo e de realizar a operação de identificação de qualquer outro tropo que lhe seja apresentado como sendo ou não sendo precisamente similar ao modelo T* que possui.

 

O que temos aqui é a exposição de uma regra, de uma regra conceitual, de um conceito, e conhecer um conceito é o mesmo que possuir a habilidade de aplicar uma tal regra. Observe que o tropo que usamos como modelo pode variar arbitrariamente. Além disso, o tropo considerado pode ser muito mais complexo, caso no qual não será dado à experiência sensível da mesma forma direta que uma cor. Mas isso pouco importa, pois na prática não precisamos identificar um tropo dado à experiência como sendo precisamente similar ao tropo modelar como um todo. Geralmente basta recorrermos a algum elemento identificador. Pense, para usar uma analogia, na prova de que você não é um robô pelo Google, através da qual você identifica motocicletas, veículos motorizados, pontes... apenas com base em partes desses objetos. Afora isso deve ser notado que muitos tropos não permitem representação imagética como o de Terra de Siena queimada. Tropos de emoção ou cognição, intenção, disposição, tropos de espirro, tropos de nomes contáveis, como o de ser humano, tropos de regras, de procedimentos, podem à primeira vista parecerem requerer abstração platônica. Contudo, tudo o que eles requerem são decomposições de caráter lockeano (ver Cap. IX, sec. 4).

   Observe ainda que o procedimento acima permite em princípio derivar a existência de um conjunto, nomeadamente, o conjunto de todos os tropos que poderiam ser identificados como precisamente similares ao tropo modelar que S tem em mente. Felizmente, esse conjunto é geralmente irrelevante e não precisa ser experienciado por S nem por ninguém. Ele seria a extensão da operação pela qual o tropo é universalizado. Em lógica, pelo menos desde Stuart Mill, damos uma razoável importância ao conceito de extensão. Contudo, a exigência de que o conceito de universal deva ser assimilado ao da extensão de um conjunto resulta de um antiquado preconceito formalista. Ao rejeitarmos a necessidade de nos valermos da extensão para explicar os universais nós nos libertamos da exigência de que para concebermos um universal precisamos nos preocupar com os problemas acima evocados. Tudo o que precisamos é sermos capazes de perceber a similaridade entre algum modelo de tropo e qualquer outro tropo que formos capazes de considerar precisamente similar ao modelo. Também objeções de tamanho desaparecem, uma vez que tudo o que se exige é a habilidade de distinguir tropes precisamente similares ao modelo e sua associação convencional com seu signo linguístico. Finalmente, desaparece a objeção de que não somos capazes de ter acesso cognitivo aos universais, uma vez que eles não mais existem.

   Finalmente, o status ontológico daquilo que naturalmente chamamos de conceito passa a ser o de uma regra, não no sentido de uma entidade abstrata, mas no sentido de uma disposição para, dado certo input criterial, produzir um output cognitivo e/ou procedimental. Esse conceito é o mesmo que uma ideia no sentido psicológico e não-platonista. Ele não é autopredicável. Com efeito, não podemos dizer que a regra conceitual para a palavra ‘vermelho’ é vermelha, nem que o conceito de vermelho é vermelho, nem que a ideia (psicológica) do vermelho é vermelha (ver cap. II, sec. 4).

   Vejamos agora a objeção feita à construção de particulares concretos, segundo a qual a adição do tropo de compresença produz um novo conjunto de tropos, que demanda outro tropo de compresença e assim indefinidamente. A objeção nos faz recordar do argumento do terceiro homem aplicado às ideias platônicas, que já vimos no capítulo II (sec. 4). É o tropo de compresença compresente? Parece que sim. Então ele é autopredicativo e isso parece nos levar a uma redução ao infinito. Contudo, mesmo que esse seja o caso é possível argumentar que essa é uma redução virtuosa, uma vez que a adição de novas compresenças, embora possível, não se faz necessária. Do mesmo modo que os tropos de similaridade precisa não requerem a consideração de tropos de similaridade precisa entre eles para justificar uma classe de tropos precisamente similares, o tropo Tc é tudo o que precisamos para enlaçar o conjunto de tropos em uma unidade. Como consequência podemos ficar satisfeitos com o conjunto {T1, T2... Tn} parando aí mesmo sem que isso nos cause maiores aflições. Afinal, até um tropo tão vulgar como o do vermelho fisicamente dado é susceptível de um redutio autopredicativo: “Isso é vermelho”; “Isso que é vermelho é vermelho”; “Isso que é vermelho que é vermelho é vermelho”... Mas ninguém ousaria dizer que só por causa dessa peculiaridade nós não podemos mais dizer que algo é vermelho.

 

5

 

Há ainda muitas outras objeções e questionamentos possíveis. Não parece fácil, por exemplo, encontrarmos o critério de identificação para um tropo. Afinal, quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? Quanto aos objetos materiais, a compresença é uma condição necessária, mas não é suficiente. Por exemplo, a cor vermelha de uma chama vem junto ao calor, mas essas duas qualidades compresentes não constituem um objeto material. Como classificar objetos da microfísica como os elétrons? O que dizer das forças da natureza? O que dizer do espaço e do tempo? São eles tropos ou são constituídos por tropos? E o que dizer de entidades abstratas como a existência, ou ainda de entidades matemáticas como números ou, quem sabe, partículas lógicas?

   Comecemos com a questão do critério de identidade para os tropos. Não parece que exista um único, nem que a questão seja tão relevante. Parece que convencionamos para diferentes espécies de tropos critérios de identidade diferentes, dado que aquilo que distingue uma espécie de tropo é seu próprio critério de individuação.

   Uma pergunta insidiosa é: quantos tropos? Quantos tropos de branco existem na parede branca à minha frente? O critério parece ser aqui a homogeneidade da parede, pois se ela for homogeneamente branca seremos tentados a dizer que se trata apenas de um grande tropo (propriedade) de brancura. Se a parede tivesse várias tonalidades de uma mesma cor tenderíamos a falar de vários tropos. O ponto em questão além de vago parece ser altamente convencional.

   Que dizer do critério de identidade para os particulares concretos? A mera compresença não é suficiente. Considere, por exemplo, o caso de uma síndrome. Ela se caracteriza como um complexo conjunto de sinais e sintomas interligados, que nada mais são que tropos atuais ou disposicionais compresentes. Mas ela não é um particular concreto. A resposta parece ser aqui aristotélica: quando temos de tratar um conjunto de tropos compresentes como existindo de maneira independente e como objeto de predicações sem que ele possa ser predicado de coisa alguma, então estamos diante de um particular concreto, como no caso de Maria. Mas se ela sofre de síndrome do pânico, podemos identificar nela o complexo tropo caracterizador dessa síndrome, que pode ser decomposto como um conjunto de tropos disposicionais e não-disposicionais; contudo, esse tropo não é um particular concreto, uma vez que depende da existência de um outro grupamento de tropos que constitui o particular concreto que é Maria, além de ser predicado dela. Isso significa que para a identificação de particulares concretos, critérios derivados do aristotelismo devem ser adicionados ao de compresença. Isso vale também para particulares concretos espalhados, como uma nação ou a raça humana. Uma nação é independente de sua propriedade de ser democrática. A raça humana é independente de sua propriedade de se inventiva.

    Curiosamente, se não interpretarmos o que Aristóteles entendeu como sendo a forma substancial em termos de um universal, mas como algo novo e distinto para cada indivíduo por ela classificado (cap. III, sec. 5), ela se transforma em um particular abstrato, tanto quanto qualquer propriedade acidental compresente em relação à substância. A matéria passa a ser um tropo disposicional. Se não fosse pelo fato de Aristóteles admitir a existência de substâncias suprassensíveis, ele poderia ser interpretado como um insigne defensor da teoria dos tropos.

   Quanto às forças da natureza é fácil explicá-las em termos de tropos. Elas são todas espaço-temporalmente localizáveis, logo são tropos, embora muito vagamente dispersos no espaço. Esse é o caso das forças eletromagnéticas, dependentes de particulares concretos como metais e também das forças forte e fraca, dependentes de partículas subatômicas, que mesmo sendo muito pequenas podem ser vistas como minúsculos particulares concretos. E se a gravidade é um encurvamento no espaço-tempo na proximidade de corpos massivos então também podemos compreendê-la em termos de tropos espaço-temporalmente localizáveis dependentes de particulares concretos.

   E o que dizer do espaço e do tempo? Podemos identificar as localizações espaciais e as durações temporais dos objetos materiais à nossa volta em termos de distâncias e durações espaço-temporalmente localizáveis. Logo, distâncias e durações são tropos! Por exemplo: o tampo dessa mesa está a um metro e vinte centímetros do solo. Essa relação espacial se encontra no espaço e tem uma duração no tempo, logo é espaço-temporal, logo é um tropo. Também posso dizer que essa mesa foi colocada aqui há duas semanas. Ora, o período de tempo decorrido desde que a mesa foi colocada na sala se encontra no tempo, e como esse período é considerado com relação ao local em que a mesa colocada, outra vez temos, por definição, um tropo espaço-temporal. Se adotarmos uma concepção relacional do espaço e do tempo é possível construir as noções de espaço e tempo como um todo como um somatório de pequenas relações. Como esse somatório não é espaço-temporalmente localizável, ele não poderá ser concebido como um tropo.

   Que dizer de coisas geralmente consideradas abstratas como um pensamento ou a existência? Considere primeiro o caso do pensamento. Para Williams, o pensamento como um evento ou processo mental é um tropo. Esse é o caso quando penso que Schliemann descobriu Troia. Mas que dizer do pensamento abstrato de que Schliemann descobriu Troia, o qual pode ser acessado por qualquer um de nós, o qual é sempre verdadeiro (se for verdadeiro) e que aparentemente não está em nossas cabeças? A resposta de Williams seria: o pensamento abstrato de que Schliemann descobriu Troia, ou seja, a proposição expressa por “Schliemann descobriu Troia” tomada como universal, nada mais deve ser do que o conjunto de todos os pensamentos de que Schliemann descobriu Troia. Ou, seguindo a reformulação proposta acima: o pensamento verdadeiro de que Schliemann descobriu Troia é um tropo e como tal nada mais é do que nossa capacidade de pensar isso e de identificar qualquer outro pensamento de que Schliemann descobriu Tróia como sendo precisamente similar a ele, nada mais sendo necessário.

   Consideremos agora o conceito de existência. Como já vimos (cap. XII, sec. 13), dizemos que um objeto existe quando a sua regra de identificação se demonstra garantidamente aplicável a ele. Dito de outra forma, ele existe quando ele é tal que possui a disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesmo, não sendo, por isso, um mero objeto ficcional... Em qualquer dos dois últimos casos, a propriedade de efetiva aplicabilidade da regra de identificação é também localizável lá onde a regra for aplicada, sendo por isso um tropo. Assim, se digo que a nossa Lua existe é porque sei que sua regra de identificação é efetivamente aplicável e que a aplicabilidade dessa regra não é uma propriedade (tropo) que existe em uma outra galáxia, mas em algum lugar por aqui mesmo, entre nós, a terra e a Lua. A existência é, portanto, um tropo. Um tropo de ordem superior, mas nem por isso menos que um tropo.

   Que dizer dos números? É fácil identificar números aplicados com tropos. Os três patetas, os três blue-caps, as três Marias... tudo isso são tropos de trios, uma vez que são espaço-temporalmente identificáveis. O mesmo podemos dizer de uma soma aplicada como a soma das três peras com as duas maçãs que se encontram dentro da cesta. Além disso, números aplicados podem até mesmo se mover junto aos seus portadores: as 26 pedras que constituem o Stonehenge foram em tempos remotos transportadas de Wiltshire para Wales.

   Mas o que dizer da soma 3 + 2 = 5 ou do número 3 in abstracto? Essas coisas não parecem estar situadas em lugar algum. Contudo, um pouco de reflexão mostra que podemos aplicar aqui o mesmo procedimento que já havíamos aplicado na identificação de universais. Eis como podemos definir o número 3 in abstracto:

 

Uma pessoa S possui o conceito geral do número 3 se e somente se ela associa o signo ‘3’ a uma tríade qualquer de entidades, possuindo a capacidade de usá-la como modelo na identificação de qualquer outro tropo equivalente (precisamente similar) a esse modelo.

 

Não estou dizendo que para conceber o número três in abstracto eu precise me recordar de algo como as Três Marias (quando uso o número 3 em um cálculo eu o trato como um mero sinal...). Mas em algum momento de minha vida eu preciso ter tido contato com tríades espaço-temporalmente localizáveis que eu mesmo contei. E qualquer nova tríade que me seja dada será também espaço-temporalmente localizável. Mesmo que a definição do número 3 aqui apresentada permita derivar um ilimitado conjunto extensional de tríades, isso é secundário, pois o que importa é apenas a minha capacidade cognitiva de universalização, a capacidade de dizer o mesmo de muitos, de produzir sínteses conceituais, e não um universal extensional.

   Uma questão seria a de como aplicar a definição acima a grandes números, aqueles que vão muito além da capacidade humana para contar. Aqui podemos recorrer a um artifício como o do construtor ideal (ideal agent) proposto por Philip Kitcher. Ele seria capaz de realizar por nós qualquer cálculo que fosse além de nossas limitações. Afora isso, o tratamento da matemática como um mero jogo simbólico se torna legítimo quando ela se subtrai a nossas capacidades cognitivas.

   Adequadamente desenvolvido, semelhante procedimento teria a grande vantagem de nos possibilitar uma solução de princípio para o grande mistério que é o problema da aplicação da matemática abstrata a um mundo empírico sensivelmente acessível e espaço-temporal. É que a matemática (por vezes só em nossas mentes ou em computadores) também pertence ao mundo empírico. Os tropos matemáticos, mesmo sendo de ordem superior, são sempre espaço-temporalmente localizáveis, por mais dispersos que sejam e, portanto, se encontram no mundo real tanto quanto as linhas dessa página.

 

5

 

O peso da tradição. Finalmente, resta uma pergunta. Como é possível que a teoria dos tropos tenha precisado de mais de dois mil anos para ser inventada? Ela não poderia ter sido inventada no século XIX, quando a teoria dos conjuntos já havia sido desenvolvida? Ou, assumindo a minha versão, não poderia a ela ter sido inventada ainda na Idade Média, quando as pessoas já tinham uma noção bem definida do que fosse um ato mental?

   A única resposta que consigo imaginar para essa questão é nietzscheana: A solução proposta por Williams não foi desenvolvida antes devido à força do ideal ascético no interior do pensamento judaico-cristão ocidental. A ontologia era, ou asceticamente formulada de cima para baixo, como no idealismo platônico, ou então, diante de sua impossibilidade, reativamente negada nas diferentes formas de nominalismo. Só no século XX, quando o desenvolvimento científico, econômico e técnico permitiu à mente humana libertar-se das motivações teístas figurativas transcendentes, o ambiente filosófico perdeu o suficiente de sua vinculação com formas de evasão herdadas da tradição judaico-cristã para que nele se admitisse a abertura para uma ontologia capaz de ser desenvolvida de baixo para cima: a ontologia dos tropos. É por isso que, mesmo no interior do escolasticismo que permeia a discussão contemporânea, a ideia aos poucos ganha força.  



[1] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018).

[2] A lista de filósofos tradicionais que admitiram a existência de propriedades espaço-temporalmente localizáveis é na verdade muito grande, embora inversamente proporcional à importância que eles deram a essa noção. Ver Anna-Sofia Maurin: Tropes. In Stanford Encyclopedia of Philosophy (2023, Internet).

[3] D. C. Williams, Donald. The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 28.

[4] Ibid. p. 33-37.

[5] Ibid. p. 38.

[6] O conceito de similaridade precisa ou exata pode ser aqui considerado o mesmo que o de identidade qualitativa, que é a identidade (em grau aproximativo) entre duas coisas situadas em lugares diferentes (ex.: “O meu e o seu são idênticos”). Ele deve ser distinguido do conceito de identidade numérica, que é a da coisa consigo mesma.

[7] D. C. Williams, The Elements and Patterns of Being. A. Fisher (ed.), (Oxford: Oxford University Press 2018) p. 29.

[8] Ibid., p. 29.

[9] Christopher Daily: “Tropes,” in D. H. Mellor & A. Oliver: Properties (Oxford: Oxford University Press 1997), pp. 140- 159.  



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