draft para o livro IHF
XV
MARX: MATERIALISMO DIALÉTICO
De cada qual,
segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.
Marx
Os despojos do pensamento de Hegel foram disputados entre as assim
chamadas direita e esquerda hegeliana. A direita enfatizou os elementos conservadores
do pensamento de Hegel, como a religiosidade e o culto ao estado, tendo sido a
maior responsável pelo esquecimento de seu pensamento na Alemanha da segunda
metade do século XIX. Já a esquerda hegeliana, rejeitando esses elementos, foi
original, encontrando seu maior expoente na figura do grande filósofo social que
foi Karl Marx (1818-1876). Ao invés de colocar o espírito acima de tudo, Marx decidiu
virar Hegel de cabeça para baixo, colocando a matéria em primeiro lugar. Seu
pensamento, chamado de materialismo histórico, baseou-se em uma dialética
materialista através da qual ele tentou explicar o progresso histórico-social.
O pensamento de Marx foi
profundamente influenciado pelo que ele viu acontecer durante a revolução
industrial. Essa revolução aconteceu de 1760 a 1870. Ela incluiu a
transformação de métodos de produção artesanais em produção através de
máquinas, novos produtos químicos, novos processos de produção de ferro, o uso
crescente de energia a vapor, do carvão, e mais tarde a formação de redes
ferroviárias com a introdução de locomotivas a vapor e a substituição dos
navios a vela por navios a vapor. Ela começou na Inglaterra, mas logo se
expandiu para os Estados Unidos e para as regiões desenvolvidas da Europa. A
revolução industrial mudou por completo a forma de vida humana, só podendo ser
comparada à domesticação dos animais e à introdução da agricultura no período neolítico.
Mas ela cobrou um preço muito alto no que dizia respeito às condições de vida
dos trabalhadores nas fábricas e minas de carvão, que eram duramente explorados
sob um regime de trabalho que podia chegar a mais de quinze horas por dia, o
que se aplicava até mesmo a crianças pequenas. Essas circunstâncias produziram
a indignação de intelectuais ativistas como Marx, Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph
Proudhon, tendo levado a revoltas sangrentas por parte dos trabalhadores. A
pior dessas revoltas foi a comuna de Paris de 1878, que precisou ser silenciada
pela ação conjunta dos governos da França e da Prússia, levando à morte de mais
de vinte mil trabalhadores.
Marx escreveu por reação ao momento histórico único
no qual viveu. Considerando as graves tensões entre a classe dirigente e a
classe proletária durante a revolução industrial, parecia que a Europa estava
se encaminhando para uma nova revolução. Intelectuais ativistas como Marx
estavam se preparando para a possibilidade de estar à frente dela.
Marx era filho de um livre
pensador judeu bem sucedido e foi sempre um inconformado, o que tornou a sua
vida nem um pouco fácil. Apesar de se ter doutorado em filosofia, ele não
poderia ser aceito em um cargo público como o de professor na Alemanha devido a
suas ideias radicais. Acabou trabalhando para revistas e jornais. Não pôde
permanecer na Alemanha conservadora de seu tempo, foi expulso de Paris e da
Bélgica, acabando por ter de se estabelecer na mais liberal Inglaterra, onde
viveu com a esposa e as duas filhas sob condições econômicas de início muito precárias
os últimos 27 anos de sua vida. Ele só conseguiu se sustentar do que escrevia
para os jornais e pela ajuda de seu grande amigo Friedrich Engels.
Marx foi a vida inteira casado
com Jenny von Westphalen, uma mulher culta que sempre o apoiou. Eles tiveram
sete filhos, mas só três sobreviveram até a idade adulta. Ele se sentiu
inconsolável com a morte da filha mais velha aos 38 anos, de câncer. Em 1851
ele teve um filho com Helene Demuth, que havia sido governanta da família por
muitos anos. Engels acolheu Helene e o filho, impedindo que o caso se tornasse
público. As outras duas filhas de Marx se suicidaram anos após a morte do pai. Não
digo essas coisas para degradar um pensador como Marx, mas para mostrar que as
fraquezas e tragédias da condição humana não poupam os filósofos e que eles,
assim como aquilo que escrevem, devem ser considerados de forma realista.
1
Ideologia. Marx compartilhava com Hegel a ideia de que a
história tem uma finalidade que é a da emancipação do ser humano. Contudo, a
dialética aceita por Marx é materialista. Pois enquanto para Hegel é o espírito
que produz as alterações no mundo material, para Marx é o trabalho humano sobre
a matéria que é capaz de produz alterações na consciência humana. Para tornar
isso mais claro Marx distinguiu entre forças produtivas e relações de
produção. As forças produtivas são as coisas usadas para produzir, como a
matéria prima, as máquinas e, principalmente, a força de trabalho humana. As
relações de produção são as que vigem entre as pessoas e as pessoas e entre as
pessoas e as coisas. Essas relações eram para ele dependentes das forças
produtivas. Assim, em uma sociedade feudal a força produtiva da moenda manual
gera relações de produção que são diferentes das relações de produção geradas
pela moenda a vapor na sociedade capitalista industrial. A essa ideia Marx
adicionou uma distinção crucial, que foi entre as bases econômicas e a superestrutura
ideológica.[1]
As bases econômicas são o conjunto das relações de produção apoiadas pelas
forças produtivas. Já a superestrutura ideológica é formada por um aparato ideológico:
uma estrutura legal, política, estética, filosófica... à qual se adiciona uma
religião e uma moralidade específicas. Por exemplo: na Alemanha do tempo de
Hegel a religião era autoritária e complementada por uma moral baseada nas
ideias de obediência aos superiores, lealdade e cumprimento dos deveres para
com o estado. A própria filosofia de Hegel pode ser entendida como tenho
servido à superestrutura ideológica de sua época. Eis como Marx resumiu o
processo de produção da superestrutura ideológica a partir das relações de
produção:
O modo de produção da vida material condiciona o processo
geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens
que determina a sua existência, mas sua existência social que determina a sua
consciência.[2]
Ou seja: em suporte às relações de produção, as bases econômicas
determinam a superestrutura ideológica e desse modo a forma da própria consciência
humana.
A pergunta que geralmente aqui
se faz é se o contrário não é possível, ou seja, se a superestrutura ideológica
não teria também efeito sobre as bases econômicas. Afinal, a máquina a vapor,
uma força produtiva essencial à revolução industrial, foi inventada por alguém
e essa invenção produziu alterações nas bases econômicas. De fato, como Engels não
deixou de enfatizar, existe uma inter-relação entre a superestrutura ideológica
e a base econômica.[3]
Ainda assim, Marx não deixou de estar essencialmente
certo, posto que as bases econômicas é que constituem o determinante
primário. Afinal, se a base econômica permanecer imutável é muito difícil
que a superestrutura ideológica se altere (ex: a estagnação econômica na Europa
medieval); mas se a base econômica se altera (ex: a Europa nos tempos de Marx)
parece quase inevitável que a superestrutura ideológica venha a se alterar. Em
outras palavras: a relação entre as forças produtivas, relações de produção e
superestrutura ideológica é a de um todo orgânico no qual as bases econômicas determinam
as superestruturas ideológicas, que por sua vez subdeterminam as bases
econômicas.
2
Alienação Para explicar o que acontecia com o trabalhador
submetido às ingerências da superestrutura ideológica, Marx tomou de empréstimo
de Hegel o conceito de alienação, aplicando-o principalmente à relação
do ser humano com o trabalho. Para Marx a alienação é o estranhamento do
homem de sua própria essência pela ruptura de sua relação natural com os seres
humanos e as coisas. Esse estranhamento faz com que ele perca sua
humanidade essencial.[4]
A revolução industrial foi para Marx
alienadora tanto da classe burguesa quanto da classe proletária, pois cada qual
é desumanizada à sua maneira. A alienação da classe burguesa é caracterizada
pela competição, pela ganância e pelo fetichismo com relação ao dinheiro, ao
poder e à posse de coisas. Para ela as coisas deixam de ser valorizadas pelo
que realmente valem – pelo seu valor de uso – passando a ser valorizadas pelo
que custam – pelo seu valor de troca.
Para ilustrar o fetichismo da
mercadoria vale lembrar a estória de um pensador medieval chamado Mullah Nasreddin,
que ninguém sabia se era um sábio ou um tonto. Um dia Nasreddin entrou num
mercado e saiu de lá com um saco de pimenta malagueta. Ele se sentou em um
banco e começou a comer as pimentas. Ao fazer isso ele sofria muito, sua boca
ardia, seu rosto estava vermelho, ele suava frio. Um passante lhe perguntou:
“Por que fazes isso Nasreddin, não vês que estás comendo pimenta?” Ao que Nasreddin
respondeu: “Mas não estou comendo pimenta. O que estou comendo é todo o
dinheiro que gastei para comprá-las”. Essa resposta exemplifica dramaticamente
o fetichismo da mercadoria: Nasreddin confundia o valor de troca da pimenta com
o seu valor de uso.
Passando agora a um caso real: as pessoas não
estão muito longe de Nasreddin quando visitam o Louvre para contemplar o
original da Mona Lisa. Muito poucos ficariam satisfeitos em ver apenas
uma cópia perfeita desse tedioso quadro. E mesmo que a cópia seja exatamente
igual ao original, o valor de troca do original é imensamente superior. O enorme
preço das obras de arte compradas em grandes galerias exemplifica a força do
fetichismo da mercadoria no mundo real. Em seu estudo sobre a alienação Marx
anteviu um fenômeno que se encontra tão presente em nossa sociedade de consumo
que costuma passar desapercebido.
O que realmente interessava a
Marx era a alienação da classe proletária. A superestrutura ideológica é
alienadora ao infundir no trabalhador ideias que lhe façam aceitar sua
condição. Dela resulta a crença na boa justificação de leis que a classe
superior sutilmente impõe para proteger-se, a crença nos valores morais vindos
de cima, a crença em uma religião que defende a legalidade do status quo
e que prega uma recompensa pela miséria da vida presente através de uma vida
abençoada após a morte... Como ele famosamente notou, “a religião é o ópio do
povo”. Afora isso, a revolução industrial era para Marx alienadora do
trabalhador também de outras maneiras. Ela aliena o trabalhador do produto de
seu trabalho, pois ele não pode mais completá-lo como acontece com o artesão. O
artesão produzia um objeto do começo ao fim e se identificava com ele como
sendo o inteiro produto de seu trabalho; ele o vendia em um meio social
conhecido no qual os outros valorizavam o que ele fazia e onde se sentia em
casa. Mas o trabalhador que passa o dia atento a uma mesma e monótona tarefa
repetitiva é apenas uma peça em um sistema produtivo, não tendo mais nenhuma
relação com aquilo que ajuda a produzir, o que é intelectualmente debilitante.
O trabalhador é por esses meios alienado de sua própria natureza. Ele se torna alienado
do que Marx percebeu como sendo a capacidade que o ser humano tem de tomar
consciência de si mesmo como integrante da espécie humana da qual ele é membro.
Enquanto um teórico como Ludwig Feuerbach via o homem como como espelho imperfeito
de uma divindade ideologicamente produzida por ele mesmo, Marx ia além. Ele via
a alienação religiosa como mais uma maneira ideológica de justificar a
exploração da classe trabalhadora, oferecendo-lhe uma compensação ilusória para
sua miséria.
Entre os dois casos de alienação recém descritos há, porém, uma
diferença decisiva. A classe burguesa se sente bem e aprovada em suas
auto-alienação, sabendo que ela possui a aparência de uma existência humana. Já
a classe proletária “sente-se devastada em sua alienação, vislumbrando nela sua
impotência e a realidade de uma existência desumana.”[5] Por essa mesma razão, a
classe proletária é para Marx a única que tem condições de se libertar de sua
alienação e alcançar a consciência plena de sua condição: a consciência de que o
capitalismo consiste em um sistema no qual uma classe social, a dos proprietários
dos meios de produção, oprime e explora a outra, a dos proletários.
3
Teoria da história. É nesse ponto que entra a
ideia fundamental do materialismo dialético. Como vimos, as bases econômicas
são aquilo que essencialmente determina a superestrutura ideológica. Ora, num
determinado estágio do desenvolvimento de uma sociedade as forças de produção
material se alteram de tal maneira que entram em conflito com a estrutura
ideológica, o que acaba por conduzir a uma transformação social, seja por uma
revolução, seja pela ruina comum das velhas oposições sociais. Mais além, segundo
a dialética materialista, a própria história é a história da exploração social
de uma classe por outra. “A história da humanidade’, escreveram Marx e Engels,
“é a história da luta de classes”.[6] Eles viam isso como uma constatação factual. Eis
uma sequência histórica de casos de lutas entre as classes em que, seguindo a
dialética materialista, uma oposição entre classes sempre cede lugar outra
oposição, mais elaborada. Eis um
esquema:
(1) O comunismo primitivo: no início da história existia um modo
patriarcal de produção no qual a propriedade pertencia ao grupo tribal.
(2) na sociedade escravista da antiguidade o dono do escravo tinha a
posse sobre ele como um instrumento de trabalho, enquanto a classe dos escravos
lutava contra a classe dos homens livres. Aqui a classe dos senhores transmite
sua função e propriedade por hereditariedade e não por mérito. (Também os plebeus romanos lutavam contra os
patrícios que os dominavam. Essas oposições acabaram por ser dissolvidas com a
ascensão do cristianismo.)
(3) Na Idade Média tivemos o surgimento da economia feudal. Aqui outra
oposição entre classes surgiu, que foi entre os servos da gleba e os senhores
feudais. Os servos oprimidos trabalhavam para sustentar a nobreza que possuía a
terra e indiretamente os possuía.
(4) O aparecimento da burguesia com a classe manufatureira na
modernidade dissolveu a oposição que existia no feudalismo, ao menos nos países
mais desenvolvidos da Europa, embora preservando profundas diferenças sociais.
(5) Finalmente veio a revolução industrial capitalista dos tempos de
Marx, que também se baseou na exploração. O trabalhador ganhava do capitalista apenas
o suficiente para sobreviver e para ser capaz de se reproduzir de modo a lhe
prover de mais mão de obra.
Como escreveram Marx e Engels, ao longo do
curso da história humana:
(...) opressores e oprimidos, em constante oposição,
tem vivido em uma luta ininterrupta, ora dissimulada, ora declarada; uma luta
que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade
inteira, ou pela destruição das classes em conflito.[7]
4
Escatologia. Foi sob esse entendimento da história das relações
entre as classes que Marx, ajudado por Engels, produziu a sua própria
escatologia. Para eles as relações sociais vigentes no capitalismo não precisam
durar para sempre, embora possa parecer que sim. Afinal, as relações sociais
vigentes no sistema feudal, assim como as de outras épocas, não duraram para
sempre, embora possa ter parecido que sim aos espectadores de suas épocas. As
pessoas que produziriam a revolução seriam, para Marx, os trabalhadores. Por
serem eles que sofriam a opressão, eles tinham condições de ganhar o que Marx
chamou de uma consciência de classe, a percepção de seu papel no sistema
produtivo e de como eram explorados pelos seus senhores e manipulados pela
superestrutura ideológica, principalmente através da religião, na aceitação de
uma moral de renúncia e submissão.
Como já foi notado, pela metade do século XIX Marx
e outros intelectuais politicamente engajados acreditavam que uma nova revolução
estava se aproximando. Mas ele não via essa revolução com uma entre outras
mais. Ele a via como a última e a maior delas, após a qual a história, tal como
a conhecemos, encontrará seu fim. Após essa grande revolução não haverá mais
luta de classes porque não existirão mais classes. Depois dela todos se
tornarão iguais, não havendo mais nem exploradores nem explorados. O estado
será abolido, a propriedade privada será abolida e os meios de produção
pertencerão a todos. A economia será racionalmente planejada, diversamente do
que pregam as teorias econômicas ideologicamente comprometidas com o
capitalismo. A grande revolução começará nos países mais desenvolvidos, como a
Inglaterra, estendendo-se então ao mundo inteiro. Após a grande revolução socialista
o ser humano não precisará mais buscar o paraíso fora da terra porque ele será
a própria terra. Como escreveu Marx em uma descrição cuja força é
essencialmente metafórica:
Ninguém seria limitado a uma esfera de atividade. Todo
indivíduo poderia se aperfeiçoar no que quisesse. A própria sociedade poderia
regular sua produção e seria possível lidar com uma coisa hoje e com outra
amanhã. Posso caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado ao anoitecer e
apresentar minhas próprias opiniões críticas após o jantar. Posso fazer tudo
isso dependendo de como me sinta, sem jamais ter de me tornar um caçador, um
pescador, um criador de gado ou um crítico.[8]
Nessa sociedade utópica, aquilo que move o mundo capitalista, a ambição,
o egoísmo e a inveja, serão varridos da vida humana. A competição será
substituída pela colaboração. As pessoas trabalharão o mínimo necessário,
passando o resto do tempo a se entreter com atividades intelectuais ou
estéticas, como a leitura de Homero. Não haverá mais distinção entre os
interesses do indivíduo e o interesse do estado. A moralidade deixará de servir
aos interesses dominantes para se tornar uma moralidade realmente humana. E
quanto à distribuição do dinheiro a regra será: “De cada um segundo suas
habilidades; a cada um segundo suas necessidades”. (Marx não era um
igualitarista: ele achava que um engenheiro merecia receber mais, dado que
teria sido investido mais trabalho em sua formação.)
Para que o paraíso na terra
venha a existir é necessária a satisfação de certos pressupostos. Um deles
consistirá na criação de uma consciência de classe por parte do proletariado.
Por meio da instrução recebida da parte de intelectuais como o próprio Marx os
trabalhadores se libertarão dos grilhões da alienação e se emanciparão, pois
terão tomado plena consciência de que estão sendo explorados e de que precisam
se revoltar.
Além disso, com base em seus estudos
econômicos Marx acreditava que a opressão vista na época da revolução
industrial iria aumentar sempre mais e que crises econômicas seriam cada vez
maiores, levando inevitavelmente à eclosão da revolução proletária. Essa
revolução teria para ele dois momentos. O primeiro será inevitavelmente totalitário.
Nele os proletários, libertos de suas amarras, tomarão o poder e destituirão os
opressores capitalistas. Esse será o momento do socialismo. Como os proletários
possuem a consciência do que é a exploração, só eles serão capazes de produzir
a sociedade ideal, sem classes nem propriedade privada. Uma vez arrumada a
casa, será possível instaurar o segundo momento, o do comunismo, que será o de uma
sociedade finalmente justa, sem classes, sem opressão, verdadeiramente democrática,
em que os seres humanos emancipados de suas ilusões ideológicas se tornarão
finalmente livres para realizar o que possuem de melhor.
5
Problemas. A implausibilidade das previsões feitas por Marx foi
notada desde o começo. Como Mikhail Bakunin escreveu em um texto profético acerca
da assim chamada consciência de classe dos líderes da revolução:
(...) tão logo se tornem governantes ou representantes
do povo, eles cessarão de ser operários e, pondo-se a observar o mundo
proletário dos pináculos do Estado não mais representarão o povo, mas a si
mesmos e as suas próprias ambições de governar. Quem duvida disso não entende
nada da natureza humana.[9]
Muitos anos mais tarde Sigmund Freud fez observação semelhante. Para o criador
da psicanálise, Marx tinha uma visão demasiado otimista da natureza humana. As
revoluções que mais tarde ocorreram em seu nome deram razão a Bakunin e a Freud.
Um outro crítico de Marx,
Bertrand Russell, sugeriu que a escatologia revolucionária de Marx foi plagiada
da Bíblia. Basta trocar os nomes: no lugar da Bíblia temos a obra O Capital;
no lugar de Jesus temos o próprio Marx; no lugar do Juízo Final temos a
Revolução; no lugar dos bons, que serão salvos, temos a classe trabalhadora,
enquanto no lugar dos maus, a serem condenados, temos os burgueses capitalistas.
Finalmente, no lugar do paraíso celeste temos o paraíso terrestre: o paraíso
comunista. Não obstante, ainda que Russell esteja certo, isso não quer dizer
que a sugestão veiculada pela Bíblia e retomada por Marx seja falsa. O ser
humano sempre sonhou com o paraíso, seja ele terrestre ou não.
Há ainda mais uma coisa a dizer
a favor da escatologia marxista. Marx foi inspirado pela ideia de uma essência
humana tomada de Feuerbach, caracterizada por este último como uma
constituição inalienável de razão, vontade e coração – algo que permaneceria
imutável até mesmo em seres pensantes porventura encontrados em outros corpos
celestes.[10]
Sob uma perspectiva
antropológica, a essência humana buscada por Marx e Feuerbach poderia ser mais
puramente distinguida nas sociedades pré-históricas sobreviventes, nas quais não
existem classes sociais, mas apenas diversidades de funções. Essas sociedades parecem
capazes de espelhar mais aproximadamente a natureza humana. Não é difícil,
aliás, encontrarmos culturas primitivas anteriores à civilização que pareçam
realizar certos ideais marxistas. O exemplo que encontro é o da tribo Zoé. Ela
habita a floresta amazônica no norte do Brasil. Os Zoé são pacíficos e poderiam
se candidatar ao protótipo do bom selvagem. Eles formam hoje um grupo de cerca
de 250 pessoas. São doces e gentis, não batem nos filhos e não brigam entre si.
Não tem um Deus, mas consideram muitas coisas sagradas. Não possuem hierarquia
de poder, chefes guerreiros ou coisa semelhante. Tudo é dividido igualmente.
Gostam de nadar nos rios. Cuidam dos mais velhos aos quais dão animais de
estimação. Um homem pode ter quatro esposas, mas em compensação uma mulher pode
ter três esposos.[11] E essa sabedoria comunitária
pode bem ser devida à relação privilegiada que eles têm com a essência não
alienada da natureza humana. Os Zoé são felizes. São marxistas pré-históricos
que vivem em harmonia com a sabedoria da espécie. Nós somos há tanto tempo e de
tal modo alienados de nossa própria natureza que nada temos a lhes ensinar.
Quando consideramos o modo de
vida dos Zoé sem preconceitos etnocêntricos somos tomados de uma certa
nostalgia de algo que nossa civilização parece ter perdido. Somos então levados
a nos perguntar se em uma sociedade livre, igual, sem escassez, na qual as
pessoas teriam diferentes funções, mas sem uma alienadora hierarquia de
classes, não poderia existir em nosso próprio mundo algo equivalente ao que pode
ser exemplificado por povos pré-históricos como os Zoé. Nesse caso, mesmo que
Marx tenha colocado o seu paraíso na terra de forma inadequada no final de uma
revolução improvável, podemos nos perguntar se não haveria uma verdade oculta refletida
na escatologia marxista. Afinal, parece bem razoável pensar que o ser humano tenha
perdido algo com a civilização (como as qualidades da tribo Zoé o sugerem),
algo capaz de ser recuperado ao final de um processo civilizatório, na visão
naturalista de Marx sobre como deveria ser um mundo e uma humanidade ideais.
6
Desastres. Na última tese sobre Feuerbach Marx escreveu que tudo
o que as filosofias fizeram foi interpretar o mundo de diversas maneiras,
quando aquilo que lhes cabe agora fazer é transformá-lo.[12] A vaidade de Marx parece
ter feito com que ele esquecesse o quão inevitavelmente especulativo foi o
trabalho filosófico durante toda a sua história. Esse foi seu maior engano. E o
destino do marxismo nos mostra quão ilusória foi sua pretensão.
Após a morte de Marx, em países
que se industrializaram como a Inglaterra e a França a revolta dos
trabalhadores perdeu a força devido a melhora das condições de trabalho e ao
surgimento de sindicatos e de leis que os protegiam. O resultado foi que a
previsão de Marx de uma revolução mundial foi completamente refutada, uma vez
que ela nunca aconteceu. Não obstante, no século XX ocorreram no mundo um
grande número de revoluções, muitas de esquerda, essas últimas quase sempre sob
alguma divisa marxista. Mas elas não foram na Inglaterra, nem mesmo nos países
mais desenvolvidos, como ele pensava. Pior do que isso, essas revoluções na
prática não superaram o capitalismo, nem promoveram a liberdade, nem trouxeram a
esperada emancipação do ser humano. O que aconteceu foi que os seus mentores se
apropriaram das ideias de Marx de modo a oferecer uma justificação teórica para
o que estavam fazendo. E o que fizeram não foi bom. Vejamos alguns casos.
A primeira e maior revolução
com ideias marxistas foi a soviética de outubro de 1917. A teoria da revolução
era a do marxismo-leninismo, uma forma de marxismo adaptada por Lenin para um
país essencialmente agrário que mal havia saído do modelo medieval de servidão!
Uma vez no poder, sob a liderança de Lenin e Trotsky, os bolcheviques trataram
de eliminar a oposição menos radical (os mencheviques[13]) e estabeleceram um
governo totalitário em substituição ao governo dos Czares. O resultado foi algo
que tinha mais a ver com a revolução francesa dos sans culottes
do que com os ideais marxistas. E como em um estado totalitário aqueles que são
mais violentos e destituídos de inibições morais tendem a alcançar o poder,
Stalin acabou por substituir Lenin, instaurando uma ditadura totalmente
centralizada em suas ambições pessoais e no culto a sua personalidade.
O que Stalin instaurou na Rússia foi criticamente
identificado com um capitalismo de estado.[14] Através dele o estado
soviético tornou-se uma grande indústria autocrática e coercitiva, na qual a
classe opressora foi apenas substituída por outra, uma classe burocrática
dentro de um regime imensamente mais brutal do que o dos capitalistas ingleses,
instaurando um inaudito domínio do terror. Longe de desaparecer, o estado formou
uma classe burocrática privilegiada por oposição à classe trabalhadora, no
intento de satisfazer a ambição pessoal de Stalin de tornar a União Soviética
um país industrializado através de planos quinquenais. Como resultado da
repressão stalinista mais de 20 milhões de pessoas perderam suas vidas.
O resultado não foi nada
prometedor. O comunismo soviético, pela incapacidade de se manter competitivo e
pelas graças de Michail Gorbachev, um premier pós-stalinista que decidiu abrir
o país à democracia por acreditar que conseguiria junto a isso manter o
socialismo vigente e recuperá-lo de sua degradação. Como o povo russo nunca
teve a experiência da democracia, o resultado acabou sendo o surgimento de uma
forma extemporânea de czarismo em pleno século XXI nas mãos de Putin. Ao invés
de emancipação, o comunismo soviético gerou retrocesso.
Para um crítico de Marx como
Karl Popper, o debacle do comunismo soviético foi uma prova de que Marx estava
errado.[15] Mas essa crítica é
inadequada, uma vez que a experiência soviética pouco tinha a ver com Marx. Na
opinião de especialistas como Allen Wood,[16] a dissolução do nefasto
comunismo soviético seria apenas mais uma prova de que Marx estava certo. Se essa
forma de comunismo tivesse sido bem sucedida – a instauração do comunismo em um
país semifeudal – isso teria provado que Marx estava errado. Nada disso, porém,
é correto. A verdadeira prova de que as previsões de Marx eram falsas está
antes no fato de que a história provou que a perspectiva de sua revolução
mundial tem se tornado cada vez mais distante.
Podemos ao invés nos perguntar
se o próprio desenvolvimento do capitalismo não nos poderá conduzir ao paraíso
comunista preconizado por Marx. Afinal, não é impossível que um capitalismo
esclarecido seja capaz, através de concessões, acordos e leis (como a exigência
da participação dos trabalhadores nos lucros das empresas...) originadas da
humanização causada pelo desenvolvimento de tecnologias capazes de satisfazer
as necessidades humanas essenciais de todos, nos conduzir ao paraíso comunista
idealizado por Marx, no qual possa ser realizada a essência humana cada vez
mais livre da alienação entendida como estranhamento do homem de sua essência.
Se isso acontecer – e em países como a Finlândia há indícios apontando nessa
direção – os fins humanitários do marxismo serão realizados sem que seja
preciso passar por seus meios revolucionários.[17]
O segundo exemplo de revolução
supostamente marxista aconteceu na China, tendo como resultado também a
implantação de um capitalismo de estado. Mao Zedong, o líder totalitário que por
27 anos governou a China com mãos de ferro, tentou industrializar o país a
qualquer preço e desenvolvera agricultura através da força e por meios
completamente inadequados. O resultado foi uma epidemia de fome que matou cerca
de 20 milhões de camponeses no início da década de 60. Segundo consta, camponeses
desesperados chegaram a trocar seus filhos moribundos com os dos vizinhos para
que eles pudessem ser comidos sem tanta culpa.[18]
Após a morte de Mao, seu
sucessor Deng Xiaoping teve a brilhante ideia de reintroduzir uma suficiente
economia de mercado, mantendo o partido comunista no poder. A reintrodução de
uma forma parcialmente descentralizada de capitalismo, permitindo um grau
suficiente de livre concorrência, ainda que sob supervisão estatal, possibilitou
impulsionar imensamente o país. Assim, embora a China tenha em sua história
sido exemplo dos desastres de que falamos, ela pode bem se tornar uma exceção,
ficando em aberto até que ponto seu modelo se associa a ideias marxistas. (É
questionável se o presente sistema político chines não é mais democrático do
que a maioria das democracias ocidentais, ideologicamente distorcidas de
maneira a satisfazer interesses de classe.)
Há, por fim, exemplos de revoluções que resultaram em estados
fracassados como o criminoso sistema comunista implantado na Coréia do Norte, a
insanidade do Khmer Vermelho no Camboja e a ditadura cubana. Fidel Castro
chegou ao poder dando ao povo a expectativa de uma democracia comunista. Ao
invés disso ele implantou uma ditadura feroz, dentro da qual ainda nos
primeiros tempos mais de dez mil suspeitos (e mesmo insuspeitos) foram
fuzilados. O resultado é que Cuba é hoje um país pobre e doente, com uma
economia planejada que não funciona: uma espécie de fazenda de escravos
dominada pela família Castro, tendo como feitores os membros do partido.
Considerando que Cuba antes da revolução era um país quase rico, apesar de
profundamente desigual, o resultado do comunismo cubano pode ser considerado
desastroso.
Uma questão a ser considerada
é: o que tem Marx a ver com essas revoluções? A resposta pode bem ser que ele
teve muito pouco a ver com elas. Em alguns aspectos sim, como em sua
insistência na abolição da propriedade privada e na admissão de um momento
totalitário pós-revolucionário. Nisso elas se inspiraram em Marx. Mas em sua
essência elas não tiveram nada a ver com a grande revolução pós-capitalista por
ele imaginada. Elas foram, na verdade, revoluções pré-capitalistas em um nível
próximo ao da revolução francesa, geradas por uma ambição desenvolvimentista.
Elas ocorreram em países pobres, geralmente na tentativa de alcançar pela força
uma revolução industrial que já havia acontecido há muito tempo em países
economicamente mais desenvolvidos. No caso da União soviética essa revolução
industrial em alguma medida aconteceu, mas a um preço insano. Na China ela só
aconteceu depois que o comunismo foi substituído por um sistema capitalista sob
o controle de um estado rigidamente estruturado, mesmo que sobre bases
democráticas. Em lugares como a Coréia do Norte e Cuba tudo o que se conseguiu
foi produzir um permanente desastre socioeconômico.
Podemos concluir que há certa
dose de engano em fazer como Karl Popper, que tentou responsabilizar Marx por
terem usado seu nome em vão nessas deturpações e desastres. Para os líderes
dessas revoluções, se Marx não tivesse existido teria sido preciso inventá-lo.
Ou seja: é possível que se ele não tivesse existido as revoluções pré-capitalistas
na Rússia, China, Coréia do Norte, Cuba e outros países, elas teriam ocorrido
de qualquer maneira, inspiradas por outros teóricos que também defenderam ou
que acabariam por defender ideias que as justificassem.[19] Teorizações pertencentes
à superestrutura ideológica são capazes de nascer e crescer tão facilmente
quanto capim do mato.
O que Marx fez pode ser melhor
visto como um imenso esforço especulativo e visionário, forjado como uma reação
humanista ao contexto socioeconômico profundamente injusto do momento histórico
no qual viveu. Em seu diagnóstico das severas distorções da sociedade
capitalista de seu tempo ele estava correto, denunciando uma variedade de
problemas que ainda hoje nos assolam. Mas não há como defendê-lo em suas
profecias factuais.
7
Acordos. Quero aqui fazer uma correção que me parece
indispensável à interpretação que Marx e Engels fizeram da história. Para eles
os diferentes períodos da história foram resultados dialéticos da luta de
classes: “a história da humanidade é a história da luta de classes”.[20] Só que há nisso um
exagero que precisa ser corrigido. A verdade é que na maior parte do tempo a
história tem sido a história dos acordos implícitos ou explícitos entre as
classes. Esses acordos, que podem durar séculos, são capazes de, por obra
do progresso material, ou seja, de mudanças na estrutura econômica, produzir
tensões insustentáveis, levando a dissoluções superadoras que podem tomar a
forma de revoluções. Nem por isso os resultados deixam de preservar algo da dialética
materialista: com o desenvolvimento e alteração das forças produtivas, os
acordos podem se demonstrar demasiado onerosos, o que conduz a conflitos dos
quais resulta a superação de acordos já existentes e sua substituição por novos
acordos, mais satisfatórios e justos.
Nem sempre essa superação dos acordos
anteriores aconteceu através de revoluções sangrentas como a francesa. Considere,
por exemplo, o caso da Revolução Gloriosa na Inglaterra, que foi uma espécie de
golpe de estado ocorrido 100 anos antes da revolução francesa e que resultou em
uma vitória do parlamentarismo sobre o poder absoluto do rei. Antes disso, nos
tempos elisabetanos, o poder absoluto do rei era considerado, tanto pela
nobreza quanto pelo povo, como inteiramente justificado e não como um sistema
baseado na injustiça social, como deveria ser se a história fosse sempre uma
história da luta de classes.
Devemos aqui distinguir entre (i) nosso
conceito ideal de justiça social e (ii) nossos conceitos circunstanciais
(factuais, concretos) e justiça social. O primeiro é o
modelo que só pode ser satisfeito sob condições ideais, como no suposto paraíso
comunista de Marx. Contudo, nossos conceitos circunstanciais de justiça e
injustiça social variam de acordo com a sociedade, um ponto no qual Hegel
estava certo, uma vez que para ele quem deve estabelecer o que é socialmente
justo e injusto é aqui a própria sociedade em seu tempo histórico. O marxismo
só é capaz de sustentar seu conceito de história como história da luta de
classes por meio de uma projeção simplificadora através da qual ele colapsa o
conceito de justiça social relativizado pelas condições históricas concretas em
um conceito idealizado de justiça social perfeita, válido em princípio, merecedor
de ser sempre buscado, mas que historicamente não podia ser concretizado. Ignorar
esse ponto nos faz imaginar que as classes inferiores sempre se encontraram em
uma surda e continuada luta por sua emancipação, por oposição à classe
dominante. Com isso se desconsidera a relatividade histórica da justiça social,
que se encontra na diferença entre uma injustiça que é sanável (e que vale a
pena discutir) e outra que é irremissível, a justiça ideal (que por isso é
aceita pelas partes como impossível de ser realizada em seu momento histórico,
situando-se para além de seu horizonte de discussão).
O que acabei de dizer pode ser melhor
esclarecido se considerarmos o caso da escravidão. Em termos ideais, sob um
standard suficientemente alto de justiça, qualquer forma de escravidão é
injusta, pois ela resulta de fatores altamente arbitrários de pouco ou nenhum valor,
como melhor preparo bélico, força física, número, violência ou pura sorte. Mas
se considerada sob a perspectiva de uma sociedade específica em certa época e
região, a escravidão pode considerada como justificada no sentido de não haver outra
maneira realista de se fazer sobreviver a sociedade. Esse foi geralmente o caso
das civilizações pré-cristãs. Um estado sem escravos era na antiguidade algo
impensável, pois não sobreviveria muito tempo sem que outros o escravizassem.
Considere, para exemplificar, uma revolta de
escravos como a liderada por Spartacus contra o governo romano. Eles se
revoltaram contra o mau tratamento. O ponto curioso é que nunca lhes passou
pela cabeça a ideia de abolir a escravidão. O que eles queriam era alcançar a
liberdade fugindo das garras do império para a Gália e, como tentaram fazer no
final, para a Sicília. Acabaram encurralados, sem poder cruzar o estreito. Depois
de os vencerem, os romanos crucificaram 6.000 revoltosos ao longo da Via Ápia de
modo a aterrorizar qualquer um que pensasse em fazer o mesmo. Os escravos liderados
por Spartacus agiram por puro desespero. Em outras circunstâncias, se pudessem,
teriam escravizado os romanos. Isso significa que existia na época um acordo
implícito entre as classes, um acordo que admitia a escravidão como um justo
entrevero no qual alguns ganham e outros perdem, sendo uma questão de destino a
quem iria competir o papel de senhor ou de escravo. Não há aqui qualquer
sentido em se falar de “luta de classes”, a menos que por uma falsa projeção de
standards morais ideais incompatíveis com as vicissitudes históricas.
Contra isso um defensor do marxismo
poderia objetar que os escravos não percebiam os seus direitos devido à
alienação. Mas essa não seria uma boa réplica. Considerando as estruturas socioeconômicas
e culturais dos povos europeus da época e as relações que vigoravam entre eles,
não havia outra opção fora de um natural aceite da escravidão. E a dura
consciência dessa falta de opção nada tinha a ver com alienação.
A constatação acima invalida
ilusões como a de uma “injustiça milenar”, mas não invalida o essencial da
dialética materialista. Afinal, se as novas bases econômicas tornam possível
acordos mais civilizados, menos determinados por fatores inexpressivos, então a
transformação das relações de produção e da superestrutura ideológica se torna
um imperativo moral: a luta de classes pode tornar-se justificada e até mesmo
capaz de demandar ações violentas.
Um segundo exemplo comprovando
minha tese diz respeito à situação dos camponeses pouco antes da revolução
industrial. Com o objetivo de refutar Marx, Ludwig von Mises notou que essa
situação não era melhor do que a dos operários nas fábricas. Mises a descreveu
de forma impressiva:
A verdade é que as condições no período que antecedeu
à Revolução Industrial eram bastante insatisfatórias. O sistema social
tradicional não era suficientemente elástico para atender às necessidades de
uma população em contínuo crescimento. (...) O número de pessoas à margem do
rígido sistema paternalista de tutela governamental cresceu rapidamente; eram
virtualmente párias. A maior parte delas vivia, apática e miseravelmente,
das migalhas que caíam das mesas das castas privilegiadas. (...) Milhares dos
mais vigorosos jovens desse estrato social alistavam-se no exército ou na
marinha de Sua Majestade; muitos deles morriam ou voltavam mutilados dos
combates; muitos mais morriam, sem glória, em virtude da dureza de uma disciplina
bárbara, de doenças tropicais e de sífilis.[21]
Mesmo sendo o que Mises escreveu verdadeiro, ele não alcançou seu
objetivo. Afinal, se considerarmos o que foi sustentado acima sobre acordos e crises,
o que ele diz de pouco serve como crítica à afirmação de Marx de que os
trabalhadores das fábricas estavam sendo duramente explorados. É que antes da
revolução industrial a situação de carência não permitia uma mudança e os
camponeses estavam sendo apenas idealmente, mas não circunstancialmente ou factualmente
explorados. Mas com a mudança da estrutura econômica essas pessoas, na condição
de trabalhadores, passaram a ser também factualmente explorados, dado que
condições concretas para a emancipação de sua classe passaram a ser dadas.[22]
As considerações acima acerca
de uma variação entre tempos de acordo e tempos de conflito entre as classes
sociais nos força a considerar um sério defeito nas teses de Marx e Engels de
que a história foi uma contínua luta de classes, deixando de distinguir entre o
conceito ideal e o conceito circunstancial de justiça social. Esse erro não foi
sem consequências, na medida em que encorajou a aplicações irrefletidas dessa
ideia por parte de ideólogos marxistas na produção dos grandes desastres
sociais do século XX.
8
Teoria da ferradura. Hoje em dia a mais
próspera explicação do espectro político com respeito às democracias ocidentais
é a que vem da teoria da ferradura, uma teoria óbvia demais para os que desejam
buscar pelos em casca de ovo. Os extremos da ferradura, embora separados, estão
bem próximos um do outro. Esse é o caso da esquerda radical (ex.: o socialismo
marxista-leninista) e da direita radical (ex.: o nazifascismo), também chamadas
de direita e esquerda carnívoras. Eles são dois extremos que se excluem, mas
que se encontram bastante próximos por suas posições totalitárias e
intolerantes. A principal diferença é que no marxismo-leninismo não existe
propriedade privada, tudo sendo (em teoria) controlado pelo estado, enquanto no
nazifascismo o estado permite a existência da propriedade privada e do livre
comércio, mesmo que de forma controlada. O meio da ferradura é o centro elitista
que só tem lugar nas democracias. O mais importante são as partes da ferradura
que se encontram mais próximas da junção de seus ganchos. Elas representam o progresso
civilizatório: a esquerda e a direita tolerantes, também chamadas de
vegetarianas. Elas se tornaram possíveis como resultado do desenvolvimento
humano e econômico. Elas rejeitam o totalitarismo e se dispõem a dialogar entre
si. Semelhante esquerda democrática pode ser melhor chamada de progressivista,
pois busca desenvolver meios de equalizar diferenças sem diminuir as
liberdades, coisas que dependem da melhoria das bases econômicas para se
instituírem. Sem desenvolvimento econômico, o progresso que envolve
essencialmente a superestrutura ideológica dificilmente irá se instaurar. Já a
direita democrática é melhor chamada de conservadorista, buscando assegurar
valores e instituições que o tempo demonstrou serem úteis e que podem merecer
resistir à transformação das bases econômicas. Os valores familiares,
tradições, instituições, a herança cultural e até mesmo o elemento religioso
podem encontrar aqui seu lugar.
Se admitirmos que o
desenvolvimento das bases econômicas é aquilo que torna possível a evolução da
superestrutura ideológica, então podemos esperar, sob o pressuposto de uma
economia em desenvolvimento em um estado propriamente democrático, uma
oscilação dialética entre a esquerda e a direita, uma espécie de diálogo frutífero
entre o progressivismo o conservadorismo. Ou seja: sempre que o desenvolvimento
econômico permite alterações ideológicas, podemos esperar acomodações na
superestrutura ideológica em direção a um aperfeiçoamento emancipador. Mas ideias
emancipatórias são algo que nunca foi aplicado antes, sendo por isso
experimentais, podendo revelar-se contraproducentes e implicar uma correção
conservadora.
Essa ideia pode ser exemplificada em ponto
menor naquilo que John Searle uma vez chamou de a sabedoria do bipartidarismo
norte-americano, válida ao menos para o seu tempo. Considere as oscilações históricas
entre o partido republicano (conservador) e o partido democrata (progressista),
cujos papéis ideológicos, aliás, também podem se inverter.[23] Historicamente os
partidos republicano e democrata alternaram-se em suas relações com o poder. O
que se nota nesse vai-e-vem é que cada partido que se alçava ao poder, além de
implementar novas ideias, tentava corrigir os erros do outro, geralmente o
partido democrata defendendo mudanças progressistas, enquanto o partido
republicano corrigia exageros na economia e na política. Ora, esse saudável zig-zag
da política realmente possuiu a natureza de uma progressão dialética, o que contribui
para corroborar minha tese de que a intencionalidade coletiva, assim como seus
produtos, reflete uma dialética cuja raiz originadora acaba sendo a
intencionalidade de cada indivíduo. Se estou certo, foi mérito de Hegel ter
descoberto esse mecanismo e de Marx o de ter enfatizado o caráter primário das
bases materiais de seu funcionamento.
[1] Karl Marx: Zur Kritik der
politischen Ökonomie (1859), prefácio. Trad. port. Para a crítica
a economia política (Boitempo 2024).
[2] Karl Marx: Para a crítica da economia política,
prefácio (1859).
[3] Friedrich Engels: “Carta a
Joseph Bloch” (21-22 setembro 1890).
[4] Ver Karl Marx: Ökonomisch-Philosophischen
Manuskripte (1844). Trad. port. Manuscritos econômico-filosóficos (Boitempo
2004).
[5] Karl Marx e Friedrich Engels: Die heilige
Familie (1845). A sagrada família (São Paulo: Boitempo 2003), p. 48.
[6] Karl Marx e Friedrich Engels:
Manifest der komunistichen Partei (1848). Manifesto do partido
comunista (São Paulo: Boitempo
2010), sec. 1, p. 40.
[7] Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto
do partido comunista, sec. 1, p. 40.
[8] Karl Marx: Die deutsche Ideologie (1846). Trad. port. A ideologia
alemã (ed. Grijalbo 1977) p. 46.
[9] Mikhail Bakunin: Estatismo
e anarquia (Ícone 2003), estatismo e dominação, p 18. Note-se que nem por
isso a noção de consciência de classe deixa de ser válida.
[10] Ludwig Feuerbach: Das Wesen des Kristemtums (1841).
Trad. port. A essência do cristianismo (Petrópolis: Ed. Vozes 2007),
Introdução, Capítulo I, pp. 43, 52.
[11] Parece preconceituoso pensar
aqui em promiscuidade. O ser humano tende a ser naturalmente polígamo
(Quinsey). A moralidade de nossa civilização mudou essa condição, mas parece
que a custo de distorções como infidelidade, pornografia, etc.
[12] Tese número 11: “Die Philosophen haben die Welt nur
verschieden interpretiert, es kömmt drauf an sie zu verändern“.
[13] Os mencheviques estavam mais
próximos de Marx, uma vez que acreditavam que sendo a Rússia um país ainda
semifeudal, ela deveria passar primeiro por um longo período de desenvolvimento
capitalista liberal, para só então partir para um modelo de socialismo
marxista.
[14] No capitalismo de estado o
governo passa a possuir o monopólio dos meios de produção, explorando o
trabalhador de modo a reinvestir seus ganhos no próprio desenvolvimento e a
redistribui-los entre burocratas privilegiados que formam a nova burguesia.
[15] Karl Popper: The
Open Society and its Enemies (Princeton: Princeton University Press 2013),
vol. II, 343-402 (Marx’s Prophecy).
[16] Allen Wood: Karl
Marx (London: Routledge 2004).
[17] Defensores contemporâneos de Marx, como
Jonathan Wolff, acreditam nessa alternativa. Ver Wolff: Why Read Marx Today?
(Oxford: Oxford University Press 2003), pp. 90-91.
[18] Stéphane Courtois et all: O livro negro do
comunismo: crimes, terror e repressão. (Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil 2019), p. 58.
[19] Ver The Open
Society and its Enemies, a.a.O., parte II
[20] Karl Marx e Friedrich Engels:
Manifesto comunista (São Paulo: Boitempo 2010), p. 40.
[21] Ludwig Von Mises: “Fatos e mitos sobre a revolução
industrial”. Mises Brasil 2013 (https://mises.org.br//article/1056/fatos-e-mitos-sobre-a-revolucao-industrial).
[22] Essa constatação nos faz
perguntar se não devemos repensar o conceito de alienação como sendo capaz de
ser também positivo. Quando o acordo entre as classes era ainda a melhor
solução, por exemplo, logo antes da revolução industrial, ou entre os servos e
nobres na Idade Média, a alienação religiosa deve ter tido uma função positiva,
organizando e facilitando a vida social das pessoas, o que de outro modo seria
impossível. Em nossa presente sociedade, fragmentada por arregimentações e
compartimentalizações as mais diversas, é quase impossível ao ser humano viver
socialmente sem assumir algum conjunto de crenças alienador de pelo menos
alguns aspectos da realidade.
[23] Por exemplo: o partido democrata foi antes da Guerra
Civil defensor da escravidão, diversamente do partido republicano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário