NOMES PRÓPRIOS PROPRIAMENTE EXPLICADOS
Claudio Ferreira Costa [1]
Resumo:
Nesse
artigo é sugerido o esboço de uma versão aprimorada da tradicional teoria
descritivista dos nomes próprios. Essa versão é capaz de explicar o conteúdo
informativo dos nomes próprios e o seu constraste, como designadores rígidos,
com as descrições definidas, além de responder de forma mais adequada aos
contra-exemplos usualmente apresentados contra o descritivismo.
Abstract:
This paper contains an outline of a more developed descriptivist theory of proper names. This version is able
to explain the informative content of proper names and why they are rigid
designators by contrast with definite descriptions. Moreover, it is able to
answer in a more convincing way the counterexamples usually presented agaist
descriptivism.
Palavras-chave: descritivismo, nomes próprios, referência.
Key
words: descritivism, proper names, reference.
Qual é o
mecanismo pelo qual nomes próprios como Aristóteles, Paris, Vênus etc. são
capazes de designar seus portadores? Segundo a tradicional teoria do agregado
de descrições, que foi sugerida nos escritos de Frege, Russell e Wittgenstein,
e que se encontra mais claramente exposta por John Searle, o que alguém tem em
mente com um nome próprio de maneira a ser capaz de usá-lo referencialmente é
exprimível por um subconjunto indefinido
de um conjunto aberto de descrições co-referenciais (minimamente, um
subconjunto contendo uma única descrição).[1]
Assim, um nome próprio como ‘Aristóteles’ pode vir no lugar de descrições
definidas (que geralmente começam com um artigo definido) como ‘o estagirita’,
‘o autor da Ética a Nicômano’, ‘o autor da Metafísica’,
‘o discípulo de Platão’, ‘o fundador do Liceu’, ‘o tutor de Alexandre’.
Para Saul Kripke, um problema com as
teorias descritivistas é que, embora um nome próprio se aplique necessariamente
ao seu portador em qualquer circunstância na qual ele exista, ele pode ser
aplicado ao seu portador sem que nenhuma das descrições definidas usualmente
associadas a ele necessariamente se aplique.[2]
Assim, podemos imaginar um mundo possível no qual Aristóteles existiu, mas
morreu ainda criança, não tendo sido discípulo de Platão e nem escrito nenhuma
das obras a ele atribuídas. E também podemos imaginar um mundo possível no qual
Aristóteles existiu, mas não nasceu em Estagira e sim em Roma, duzentos anos
mais tarde. Fica assim claro que nenhuma das descrições que associamos ao nome
próprio se aplica necessariamente. Além do mais, Kripke notou que uma pessoa
pode usar um nome próprio referencialmente, mesmo tendo em mente uma única
descrição, que pode ser indefinida ou mesmo incorreta. Assim, uma pessoa pode
se referir a Feynman, dele sabendo apenas que foi um cientista norte-americano, e alguém pode perfeitamente se
referir a Einstein pensando incorretamente que ele foi o inventor da bomba
atômica. Considere, ainda, o caso de nomes de personagens semificcionais, como
Robin Hood. Sabemos que deve ter existido alguém que esteve na origem desse
personagem, mas nada sabemos sobre ele, nem mesmo se foi um fora da lei ou se
realmente se chamava Robin Hood! Em todos esses casos a descrição não adquire
nenhum papel relevante.
A solução encontrada por Kripke, Keith
Donnellan, Michael Devitt e outros, foi causal. Esses filósofos concluíram que
aquilo que suporta a referência de um nome próprio é uma cadeia
causal-histórica externa, que para Kripke começa com a primeira denominação do
objeto através do nome, o seu “batismo”. Se eu profiro o nome ‘Aristóteles’ e
esse for o último elo de uma imensamente complexa cadeia causal-histórica que
começou com o batismo de Aristóteles em 384 a .C. em Estagira, isso é suficiente para eu
me referir a Aristóteles. Descrições podem acompanhar o meu uso do nome
‘Aristóteles’, mas sua função será meramente auxiliar. Embora essa hipótese
possa parecer fantástica, há muito ela se tornou a nova ortodoxia.
Dois tipos fundamentais de
descrições
A resposta que
gostaria de sugerir aqui consiste na defesa de uma forma mais sofisticada de
descritivismo. Ela se resume na descoberta de uma meta-regra cuja função é a de
selecionar elementos do agregado de descrições, provendo-lhe de uma estrutura
valorativa adequada. É só acrescido dessa meta-regra, exprimível na forma de
uma meta-descrição, que o descritivismo
ganha o poder explicativo que merece, tornando a hipótese causal-histórica
dispensável como meio de explicar a referência.
Para chegarmos onde queremos precisamos
primeiramente excluir as descrições fundamentais
das descrições auxiliares várias, que merecem ser descartadas. Considere, por
exemplo, descrições inteiramente contingentes como ‘o tutor de Alexandre’, ‘o
fundador do Liceu’, ‘o pai de Nicômano’, ‘o neto de Achaeon’ ou mesmo ‘o amante
de Herphylis’. Afinal, Aristóteles continuaria sendo ele mesmo, ainda que não
tivesse sido nada disso. Além disso, há muitas descrições definidas típicas,
como ‘o estagirita’ e ‘o mestre dos que sabem’, que tem função tipicamente
expressiva ou metafórica, fazendo muito pouco para caucionar a identificação do
objeto referido. Finalmente, existem descrições que são adventícias e
temporárias, como a usada pelo aluno que só sabe dizer de Aristóteles que ele é
‘o filósofo mencionado pelo professor’. Chamo a todas essas descrições de
auxiliares porque, apesar de ajudarem na identificação do portador do nome e
apesar de constituírem parte secundária de seu conteúdo informativo, elas são,
como veremos, ultimadamente prescindíveis.
Minha sugestão é a de que as descrições
fundamentais para a referência do nome próprio são de um outro tipo e que as
formas tradicionais da teoria do agregado são enganosas, em parte por seus
proponentes terem sido desviados do que é relevante por terem recorrido a
exemplos de descrições auxiliares, como ‘o tutor de Alexandre e o fundador do
Liceu’ para Aristóteles (Frege) e ‘a criança retirada do Nilo pela filha do
faraó’ para Moisés (Wittgenstein).
Minha proposta é a de que as descrições
realmente fundamentais são expressões lingüísticas de duas espécies de regras
identificadoras do objeto, que são:
A. REGRA
LOCALIZADORA: que estabelece a localização
e carreira espacio-temporal do portador do nome próprio,
B. REGRA
CARACTERIZADORA: que estabelece uma caracteriza-ção
daquilo que consideramos como mais
relevante no portador do nome próprio, de modo a justificar nossa aplicação
do mesmo.
Assim, para um nome próprio como
‘Aristóteles’ a descrição ‘a pessoa nascida em Estagira em 384 a .C., que viveu grande
parte da sua vida em Atenas e que faleceu em Chalcis em 322 a .C.’ exprime
resumidamente nossa regra localizadora de Aristóteles no espaço e no tempo. Já
a descrição que permite caracterizar Aristóteles por aquilo que nele
consideramos importante a ponto de justificar nossa identificação através do
nome próprio pode ser resumida como ‘o autor do conteúdo relevante do opus aristotélico’.
Mas o que justifica nossa aposta nas regras
localizadora e caracterizadora como sendo as regras fundamentais? Minha
resposta consiste simplesmente em apelar para as intuições de nossa linguagem
natural. Em atenção a isso J. L. Austin, o filósofo da linguagem ordinária,
aconselhava-nos o uso dos melhores dicionários como um método para encontrarmos
distinções semânticas que pudessem importar filosoficamente. Como nomes
próprios raramente são dicionarizados, falta-nos esse recurso. Mas como eles
são muitas vezes enciclopedizados, essa falta é sobejamente compensada quando
procuramos as condições de referência dos nomes próprios oferecidas em enciclopédias. Com
efeito, as enciclopédias geralmente explicam o que os nomes próprios querem
dizer a partir de descrições fundamentais e não das descrições auxiliares. Eis
o que encontro sobre o nome ‘Aristóteles’ em meu Penguin Dictionary of Philosophy, que escolho por ser o mais conciso:
(384 - 322 a .C.) Nascido em Estagira
no norte da Grécia. Aristóteles produziu o mais completo e poderoso sistema
filosófico da antiguidade. (Segue-se uma breve exposição da vida de
Aristóteles, seguida de um resumo das principais obras...)
Essa descrição concentra-se nos critérios
identificadores dos tipos A e B. Se consultarmos a elucidação lexical de outros
nomes próprios, não só de pessoas, mas também de coisas, como ‘Taj Mahal’,
‘Paris’, ‘China’ e ‘Rio Amazonas’, encontraremos resultados semelhantes.
Para tornar mais claro o caráter
fundamental das descrições localizadora e caracterizadora, tente imaginar um
nome próprio usual com relação ao qual as descrições auxiliares se aplicam, mas
sem que suas descrições fundamentais tenham aplicação alguma. Imagine, por
exemplo, um Aristóteles que nunca teve nada a ver com a filosofia ou com a
ciência, que não nasceu na Grécia antiga e que teve uma localização, carreira e
origem espacio-temporal completamente diversa daquela tida pelo Aristóteles
filósofo. Imagine, glosando um exemplo de John Searle, que a pessoa chamada
pelo nome ‘Aristóteles’ tenha sido apenas um vendedor de peixes veneziano
iletrado que viveu na Renascença tardia e que nunca teve nada a ver com a
filosofia. Certamente não o reconheceremos como sendo o nosso Aristóteles, mas
alguma outra pessoa com o mesmo nome! [3]
Um ponto complementar é que na absoluta
ausência de aplicação das descrições fundamentais as descrições auxiliares
deixam de ser úteis, pois elas só auxiliam por força de sua associação com as
descrições fundamentais. Para demonstrar isso tente imaginar que as descrições
auxiliares que geralmente associamos a Aristóteles se apliquem ao nosso
vendedor de peixes: descobrimos que ele ensinou alguém chamado Alexandre, que
ele fundou um Liceu e foi chamado de ‘o mestre dos que sabem’. Nenhuma dessas
estranhas coincidências seria capaz de nos fazer admitir que o vendedor de
peixes seja realmente aquele que entendemos pelo nome ‘Aristóteles’. Afinal, o
Alexandre que ele ensinou não pode ter sido o maior conquistador de todos os
tempos, não é possível que o vendedor de peixes iletrado tenha verdadeiramente
fundado o Liceu aristotélico, nem que o apelido ‘o mestre dos que sabem’ seja o
mesmo que foi usado por Dante na Divina
Comédia. Pode ser que se descubra então que esse Aristóteles vendedor de
peixes era um fanfarrão que se acreditava sábio, que os nomes em questão eram
apelidos, que o Alexandre em que ele ensinou foi um pescador, que o Liceu que
os amigos deram à sua tenda e que a descrição ‘o mestre dos que sabem’ tenha
sido ironicamente usada por eles... Mesmo que todas as descrições auxiliares
fossem verdadeiras, sem as descrições fundamentais elas não seriam capazes de
produzir mais do que uma senação de estranha coincidência e persiflagem do
real. A conclusão será sempre a mesma: descrições auxiliares só serão capazes
de contribuir para a referência se forem articuladas dentro de um contexto
definido pelas próprias descrições fundamentais que complementam, tornando-se
inúteis na ausência disso.
A regra de
identificação do nome próprio
Uma vez que
encontramos as descrições fundamentais, a questão seguinte é saber como elas
são exigidas para a aplicação de um nome próprio qualquer.
Uma primeira consideração a ser feita é
que para a identificação do portador do nome próprio a satisfação de “A &
B”, ou seja, da conjunção das condições, é desnecessária. Há razões conclusivas
para se pensar assim. A primeira é que há nomes próprios que constitutivamente
possuem apenas uma regra caracterizadora. Considere o nome ‘Universo’. A
descrição caracterizadora é ‘tudo o que existe’. Mas pelo próprio fato de ser
tudo o que existe (existiu e existirá) o universo não se encontra nem no espaço
nem no tempo. Há também nomes próprios que só possuem regra localizadora.
Digamos que o centro de um dado círculo seja casualmente denominado ‘Z’. Aqui a
localização é o que importa, pois não há razão para a sua consideração.
Outra razão para se pensar que a conjunção
“A & B” é desnecessária vem da consideração de situações contrafactuais.
Imagine, pois, um mundo possível m1,
muito próximo ao nosso, no qual Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a .C., filho de Nicômano,
o médico da corte de Felipe, mas que ele morreu de febre aos dezessete anos, em
sua viagem para Atenas, não chegando a escrever o opus aristotélico. Nesse caso admitiremos talvez que nosso
Aristóteles “em potência” existiu em m1.
Nesse caso apenas a regra localizadora é aplicada e o nome próprio ‘Aristóteles’
encontra a sua designação. Além disso, podemos conceber um mundo possível m2, também muito próximo ao nosso, no
qual Aristóteles viveu em Roma mais de duzentos anos mais tarde, tendo lá
escrito o seu opus. Nesse caso
tenderemos a dizer que m2 também teve
o seu Aristóteles, embora ele tenha existido em lugar e época diversos. Podemos
até mesmo imaginar que os indivíduos aqui imaginados não se chamavam
Aristóteles, pois descrições do tipo ‘a pessoa de nome N’ também são auxiliares
(se em um mundo possível o autor do opus aristotélico
se chamasse Pitacus, reconheceríamos Pitacus como sendo o nosso Aristóteles).
Do fato de que as condições A e B não são
isoladamente necessárias podemos concluir que nem a descrição localizadora nem
a descrição caracterizadora são essenciais, se por essencial se entende algo
que é necessário. Podemos, no entanto, conceber que a satisfação de uma
disjunção “A ou B” das regras-descrições fundamentais seja uma condição
minimamente capaz de dotar os nomes próprios de referência. Mesmo que isso seja
possível, parece que realmente não podemos imaginar que um nome próprio se
aplique em um mundo possível em que “~A & ~B” seja o caso, ou seja, em que
nenhuma das regras-descrições fundamentais se aplique. Esse é o caso do exemplo
já considerado de Searle, em que ele imagina um especialista em Aristóteles que
veio nos dizer que descobriu que Aristóteles não foi nem grego nem filósofo,
mas um obscuro vendedor de peixes veneziano que viveu na renascença tardia. Essa proposta seria escandalosa se não fosse
ridícula, pois é claro que esse vendedor de peixes não pode ser nosso
Aristóteles. O mesmo aconteceria se alguém nos dissesse que Aristóteles foi, na
verdade, um armador grego que viveu no século XX, foi amante de Maria Callas e
se casou com Jackeline. Afinal, Aristóteles Onassis não satisfaz nem a
descrição localizadora nem a descrição caracterizadora para o estagirita.
Nesse ponto pode ser objetado que as
condições A e B não precisam em si mesmas ser inteiramente satisfeitas. Um nome
próprio pode se aplicar ao seu portador mesmo quando as descrições fundamentais
se aplicam apenas parcialmente ou quando uma só se aplica e mesmo assim se
aplica apenas parcialmente! Afinal, no mundo m1, no qual Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a .C., mas morreu aos
dezessete anos, não só a condição caracterizadora não está sendo satisfeita,
mas a condição localizadora está sendo apenas parcialmente satisfeita, já que
ele não teve a carreira espacio-temporal esperada: ele não viveu em Atenas, não
viajou para Lesbos nem morreu em Chalcis em 322 a .C. Igualmente, no mundo
possível m2, em que Aristóteles viveu
em Roma mais de duzentos anos depois, podemos conceber que ele tenha escrito
apenas a Ética a Nicômano, a Metafísica e
alguns outros trabalhos menores. Se não houver nenhum Aristóteles grego para
competir com ele, nós tenderemos a admitir Aristóteles existiu realmente em m2, mesmo que grande parte da condição B
não esteja sendo satisfeita e nada da condição A tenha sido satisfeito.
É fácil, porém, responder a essa objeção.
Basta exigir satisfação suficiente e
não mais completa do termo ou dos termos da disjunção.
Finalmente, é necessário considerar o caso
do mundo possível no qual existem dois ou mais objetos que satisfazem as condições
fundamentais. Nesse caso o verdadeiro objeto de referência do nome próprio será
aquele que a tiver satisfeito as descrições fundamentais de modo mais completo. Se no mundo m3 além do Aristóteles de Estagira tivesse existido um filósofo
romano com o nome de Aristóteles que tivesse escrito o opus aristotélico durante a Idade Média, nós veríamos nisso uma
coincidência milagrosa. Mas preferimos considerar o Aristóteles de Estagira
como sendo o nosso Aristóteles, uma vez que ele satisfaz a condição de localização
além da condição de caracterização.
Juntando as condições fundamentais e as
condições adicionais recém-consideradas estamos em condições de estabelecer a
forma de qualquer regra de identificação de nome próprio. Eis é estabelecida
pelo que chamo de uma regra meta-descritiva, uma regra de regras, posto que as
descrições dos agregados também são regras. Essa regra meta-descritiva, uma
meta-descrição, é aquela que organiza os agregados de regras-descrições de
qualquer nome próprio eventualmente dado. Eis como ela pode ser apresentada:
RMD: Um nome
próprio N se aplica a objetos da classe C see
a condição A para N e/ou a condição B para N for(em) suficientemente satisfeita(s),
sem que haja nenhum outro objeto da classe C que chegue a satisfazê-la(s) na
mesma medida.
Substituindo as variáveis pelos dados e
descrições localizadora e caracterizadora de qualquer nome próprio que venhamos
a escolher, nós estabelecemos o que pode ser chamado de a regra de identificação (RI) para esse nome. Uma regra que
estabelece as condições necessárias e suficientes para a sua aplicação.
Assim, se RMD for aplicada ao nome
‘Aristóteles’ teremos a seguinte regra de identificação para esse nome próprio:
RI-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ se aplica a seres humanos em um mundo possível
qualquer see nesse mundo existiu um
ser humano que nasceu em Estagira em 384 a .C., viveu grande parte de sua vida em
Atenas e morreu em Chalcis em 322
a .C. e/ou ele foi o autor das grandes idéias contidas no
opus aristotélico, satisfazendo essa
condição (ou essas condições) suficientemente e mais do que qualquer outro ser
humano.
É interessante notar que é possível parafrasear essa regra usando os
artifícios da teoria russelliana das descrições. Para tal precisamos primeiro
transformar as descrições fundamentais em predicados. Assim, se o predicado
‘…ser humano que nasceu em Estagira em 384 a.C., viveu a maior parte de sua
vida ativa em Atenas e morreu em Chalcis em 322 d.C.’ for simbolizado por A, o
predicado ‘...autor das grandes ideias do opus aristotélico for simbolizado por
B, se o predicado ‘…gostava de cachorros’ for simbolizado por C, nós podemos
(de modo simplificado) formalizar a sentença “Aristóteles gostava de cachorros”
como:
Ǝx ((Ax ᴗ Bx) & (y) ((Ay ᴗ By) → y = x) & Cx).
Aqui o requisito de existência é o da disjunção das condições fundamentadoras suficientemente satisfeitas, enquanto o requisito de unicidade substitui o requisito de maior satisfação de x. Essa paráfrase sublinha os aspectos formais.
A regra de identificação do nome próprio
recém-exposta é intuitiva. Se a aplicarmos ao caso do filósofo árabe medieval
que em um mundo possível muito próximo ao nosso escreveu o opus aristotélico, veremos que ele satisfaz unicamente e
suficientemente a condição B, mas não a condição A, o que já basta para que ele
satisfaça a regra de identificação para Aristóteles. Contudo, se nesse mundo
possível também houvesse outro Aristóteles nascido em Estagira em 383 a .C., filho do médico
Nicômano, mas falecido jovem, antes de se tornar filósofo, ou se alguma outra
pessoa tivesse escrito o conteúdo da Ética
a Nicômano na Grécia antiga,
teríamos razões para repensar nossa decisão de nele identificar o pensador
árabe medieval como sendo Aristóteles, pois outra pessoa estaria satisfazendo
suficientemente a disjunção de condições e talvez até mais do que o filósofo
medieval. Se a medida da satisfação dos objetos concorrentes for
aproximadamente a mesma pode não haver como decidir, o que significa não
teremos como aplicar a regra, devendo concluir que Aristóteles não existe,
posto que na lógica dos conflitos criteriais 1 + 1 = 0.
Esse caso recorda o paradoxo do navio de
Teseu relatado nos manuais de filosofia. Digamos que esse navio seja batizado
conm o nome de ‘Calibdus’. No curso dos anos Teseu repôs pouco a pouco as
partes do seu navio até que, no final, todas elas foram substituídas. Contudo,
alguém decidiu então recondicionar as partes antigas e com elas construir outro
navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém pergunte: “Qual dos dois
navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos bem o que responder. A
primeira vista pode parecer que ambos são o navio de Teseu. Mas isso seria
contraditório, pois um termo singular não pode se referir a mais de um objeto.
Minha proposta é a de que a questão de saber qual dos navios é Calibdus é
indecidível devido a um conflito criterial que se dá entre as duas
regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio satisfaz uma regra
localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído em
um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma certa carreira
espaço-temporal. A segunda regra, satisfeita pelo segundo navio, é
caracterizadora. Ela nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído
com certo material. Não temos, por isso, como decidir.
Nesse ponto alguém poderá, com razão,
objetar que a regra caracterizadora é mais complexa. Ela inclui características
funcionais e estruturais que foram preservadas em ambos os navios. Como
consequência, parece que o primeiro navio deve ser o Calibdus, pois ele
satisfaz mais completamente as regras-descrições fundamentais. Contudo, podemos
equilibrar essa diferença aumentando a rapidez da substituição das partes
velhas pelas novas, de modo a encurtar a carreira espaço-temporal do objeto até
que a substituição das peças se complete. Se toda a seqüência de substituições
de partes tivesse lugar em apenas três meses, teríamos dúvidas. E se ela
tivesse lugar em uma semana ou em um dia? Nesses casos com certeza
consideraríamos o segundo navio como sendo o de Teseu e não mais o primeiro,
dizendo que ele foi primeiro desmontado e depois remontado em outro lugar.
Há nisso tudo um elemento de vaguidade
capaz de incomodar alguns. Contudo, a vaguidade, a indeterminação semântica, é
um pouco como a indeterminação na física quântica: ela é irredutível. Ela é um
elemento geralmente irredutível da linguagem, posto que simplesmente
constitutivo de nossa relação com aquilo que pretendemos identificar como a
referência de nossos conceitos. Ela em
nada atrapalha o funcionamento da linguagem, a menos que se transforme em
imprecisão. Se quisermos ter uma teoria dos nomes próprios precisaremos
abandonar o “preconceito da pureza cristalina” (Wittgenstein) e acostumar-nos
com isso.
Problemas
insolúveis da teoria causal-histórica
Podemos ainda
nos perguntar se o metadescritivismo não deveria incorporar alguma coisa da
concepção causal-histórica, transformando-se em um metadescritivismo causal.[4]
Meu ponto de vista é o de que isso é desnecessário. Que geralmente existe uma
cadeia causal é um fato que mesmo descritivistas como P. F. Strawson há muito
reconheceram. A novidade da concepção causal-histórica é a de que ela ambiciona
primariamente explicar a referência dos nomes próprios através dessa cadeia
causal. O que eu contesto é precisamente essa ambição, sugerindo que o poder
explicativo do recurso à cadeia causal externa, se ela existir, não será
primário, mas derivado da explicação que recorre a descrições expressando
regras cognitivas ou pré-cognitivas através das quais o objeto de referência é
identificado. Além disso, parece claro que nomes próprios podem ter significado
sem que o elemento causal-histórico exista, como o demonstram os muitos
exemplos de nomes próprios vazios, como, digamos, ‘Eldorado’. Esse é um nome
próprio ordinário. Os espanhóis ouviram dos índios detalhes sobre uma cidade
riquíssima, situada em algum lugar ao leste da cordilheira dos Andes, embora
nunca a tenham encontrado. Também acontece de nomes próprios possuirem
referência sem que tenha sido formada qualquer cadeia causal. Um caso é o de
nomes que foram criados antes do aparecimento de seus portadores. ‘Brasilia’,
por exemplo, é o nome de uma cidade planejada e nomeada antes de ter sido
construída, o que torna impossível que o objeto seja a causa determinante das
aplicações iniciais desse nome. Outro caso é o de nomes próprios proferidos sem
que haja cadeia causal alguma, mas que foram inferidos. Sabemos, por exemplo,
que o referente do nome ‘Ramsés VIII’ deve ter existido por volta do século
oitavo a. C., pois embora não saibamos nada sobre esse faraó, sabemos algo
sobre Ramsés VII e Ramsés IX. Certamente, quando pronuncio o nome ‘Ramsés VIII’
meu proferimento não está no final de uma cadeia causal-histórica...
Um teste para saber se a incorporação de
alguma cadeia causal é necessária à explicação da função referencial dos nomes
próprios consiste em considerar se há exemplos de proferimentos em que o falante
não é bem sucedido em estabelecer qualquer vinculação causal entre o nome
próprio que usa e a sua referência, embora esse nome próprio seja em geral
causalmente vinculado a sua referência. Se por causa disso a referência
desaparece é sinal de que ela depende necessáriamente da associação causal.
Imagine, pois, que um psicótico em um sanatório afirme repetidamente que os
extraterrenos irão pousar na cidade de Saratoga, na California. Ele associa ao
nome ‘Saratoga’ ao menos a descrição ‘uma cidade na Califórnia’. De fato,
existe uma pequena cidade na Califórnia com esse nome. Mas suponhamos que o
nome Saratoga tenha sido invocado em sua mente por ter causalmente ouvido por
ele em um documentário sobre a batalha de Saratoga na guerra da independência
americana, uma batalha que obviamente se deu na costa leste dos EUA. Como ele
também ouviu a palavra ‘Califórnia’, ele entendeu que Saratoga é uma cidade
situada na Califórnia... Não há, portanto, nenhuma cadeia causal (ao menos em
meu exemplo) relacionando a cidade de Saratoga com o nome ‘Saratoga’
pronunciado pela pessoa. A questão é: a pessoa logrou referir-se ao portador do
nome? Embora a linguagem natural não nos forneça uma intuição positiva forte
para casos inusitados como esse, a resposta é que podemos dizer que sim, já que não somos forçados a dizer que não.
Podemos dizer que a pessoa foi bem sucedida em se referir à cidade de Saratoga,
embora essa referência tenha sido meramente
coincidental. Não há, portanto,
nenhuma intuição lingüística que nos obrigue a introduzir um elemento causal no
descritivismo, mesmo sendo matéria de fato que as referências sejam em geral
causalmente implicadas.
O significado
dos nomes próprios
Essa solução
permite responder ao problema do significado dos nomes próprios, entendendo a
palavra ‘significado’ no sentido fregeano de ‘sentido’ (Sinn) ou ‘conteúdo informativo’ (informatives Gehalt) ou ainda (em frases) ‘valor epistêmico’ (Erkenntniswert). Em que ele consiste?
Certamente, não na forma da regra meta-descritiva (RMD), que é a mesma para
cada nome próprio; também não nas descrições auxiliares, embora se possa dizer
delas que formam franjas de significação. O significado de um nome próprio deve
consistir centralmente naquilo que lhe distingue dos outros nomes próprios, a dizer,
de suas regras-descrições localizadora e caracterizadora. Quem realmente sabe o
significado do nome próprio é quem, em maior ou menor medida, domina essas
regras, sendo essa pessoa o que chamo de usuário
privilegiado do nome. Outras pessoas,
como aquele que sabe apenas que Aristóteles foi um pensador grego (descrição
indefinida) ou que acredita que ele foi o descobridor da lei da alavanca
(descrição errônea, mas convergente) podem ser capazes de inserir o nome
‘Aristóteles’ corretamente no discurso, sabendo mesmo algo de seu sentido, mas
não sabem de maneira suficiente o que ele significa, que deveria ser suficiente
para a identificação do seu portador, devendo assumir que usuários
privilegiados existem e que estes seriam capazes de completar ou corrigir o
pouco que eles sabem.
Essa constatação nos permite admitir que o
conhecimento do significado de um nome próprio não precisa ser propriedade de
cada um dos usuários. Ele pode ser propriedade apenas dos usuários
privilegiados. Além disso, eles não precisam individualmente conhecer todo o
significado do nome, sendo possível que cada um deles tenha acesso a uma parte
diferente do significado. É possível até que parte do conteúdo informativo do
nome próprio seja mesmo armazenada fora de mentes humanas, conquanto ela possa
ser utilizada por elas, o que ainda assim demandará um elemento
cognitivo-descritivo prévio. A condição a qual queremos chamar atenção é apenas
a de que o significado conhecido do nome próprio – a sua regra de identificação
– não precisa ser propriedade de cada usuário, sendo propriedade necessária da
comunidade lingüística formada pelo conjunto de seus usuários, podendo ser
atualizada ao menos na soma dos elementos desse conjunto.
Minha sugestão, pois, é que pessoas que só
conseguem associar ao nome descrições auxiliares ou genéricas ou mesmo
insuficientemente corretas, só são capazes de se referir ao objeto de um modo dependente ou insuficiente, por se fiarem na existência de usuários privilegiados do nome. Para o nome Aristóteles esses
usuários são especialistas, conhecedores da história da filosofia ou da
cultura. Só eles, em conjunto ou isoladamente, são capazes de se referir a esse
filósofo de modo independente ou suficiente, por associarem seu nome a
descrições fundamentais. Há aqui um equivalente ao que Putnam chamou de divisão
do trabalho lingüístico, só que essa divisão possui caráter potencialmente ou
atualmente cognitivo, sendo inteiramente compatível com o descritivismo.
Tendo isso em mente, em situações nas
quais os usuários privilegiados do nome próprio desaparecessem e com eles os
próprios meios de se obter o conhecimento das descrições fundamentadoras, o
significado do nome próprio também se perderia. Imagine que após uma guerra
atômica restasse apenas uma comunidade de nativos em algum lugar do mundo que
fossem capazes de falar inglês, mas que quase nada soubessem da cultura
norte-americana. Digamos que um deles encontre em uma folha de papel a única
referência restante a Feynman no mundo inteiro, a frase “Richard Feynman foi um
grande conhecedor de Tannu Tuva”. Claro que nós mesmos somos capazes de saber
que ao pensar essa descrição ele se refere insuficientemente ao criador da
eletrodinâmica quântica (basta digitarmos no Google ‘Richard Feynman’ e ‘Tannu
Tuva’). Mas não é isso o que quero considerar. O que quero é apontar para o
fato de que esses nativos, em sua sociedade, não serão capazes de fazer nada
com a descrição encontrada, posto que as condições últimas de referência se
tornaram para eles irrecuperáveis: a comunidade lingüística à qual eles
pertencem não possui as regras-descrições fundamentais para a identificação do
portador do nome Richard Feynman, não possuindo portanto, a regra de
identificação para esse nome próprio. Como resultado, eles próprios não serão
capazes de fazer coisa alguma com esse nome.
Essas sugestões permitem-nos explicar
porque alguém pode se referir a Feynman através de uma descrição indefinida e a
Einstein através de uma descrição errônea. Minha sugestão é que essas pessoas
são capazes de fazer uma referência incompleta, um gesto em direção à
referência, e que isso muitas vezes é tudo o que precisamos. Mas para que tal
aconteça é preciso ao menos duas coisas. Primeiro, é preciso que a descrição
que a pessoa associa ao nome próprio seja convergente,
entendendo por descrição convergente aquela capaz de identificar ao menos a
classe C a que pertence o portador do nome. Se alguém crê que Feynman foi um
grande cientista, essa descrição indefinida é convergente, pois já contém
informação sobre Feynman (um homem, um cientista). Se alguém crê que Einstein foi o inventor da
bomba atômica, mesmo que essa descrição seja errônea, ela nem por isso deixa de
ser convergente, pois ela já implica que Einstein foi um ser humano e que ele
foi um cientista, o que é verdadeiro. O
mesmo não ocorreria se as descrições fossem divergentes, por exemplo, se alguém
acredita que Feynman é o nome de uma marca de perfume ou que Einstein é o nome
de uma pedra preciosa. Aqui os portadores dos nomes não pertencem à classe
identificada.
A segunda condição é a de que a pessoa
possua conhecimento tácito do mecanismo de referência dos nomes próprios, da
regra meta-descritiva. Com isso ela sabe ao menos que aquilo que sabe das
descrições fundamentadoras exigidas é insuficiente. Com essas duas condições
satisfeitas, com o pouco saber convergente que lhe está disponível, com a
consciência que ela tem de sua própria falta de conhecimento, ela já será capaz
de inserir o nome próprio adequadamente no discurso, em contextos que reconhece
como sendo suficientemente vagos, como tantas vezes acontece. Eis é a razão
pela qual alguém pode, em um certo sentido (insuficiente) da palavra, se
referir a Feynman sabendo apenas que ele foi um grande cientista e a Einstein
acreditando que ele foi o inventor da bomba atômica. Na verdade ele está
inserindo o nome corretamente no discurso de modo a fazer uma referência
incompleta, posto que em última análise dependente da comunidade lingüística, a
qual possui recursos para completar a referência.
Porque nomes próprios são
designadores rígidos
A solução
sugerida também permite responder à objeção de que a teoria do agregado não dá
conta da propriedade do nome próprio de ser um designador rígido, que é mais intuitivamente definida como sendo a
de se aplicar a um mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto
exista.[5]
Para encontrarmos a resposta basta considerarmos atentamente as regras de
identificação dos nomes próprios resultantes da aplicação de RMD. No caso do
nome próprio ‘Aristóteles’ a regra estabelece uma identidade entre o nome e uma
descrição complexa, que é a seguinte:
o ser humano
que satisfaz suficientemente e mais do que qualquer outro as condições de ter
nascido em Estagira em 384 a.C... e/ou de ter sido o autor das grandes ideias
do opus aristotélico.
A identidade é
analítica ou necessária, valendo para todos os mundos possíveis. A descrição
aqui apresentada, que exprime a regra de identificação para Aristóteles, é por
sua vez um designador rígido: ‘o ser humano que satisfaz suficientemente e mais
do que... o autor das grandes ideias do opus aristotélico’ aplica-se em todos
os mundos possíveis nos quais Aristóteles existe.
Certamente, haverá mundos possíveis nos
quais não saberemos se a regra de identificação para um nome próprio é
minimamente satisfeita ou não (digamos que em um deles na corte de Felipe em
Estagira em 384 a .C.
tenha nascido um tal de Aristóteles, filho de um médico da corte, mas que ele
tenha morrido logo após o nascimento... e que ninguém tenha escrito o opus aristotélico). Mas isso sugere
apenas que a semântica dos mundos possíveis deve ser reescrita de modo a dar
lugar a casos indecidíveis. Para dar conta disso o designador rígido precisa
ser redefinido como aquele que se aplica a todos os mundos possíveis nos quais
o objeto definidamente existe.
Com isso fica fácil explicar porque nomes
próprios são designadores rígidos do ponto de vista do descritivismo. É que as
regras de identificação dos nomes próprios, quando expressas por descrições,
originam descrições rígidas, também elas aplicáveis em todos os mundos
possíveis nos quais esse objeto definidamente existe. A descrição definida
acima exprime também um critério definitório de aplicação do nome próprio, ou
seja, a condição necessária e suficiente para a sua aplicação. Dizer que
Aristóteles definidamente existe em
um mundo possível é o mesmo que dizer que a regra de identificação para esse
nome próprio é aplicável nesse mundo, pois a sua aplicabilidade em um mundo
possível define o que entendemos pela existência do seu objeto de referência
nesse mundo.
Porque
descrições definidas são designadores flácidos
A introdução de
regras de identificação para nomes próprios como resultado da aplicação de RMD
nos permite explicar não só porque nomes próprios são designadores rígidos, mas
porque as descrições definidas que a eles associamos são em geral designadores
flácidos, ou seja, designadores que se referem a objetos diferentes em
diferentes mundos possíveis. Considere a descrição definida ‘o fundador do
Liceu’. Podemos conceber um mundo possível no qual o nome ‘Aristóteles’ se
aplica a Aristóteles, que nele existiu, mas no qual a descrição ‘o fundador do
Liceu’ se aplica a outra pessoa, digamos, ao seu discípulo Teofrasto, que nesse
mundo foi quem realmente fundou o Liceu. E também podemos conceber um mundo
possível em que o nome ‘Aristóteles’ se aplica a Aristóteles, que nele existiu,
mas no qual a descrição ‘o fundador do Liceu’ não se aplica, pois nesse mundo
nenhum Liceu foi fundado. Por que é assim?
A resposta encontra-se à mão. Sabemos que
nenhuma das descrições do agregado, mesmo as descrições fundamentais, se
encontra necessariamente vinculada à aplicação do nome próprio, caso o objeto a
ser referido pelo nome próprio exista. O que necessariamente se encontra
vinculado à aplicação do nome próprio, caso a sua referência exista, é apenas a
regra de identificação do nome próprio, que como um todo estabelece o que
chamo, seguindo Wittgenstein, de critério
definitório para a sua aplicação. O
critério definitório ou primário é aquele que, uma vez dado, garante a
existência daquilo de que é critério. Ele se distingue do sintoma ou critério secundário, que uma vez dado apenas torna
provável a existência daquilo de que é critério.[6]
O contraste entre a descrição que esprime a regra de identificação do nome
próprio e as descrições constitutivas do agregado por ele abreviado é uma
distinção entre critério definitório e sintoma ou critério secundário. Sempre
que a descrição da regra de identificação é satisfeita ela garante a aplicação
do nome próprio, o que o torna um designador rígido, posto que aplicável em
qualquer mundo possível no qual seu objeto a ser referido exista. Mas quanto a
qualquer das descrições do agregado, mesmo as fundamentais, a sua satisfação
apenas probabiliza a aplicação do nome próprio, o que as impede de serem
aplicadas em todos os mundos possíveis nos quais o objeto referido pelo nome
próprio existe. O resultado disso é que as descrições do agregado são flácidas,
posto que podem se aplicar a outros objetos, que não o referente do nome
próprio, em outros mundos possíveis, ou simplesmente a nenhum objeto mesmo em
um mundo possível no qual o objeto referido pelo nome próprio exista e
vice-versa.
As descrições do
agregado não precisam se aplicar, não só em outros mubdos possíveis (em
situações contra-factuais), mas mesmo ao nosso próprio mundo. Eis porque uma
descrição definida como ‘o fundador do Liceu’ é um designador flácido.
A evidência a favor dessa sugestão é que a
oposição nome próprio rígido vs.
descrição definida flácida se mantém apenas aonde as descrições vem associadas
a nomes próprios. Isso nos permite prever que descrições definidas que não se
encontram associadas a nomes próprios, especialmente quando são fundamentais,
devem funcionar como designadores rígidos. Considere, por exemplo, a descrição
‘o terceiro regimento de cavalaria de Sintra’. Ela exprime as regras de
localização e caracterização do regimento, que por sua vez não possui um nome
próprio. Por ser assim ela se nos apresenta como uma descrição definida rígida,
aplicando-se em qualquer mundo possível no qual esse regimento exista, mesmo
que composto por diferentes cavaleiros e cavalos. Ela é rígida porque exprime
uma regra de identificação que não está associada a nenhum nome próprio, não
podendo por isso haver divergência entre o objeto de aplicação dessa regra e o
objeto de aplicação de um nome próprio ao qual ela se vincule em algum mundo
possível. Outros exemplos de descrições naturalmente rígidas são: ‘o
assassinato do arquiduque Ferdinand em Sarajevo em 1914’, ‘o ponto mais
oriental da América Latina’ e ‘a última idade do gelo’, que designam
respectivamente um evento, um local e um processo.
Respostas a contra-exemplos
A teoria
meta-descritivista dos nomes próprios recém-esboçada permite respostas mais
convincentes aos contra-exemplos ao descritivismo. Responderei aqui a apenas
alguns deles.
Consideremos primeiro o caso inicialmente
mencionado de nomes semificcionais, como Robin Hood. Kripke sugeriu que esses
nomes demonstram a verdade da concepção causal-histórica, pois embora não
tenhamos descrições definidas capazes de identificar seus portadores, sabemos
que eles se referem a algum objeto que foi a fonte causal desses nomes.
Nossa resposta começa com a constatação de
que nomes semi-ficcionais abreviam dois tipos de descrições: as não-ficcionais,
que servem para identificar o objeto que realmente originou causalmente o nome;
as ficcionais, que foram adições imaginativas posteriores, nada tendo a ver com
o objeto originador do nome. Embora alguma coisa das descrições não-ficcionais
seja sabida (sabemos que Robin Hood teria sido um justiceiro que viveu na
Inglaterra no período medieval) em geral não sabemos distinguir quais são as
descrições ficcionais e quais são as não-ficcionais nem a extensão disso.
Imagine agora que uma das muitas teorias
concernentes a quem teria sido Robin Hood seja demostrada. Suponhamos que
documentos sejam descobertos comprovando a teoria de L. V. D. Owen, de acordo
com a qual o Robin Hood histórico foi um fora da lei chamado Hobbehod que viveu
na primeira metade do século XI em Yorkshire. Nesse caso ao menos nossa
descrição caracterizadora de Robin Hood como um fora da lei seria confirmada e
complementada, enquanto nossa descrição localizadora de Robin Hood como tendo
vivido no período medieval na Inglaterra teria sido confirmada e precisada. O
nome próprio teria sua referência real comprovada com base em descrições e não
no elemento causal, mesmo que este ocorra.
Suponhamos, por outro lado, que alguém
descubra que o nome Robin Hood tenha sido invocado na mente do primeiro
escritor medieval a usar o nome, não por um ser humano, mas por seu bravo cão
perdigueiro de nome Robin, que costumava acompanhá-lo em suas incursões na
floresta de Sherwood... Nesse caso não diremos que o nome próprio Robin Hood se
refere ao cão de caça do escritor, mas que ele não possui referência alguma,
tratando-se na verdade de um nome completamente ficcional. Nossa teoria oferece
uma explicação para o que acontece: nossa regra de identificação para Hobin
Hood se aplica a uma classe C, que no caso é a classe dos seres humanos; além
disso, o cão não satisfaz coisa alguma da regra de caracterização que temos
para Robin Hood. Contudo, parece que pela teoria causal-histórica devemos
reconhecer o nome Robin Hood como permanecendo semi-ficcional por se referir ao
cão do escritor medieval. Afinal, há uma cadeia causal-histórica que começou
com o cão batizado com o nome de Robin... Isso é, porém, uma conclusão absurda.
Outro famoso contra-exemplo de Kripke é o
de um falante que associa ao nome do matemático Kurt Gödel a descrição ‘o
inventor da prova da incompletude’. Imagine, escreve ele, que se descubra que
essa prova foi na verdade descoberta por Schmidt, que morreu em Viena em
circunstâncias misteriosas e que seu amigo Gödel tenha roubado a prova e
publicado em seu próprio nome. Nesse caso, se nomes fossem abreviações de
descrições, pensa Kripke, uma vez informada disso a pessoa deveria admitir que
Gödel é Schmidt, pois é a Schmidt que devemos agora associar a descrição. Mas
isso é contra-intuitivo, pois a pessoa continuará certa de que Gödel é Gödel e
não Schmidt, mesmo sabendo que ele foi um falsário e que não descobriu a prova
da incompletude.[7]
A resposta que a versão meta-descritivista
da teoria do agregado dá ao exemplo em questão é, diversamente do esperado,
perfeitamente intuitiva. O usuário privilegiado do nome ‘Gödel’ o reconhece por
satisfazer a regra de localização (A) de ter nascido em Brünn em 1906, estudado
em Viena, emigrado para os EUA e trabalhado em Princeton, onde faleceu em 1978,
e por satisfazer a regra de caracterização (B) de ter sido um grande matemático
que descobriu o teorema da incompletude além de ter feito muitas outras
contribuições menores. Assim, mesmo que Gödel deixe de satisfazer parte
(digamos 2/3) da regra de caracterização, ele continua satisfazendo
integralmente a regra de localização, satisfazendo, pois, RI para ‘Gödel’ bem
mais do que RI para ‘Schmidt’. Eis porque Gödel não pode ser Schmidt![8]
Quanto à pessoa que associa ao nome
‘Gödel’ somente a descrição ‘o inventor da prova da incompletude’, como falante
competente ela conhece a regra de identificação para nomes próprios e, por
conhecê-la, ela sabe que a regra que essa descrição exprime é incompleta,
recusando-se por isso a aceitar que Gödel é Schmidt enquanto não obtiver
maiores informações.
Uma curiosidade acerca do exemplo é que
como ao menos parte de uma das duas descrições fundamentais identificadoras de
Gödel é satisfeita por Schmidt, é possível dizer que este último passa a herdar
alguma coisa do significado do nome ‘Gödel’, mesmo que não ganhe a sua
referência. E isso realmente acontece. Digamos que um lógico, revoltado pela
notícia acerca do roubo do teorema e com pena de Schmidt, lance a exclamação
“Schmidt é quem foi o verdadeiro Gödel!” Essa é uma frase verdadeira se for
entendida como uma hipérbole. E a razão pela qual ela é verdadeira é dada por
nossa versão da teoria descritivista, a qual prevê que o nome Schmidt herda
alguma coisa relevante do significado do nome ‘Gödel’.
Há, por fim, uma maneira de fazer com que
Gödel seja realmente Schmidt, muito embora ela dê a Kripke o bolo sem o direito
de comê-lo. Imagine que bem no início da estória Schmidt, por alguma razão,
tivesse assassinado o jovem Gödel e assumido a sua identidade. Schmidt, que era
muito melhor lógico que Gödel, descobriu então incompletude da aritmética,
casou-se com Adele, fugiu para os EUA pela Transiberiana EM 1940, tornou-se
professor em Princeton e faleceu em 1978, de modo que aquele sujeito de calças
curtas junto a Einstein na famosa foto de ambos era ele mesmo, o falsário
Schmidt. Nesse caso não há dúvida de que Gödel é Schmidt. E o metadescritivismo
explica: ele é Schmidt porque as regras-descrições caracterizadora e
localizadora, com exceção das descrições relativas à infância, são as de
Schmidt e não as da criança que uma vez foi chamada de Gödel, a qual há muito
deixou de existir.
Quero, por fim, analisar rapidamente um
contra-exemplo proposto por Keith Donnellan.[9]
Imagine, escreve ele, que se descubra que Tales não foi na verdade nenhum
filósofo, mas um sábio cavador de poços cansado de sua profissão que uma vez
dissera: “Quem me dera se tudo fosse água para eu não ter de cavar esses
malditos poços”, tendo essa frase passado equivocamente a Herótodo, a
Aristóteles e a outros como veículo da idéia atribuída ao filósofo Tales,
segundo a qual a água é o princípio de tudo. Digamos também que a ideia de que
tudo é água tenha sido sustentada por um eremita que viveu tão remotamente que
nem ele nem suas doutrinas tenham qualquer conexão histórica conosco. Mesmo
assim nós não diremos que Tales foi o eremita. A teoria causal-histórica possui
uma maneira de explicar isso. Segundo ela é assim porque foi o cavador de poços
Tales quem se encontrava no princípio da cadeia causal-histórica e não o
eremita. Mas segundo a teoria descritivista o eremita é quem deveria ser Tales,
pois é ele quem satisfaz a descrição – um resultado contraintuitivo.
A resposta que a teoria metadescritivista
por nós proposta irá dar parte da constatação de que em certos casos a
descrição da história causal simplesmente faz parte da descrição
caracterizadora. Esse é precisamente o caso de Tales, pois o que mais nos
importa na formação da regra caracterizadora para Tales é o seu lugar e
influência na origem da filosofia ocidental. A descrição caracterizadora de
Tales não se poderia resumir à ridícula afirmação de que tudo é água per se,
pois se um filósofo de uma época mais próxima à nossa escrevesse isso ele seria
tomado como incompetente. A descrição caracterizadora de Tales só importa para
nós por incluir a história causal. Podemos resumi-la como: ‘a pessoa que originou a doxografia encontrada em
Herótodo, Aristóteles e outros, onde ela é descrita como o primeiro
filósofo grego, a defender que a água é o princípio de todas as coisas, que
tudo é vivo, que tudo é um etc.’ Quanto à regra localizadora, sabemos que foi
“o milesiano que viveu provavelmente de 624 a 547-8 a .C...” Em vista disso, se retornarmos ao
exemplo de Donnellan, concluiremos que o eremita não pode ter sido Tales.
Primeiro porque não satisfaz a descrição localizadora. Depois porque ele não
satisfaz a descrição caracterizadora, mesmo que satisfaça alguma coisa dela.
Assim, mesmo que Tales tenha sido um cavador de poços milesiano que viveu de 624 a 547-8 a .C., ele satisfaz as regras
fundamentadoras muito mais completamente do que o eremita. Afora isso é preciso
notar que dependendo dos detalhes que forem adicionados ou subtraídos ao
exemplo dado, as nossas intuições podem se alterar, levando-nos tanto à
conclusão de que nenhum Tales realmente existiu quanto, eventualmente, à
conclusão de que Tales na verdade foi o eremita.
Acredito que para quem conseguir não se
curvar ao argumento de autoridade, que secretamente rege a discussão acadêmica,
para quem for capaz de pensar por si mesmo, na independência da imensa
influência imposta pela nova ortodoxia causal-externalista já de há muito
vigente, fica fácil concluir que a teoria dos nomes próprios aqui rapidamente
esboçada contém uma promessa muito mais auspiciosa.
REFERÊNCIAS:
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philosophie des deutschen Idealismus I, 2, 1918, 58-77.
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Basil Blackwell 1958).
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L.: Philosophische Untersuchungen (Frankfurt:
Suhrkamp 1983).
[1] Essa é a formulação sinóptica da versão searleana
apresentada por Susan Haack em Philosophy
of Logics, p. 58. Ver especialmente o artigo de J. R. Searle: “Proper
Names”.
[2] Ver Saul Kripke: Naming and Necessity cap. II. Para uma resposta importante, curiosamente passada
em silêncio pelos defensores da concepção causal-histórica, ver J. R. Searle: Intentionality: an Essay in the Philosophy
of Mind, cap. 9.
[3] J. R. Searle: “Proper
Names and Descriptions”, p. 490.
[4] Em uma primeira versão das idéias aqui desenvolvidas
tentei equivocamente incorporar um elemento causal ao metadescritivismo. Ver C.
F. Costa: “A Meta-Descriptivist Theory of Proper Names”.
[5] O próprio Kripke oscila entre essa definição e a
definição segundo a qual o designador rígido é o que se aplica em todos os
mundos possíveis, inclusive naqueles nos quais o objeto não existe. Mas parece
claro que no último caso a maioria dos nomes próprios deixaria de ser designadores
rígidos, posto que nenhum nome próprio irá referir em um mundo possível no qual
o seu objeto de aplicação não existe.
[6] Essa é uma maneira de se interpretar o que Wittgenstein
escreve sobre a distinção entre critério e sintoma. Ver L. Wittgenstein, The Blue and the Brown Books, p. 24 ss.
[7] Saul Kripke: Naming and Necessity, pp. 83-84.
[8] Por isso
mesmo, porém, aproveitando-se do fato de que algo do significado descritivo do
nome ‘Gödel’ passou a estar contido no nome ‘Schmidt’, um matemático ultrajado
com a notícia e com pena de Schmidt poderá produzir uma hipérbole exclamando:
“Schmidt sim é quem foi o verdadeiro Gödel!”.
[9] Keith S.
Donnellan: “Proper Names and Identifying Descriptions”, pp. 373-375.
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