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sábado, 8 de setembro de 2012

A "ANGÚSTIA EXISTENCIAL"


C.F. Costa, UFRN, 2012





 A ANGÚSTIA EXISTENCIAL


Filósofos como Heidegger e mesmo Sartre e Camus nos falaram sobre a angústia existencial ou algo equivalente. Camus falou do desespero, Sartre da náusea, Heidegger daqueles momentos nos quais o universo parece fragmentar-se e anular-se diante de nós, perdendo o significado a ponto de mostrar-nos o que realmente somos: seres suspensos no nada. Para Heidegger essa vivência da negatividade, que nos destruiria se fosse constante, por sorte ocorre apenas de vez em quando, pois logo conseguimos esquecer-nos outra vez em nossas preocupações cotidianas, através das quais perdemos o contato com aquilo que realmente importa, com a experiência autêntica do ser, para não dizer de Deus. Por isso é só através da angústia que nos tornamos verdadeiramente conscientes de nossa condição de seres jogados no mundo, de seres para a morte, pois é pela vivência plena do nada que apreendemos o ser em sua totalidade... Pois é somente em tais momentos que somos assediados pela pergunta fundamental da metafísica, que é “Por que o ser e não antes o nada?”
    Esses momentos de conscientização através da angústia existem e são inevitáveis, não é preciso negá-lo. Uma doença incurável pode tornar o ser humano consciente dos valores essenciais, como o demonstra Aldous Huxley em Ponto e Contraponto, ao contar a estória de um pintor famoso que, tendo descoberto que iria morrer em breve, teve renovada a sua criatividade de há muito perdida. E o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo o seu espírito e aprimorando a sua sensibilidade, como escreveu Raduan Nassar em Lavoura Arcaica. O que questiono é a fixação um tanto exagerada dos filósofos existencialistas no sentimento de angústia, como se sem ela não pudesse existir consciência, como se ela fosse o elemento inevitável, essencial e nobre da condição humana autenticamente vivida, que precisa ser quase que religiosamente buscado.
     Existe uma interpretação bem mais trivial do papel dessa espécie de angústia existencial que gostaria de propor. Do meu ponto de vista, essa fixação do filósofo existencialista na angústia resulta de uma dramatização, de uma hipostasia de um sentimento que é contingente, posto que resulta de uma alienação do indivíduo ou mesmo de todo um grupo social de si mesmo ou da sociedade e de tudo o que o cerca.
     Para explicar melhor o que tenho em mente quero perguntar se não existem casos de sociedades nas quais a angústia existencial seja coisa rara ou até mesmo inexistente. A meu ver há muitas. Esse me parece ser o caso das sociedades naturais que encontramos entre os povos indígenas em condições ideais. É difícil imaginar que entre esses povos seja comum encontrarmos a angústia como a vivência do nada. Eles estão entrosados em um meio social perfeitamente coeso, estão integrados a uma natureza da qual fazem parte, comerciando com deuses que conhecem bem, de modo que é difícil imaginar entre eles uma angústia concernente à própria existência, a não ser nos raros momentos de ruptura ou perda, que logo serão espontaneamente superados. Mas mesmo que o sentimento de vazio também nesses casos inevitavelmente ocorra, por exemplo, pelo ostracismo, é difícil crer que ele será vivenciado como angústia existencial. Outro exemplo poderia ser o das sociedades na Grécia antiga, se regredirmos aos seus primórdios, digamos, quando ainda não existiam ameaças externas. Será que em sociedades como essas, em que as pessoas pareciam viver em harmonia consigo mesmas e com a natureza, havia lugar para a angústia existencial diante da condição humana de ser jogado no mundo, de ser para a morte? Será que Aristóteles tinha tempo para essas coisas? Será que Heidegger lá encontraria discípulos? Receio que não.
      Qual a reação do filósofo existencialista diante da objeção de que há uma certa dose de dramatização ilícita nessa hipostasia semi-religiosa do sentimento do vazio? Posso imaginar que ele a verá como sintoma da inconsciência dos participantes dessas sociedades, que sequer se alçaram à dúvida reflexiva sobre sua condição humana de seres jogados no mundo.
     Mas a resposta que o indígena ou o habitante da polis grega dariam ao filósofo existencialista poderia ser outra. Eles poderiam lhe dizer que a angústia existencial que ele tanto preza como aquilo que os eleva a uma consciência semi-religiosa do ser, nada mais é do que uma racionalização neurótica para o efeito psicológico da situação de ruptura, de desordem pessoal ou social daqueles que uma forma ou de outra sofrem a experiência de se sentirem alienados da sociedade ou de si mesmos. No caso de Sartre essa condição é óbvia pela biografia. Ele rompeu com o mundo pequeno-burguês no qual foi criado, que era capaz de lhe dar um acolhimento e lugar social a um inevitável preço em hipocrisia e preconceito. A sua reação pessoal conduziu-o naturalmente à angústia, à náusea, como ele escreve, mas devemos notar que se trata de uma situação particular, que pode estar sendo ideologicamente racionalizada.
     Reflexões como as de Sartre, Camus ou Heidegger podem ser aplicadas à condição humana em uma sociedade imprevisívelmente mutável como a nossa, na qual destruição da harmonia da vida humana, tanto em relação à sociedade quanto em relação à natureza, está se tornado mais e mais flagrante, uma sociedade na qual sentimo-nos cada vez mais alienados de nós mesmos e de nossos semelhantes. Mas essas mesmas reflexões são falsas, na medida em que hipostasiam o produto de uma situação de exceção, de desarmonia, de crise, como se ela fosse parte da experiência do encontro do ser humano com a alguma coisa indizivelmente importante e não o sintoma de rupturas e fragmentações socialmente impostas.
     É curioso notar que essa situação atual não é muito diversa das condições da dilacerada sociedade européia do interstício entre as duas guerras mundiais, uma condição na qual os valores sócio-culturais do século XIX se encontravam em crise e nenhuma escolha parecia ser certa ou segura. Essa foi a época de filósofos como Heidegger e Sartre. Mas não parece saudável que depois de tudo o que veio depois vejamos nas mesmas reações uma resposta adequada.
     Em suma, me parece que os filósofos da angústia existencial hipostasiaram o regenerador sentimento de vazio da existência na forma do que chamaram de “angústia existencial”, como se este fosse um sentimento sagrado, no caso de Heidegger um substituto do cerimonial religioso, constituindo-se de um encontro com o ser ao invés de Deus, uma purgação necessária para a situação calamitosa à qual o ser humano que ele considera verdadeiramente consciente se vê inevitavelmente fadado. Em minha opinião essa hipostasia serve apenas como consolo. Consolo para os privilegiados que, como eles mesmos, podiam sofrer da maladie de sua época.
     A única direção para a qual o sentimento do vazio tem o direito de apontar, porém, não é para o nada do ser ou para o ser no nada, mas para alguma saída dele mesmo. Nietzsche estava certo ao considerar certas atitudes como negadoras da vida; ele poderia aplicar esse conceito aos filósofos aqui referidos. Com efeito, essa masoquista exaltação da angústia nada mais é do que mais uma desculpa, mais uma fuga ilusória, mais um consolo para um calamitoso e em muitos casos inescapável sentimento de vazio diante da falta de alternativas pessoais, sejam quais forem as suas causas. A verdade é que infelizmente não há consolo real para o leite derramado da existência. E há perguntas que apenas parecem fazer sentido. Uma delas é: “por que o ser e não antes o nada?” A resposta, como notou Stephen Hawkings, é que ela não cabe: pois se fosse o nada ninguém estaria aqui para fazer essa pergunta.


Um comentário:

  1. Entendo seu ponto, camarada. Mas, até onde percebi nas minhas leituras sobre o existencialismo, Sartre (pelo menos, creio que Heidegger também), não pregam uma apatia frente à angústia existencial, uma resignação chorosa ou uma quietude justificada.
    Pelo contrário: Sartre vai eleger a angústia como elemento básico para que o homem saia do estado de "nada existencial" e possa agir, colocar-se no mundo e modificar sua condição, sua própria existência.

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