C.F. Costa, UFRN, 2012
A
ANGÚSTIA EXISTENCIAL
Filósofos
como Heidegger e mesmo Sartre e Camus nos falaram sobre a angústia existencial
ou algo equivalente. Camus falou do desespero, Sartre da náusea, Heidegger daqueles
momentos nos quais o universo parece fragmentar-se e anular-se diante de nós,
perdendo o significado a ponto de mostrar-nos o que realmente somos: seres
suspensos no nada. Para Heidegger essa vivência da negatividade, que nos destruiria
se fosse constante, por sorte ocorre apenas de vez em quando, pois logo
conseguimos esquecer-nos outra vez em nossas preocupações cotidianas, através
das quais perdemos o contato com aquilo que realmente importa, com a experiência
autêntica do ser, para não dizer de Deus. Por isso é só através da angústia que
nos tornamos verdadeiramente conscientes de nossa condição de seres jogados no
mundo, de seres para a morte, pois é pela vivência plena do nada que
apreendemos o ser em sua totalidade... Pois é somente em tais momentos que
somos assediados pela pergunta fundamental da metafísica, que é “Por que o ser
e não antes o nada?”
Esses
momentos de conscientização através da angústia existem e são inevitáveis, não
é preciso negá-lo. Uma doença incurável pode tornar o ser humano consciente dos
valores essenciais, como o demonstra Aldous Huxley em Ponto e Contraponto, ao contar a estória de um pintor famoso que, tendo
descoberto que iria morrer em breve, teve renovada a sua criatividade de há
muito perdida. E o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo o seu espírito e
aprimorando a sua sensibilidade, como escreveu Raduan Nassar em Lavoura Arcaica. O que questiono é a fixação um
tanto exagerada dos filósofos existencialistas no sentimento de angústia, como
se sem ela não pudesse existir consciência, como se ela fosse o elemento inevitável,
essencial e nobre da condição humana autenticamente vivida, que precisa ser quase
que religiosamente buscado.
Existe uma interpretação bem mais trivial
do papel dessa espécie de angústia existencial que gostaria de propor. Do meu
ponto de vista, essa fixação do filósofo existencialista na angústia resulta de
uma dramatização, de uma hipostasia de um sentimento que é contingente, posto
que resulta de uma alienação do indivíduo ou mesmo de todo um grupo social de
si mesmo ou da sociedade e de tudo o que o cerca.
Para explicar melhor o que tenho em mente quero
perguntar se não existem casos de sociedades nas quais a angústia existencial
seja coisa rara ou até mesmo inexistente. A meu ver há muitas. Esse me parece
ser o caso das sociedades naturais que encontramos entre os povos indígenas em
condições ideais. É difícil imaginar que entre esses povos seja comum
encontrarmos a angústia como a vivência do nada. Eles estão entrosados em um
meio social perfeitamente coeso, estão integrados a uma natureza da qual fazem
parte, comerciando com deuses que conhecem bem, de modo que é difícil imaginar entre
eles uma angústia concernente à própria existência, a não ser nos raros
momentos de ruptura ou perda, que logo serão espontaneamente superados. Mas
mesmo que o sentimento de vazio também nesses casos inevitavelmente ocorra, por
exemplo, pelo ostracismo, é difícil crer que ele será vivenciado como angústia
existencial. Outro exemplo poderia ser o das sociedades na Grécia antiga, se
regredirmos aos seus primórdios, digamos, quando ainda não existiam ameaças
externas. Será que em sociedades como essas, em que as pessoas pareciam viver
em harmonia consigo mesmas e com a natureza, havia lugar para a angústia
existencial diante da condição humana de ser jogado no mundo, de ser para a
morte? Será que Aristóteles tinha tempo para essas coisas? Será que Heidegger
lá encontraria discípulos? Receio que não.
Qual a reação do filósofo existencialista
diante da objeção de que há uma certa dose de dramatização ilícita nessa
hipostasia semi-religiosa do sentimento do vazio? Posso imaginar que ele a verá
como sintoma da inconsciência dos participantes dessas sociedades, que sequer
se alçaram à dúvida reflexiva sobre sua condição humana de seres jogados no
mundo.
Mas a resposta que o indígena ou o
habitante da polis grega dariam ao
filósofo existencialista poderia ser outra. Eles poderiam lhe dizer que a
angústia existencial que ele tanto preza como aquilo que os eleva a uma consciência
semi-religiosa do ser, nada mais é do que uma racionalização neurótica para o
efeito psicológico da situação de ruptura, de desordem pessoal ou social daqueles
que uma forma ou de outra sofrem a experiência de se sentirem alienados da
sociedade ou de si mesmos. No caso de Sartre essa condição é óbvia pela
biografia. Ele rompeu com o mundo pequeno-burguês no qual foi criado, que era
capaz de lhe dar um acolhimento e lugar social a um inevitável preço em
hipocrisia e preconceito. A sua reação pessoal conduziu-o naturalmente à
angústia, à náusea, como ele escreve, mas devemos notar que se trata de uma
situação particular, que pode estar sendo ideologicamente racionalizada.
Reflexões como as de Sartre, Camus ou
Heidegger podem ser aplicadas à condição humana em uma sociedade imprevisívelmente
mutável como a nossa, na qual destruição da harmonia da vida humana, tanto em
relação à sociedade quanto em relação à natureza, está se tornado mais e mais
flagrante, uma sociedade na qual sentimo-nos cada vez mais alienados de nós
mesmos e de nossos semelhantes. Mas essas mesmas reflexões são falsas, na
medida em que hipostasiam o produto de uma situação de exceção, de desarmonia, de
crise, como se ela fosse parte da experiência do encontro do ser humano com a
alguma coisa indizivelmente importante e não o sintoma de rupturas e
fragmentações socialmente impostas.
É
curioso notar que essa situação atual não é muito diversa das condições da dilacerada
sociedade européia do interstício entre as duas guerras mundiais, uma condição na
qual os valores sócio-culturais do século XIX se encontravam em crise e nenhuma
escolha parecia ser certa ou segura. Essa foi a época de filósofos como
Heidegger e Sartre. Mas não parece saudável que depois de tudo o que veio depois
vejamos nas mesmas reações uma resposta adequada.
Em suma, me parece que os filósofos da
angústia existencial hipostasiaram o regenerador sentimento de vazio da existência na forma do que
chamaram de “angústia existencial”, como se este fosse um sentimento sagrado, no
caso de Heidegger um substituto do cerimonial religioso, constituindo-se de um
encontro com o ser ao invés de Deus, uma purgação necessária para a situação
calamitosa à qual o ser humano que ele considera verdadeiramente consciente se vê
inevitavelmente fadado. Em minha opinião essa hipostasia serve apenas como consolo.
Consolo para os privilegiados que, como eles mesmos, podiam sofrer da maladie de sua época.
A única direção para a qual o sentimento
do vazio tem o direito de apontar, porém, não é para o nada do ser ou para o
ser no nada, mas para alguma saída dele mesmo. Nietzsche estava certo ao
considerar certas atitudes como negadoras da vida; ele poderia aplicar esse
conceito aos filósofos aqui referidos. Com efeito, essa masoquista exaltação da
angústia nada mais é do que mais uma desculpa, mais uma fuga ilusória, mais um
consolo para um calamitoso e em muitos casos inescapável sentimento de vazio
diante da falta de alternativas pessoais, sejam quais forem as suas causas. A
verdade é que infelizmente não há consolo real para o leite derramado da
existência. E há perguntas que apenas parecem fazer sentido. Uma delas é: “por
que o ser e não antes o nada?” A resposta, como notou Stephen Hawkings, é que ela
não cabe: pois se fosse o nada ninguém estaria aqui para fazer essa pergunta.
Entendo seu ponto, camarada. Mas, até onde percebi nas minhas leituras sobre o existencialismo, Sartre (pelo menos, creio que Heidegger também), não pregam uma apatia frente à angústia existencial, uma resignação chorosa ou uma quietude justificada.
ResponderExcluirPelo contrário: Sartre vai eleger a angústia como elemento básico para que o homem saia do estado de "nada existencial" e possa agir, colocar-se no mundo e modificar sua condição, sua própria existência.