Artigo
informativo, publicado em Theoria -
Revista Eletrônica de Filosofia, vol. 4, n. 9, 2012.
FALSEACIONISMO E ANTI-INDUTIVISMO POPPERIANOS
Claudio F. Costa - UFRN
Resumo:
Nesse artigo é feita uma exposição crítica do
falseacionismo anti-indutivista popperiano. Para tal começamos com a exposição
dos elementos mais fundamentais do método científico em suas relações. Em
seguida é apresentada o concepção falseacionista anti-indutivista de Popper.
Finalmente são feitas as observações criticas que nos levam a uma rejeição
parcial de seus resultados.
Palavras-chave: Popper, falseacionismo,
indução, método científico
Summary:
This paper contains a critical
presentation of Popper’s falsificacionism. It shows that falsificationism would
only work if associated with inductivism. In order to make this point clear, we
begin by building the fundamental elements of the scientific method in its
inter-relations. Then we present the essential treats of Popper’s
falsificationism. Finally, we show that it is untenable if considered as the
whole of the scientific method.
Key-words: Popper,
falsificacionism, induction, scientific method.
Quero expor
aqui o falseacionismo e o anti-indutivismo popperianos, complementando essa
exposição com uma crítica interna, dirigida ao seu anti-indutivismo – uma
crítica que acaba por impor limitações ao próprio falseacionismo. Antes disso,
porém, gostaria de expor brevemente a posição contra a qual Popper está se
manifestando, que é a tradicional concepção indutivista da ciência, juntamente
com o critério verificacionista de cientificidade que lhe havia sido comum.
Indutivismo
A concepção
que o senso comum tem da ciência é, em grande parte, indutivista. A ciência
nasce do exame cuidadoso dos fatos. A ciência empírica fundamental, a física,
surgiu com o renascimento, quando grandes experimentadores como Galileu
decidiram dar início à física experimental confrontando as hipóteses com os
fatos, à diferença do que faziam os seguidores de Aristóteles.
A idéia popular da qual nasce o indutivismo é
a de que as proposições de observação constituem uma base a partir da qual são
derivadas as leis e teorias científicas. As observações são sempre singulares,
desse ou daquele fenômeno. As proposições de observação são singulares, como
"Essa barra de ferro expandiu-se ao ser aquecida". As leis
científicas, das quais são essencialmente constituídas as teorias científicas,
são proposições universais como "Todos os metais se expandem ao serem
aquecidos". Ora, como podemos passar da asserção de proposições
observacionais, singulares, para a asserção de leis científicas, que são
proposições gerais ou universais? A resposta do senso comum parece ser: através
da inferência indutiva. Pela
inferência indutiva torna-se legítimo, a partir de uma lista finita de proposições
singulares generalizar leis universais, válidas para todos os casos similares.
Eis uma formulação parcial e simplificada do princípio da indução:
PI: Se um número suficiente de
fenômenos do tipo A for sempre observado em certa conexão com fenômenos do tipo
B, podemos concluir que todos os
fenômenos do tipo A possuem tal conexão com fenômenos do tipo B.
Por exemplo: em todos os casos nos quais
até agora comparamos o volume de barras de ferro aquecidas com o volume que
elas tinham quando não aquecidas, vimos que elas se expandiam. Notamos que isso
ocorria também com barras de outros metais, e que isso ocorria
independentemente da variação de outras condições, como o tamanho do objeto
metálico, sua forma, etc. Isso nos levou, por generalização indutiva, à
conclusão de que todos os objetos metálicos se expandem quando aquecidos.
Segundo essa concepção, que remonta a Aristóteles, é assim que chegamos às leis
e teorias científicas, ou seja, pelo acúmulo de observações e pela
generalização indutiva a partir disso.
Uma concepção puramente indutivista do
método científico é simplória e não corresponde ao que realmente acontece. As
hipóteses científicas são usualmente resultado do que pode ser chamado de imaginação
científica. Insights como, por exemplo, a descoberta do dupla
hélice espiral do DNA por Watson & Crike, ou a hipótese de que a luz tem a
mesma velocidade para todos os observadores, que para Einstein deu origem à
teoria da relatividade. Mas podemos nos perguntar se mesmo essas hipóteses
ousadas e imaginativas dos cientistas poderiam ter surgido se não houvesse uma
míriade de crenças indutivamente fundadas na constituição mesma das próprias
bases sobre as quais o insight
científico pode emergir.
A concepção do processo de descoberta de
generalizações científicas que acabamos de esboçar não é completa se não forem
considerados dois outros elementos essenciais à ciência: explicações e previsões. Uma vez que, pela indução, chegamos a
formulação de leis científicas, devemos poder aplicar essas leis explicando e
prevendo os fatos.
Assim,
se considerarmos o exemplo acima, com base na generalização científica
"Todos os metais se expandem quando aquecidos", podemos fazer a
seguinte previsão: "Se essa barra de ferro for aquecida, ela se dilatará".
E se uma certa barra de metal se dilata ao ser aquecida, podemos explicar esse
fenômeno dizendo que isso ocorreu porque ela é de metal e todos os metais se
dilatam ao serem aquecidos. Tanto a previsão quanto a explicação científica
possuem no mínimo um forte componente dedutivo. Para ser mais exato, a forma
geral tanto da previsão quanto da explicação científica é:
1. Leis e
teorias
previsão 2. Condições iniciais explicação
______________________
3.
Enunciado observacional
Uma teoria empírica é um sistema de
enunciados contendo leis gerais, de maneira que, em conjunção com certas
condições iniciais, produz ao menos um enunciado singular empírico, chamado de
enunciado básico ou observacional. Na previsão nós lemos esse esquema de cima
para baixo. Assim, baseado na lei (1) "Metais se dilatam ao serem
aquecidos" e na condição inicial (2) "Essa barra de metal vai ser
aquecida", podemos prever a observação: (3) "Essa barra de metal irá
se dilatar", construindo o esquema de cima para baixo. Na explicação
ocorre o inverso. Queremos explicar porque (3) "Essa barra de metal se
dilatou", e recorremos a conjunção de (2) e (1), dizendo que a barra se
dilatou porque ela “foi aquecida e os metais se dilatam quando aquecidos”.
Adicionando a hipótese científica criativa
ao elemento indutivo, o procedimento de investigação científica que acabamos de
descrever pode ser esquematizado como se segue:
imaginação científica
1. indução
Observação leis e teorias
2. dedução: da ciência
Previsão:
explicação:
Se admitirmos a indução como desempenhando
um papel mais ou menos importante na formação das leis científicas, podemos
estabelecer um critério de cientificidade que seja baseado nela. Trata-se do
critério verificacionista. Esse
critério diz que uma teoria é científica quando as suas leis e teorias são
verificáveis – isso é – quando podem ser evidenciadas como verdadeiras ou
falsas – através da observação, que as fortalece indutivamente. Imagine-se que
tenhamos por indução chegado à lei geral: "Todos os metais se dilatam ao
serem aquecidos". Essa é uma lei científica na medida em que podemos
verificá-la, isto é, fazer uma previsão com ela, de tal maneira que obtenhamos enunciados
observacionais que a confirmem ou desconfirmem. No caso em que as proposição
(3) é verdadeira, a proposição (1) é confirmada; caso contrário, a proposição
(1) é desconfirmada ou falseada.
O critério verificacionista de
cientificidade pressupõe a validez do método indutivo. Se a indução não
existisse, a confirmação observacional da lei científica não seria capaz de torná-la
mais plausível, de fundamentá-la, de justificar a sua verdade. O
verificacionista precisa da indução para dizer que a verificação trás
confirmação para a hipótese científica, e que o acúmulo de observações aumenta
a nossa certeza de sua verdade, torna as leis científicas mais prováveis. O
verificacionista precisa aceitar que não há verificação conclusiva para nossas
leis universais. De fato, uma proposição universal da forma “(x) (Px -> Qx)”
não pode ser conclusivamente verificada, mesmo em um universo de discurso
relativamente restrito por razões práticas. Mas ele admite que a acúmulo de
proposições que instanciam a lei geral a tornarão mais provável, o que exige a validade
do método indutivo como pressuposto. Com essa pressuposição ele pode acreditar
que o acúmulo de confirmações nos irá fornecer uma base racional para crermos
na verdade dessas leis. Se ele não confiasse no método indutivo ele não teria
qualquer razão para confiar na lei científica verificada mais que em uma
proposição universal estabelecida por qualquer outra forma, por exemplo, por
adivinhação.
Essa é uma das razões pelas quais, como
veremos, ao rejeitar o método indutivo Popper sente-se motivado a rejeitar o
critério verificacionista da cientificidade. Vejamos agora a concepção
popperiana do método científico e a sua crítica à indução.
O
falseacionismo popperiano
Popper
pretendeu fundar uma epistemologia não-indutivista da ciência.[1]
Essa epistemologia baseia-se em três idéias mais importantes: a rejeição da
indução, o falseacionismo e a concepção da teoria científica como aproximação
da verdade.
Comecemos com a crítica a indução. Para
Popper (que segue aqui um raciocínio similar ao de Hume), toda tentativa de
conferir feição lógica à indução é fadada ao fracasso. O princípio da indução
afirma que as confluencias repetidadas de fenômenos podem ser generalizadas.
Ora, essa lei não pode ser uma tautologia, convertendo-se em algo dedutivo,
posto que então ela deveria ser
analítica, o que não é o caso. Ela também não é um princípio sintético, cuja
negação é possível, pois então seria um princípio sintético a priori, o
que seria dogmático. O princípio não pode, por fim, ser sintético a
posteriori, pois nesse caso precisaria ser fundamentado, uma fundamentação
que só poderia ser feita pelo recurso a uma indução de segunda ordem, a qual,
por sua vez exigiria fundamentação, levando a um regresso ao infinito. A
conclusão de Popper é: a indução não existe.
Ora, se a indução não existe, o critério
de verificabilidade não pode ser fundamentado. A solução popperiana para o
problema da demarcação da ciência consistirá por isso no apelo à falseabilidade
como critério de cientificidade: leis e teorias científicas são aquelas que são
potencialmente falseáveis.
Vejamos isso mais de perto. Uma previsão
feita por uma teoria tem, como já vimos, a forma (T & C) -> O. Por
exemplo: Todos os corvos são pretos (T); na região K existe um corvo (C);
conclusão: esse corvo é preto (O). Digamos que O seja um enunciado falso. Nesse
caso temos, pelo modus tolens, ~O
-> ~(T & C). Como consideramos a verdade de C garantida, podemos
concluir que T deve ser falso. Note-se que o falseamento de T assim obtido
costuma ser conclusivo. Basta observarmos um corvo que não seja preto para que
a teoria de que todos os corvos são pretos seja falseada.
O mesmo não ocorre, do ponto de vista
lógico, se nosso critério de cientificidade for a verificação de nossas leis ou
teorias. O fato do enunciado de observação ser verdadeiro não é evidência forte
da verdade da teoria, não é, aliás, evidência alguma se tivermos rejeitado a
indução. Popper fala aqui de uma assimetria entre verificação e falsificação.
Essa assimetria deriva da seguinte observação. Enunciados universais são
conclusivamente falsificáveis, como vimos, mas não podem ser conclusivamente
verificáveis. Para verificar conclusivamente um enunciado universal tão simples
como "Todos os corvos são pretos", precisaríamos observar todos os
corvos em todas as regiões, tanto no presente como no passado e no futuro, o
que é impossível. O oposto ocorre com os enunciados existenciais, que são
conclusivamente verificáveis, mas não são conclusivamente falseáveis. O
enunciado "Existem corvos brancos" não é falseável. Seria necessário
examinar todos os corvos em todas as regiões do espaço e do tempo para poder
demonstrar que ele é falso. Esse enunciado é, porém, verificável com base em
uma única observação: basta encontrarmos um corvo branco e ele terá sido
demonstrado verdadeiro. O que Popper sagazmente enfatizou é que os enunciados
que interessam à ciência não são enunciados existenciais, mas os universais, do
tipo encontrado em leis e teorias científicas. Por conseguinte, uma vez tendo
rejeitado a indução, a falsificação passa a ser o procedimento de prova das
teorias científicas. Não podemos saber se estamos certos, mas podemos saber
quando estamos errados.
Mas como, através de uma epistemologia
não-indutivista, podemos explicar o progresso científico? Qual o critério de
decidibilidade inter-teórica? Popper sugere que podemos comparar teorias
lançando mão do conceito de aproximação da verdade, de verossimilitude.
Para tal, consideramos duas classes de
enunciados básicos: a classe daqueles enunciados básicos que a teoria permite e
a classe daqueles enunciados básicos que a teoria não permite, que é a classe
(que não pode ser vazia) dos seus falseadores potenciais. Essa última classe
delimita o conteúdo informativo (ou empírico) da teoria. Tais distinções
permitem, segundo Popper, analisar comparativamente o grau de falseabilidade.
Quando temos duas teorias, há três cenários a serem considerados:[2]
1) T1 é mais falseável que T2. É
o caso em que a classe dos falseadores potenciais de T2 inclui os de T1.
2) As classes dos falseadores
potenciais são idênticas. fT1 = fT2.
3) Nenhuma classe de falseadores
potenciais inclui a outra como subclasse (É o caso em que T 1 e T2 são
incomensuráveis entre si.)
Para Popper
se T1 resiste ao falseamento no cenário (1) ou se resiste mais que T2 ao
falseamento no cenário (2), então T1 é mais verossímil que T2.
Objeções
Há muitas
objeções à epistemologia popperiana, principalmente advindas de um estudo mais
acurado da maneira como as ciências realmente se desenvolveram no curso da
história. Mas não é aqui o lugar de ser considerada essa questão. Quero
considerar apenas uma crítica interna à argumentação de Popper, que me parece a
mais importante. Trata-se da crítica feita por Newton Smith e outros autores,
segundo a qual Popper, ao negar a indução, destitui o seu pretenso racionalismo
de bases racionais indispensáveis.[3]
Newton Smith pede-nos para considerarmos o
que Popper diz literalmente. Se o fizermos, considerando que a probabilidade a
priori de qualquer lei científica é igual a 0, não há como justificar por que
devemos preferir a teoria de maior conteúdo. O principal problema é que Popper
não tem como vincular corroboração à verossimilitude no quadro dedutivista, disso
resultando uma perspectiva não-racionalista, quando não irracionalista.
Considere as duas teorias T1 e T2. Feitos
todos os testes, suponhamos que T1 passou na maior parte deles e T2 falhou na
maior parte. Ora, isso não estabelece a maior verossimilitude de T1, pois como
T1 não pode ter respaldo indutivo, nada garante que T2 não tenha uma enorme quantidade
de conteúdo falso esperando em algum outro lugar; ou seja, um conteúdo falso
maior do que T2, embora ainda não detectado. Veremos, pois, que T1 pode ter
maior grau de corroboração que T2 e mesmo assim menor grau de verossimilhança.
Para Popper, a corroboração positiva de T1
fornece base para a escolha de T1. Mas ainda que Popper não queira admitir, isso
nada mais é do que o resultado de um argumento indutivo! Se, após certo tempo,
fizermos, digamos, após 100 testes, T1 passa por todos, podemos inferir que T1
provavelmente passará por outros testes e não deve ter, esperando em algum
outro lugar, uma imensa quantidade de conteúdo falso. Mas isso é, obviamente,
indução. Não há, pois, alternativa: se o grau de corroboração é o guia para a
preferência de certa teoria, estamos implicitamente pressupondo a validade da
indução. Caso contrário caímos no irracionalismo.
A conclusão, ao menos à luz dos argumentos
considerados, é que um critério puramente falseacionista de decisão
interteórica não tem suficiente base racional. Para tal seria preciso adicionar
a ele um princípio da indução, com o seu inevitável contraponto
verificacionista.
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