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(TRATA-SE DE UM MEMORIAL USADO EM CONCURSO PARA PROFESSOR DO IFCS, EM 2011, ONDE O AUTOR FOI APROVADO EM PRIMEIRO LUGAR, TENDO MAIS TARDE DESISTIDO POR RAZÕES PARTICULARES. UMA VERSÃO REVISTA DO TEXTO ESTÁ SENDO PUBLICADA PELA EDITORA SCORTECCI SOB A FORMA DE E-BOOK COM O NOME DE VIDA EM PENSAMENTO: AUTOBIOGRAFIA FILOSÓFICA).
(TRATA-SE DE UM MEMORIAL USADO EM CONCURSO PARA PROFESSOR DO IFCS, EM 2011, ONDE O AUTOR FOI APROVADO EM PRIMEIRO LUGAR, TENDO MAIS TARDE DESISTIDO POR RAZÕES PARTICULARES. UMA VERSÃO REVISTA DO TEXTO ESTÁ SENDO PUBLICADA PELA EDITORA SCORTECCI SOB A FORMA DE E-BOOK COM O NOME DE VIDA EM PENSAMENTO: AUTOBIOGRAFIA FILOSÓFICA).
VIDA EM PENSAMENTO
AUTOBIOGRAFIA
FILOSÓFICA
Claudio Costa
CONTEÚDO
2. Compreendendo Wittgenstein
3. Wittgenstein e Freud
4. Fenomenalismo realista
5. Uma solução para o problema da percepção?
6. Fatos empíricos
7. Revisitando a teoria correspondencial da verdade
8. O que há de errado com o argumento da linguagem privada?
9. Conhecimento sem o problema de Gettier
10. O cogito às avessas
11. Pode o “Eu existo” ser falso?
12. O que é a filosofia, afinal? E o que é ciência?
13. Método para desmontar juízos sintéticos a priori
14. A prova do mundo externo
15. Ilusões céticas
16. Ilusões dogmáticas
17. Projeto para dar cabo do problema humiano da indução
18. Um paradoxo não tão relevante
19. Níveis de ação e o cérebro triúno
20. Livre arbítrio: refinando o compatibilismo
21. Pequena cartografia da consciência
22. Estados mentais como estados neurofuncionais
23. O que faz de uma pessoa ela mesma?
24. Como nomes próprios referem?
25. O conceito de água
26. Os fundamentos últimos da moralidade
27. O inefável sentido da vida
28. Autocomprensão
29. Recriando Deus
30. Perspectivas
Ehrgeis ist der Tod des Geistes.
– Ludwig Wittgenstein
The word sent forth can never be recalled.
– A.E. Housman
Es ist schwehr einem Kurzsichtigen einen Weg zu beschreiben, weil man ihm nicht sagen kann: “Schau auf dem Kirchturm dort 10 Meilen vor uns und geh’ in dieser Richtung”.
– Wittgenstein
Prefácio
“Sobre nós mesmos devemos calar-nos”, escreveu um filósofo chamado Kant. Com efeito, a vida da maioria de nós parece-me insignificante e mesmo ridícula demais para merecer vir a público e não vejo a minha como exceção. Contudo, esse texto restringe-se quase que apenas à vida do pensamento, que é o material mais apropriado para uma autobiografia intelectual, e sua publicação só foi considerada por razões didáticas, visto que uma boa parte das grandes questões da filosofia contemporânea foi aqui opiniosamente abordada.
Há algumas vantagens nessa forma de introdução. Afinal, a compreensão das ideias costuma se tornar mais fácil quando elas são introduzidas na relação que elas têm com o seu aprendizado e desenvolvimento, e os intervalos recreativos próprios do gênero podem prover o leitor de algum descanso. É verdade que, apesar de meus esforços, nem tudo ficou transparentemente fácil. Mas em compensação, a filosofia costuma ficar mais interessante quanto mais difícil ela se torna.
Abril, 2014
Vindo de uma família de pessoas educadas, mas pragmáticas, a descoberta da cultura chegou a mim como a superação de um preconceito. Primeiro foi com a música clássica. Quando tinha doze anos e me encontrava vivendo em uma pequena cidade isolada no interior do país, minha professora de música me informou que os maiores compositores clássicos haviam sido Bach, Mozart e Beethoven – o último deles já predisposto a certa “decadência romântica”. Isso me convenceu de que deveria haver alguma coisa por trás daquela estridente combinação de sons chamada 5ª Sinfonia, de modo que a coloquei para tocar uma dezena de vezes, sem que nada acontecesse. Mas o que experimentei nas vezes que se seguiram foi estonteante. O inicialmente anódino atropelo de sons começou a articular-se e a ganhar vida, revelando-se capaz de me conduzir a um estado de êxtase emocional que eu nunca houvera experimentado antes. Fiz então o mesmo com o terceiro concerto de Brandenburg, de Bach, que no início me soava como um zumbido de abelhas, obtendo ao final o mesmo e inacreditável resultado.
A polifonia clássica é constituída de sequências harmônicas de sons que se incluem em outras sequências mais amplas, combinando-se ao mesmo tempo com uma variedade de outras sequências paralelas. Só a apreensão simultânea de toda essa integração de unidades melódicas é que permite a completa compreensão e fruição emocional de um concerto barroco, de uma cantata, de uma sinfonia. Mas para tal é preciso antes – ao menos no meu caso – adquirir alguma familiaridade com a melodia, sabê-la o suficiente para antever as possíveis combinações de notas que virão a seguir e compará-las com as recém-ouvidas, na apreensão das unidades melódicas que as contêm.
Não sei como é com as outras pessoas. Seja como for, a descoberta da música clássica fez-me compreender que pode haver outras dimensões da realidade que valham a pena conhecer, as quais se alçam muito acima do prosaico e para mim geralmente enfadonho mundo cotidiano. A compreensão da grande música marcou minha primeira experiência importante no universo da cultura.
Aos quinze anos, quando já morava só em Porto Alegre e me preparava para o vestibular para medicina, fiz a descoberta de uma maneira menos intuitiva e mais intelectual de explorar os sentimentos, que foi a da literatura clássica. Ela veio orientada pela leitura de Paulo Francis, cuja independência e brilhantismo únicos como crítico literário eu sempre admirei. Li-o em artigos hoje inacessíveis, como “Complexidade e Diversidade” (1958) e “A Modernidade de Shakespeare” (1960), cujo nível não ficava a dever ao de um Edmund Wilson.[i] Foi através desse crítico que cheguei a autores clássicos como Emily Brönte, Flaubert, Dostoievsky, Tolstoy, Joyce, a Shakespeare e ao teatro grego, à poesia de Dante e T.S. Eliot, vindo a descobrir depois, por conta própria, um grande número de outros escritores, de Borges a Fernando Pessoa e Italo Calvino, de Henry Miller a Céline e Bukowski.
Embora tenha ensaiado algumas incursões pessoais no terreno da criação artística, prefiro reservar os resultados para mim mesmo; nunca passei de um pintor amador, de um poeta imaturo e de um músico inábil. Mas na condição de apreciador, penso que a arte nos permite explorar o mundo dos sentimentos, que ela educa e amplia a nossa experiência emocional, eventualmente auxiliando-nos a compreender mais profundamente tudo o que tem a ver com a condição humana. Sem ela só podemos conhecer aquilo que casualmente nos acontece. Com ela todos os dramas do universo também podem ser nossos. Além disso, a grande arte talvez seja a única criação permanente do espírito humano, mais do que a filosofia. Ideias filosóficas podem se tornar arcaicas, perder em atualidade e interesse. Trabalhos artísticos, como algumas tragédias de Shakespeare ou cantatas de Bach, têm valor talvez atemporal.
Foi também de forma autodidática que comecei a ler filosofia. Durante o curso de medicina minha maior influência foi Freud. Não o li como um psicólogo, mas como um pensador especulativo, a construir uma teoria de caráter filosófico com base em um material empírico ao qual tinha acesso privilegiado.[ii] Ainda hoje pessoalmente acredito que a teoria da relatividade de Einstein, a metapsicologia de Freud e a filosofia da linguagem de Wittgenstein foram as três mais extraordinárias produções intelectuais do século XX. E também creio que os meus ideais de clareza e sistematicidade vieram da leitura de Freud. Afora isso, fui influenciado por críticos da cultura como Marx, Nietzsche e Schopenhauer, além de membros da escola de Frankfurt como Herbert Marcuse. Também li um pouco de Heidegger e dos intelectuais franceses, tendo me sentido particularmente atraído pelo existencialismo boêmio de Sartre. Embora já nessa época tenha feito tentativas de entender os grandes filósofos clássicos como Platão, Aristóteles, Kant, Leibniz e Hegel, eles permaneciam fora do alcance de minha compreensão e assim haveriam de permanecer por um longo tempo.
2. Compreeendendo Wittgenstein
Foi só em 1980, após ter me formado médico, aos 26 anos e depois de duas tentativas frustradas, que fui aceito como aluno no mestrado de filosofia do IFCS (UFRJ). Meu interesse inicial foi por filosofia da cultura, que no Brasil sempre recebeu grande atenção. Ao fazer o mestrado segui primeiro os excelentes cursos de Gerd Bornheim, um professor capaz de expor de maneira clara e eloqüente a filosofia continental de Hegel a Sartre.
Meu primeiro projeto de tese foi sobre Nietzsche. Contra uma leitura como a de Michel Foucault, meu objetivo seria demonstrar que por trás da crítica nietzscheana à verdade como mero instrumento do poder havia um inegável compromisso implícito com a verdade dos valores nobres, em suma, com uma espécie de ética da virtude a ser associada à sua nunca desenvolvida doutrina da transmutação dos valores.[iii]
Embora o projeto sobre Nietzsche tenha sido aceito, acabei me desinteressando dele ao descobrir Wittgenstein, um filósofo capaz de unir aforismos oraculares profundamente sugestivos com o rigor da lógica e do pensamento analítico. Ainda hoje creio que o pensamento de Wittgenstein possui uma abrangência e originalidade únicas na filosofia teórica do século XX, acessíveis ao scholar, mas incapazes de serem capturadas a uma leitura superficial. Escrevi então, junto ao professor Raul Landin, um orientador apaixonado e exigente, uma tese que objetivava reconstruir uma teoria do significado vagamente sugerida nos fragmentos deixados pelo último Wittgenstein, mas que seria fundamento tácito da atividade de terapia conceitual em que a sua filosofia alegadamente consistia. Essa teoria do significado teria a forma, não de uma teoria científica – o que ele abominaria – mas de uma apresentação panorâmica (übersichtliche Darstellung)[iv] da gramática do conceito de significado.
Para expor as idéias básicas quero começar me reportando à imagem que o último Wittgenstein fez da linguagem em seu Livro Marrom. Como ele lá escreve:
A linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a linguagem ordinária, circundada de jogos de linguagem particulares, mais ou menos definidos, que são as linguagens técnicas.[v]
Ou seja: a linguagem é constituída de uma imensa variedade de unidades semânticas que ele chama de jogos de linguagem ou práticas linguísticas. O conceito wittgensteiniano de jogo de linguagem é plástico o suficiente para que essa nebulosa da linguagem seja multiplamente divisível em jogos de linguagem capazes de se entrecruzar e de se incluir entre si em hierarquias de complexidade crescente. Os jogos de linguagem vão desde os segmentos vários da linguagem cotidiana, como informar, perguntar, dar ordens, pedir (que formam o centro da nebulosa) até as teorias e linguagens especializadas da ciência, como o jogo da química e o da história (que formam, digamos, as franjas da nebulosa). É compreensível, pois, que só sejamos capazes de compreender os jogos de linguagem adicionados pela ciência depois de já termos compreendido os jogos de linguagem mais primitivos e fundamentais de nossa linguagem ordinária. A linguagem cotidiana é pressuposta, o que explica porque ela não pode ser derrogada in totum pela linguagem da ciência.
Um jogo de linguagem pode ser geralmente definido como qualquer sistema lingüístico de regras. Mas essas regras são tipicamente sintáticas, semânticas e (principalmente) pragmáticas, de modo que o jogo de linguagem pode em casos mais típicos ser analisado em termos do que J.L. Austin e J.R. Searle investigaram sistematicamente sob a alcunha de ‘atos de fala’: proferimentos considerados na situação total de fala, que inclui a interação pragmática entre falante e ouvinte. A nebulosa da linguagem, por sua vez, para Wittgenstein só pode crescer e se determinar no interior de uma forma de vida.
A expressão ‘forma de vida’ tem o sentido de o modo pelo qual vivemos em uma sociedade e, segundo consta, Wittgenstein teria se inspirado na leitura de um artigo do antropólogo Bronislaw Malinovski, o qual sugeriu que para aprender a língua de um povo primitivo precisamos compartilhar da vida em sua sociedade.[vi] Essa idéia ele ilustrou com um exemplo: quando os pescadores das ilhas Trobriandes usam a expressão ‘remamos em lugar’, isso quer dizer que eles se encontram próximos de uma aldeia, pois como as águas, mesmo próximas da praia, são profundas, varar a canoa é impossível e eles precisam usar os remos para chegar à aldeia. Somente quando conhecermos o contexto em que os nativos vivem é que poderemos entender porque essa expressão é usada.
Para Wittgenstein, os jogos constitutivos de nossa linguagem cotidiana nascem espontaneamente de nossa forma de vida. Até mesmo os jogos mais especializados das ciências acabam sendo dela dependentes, pois, como vimos, eles pressupõem os jogos de nossa linguagem cotidiana para serem criados, aprendidos e empregados. Fica fácil com isso entender porque um computador não pode dar significado aos símbolos que ele manipula: ele não é um participante ativo de uma forma de vida. Somos nós, como intérpretes da manipulação simbólica da qual o computador é capaz, que doamos significado aos símbolos por ele usados.
Um significado de uma expressão (palavra, frase) consiste para Wittgenstein em seu uso (Gebrauch). Mas a palavra ‘uso’ não é para ser entendida aqui como a mera ocorrência espácio-temporal da expressão – um uso episódico – pois nesse caso cada palavra teria um número ilimitado de significados, um para cada ocorrência. A palavra ‘uso’ precisa ser entendida como modo de uso (Gebrauchsweise) ou modo de aplicação (Verwendungsweise), expressões também usadas por Wittgenstein. A noção de modo de uso ou de aplicação pode ser facilmente interpretada como uma regra ou combinação específica de regras determinadora de usos episódicos (imagine um manual de instruções intitulado “MODO DE USO”: ele nada mais contém do que uma seqüência de regras de uso).
Para Wittgenstein as expressões só ganham significado através do seu uso em jogos de linguagem. Aqui pode ser feita uma analogia com o jogo de xadrez: nossos proferimentos são como lances com as peças de um jogo de xadrez, que só ganham significado por seguirem as regras, melhor dizendo, as combinações de regras que justificam os movimentos nesse jogo. E os jogos de linguagem, como já notei, são sistemas de regras radicados em uma forma de vida. Conjuguei essas idéias concluindo que os significados ganhos pelas expressões são os seus usos episódicos segundo regras (modos de uso) de jogos de linguagem pertencentes à forma de vida. Ou seja:
Um significado de uma expressão = um uso episódico dessa expressão segundo regras de um jogo de linguagem radicado em uma forma de vida.
Para o linguista essa pode parecer uma teoria do significado demasiado vaga e rudimentar. Mas ela é adequada ao seu propósito, que é o de produzir uma apresentação panorâmica da gramática do conceito de significado, que nos permita usá-lo como ferramenta para uma crítica da linguagem. A razão pela qual essa ferramenta é necessária é que para Wittgenstein uma expressão linguística filosoficamente relevante é capaz de ganhar muito mais nuances de significado do que aparenta, variando essas nuances com o jogo de linguagem no qual ela estiver sendo empregada. Por causa disso muito do que se tem feito como filosofia é constituído de confusões lingüísticas, castelos de cartas, nós do pensamento que o filósofo produz ao nutrir-se de uma “dieta unilateral” de exemplos, provocada por “falsas imagens” de como as coisas deveriam ser. Essas falsas imagens, por sua vez, são consequências quase inevitáveis da ânsia que o filósofo tem de alcançar grandes generalizações (craving for generality).
As confusões lingüísticas que constituem a matéria do labor filosófico constituem-se de equívocos e misturas entre os sentidos diversos que as expressões deveriam ganhar ao serem usadas de acordo com as regras dos diferentes jogos de linguagem, ou seja, na transgressão das fronteiras entre um jogo e outro. Contra essas tentações, o filósofo wittgensteiniano deve laborar uma terapia semântico-conceitual que dissolva as confusões lingüísticas através da descrição dos diferentes usos ou significados efetivos das expressões nos jogos de linguagem que lhes são apropriados. Ele realiza assim um mapeamento mais explícito da gramática conceitual das expressões, o que pode facilmente incluir apresentações panorâmicas.
Essa reconstrução da concepção wittgensteiniana de significado permite esclarecer melhor porque e como confusões lingüísticas podem muitas vezes ocorrer na filosofia – sem, é claro, endossar a tese claramente inaceitável de que a filosofia se reduz a elas,[vii] posto que o filósofo pode através delas estar tentando chamar nossa atenção para alguma coisa importante para a qual ele ainda não possui meios conceituais de dizer claramente. Acredito que seja isso o que Wittgenstein estava insinuando ao escrever que as confusões linguísticas dos filósofos são profundas.[viii]
Para Wittgenstein as confusões linguísticas são tornadas possíveis porque os significados das palavras em nossos jogos de linguagem ordinários são aprendidos de forma não-cognitiva, por adestramento (Abrichtung). Como conseqüência, não ganhamos conhecimento explícito das regras pelas quais elas são usadas. Por isso somos propensos, no esforço de alcançar generalizações filosóficas, a confundir as extraordinariamente complexas e variegadas regras de uso de palavras que estão no centro de nosso entendimento do mundo (como ‘verdade’, ‘conhecimento’, ‘significado’, ‘bem’, ‘justiça’, ‘beleza’...), fazendo-as transgredir as fronteiras que existem entre suas aplicações nos contextos de diferentes jogos de linguagem. A terapêutica filosófica propugnada por Wittgenstein é uma espécie de crítica da linguagem que visa tornar as confusões filosóficas claras ao contrastá-las com exemplos de usos corretos das expressões na linguagem natural; usos que as trazem, em seu dizer, de suas férias filosóficas de volta para o seu labor cotidiano.
Em resumo: para Wittgenstein as confusões filosófico-lingüísticas decorrem do fato de que uma mesma expressão pode ser geralmente usada em mais de um jogo de linguagem, em mais de um contexto, ganhando nuances de significado diferentes de acordo com as regras do jogo no qual a usamos. Como não temos consciência dessas sutis diferenças de uso, nosso anseio por generalização facilmente nos impele a incorrer em ilícitas transgressões das fronteiras entre os modos de uso diversos de uma mesma expressão em um e em outro jogo de linguagem.
Por que é importante esclarecer a concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein? Ora, porque ela foi para ele como a doutrina das idéias para Platão: cerne de sua filosofia e patrimônio inafiançável de seu pensamento. Afinal, é por ser articulada sobre esse pano de fundo que a elucidação filosófica terapêutica, a crítica da linguagem por ele intentada se torna eventualmente eficaz.
Minha tese de mestrado intitulada Significado e linguagem em Wittgenstein recebeu summa cum laudae de uma banca examinadora presidida pelo professor Guido Antônio de Almeida, em minha opinião o mais competente avaliador possível. A boa tese de mestrado não me ajudou a ser aceito para o doutorado em filosofia no IFCS (que rejeitou mais duas outras tentativas minhas), mas acabou me valendo uma aceitação, da parte do professor Balthazar Barbosa, de ser meu orientador no doutorado do CLE da Unicamp, que creio ter sido por essa época o centro de filosofia de mais alto nível na América do Sul. Permaneci lá durante o primeiro semestre de 1984 e minha lembrança mais marcante foi a do curso do professor Oswaldo Porchat sobre a Lógica da Investigação Científica, de Popper, além do agradável ambiente com os colegas e dos acalorados debates, habilmente conduzidos pelos professores Balthazar e Zeljko Loparic.
3. Wittgenstein e Freud
Como suplemento (não defendido) de minha tese[ix] fiz uma investigação das duas maneiras básicas pelas quais as fronteiras entre os jogos de linguagem poderiam ser transpostas. Fiz isso tendo como base o que Freud identificou como sendo os dois mecanismos fundamentais do processo primário (primäre Vorgang).
Para Freud o processo secundário (sekundäre Vorgang) é aquele que é próprio do pensamento científico. Nele as cargas afetivas (Besetzungen) se encontram firmemente associadas às representações que lhes concernem.
Mas o mesmo não acontece no processo primário, o mecanismo pelo qual são produzidos não somente os sonhos e sintomas neuróticos, mas também produtos culturais de conteúdo metafórico, como a arte e a filosofia. Aqui as cargas afetivas podem ser capazes de passar livremente de uma representação para outra representação que a substitui. Ora, isso se dá basicamente por dois mecanismos: o deslocamento (Verschiebung) e a condensação (Verdichtung).[x] Por esses mecanismos, cargas afetivas associadas a representações não-conscientes são capazes de burlar a censura, passando então à representações passíveis de se tornar conscientes. A vantagem eventual desse processo é que ao serem liberadas na consciência essas cargas afetivas produzem uma diminuição do nível de tensão endopsíquica (por exemplo, no sonho, como a tentativa de satisfação de desejos). Isso explicaria um fenômeno como o sonho, interpretável na medida em que o psicanalista consegue encontrar as representações reprimidas...
Vejamos agora o que são para Freud o deslocamento e a condensação. No deslocamento a carga afetiva associada a uma representação R1 reprimida é deslocada para uma representação R2 (assemelhada ou de algum modo relacionada a R1), que é capaz de se tornar consciente, liberando consigo uma carga afetiva de modo a aliviar a tensão endopsíquica. Um exemplo de deslocamento seria o de uma jovem que sonha ter dado o seu pente ao seu ex-namorado, estando essa representação no lugar da idéia de entregar-se amorosamente a ele. Já na condensação a carga afetiva de um agrupamento de representações {R1, R2... Rn} é concentrada em uma de suas representações, digamos, R2, que emerge na consciência de modo a liberar carga afetiva. Um exemplo de condensação poderia ser aquele em que a jovem sonhasse ter encontrado o lenço de seu ex-namorado em sua casa, o que estaria no lugar da idéia de ele a ter visitado. Como (segundo Freud) é só no deslocamento que a representação não acessível à consciência doa sua carga afetiva a outra, o deslocamento é o mecanismo próprio para a liberação de cargas associadas a representações reprimidas no inconsciente, enquanto a condensação diz respeito mais à liberação de cargas associadas a representações pré-conscientes, apenas usualmente fora do foco de nossa atenção.
Um ponto importante é que para Freud não só os sonhos e sintomas neuróticos são resultados do processo primário, mas também a arte, a religião e mesmo o discurso filosófico. Esse último, diversamente do discurso científico, é para ele um produto do processo primário, no qual as cargas afetivas facilmente se deslocam de uma representação para outra.[xi] O corolário disso é que os mecanismos de deslocamento e condensação devem estar presentes também na atividade filosófica.
Ora, minha sugestão foi a de que a filosofia terapêutica de Wittgenstein tem uma explicação da maneira geral como deslocamentos e condensações podem acontecer no caso da filosofia. As transgressões das fronteiras da linguagem em filosofia também seguem os mecanismos de deslocamento e condensação do processo primário, produzindo duas espécies de uso confuso de expressões, por deslocamento ou por condensação. As transgressões ocorrem por deslocamento quando fazemos o uso episódico de uma expressão linguística em um jogo de linguagem preservando o modo de uso que ela possui em outro, ou seja, segundo as regras que ela tem em outro jogo de linguagem – isso é o que normalmente chamamos de uso equívoco da expressão, que depende da repressão, dado que não nos mantemos conscientes de seu uso no primeiro jogo. Já as transgressões ocorrem por condensação quando misturamos os modos de uso que a mesma expressão tem, tentando fazê-la seguir as regras de dois ou mais jogos de linguagem simultaneamente – esse uso confuso é consciente e pode ser chamado de hipóstase.[xii] Também parece possível conceber nesses casos uma correspondente liberação de cargas afetivas a justificar o processo.
Exemplos filosóficos em que esses mecanismos ocorrem costumam ser demasiado complexos e contestáveis. Por isso quero começar considerando dois casos muito simples.
Vejamos primeiro um caso claro de deslocamento. O filósofo grego Estilpão negava a possibilidade de predicação, pois para ele, sempre que dizemos que alguma coisa é algo, estamos dizendo que ela não é o que é. Por exemplo: se digo que Sócrates é sábio, caio em contradição, pois estou negando que Sócrates é Sócrates... Em resposta a isso podemos identificar o equívoco como resultado do deslocamento do uso do verbo 'ser' no sentido de identidade, que acontece em jogos de linguagem ou contextos do tipo A, nos quais se pode dizer, por exemplo, que Sócrates é (idêntico a) Sócrates, para o seu uso em jogos de linguagem ou contextos do tipo B, nos quais esse verbo deveria ter um sentido tipicamente predicativo, por exemplo, nos proferimentos “Sócrates é sábio” e “A rosa é vermelha”. Estilpão esquece que o verbo ser pode ser usado segundo as regras de contextos do tipo B. Ele só reconhece o seu sentido em A. Por isso ele tenta usar equivocamente o verbo ‘ser’ em jogos ou contextos do tipo B preservando o sentido (ou seja, seguindo regras de uso) que ele tinha no jogo ou contexto A, como se não houvesse outro. Percebendo que isso é impossível ele reage negando a possibilidade de predicação.
Para um exemplo de condensação, considere a sugestão de alguns filósofos de que o verbo ser deve ter um sentido unívoco originário, que tanto é o de identidade quanto predicativo e até mesmo existencial. Como comprovação disso já foi apresentada a frase: “O Ser é Ser”, com a qual se pretendeu afirmar que aqui o ‘é’ tem uma propriedade única, superior a da mera identidade em frases como “O Sócrates é Sócrates”, pois que subsume também, simultaneamente, tanto a predicação da “seridade” do ser quanto a de sua própria existência. Contra tal sugestão, o crítico da linguagem notará que é muito mais plausível que a frase “O Ser é Ser” expresse apenas uma incoerente mistura de sentidos, ou seja, uma mera confusão decorrente da condensação de três usos da mesma palavra, advindos de três jogos de linguagem ou contextos distintos: do tipo A (de identidade: “ser = ser”), do tipo B (predicativo: “Do ser se predica o ser”) e do tipo C (de existência: “O ser é, ele existe”), do que resulta uma hipostasia dos sentidos do 'Ser', que no melhor dos casos é uma ambigüidade e no pior, aqui pretendido, mera confusão e impossibilidade gramatical.
Há razões para se crer que esses mecanismos pervadem mesmo os grandes sistemas filosóficos do passado, ainda que em meio a vagas e confusas tentativas de solução de problemas reais, muitas vezes eles próprios mal concebidos. Considere, por exemplo, a doutrina platônica das ideias. Essa doutrina foi uma tentativa válida de explicar a predicação e a síntese. A predicação ‘é sábio’ só se aplica a muitas coisas diversas porque ela primariamente se aplica à ideia de sapiência, que não sendo mostrada no mundo visível deve existir no mundo suprasensível. Mas contra essa doutrina também foi feita uma séria acusação por Nietzsche e outros filósofos, de que a hipostasiação de um mundo de idéias transcendentes pode bem ser uma tentativa enganadora de evadir-se do mundo da vida. Com efeito, um traço marcante da doutrina platônica das ideias é que tais ideias são consideradas aquilo que existe de mais real (o que contém mais “ser”), opostamente às coisas visíveis, cuja realidade é tomada de empréstimo das ideias. A crítica da linguagem nos sugere que nesse caso específico a palavra ‘ideia’ foi equivocamente usada por Platão em práticas linguísticas que não admitem atribuições de realidade, quando tal atribuição no uso ordinário da palavra só admite aplicação ao mundo empírico. Se um maior número de características do mundo empírico são atribuidas à ideia, como a de pureza ou do bem, temos então um caso da hipostasia ou condensação.
A existência de uma conexão entre filosofia terapêutica e terapia psicanalítica já foi notada por vários filósofos. O que creio ter feito foi demonstrar de forma mais precisa essa conexão.
4. Fenomenalismo realista
Tendo recebido uma bolsa de estudos da Capes para um doutorado na Universidade de Konstanz, na Alemanha, abandonei a Unicamp para, no segundo semestre de 1984, ir cursar alemão no Goethe Institut de Freiburg i.B. Este tempo junto a estudantes dos mais diversos países foi dos mais interessantes; mas como os pontos de interesse não eram propriamente intelectuais, prefiro deixá-los à imaginação do leitor.
Embora a Universidade de Konstanz tivesse bons professores de filosofia, como Friedrich Kambartel, Jürgen Mittelstrasse e, especialmente, Albrecht Wellmer, além da melhor biblioteca de filosofia que já encontrei, os anos que lá passei não foram infelizmente dos mais produtivos, a não ser em termos de passeios de bicicleta e caminhadas pelas montanhas da Suíça. Eu carecia de base filosófica para acompanhar os seminários de pesquisa para pós-graduandos realizados por Kambartel e Wellmer, e a alternativa que me restou foi seguir uma agenda pessoal, autodidática. A falta de base também limitou o tema de minha dissertação. Decidi fazer de minha tese de doutorado um aprofundamento da tese de mestrado junto ao professor Gottfried Gabriel como co-orientador e ao professor Kambartel como primeiro orientador. Mesmo assim, foram necessários cinco anos para terminá-la, sob o título de Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphilosophischen Semantik (a contribuição de Wittgenstein para uma semântica filosófica).[xiii] Escrita por oposição à interpretação deflacionária de Kambartel, essa tese recebeu como nota um esperado “gut” (bom).[xiv]
Pessoalmente, ainda hoje considero essa tese uma reconstrução relevante, embora em vários pontos defectiva, de uma variedade de sugestões semânticas de Wittgenstein, mostrando que muito de sua crítica da linguagem fundamentava-se em insights teoréticos que constituiam, digamos assim, o indispensável princípio ativo de suas poções terapêuticas.[xv]
Em Konstanz tive como colegas e amigos os hoje professores Fernando Rodrigues e Fernando Fleck, que possuíam um conhecimento de filosofia muito mais sólido do que o meu e com os quais muito aprendi.
Lembro-me de, após ter lido em um texto de Ernst Tugendhat que o termo singular precisa ter uma regra de identificação para o objeto ao qual ele se refere, ter apresentado a um incrédulo Fernando Rodrigues uma idéia epistemológica que acreditava original. O que chamamos de existência de um objeto físico, disse-lhe eu, é a efetiva aplicabilidade da regra de identificação do termo singular que o nomeia. Ou seja: dizer que um objeto existe é dizer que a sua regra de identificação é efetivamente aplicável, mais precisamente, dizer que ela tem uma aplicabilidade real e não apenas virtual, a qual é direta ou indiretamente garantida por intermédio de atos verificacionais potencialmente interpessoais pelo período em que o objeto puder ser dito existente.[xvi] Sendo assim, conclui, o objeto físico existente – tal como ele é conhecido por nós – só pode ser essa mesma regra de identificação, melhor dizendo, os próprios critérios constitutivos por ela gerados, considerados sob o ponto de vista de sua garantida aplicabilidade. Fiquei tão impressionado com essa idéia que cheguei mesmo a escrever um texto sobre ela e a entregá-lo ao professor Gabriel, que o considerou demasiado obscuro e, para todos os efeitos, falso. “Se bato com a cabeça nessa estante”, disse-me ele, “não bato com a cabeça em uma regra de identificação, mesmo que a sua aplicabilidade tenha sido garantida”.
Meses depois, pesquisando na biblioteca, descobri que minha idéia não era nem tão original nem tão absurda assim! Afinal, J.S. Mill havia explorado uma intuição não muito distante da minha no século XIX, com a sua tese de que a matéria é a permanente (garantida, comprovada) possibilidade de sensações.[xvii]
Embora tenha, ainda em meu tempo em Konstanz, chegado a defender a plausibilidade da tese de Mill em minha avaliação oral (mündliche Prüfung) sob a orientação do professor Wellmer, dei por encerrado o estudo dessa questão por muito tempo até o ano 2002, quando voltei a considerá-la.[xviii] Pude então introduzir o que creio serem algumas correções e refinamentos no fenomenalismo não-idealista proposto por Mill. Não creio que a sua obscura, mas em minha opinião profunda intuição, seja exata. Tentando precisá-la procurei substituir a noção de sensação pela noção mais neutra de conteúdo sensível e abandonei sua obscura noção de matéria, atendo-me essencialmente ao caso típico dos objetos materiais de tamanho médio, como o ponto de partida mais natural. Um objeto físico dado à experiência sensível é-nos apresentado a cada vez sempre como um diverso complexo aspectual de conteúdos sensíveis visuais, auditivos, táteis... e nada mais. Não podemos experienciá-lo de outra maneira, que não por intermédio de conteúdos de sensações, mesmo que tidos como indiretos.
Os complexos de conteúdos sensíveis concernentes às experiências que temos de um objeto físico são ilimitadamente múltiplos e variáveis, de acordo com o modo como nos são dados. Por isso, para que a identificação seja possível eles precisam ser unificados por meio de alguma espécie de regra identificadora, algo que já foi percebido por filósofos como Edmund Husserl. É tal regra que deve caucionar, por exemplo, que eu identifique visualmente e tactilmente o meu chapéu de pano. Chamei o conjunto aberto de complexos de perceptos aspectuais, unificáveis através de uma regra de identificação de multicomplexo de conteúdos sensíveis. Identificando-se ao meu chapéu de pano ou a qualquer objeto físico deve haver, pois, um multicomplexo de conteúdos sensíveis garantidamente experienciáveis e necessariamente unificáveis através de uma regra identificadora.
Com base nisso pude redefinir a intuição de Mill de uma forma que me pareceu mais adequada. Não é a matéria, como pensava ele, mas a existência de um objeto material, que tem a ver com a permanente possibilidade de sensações. A existência do objeto material nada mais é do que a efetiva e contínua possibilidade de que sejam experienciados os mais variados complexos de conteúdos sensíveis, identificados como parcelas de um multicomplexo de conteúdos sensíveis unificáveis através de uma regra de identificação, sendo essa garantia dada por atos de identificação virtualmente intersubjetivos, diretos ou indiretos. Assim, digo que o meu chapéu de pano existe porque quase diariamente tenho a experiência identificadora de variados complexos de conteúdos sensíveis do tipo o-meu-chapéu-de-pano, o que me convence que o conjunto de complexos de conteúdos sensíveis, ou seja, o multicomplexo de conteúdos sensíveis do tipo o-meu-chapéu-de-pano, é efetivamente e continuamente aberto à experiência em situações específicas.
Ora, se a existência de o-meu-chapéu-de-pano é a garantida experienciabilidade, em situações adequadas, de complexos de conteúdos sensíveis pertencentes ao multicomplexo gerado por uma regra de identificação, então o próximo passo será sugerir que aquilo que chamamos de o objeto existente ou real possa ser de algum modo parafraseável em termos de um multicomplexo de conteúdos sensíveis garantidamente possível. Obviamente, esse multicomplexo só pode ser experienciado por partes, nunca por inteiro. Essas partes seriam os complexos de conteúdos sensíveis que, com base (direta ou indireta) em atos de identificação, sabemos que garantidamente podem, em circunstâncias adequadas, ser experienciados, o que nos permite inferir a existência efetiva e contínuada dos outros elementos aspectuais não experienciados do multicomplexo. Meu chapéu de pano real nada mais é, pois, que certo multicomplexo de conteúdos sensíveis cujo acesso experiencial é garantidadamente, continuamente possível.
Suponhamos, para demonstrar o alcance dessa conclusão, que eu esteja usando o meu chapéu de pano à vista de todos. Cada um dos que o vêem tem experiência de um diverso complexo de conteúdos sensíveis do tipo o-meu-chapéu-de-pano. Esse é um ato verificacional intersubjetivo no qual cada um formou, aplicou e reaplicou uma regra de identificação capaz de gerar um multicomplexo de sensações garantidamente experienciáveis que sempre é passível de experienciação parcial através de complexos de sensações a ele pertencentes. Imagine agora que eu coloque o meu chapéu de pano no bolso. Eu ainda posso afirmar que ele existe, e todos concordarão. O que autoriza essa conclusão? Ora, o fato de que a experiência identificadora nos garantiu que esse multicomplexo de conteúdos sensíveis pode voltar a ser aspectualmente identificado a qualquer momento por mim e por todos.
Mas não é só o chapéu que se apresenta como um multicomplexo garantidamente, continuamente aberto à experiência – como um objeto existente. Todos os objetos do lugar onde me encontro se apresentam assim. Também as pessoas que nele se encontram se demonstram como multicomplexos de conteúdos sensíveis, diversamente experienciados por mim e por elas mesmas. E mesmo o meu eu subjetivo – enquanto um eu fenomenal (o único a ter existência real) – não se distingue de outros multicomplexos de conteúdos sensíveis subjetivos, em suas características próprias garantidamente atualizáveis. O próprio mundo – como uma totalidade multiplamente divisível em “objetos” – poderia ser concebido como um imensurável complexo de... multicomplexos de conteúdos sensíveis. Quando dizemos que o mundo existe ou que é real, uma coisa que queremos dizer com isso é também que nós o consideramos garantidamente ou continuamente experienciável com base em nossas experiências de identificação passadas e virtualmente intersubjetivas de conteúdos sensíveis.
Essa versão da tese de Mill pode à primeira vista parecer estranha, mas ela é tornada perfeitamente plausível por experiências com realidade virtual e alguns filmes. Experiências com realidade virtual, como a visual e tátil de estar se movendo dentro de um campo de batalha são hoje possíveis, e filmes de ficção como The Real Thing nos quais (pace Putnam) as pessoas vivem em realidades virtuais em tudo indistinguíveis da realidade real na qual nos encontramos, mostram que existe uma possibilidade de princípio, ao menos, da existência de um mundo que embora pareça ser em tudo idêntico ao nosso, não passe de um imenso complexo de... multicomplexos de conteúdos sensíveis garantidamente possíveis.
É verdade que nessas experiências com realidade virtual e nos filmes é sempre suposta a existência de uma realidade verdadeira, que gera a realidade virtual. Mas é importante perceber que mesmo essa realidade supostamente não-virtual também pode ser inteiramente concebida como constituída de multicomplexos de conteúdos sensíveis garantidamente experienciáveis, o que torna gratuita a suposição de que precisa haver um “substrato material” para além de conteúdos sensíveis efetivamente possíveis.
Ora, considerando-se que: (1) não faz sentido pensar que deva existir um mundo verdadeiramente real “por trás”, o qual, por não ser constituído de complexos de conteúdos sensíveis continuamente experienciáveis, em princípio jamais poderá ser verificado, e considerando-se também que (2) todo o mundo pode ser construído como consistindo tão somente de combinações de conteúdos sensíveis efetivamente e continuamente experienciáveis, parece razoável pensarmos que o mundo real deva em princípio poder ser concebido somente em termos de combinações de conteúdos que podem ser direta ou indiretamente dados à sensação, ou seja, em termos fenomenalistas.
A tese fenomenalista que acabo de expor abre-se a um grande número de objeções. A mais séria delas, que não posso deixar de considerar aqui, é a seguinte. Mesmo que um multicomplexo de conteúdos de sensação se torne garantidamente atualizável, ele continua sendo constituído de conteúdos de sensações. E parece que um conteúdo de sensação que é continuamente experienciável não deixa por isso de ser uma sensação, mesmo que ela pertença ao domínio do possível e não do atual. Mas sensações são entidades psicológicas, subjetivas, privadas. Por conseguinte, o multicomplexo continua sendo algo pertencente ao nosso mundo psicológico e não ao mundo físico. Por conseguinte, a aceitação do fenomenalismo acaba por comprometer-nos fatalmente com o idealismo ou até mesmo com o solipsismo, que são posições filosóficas de difícil digestão.
Para fazer face a essa objeção, minha sugestão é a de que sob certas circunstâncias o conteúdo de sensação possui uma face de Janus, ou seja, que ele admite ser tanto psicologicamente quanto fisicamente interpretável. Assim, se ao olhar para um objeto imóvel à distância, eu aperto o canto do globo ocular com o dedo, vejo o objeto se mover para o lado oposto. Isso demonstra, sem sombra de dúvida, que vejo o objeto através de um “véu de sensações”, que o conteúdo de sensação que tenho do objeto é psicológico, razão pela qual o vejo alterar sua posição ao pressionar meu globo ocular. Apesar disso, ainda me julgo autorizado a dizer que aquilo que vejo, ou seja, o mesmo conteúdo sensório é realmente o próprio objeto, o qual apenas parece ter-se movido. Posso inclusive explicar porque é assim dizendo que pela pressão do meu dedo ter alterado a posição de meu globo ocular, a perspectiva sob a qual vejo o mesmo objeto foi também alterada, fazendo com que eu tenha tido a impressão de que o objeto se moveu, mas que ele está certamente imóvel, posto que o mesmo conteúdo sensível do objeto continua me sendo dado dentro de um mesmo pano de fundo contextual de conteúdos sensivelmente dados, ainda que ambos sejam deslocadamente vistos (e aqui parece que o chamado ‘conteúdo sensível’ não é mais psicológico).
Qual é a maneira de ver correta? Ora, minha sugestão é admitir que elas são ambas corretas: o que chamamos de ‘conteúdo sensível’ ganha um status psicológico ou físico, dependendo da interpretação que dele fazemos. Se fizermos uma interpretação em termos psicológicos, de como ele se apresenta a nós, parece que o conteúdo deve ser constituído de perceptos, de sensações internas. Mas se fizermos uma interpretação do mesmo conteúdo sensível em termos de como ele é, ou seja, do que acontece no mundo físico intersubjetivamente verificável, esse conteúdo passa a ser visto como sendo constituído de objetos ou propriedades objetuais localizadas no mundo externo. Essa é uma possibilidade que já foi percebida, pelo que sei, por Bertrand Russell.[xix]
A questão importante torna-se então a de saber o que caracteriza essa interpretação fisicalista do conteúdo sensível efetivamente e continuamente experienciável. Minha sugestão é a de que aquilo que caracteriza a interpretação fisicalista do que é dado como conteúdo sensível é a satisfação do que chamo de critérios de realidade externa, que podem ser encontrados na tradição epistemológica de Locke a G.E. Moore, passando por Berkeley, Hume, Kant, Mill e outros. Eis os principais critérios de realidade, cuja satisfação conjunta nos permite interpretar conteúdos sensíveis como constituídos de propriedades aspectuais de objetos no mundo externo:
a) O conteúdo sensível possui máxima intensidade experiencial (geralmente co-sensorial).
b) O conteúdo sensível normalmente é dado na independência da vontade.
c) O conteúdo sensível é dado em um contexto de regularidades ou leis naturais próprias do mundo externo.
d) Há um acesso verificacional intersubjetivo potencial permanente do conteúdo sensível, enquanto ele puder ser dito existente.
A permanente e garantida possibilidade de sensação propugnada por Mill está contida nessas condições. Afinal, se há um acesso verificacional intersubjetivo potencial permanente, que segue as regularidades esperadas do mundo físico dito externo, então essa condição de Mill está sendo satisfeita.
Quando, por outro lado, o conteúdo sensível em questão não satisfaz o conjunto desses critérios, ele é naturalmente interpretado como sendo de natureza puramente psicológica (esse é o caso, por exemplo, de pós-imagens). Mas quando ele demonstra satisfazer todos esses critérios, ele se torna duplamente interpretável: em termos psicológicos e em termos fisicos. Ele pode ser interpretado como um conteúdo psicológico, certamente, uma vez que tal conteúdo psicológico nos é seguramente dado (ilusões e alucinações perceptuais junto às evidências do processamento cerebral dos estímulos do mundo externo são provas disso). Mas no ato perceptivo esse conteúdo também pode ser interpretado como pertencente ao mundo externo, pois no sentido mais usual da palavra, tudo o que dele é exigido para que ele possa ser considerado como pertencente ao mundo externo é a satisfação dos critérios de realidade externa, ou seja, que os constituintes desse conteúdo possuam máxima intensidade sensorial, usual independência da vontade, atualização experiencial na dependência de leis e regularidades físicas, sendo tudo isso continuadamente susceptível de confirmação intersubjetiva etc. (Observe que o conceito de realidade externa aqui empregado não é o mesmo que o empregado em cenários ficcionais ou céticos: o mundo ilusório alucinado pela alma enganada pelo gênio maligno continua sendo externo e real no sentido indicado, embora ele não seja realmente externo nem real no sentido usado pelo cético. Voltarei a esse ponto quando for discutir o ceticismo).
Por fim, vale notar que quando consideramos o que chamei de constituintes dos conteúdos sensíveis interpretados como satisfazendo os critérios de realidade externa, uma maneira de analisá-los é considerando-os como sendo constituídos de ‘propriedades singularizadas’ – aquilo que hoje em dia muitos chamam de tropos. Meu prezado professor Gabriel não poderia, é verdade, bater com a cabeça na regra de identificação de sua estante, nem em suas sensações psicológicas atuais, mas é bem provável que ele pudesse bater com a cabeça em certo multicomplexo de propriedades singularizadas – de tropos – cujo critério de existência seja a sua apresentação como conteúdos sensíveis que satisfazem critérios de realidade e que por isso mesmo se demonstram efetivamente, continuamente, garantidamente atualizáveis.
Admito que uma defesa satisfatória do realismo fenomenalista aqui proposto demandaria muito mais do que isso. Não obstante, parece-me um engano pensar que se trata de um projeto irremediavelmente fracassado, de um cavalo morto da filosofia contemporânea, como alguns parecem crer.[xx]
5. Uma solução para o problema da percepção?
Quero considerar nesse ponto uma sugestão nunca publicada, mas que me parece um corolário do que acabei de dizer. A filosofia da percepção costuma distinguir três posições fundamentais incompatíveis entre si: o realismo direto, segundo o qual temos acesso perceptual direto ao mundo externo tal como ele é (Aristóteles); o realismo indireto (representacionalismo), segundo o qual nosso acesso ao mundo externo é indireto, através de representações ou fenômenos que no essencial devem se assemelhar aos objetos materiais por eles representados, como a psicologia e a fisiologia demonstraram (Locke), e o fenomenalismo idealista, segundo o qual tudo não passa de representações ou fenômenos (Berkeley), pois se não podemos ir além dos fenômenos, então é ociosa a postulação representacionalista de um mundo externo que suporte as representações fenomenais. Qual das três posições é correta? Esse é o grande problema da percepção, que atormentou os filósofos modernos e que continua até hoje irresolvido.
Ora, meu entendimento específico do fenomenalismo torna ao menos em princípio possível uma solução pluralista do problema da percepção, uma solução que desejo esboçar aqui de modo meramente conjectural. Como todo o nosso conhecimento do mundo externo depende de conteúdos de sensação, o fenomenalismo possui algo de correto, posto que o mundo externo nada mais é do que um complexo de... multicomplexos de multicomplexos de conteúdos de sensação atuais e possíveis. Contudo, vimos que essa admissão do fenomenalismo não nos compromete com o idealismo, uma vez que esses conteúdos de sensação, quando dizem respeito ao mundo externo, podem ser duplamente interpretados: (i) como conteúdos psicológicos e (ii) como entidades externas, digamos, como aspectos de objetos materiais constituídos por propriedades singularizadas (tropos) reais, na medida em que essas entidades são consideradas como ao menos satisfazendo os critérios de realidade (a)-(d). Pois bem: devido a essa ambiguidade, o realismo direto é também uma posição correta: ele recorre restritivamente a (ii), ou seja, a uma interpretação realista de conteúdos de sensação atuais e garantidamente possíveis, permitindo-nos dizer que temos acesso perceptual direto a propriedades singularizadas (tropos) e a objetos materiais externos (mais exatamente, aos tropos que se apresentam a nós como aspectos sensivelmente acessíveis dos objetos materiais, os quais não passam de sistemas de tropos compresentes).
Finalmente, o realismo indireto também possui algo de verdadeiro: os conteúdos sensíveis entendidos em termos psicológicos (fenomenais) podem ser interpretados como os dados primários, representando os conteúdos sensíveis que se dão como idênticos em termos fisicalistas, uma vez que a experiência nos mostra que sem os conteúdos entendidos como entidades físicas reais (os multicomplexos de tropos que satisfazem (a)-(d)) não teríamos as representações psicológicas por elas causadas.
Mas não é a causação de conteúdos fenomenais por conteúdos reais alguma coisa inevitavelmente não-fenomenal? Ora, nada nos impede de interpretar também a causação em termos fenomenais, concernentes à relação sequencial entre conteúdos sensíveis que satisfazem as condições (a)-(d) (objetos materiais, tropos) e os conteúdos sensíveis psicológicos que os seguem no processo sensório-perceptual, conquanto esta seja uma relação de necessidade, aqui entendida como uma simples relação de bom entrincheiramento (good entrenchment) conceptual.
6. Fatos empíricos
Ao voltar para o Brasil em 1990 vim trabalhar como professor recém-doutor na PUC do Rio de Janeiro. Nessa época escrevi um pequeno artigo intitulado “Fatos empíricos”, criticando a idéia defendida por P.F. Strawson de que tais fatos são constructos lingüístico-conceptuais (pseudo-material correlates) e não entidades existentes no mundo real.[xxi] Segundo os seus argumentos, os fatos empíricos não estão no mundo, sendo intrinsecamente diferentes dos eventos, os quais estão no mundo. Por isso os eventos são facilmente localizáveis e datáveis, diversamente dos fatos. Por exemplo: o evento da travessia do Rubicão por César deu-se em 47 a .C.; mas o fato de que César atravessou o Rubicão não se deu em tempo algum, como é sugerido pelo uso da cláusula-que (that-clause) após a palavra ‘fato’...
No artigo penso ter demonstrado que os principais argumentos contra a realidade empírica dos fatos ditos empíricos são neutralizáveis. Minha ideia básica foi a de que Strawson se confundiu quanto à cartografia conceptual do fato em questão. O conceito de fato não se opõe ao de evento, como ele havia pensado, mas o inclui, pois palavras como ‘evento’ e ‘estado de coisas’ são na verdade hipônimos da palavra ‘fato’. Melhor dizendo: o conceito de fato é um conceito guarda-chuva, aplicável tanto a combinações de entidades formais quanto empíricas, as últimas podendo ser tanto estáticas (caracterizáveis como as que estruturalmente não se alteram enquando duram) quanto dinâmicas (caracterizáveis como as que estruturalmente se alteram enquanto duram). Eis o esquema:
FATOS:
(A) Empíricos
(A1) Estáticos (condições, situações, estados de coisas...)
(A2) Dinâmicos (eventos, ocorrências, processos...)
(B) Formais
É possível dizer de tudo isso que são fatos. E essa maior abrangência é a razão de a palavra ‘fato’ ser ideal para identificar o fazedor da verdade (o truth-maker) na teoria correspondencial da verdade, pois o fazedor da verdade pode ser tanto uma situação quanto um estado de coisas, tanto um evento quanto um processo.
Uma vez aceito o esquema acima, as diferenças se explicam mais claramente. Quando consideramos os hipônimos da palavra ‘fato’, vemos que a descrição de eventos, ocorrências e processos, indicadora de fatos dinâmicos, excluem a cláusula-que. Não se diz ‘o evento de que César atravessou o Rubicão’, nem ‘o processo de que a transição para a era da informática está em curso’. Onde a cláusula-que aparece mais tipicamente (embora não necessariamente) é na descrição de condições, situações e estados de coisas, indicadora de fatos estáticos, como nas locuções ‘a condição do muar de que ele claudica’, ‘a situação de Sócrates de que ele era visto como corruptor da juventude’ e ‘o estado de coisas de que o livro se encontra na estante’. Como vimos, condições, situações e estados de coisas são associações estáticas de elementos, também abarcadas pelo conceito de fato.
A palavra ‘fato’ é por sua vez neutra quanto ao uso ou não-uso da cláusula-que. Considere. Eu posso falar do fato de que o muar claudica (uma condição, caracterizada pela atribuição de uma propriedade não-relacional a algo) tanto quanto do fato de o muar claudicar, posso falar do fato de que a vassoura está no canto (um estado de coisas caracterizado como relação entre entidades) tanto quanto do fato de a vassoura estar no canto. E também posso falar do fato de que César atravessou o Rubicão (um evento) tanto quanto do fato de ele ter atravessado o Rubicão, bem como do fato de que o clima mundial está se aquecendo (um processo, caracterizado como um evento de maior duração) tanto quanto do fato de o clima mundial estar se aquecendo.
Para Strawson a razão dessa tendência da descrição de eventos, diversamente da descrição de fatos, de excluir a cláusula-que, é que eventos são ocorrências espácio-temporais. Minha explicação é bem diversa. Sugeri que a cláusula-que serve tão somente para marcar fatos estáticos, sendo esta a razão pela qual ela costuma ficar ausente na descrição de fatos dinâmicos. Isso também explica por que a palavra ‘fato’ admite ambas as coisas. É que em razão de sua dupla abrangência ela é mais flexível, admitindo tanto ser seguida de cláusulas-que (como em ‘o fato de que César atravessou o Rubicão’) como de sua ausência (como em ‘o fato da travessia do Rubicão por César’). Mas isso é assim porque ela se aplica tanto a situações e estados de coisas (fatos estáticos) quanto a eventos e processos (fatos dinâmicos), e não por se referir a algo que não está no mundo, como supunha Strawson.
Finalmente, o exemplo do fato de que César atravessou o Rubicão é bastante enganoso. Esse fato não é espaço-temporalmente localizável de modo preciso apenas porque, como qualquer estudante de história sabe, ele não se refere somente à mera travessia do riacho, mas ao explosivo estado de coisas político-militar instaurado por César ter infringido a lei do senado, segundo a qual os seus exércitos não tinham a permissão de penetrar no território italiano cujo limite era demarcado pelo Rubicão; um fato que significava guerra civil e que acabou por produzir uma profunda e permanente modificação sócio-política. Esse fato bastante difuso e institucionalmente determinado não tem, obviamente, uma localização espácio-temporal precisa, mas parece claro que ele se deu no Império Romano e na época em que César ainda era vivo... Contudo, há fatos empíricos com localização e duração espácio-temporal razoavelmente precisa e que podem ser até mesmo ostensivamente apontados. Por exemplo: posso apontar para o fato de que a torneira da pia do banheiro está pingando e posso assegurar que ele deixará de existir quando ela for consertada.
7. Revisitando a teoria correspondencial da verdade
Em 1992 fui admitido por concurso na UFRN, em Natal. Meu objetivo era fazer uma breve aventura pelo Nordeste, que já dura mais de vinte anos. No fundo, o que me moveu a essa escolha foi a liberdade intelectual em um ambiente sem dissonâncias cognitivas – algo importante para quem acredita, como Wittgenstein, que o filósofo não deve pertencer a nenhuma comunidade de ideias.
Nos primeiros anos em Natal procurei aprofundar e ampliar meu conhecimento da tradição filosófica, ministrando cursos introdutórios sobre os grandes filósofos da tradição, como Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant e os empiristas ingleses, além de um pouco de filosofia medieval e do idealismo alemão. É impressionante o quanto ainda hoje pode ser aprendido através de uma leitura minimamene aprofundada dos grandes filósofos do passado. Também ministrei alguns cursos introdutórios à lógica. E preparei meu primeiro livro de algum interesse em termos de pesquisa: uma seleção de ensaios intitulada A Linguagem Factual. Alguns ensaios já haviam sido publicados antes, a maioria não. Entre os ensaios havia um artigo final sobre a teoria correspondencial da verdade, acerca do qual me estenderei um pouco a seguir.
A versão da teoria correspondencial que defendi nesse livro e que tenho defendido desde então consiste em uma elaboração de uma versão verificacionista da teoria correspondencial proposta por Moritz Schlick em uma quase esquecida tese de habilitação de 1911.[xxii] Esse filósofo sugeriu a existência de um ato de aferição de correspondência, que no caso mais fundamental, nada mais é do que um ato verificacional através do qual se estabelece se o conteúdo de uma hipótese considerada é ou não é idêntico ao conteúdo da observação verificadora dessa hipótese. Se essa identidade existe há correspondência, o que é o mesmo que dizer que o conteúdo da hipótese é verdadeiro. Já se essa identidade não é encontrada, não há correspondência e o conteúdo da hipótese é falso.
Para exemplificar: suponha que você tenha lido ontem na Internet a frase “Irá fazer bom tempo nas praias amanhã”. Hoje você vai à praia e é surpreendido por uma tempestade. Você pensa: “A previsão era falsa”. O que você acabou de fazer? Ora, você comparou o conteúdo da hipótese que constitui a previsão com o conteúdo da observação, notando que a esperada identidade de conteúdo não existe, o que equivale a concluir que a proposição hipotética “Irá fazer bom tempo nas praias amanhã” é falsa. Suponhamos agora que você vai à praia e encontra o céu todo azul. Nesse caso você verifica uma identidade entre o conteúdo da previsão e o conteúdo da observação. Essa identidade é o que chamamos de correspondência, o que permite atribuir verdade à previsão.
Podemos analisar isso como um procedimento pragmático idealmente constituído por três momentos:
(1º) O momento da postulação de uma hipótese ?p, onde ‘p’ exprime um conteúdo proposicional e ‘?’ é o operador que indica o caráter hipotético do que cai sob o seu escopo.
(2º) O momento da observação (ou das observações), !q, onde ‘!’ é o operador que indica o caráter (postulado como) certo do conteúdo observacional expresso por q, que cai sob o seu escopo.
(3º) O momento da verificação da correspondência, no qual há uma comparação entre o conteúdo da hipótese considerada no momento (1º) e o conteúdo da observação considerado no momento (2o), ou seja, entre p de ?p e q de !q.
Se uma identidade é verificada, ou seja, se p = q, então podemos concluir ├ p, ou seja, podemos ajuizar que p é uma proposição verdadeira. Se a identidade é refutada, se p ≠ q, então concluímos ├~p, ou seja, ajuizamos que p é uma proposição falsa. Essa explicação da verdade como correspondência é bastante clara para as frases singulares observacionalmente verificáveis.
Uma questão que se coloca é a de saber quais são os elementos do conteúdo da observação ou da hipótese. Longe de optar por uma solução metafísica como a de Wittgenstein no Tractatus, segundo a qual o mundo possui apenas uma única divisão em elementos simples, optei (inspirado pelo Wittgenstein das Investigações) em admitir uma divisão múltipla do mundo, na qual os elementos dos conjuntos eventualmente isomórficos são pragmaticamente determinados de acordo com o contexto, ou seja, segundo regras provenientes do “jogo de conhecimento”, ou seja, do que chamo de a prática epistêmico-linguística na qual a hipótese e a observação são feitas. Por isso, quando digo que o gato está sobre o tapete pode bem ser que os elementos participantes do conteúdo pensado sejam as representações (que não precisam ser naturalistas) do gato e do tapete concatenadas pela relação de estar sobre, uma análise ulterior tornando-se aqui injustificada.
O apelo à prática epistêmica também serve para explicar porque o conteúdo da proposição observacional verificadora não pode ser falso, o que a transformaria numa nova hipótese e nos conduziria a um regresso ao infinito. É que no contexto da prática epistêmica na qual se dá a verificação, a proposição observacional possui um conteúdo que a própria prática epistêmica postula como sendo certo no sentido de ser aceito como estando além da possibilidade de ser falso.
Contudo, isso não quer dizer que em outro contexto – no contexto de outra prática epistêmica – igual conteúdo observacional não possa ser questionado como possivelmente falso, fazendo então parte de uma hipótese capaz de ser falseada. Digamos, por exemplo, que se trate de uma prática na qual devemos adivinhar se algo que nos é dado é uma realidade artificial (digamos, uma imagem estereoscópica de algo) ou não. Essa imagem possui o grau máximo de intensidade sensorial visual, independência da vontade, é intersubjetivamente experienciável, segue leis empíricas... Mas embora possa ser admitida como possuindo um tênue nível de realidade, não possui a espécie de realidade mais confiável do mundo que nos cerca, por exemplo, não é co-sensorial nem permanente, não podendo ser efetivamente considerada como um fato empírico verificador, nem podendo o conteúdo mental que instancia a sua proposição ser tido como sendo – por ser admitido como certo – capaz de tornar o conteúdo de uma hipótese correspondente a ele verdadeiro.
Finalmente, em um artigo muito posterior intitulado “A verdadeira teoria da verdade”,[xxiii] sugeri que a versão da teoria correspondencial recém-resumida poderia ser generalizada para todo e qualquer enunciado, inclusive os das ciências formais, tradicional reduto do coerentismo. Um teorema como “A soma dos ângulos de um triângulo qualquer é 180º” pode ser visto como uma hipótese cujo conteúdo pode ser tornado idêntico ao conteúdo de um enunciado resultante de um procedimento de prova a partir da aplicação de axiomas ou postulados da geometria euclidiana a um triângulo qualquer. A constatação da identidade de conteúdo do teorema com o conteúdo do enunciado resultante do procedimento de prova constitui a verificação do teorema, a sua correspondência com o fato abstrato que a sentença expressa. E o conteúdo do enunciado resultante do procedimento de prova é dado como certo dentro da prática da geomeria euclidiana, derivando essa garantia de certeza dos axiomas ou postulados dos quais foi derivado, não precisando esse seu status ser questionado, pois se isso acontecesse também aqui seríamos conduzidos a um regresso.
Se assim for e se considerarmos que as matemáticas têm sido vistas como o reduto indevassável das teorias coerentistas da verdade (onde a verdade do teorema resultaria de sua coerência com os axiomas ou postulados) fica a pergunta se esse entendimento, que subordina a coerência à correspondência, não pode ser generalizado. Afinal, procedimentos análogos são encontrados na verificação parcialmente coerencial de muitos enunciados empíricos.
Eis um exemplo. Imagine que eu receba pelo correio um presente anônimo. Uma garrafa de vinho verde português, que é o meu preferido. Minha primeira ideia é a de que o vinho tenha vindo de Portugal, pois eu o havia provado apenas uma única vez em Cintra, junto a meu amigo João. Teria sido ele? Mas me recordo que João havia me dito que esse vinho não pode ser exportado, uma vez que se deteriora muito rapidamente. Recordo-me então que alguns meses atrás eu havia contado essa história a minha amiga Alice (S1), que por sua vez me afirmou ter encontrado vinho verde no mercado perto de sua casa em Santos (S2). Percebo então que o malote não era internacional, tendo vindo do estado de São Paulo (S3). Dessas constatações eu concluo que foi Alice quem me presenteou com uma garrafa de vinho verde. Claro, essa é uma conclusão indireta. Ela assume a verdade de sentenças observacionais como O1 “Alice compra um vinho verde no mercado” e O2 “Alice envia o vinho verde pelo correio para o meu endereço”. Ora, o que temos aqui é primeiro um conteúdo hipotético ?p: “Será que foi Alice quem me enviou o vinho verde?”. Essa hipótese é demonstrada como possuindo o mesmo conteúdo proposicional que o enunciado verificador !q: “Certamente, foi Alice quem me enviou o vinho verde”. A certeza indutiva de !q, por sua vez, deriva-se de sua coerência com os conteúdos de crença de S1, S2 e S3. Isso não nos conduz, porém, a um entendimento fundamentalmente coerentista da verdade, dado que as constatações S1, S2 e S3 dependem, para poderem ser verdadeiras, da verdade dos possíveis enunciados observacionais como O1 e O2, sem o que elas não teriam qualquer força. A conclusão a que chegamos é a de que a teoria coerencial da verdade deve ser subordinada à teoria correspondencial: a coerência nada mais é do que um mecanismo interdoxal em muitos casos indispensável ao estabelecimento da correspondência.
8. O que há de errado com o argumento da linguagem privada?
Passei o ano de 1995 em Munique fazendo um primeiro pós-doutorado, sob os auspícios da Capes, junto a um jesuíta de grande cultura filosófica, o professor Friedo Ricken, da Hochschule für Philosophie. O texto de algum interesse que escrevi por essa época foi uma crítica ao argumento da linguagem privada de Wittgenstein, intitulada “O paradoxo da linguagem privada”, que publiquei na revista alemã Prima Philosophia.[xxiv]
O assim chamado argumento da linguagem privada é uma objeção profunda à possibilidade do aprendizado de qualquer linguagem fenomenalista que nos permita identificar estados mentais fenomenais internos, como sensações e emoções. A melhor maneira de introduzi-lo é pelo contraste com o aprendizado da identificação de tipos de objetos físicos na linguagem fisicalista. Por exemplo: como aprendemos a identificar as referências da palavra ‘bola’? Isso acontece através de definições ostensivas, ou seja, quando adultos apontam para bolas e dizem coisas como “Isso é uma bola”, “Aquilo é uma bola”... a criança acaba por aprender que objetos físicos redondos são bolas. Mas esse aprendizado só é confirmado quando, ao lhe ser apresentada outra vez uma bola, ela se demonstra capaz de reidentificar, perante os adultos, o objeto como sendo do tipo bola. Nesse caso, com base na concordância dos outros falantes da linguagem quanto à correção da reidentificação, é possível saber que se aprendeu a regra para identificar objetos do tipo bola. O aprendizado da regra só se confirma por ser respaldado por uma checagem intersubjetiva.
Considere agora o que acontece quando tentamos identificar entidades mentais internas de caráter fenomenal. Nesse caso não podemos fazer nenhuma checagem intersubjetiva das reidentificações. Suponha que uma pessoa deva aprender a identificar um estado interno qualquer, por exemplo, a dor que sente. Outras pessoas não podem ensiná-la, pois não podem saber quando ela sente dor. Mas digamos que ela seja capaz de inventar uma linguagem privada, apontando interiormente para a dor que sente e identificando-a através de um signo que ela mesma inventou. Suponhamos que ele seja ‘D’. Imaginemos agora que da próxima vez que a pessoa sinta dor, ela diga para si mesma ‘D’, como que apontando para o estado mental interno. Nesse caso, pensa Wittgenstein, ela não poderá saber se está realmente apontando para o mesmo estado mental que apontou da primeira vez, pois não existem outros falantes que possam checar a correção da aplicação da regra, ou seja, confirmar ou refutar a identificação. Como Wittgenstein observa: faltam aqui critérios de correção intersubjetiva, e onde tais critérios não existem não podemos distinguir o seguir uma regra da mera impressão de estar seguindo uma regra.[xxv] Mas tal distinção é necessária, pois expressões só são comunicáveis pelo compartilhamento de convenções cuja existência depende da checagem intersubjetiva.
Como uma linguagem é um sistema de regras, a generalização desse resultado nos leva à conclusão radical de que não pode existir uma linguagem cujos objetos de referência sejam estados fenomenais, verdadeiramente subjetivos.[xxvi] Tudo o que pode existir é uma linguagem acerca de expressões comportamentais de estados internos, estados esses cuja existência o próprio Wittgenstein admite, mas que (a meu ver incoerentemente) trata de situar para além da linguagem constituída por regras, como que para além do dizível, posto que “Um algo sobre o qual nada se pode dizer vale tanto quanto nada”.[xxvii] P.F. Strawson, comentando essa posição de Wittgenstein, sugeriu que esse último fosse vítima de um preconceito anti-subjetivista.
Quando perguntei a Ernst Tugendhat o que ele pensava do argumento da linguagem privada ele me respondeu que o achava demasiado contra-intuitivo para ser correto. Sempre pensei assim. Meu problema era, porém, o de identificar o ponto fraco do argumento. Para chegar a isso procurei demonstrar duas coisas. A primeira é que uma regra só pode deixar de sê-lo se for logicamente incorrigível. Ela não deixa de ser uma regra apenas por não ter sido de fato, por alguma razão, intersubjetivamente checada. Afinal, é um fato indiscutível que muitas das regras que seguimos nunca foram intersubjetivamente checadas. Posso inventar para mim mesmo a regra de nunca mais comer creme de espinafre e ninguém precisará ser informado disso. Há regras que por razões meramente circunstanciais não podem ser checadas, como as inventadas por um náufrago solitário que acaba por morrer em sua ilha deserta.
A objeção que poderia ser feita a essa interpretação é a de que o argumento de Wittgenstein o compromete com a ideia de que toda e qualquer regra, para ser regra, precisa ser efetivamente corrigida e não meramente corrigível. Pode ser. O problema com essa interpretação é que ela é desinteressante. Ela não expressa apenas uma ideia absurdamente implausível, mas metodologicamente anti-wittgensteiniana, pois compromete a significatividade de muito de nosso pensamento de senso comum e do que efetivamente dizemos ao empregar a linguagem. É por demais implausivel pensar que eu não posso inventar uma regra para mim mesmo, como a de nunca mais comer creme de espinafre, pois parece que faço esse tipo de coisa muito freqüentemente. Aliás, exagerando o ceticismo gratuito seria também possível defender que nenhuma regra pode ser aplicada em situações nas quais ela não possa ser submetida a uma presente correção intersubjetiva – afinal, nada nos garante que na ausência desse controle ela não estará sendo falsamente interpretada e usada.
Passemos agora a interpretar o argumento de Wittgenstein como assumindo que as regras da linguagem fenomenal são logicamente incorrigíveis. Digamos que involuntariamente eu siga a regra de a cada manhã, ao acordar, me recordar da primeira frase da Divina Comédia, mas que sempre me esqueça logo em seguida de que isso aconteceu. Aqui chegamos já próximos ao contra-senso e teríamos chegado realmente lá se fosse logicamente impossível saber se isso acontece...
Essa assunção devolve ao argumento de Wittgenstein sua plausibilidade: pode bem ser que uma regra logicamente incorrigível seja algo inconcebível e sem sentido. Se as supostas regras de nossa (suposta) linguagem fenomenal privada são logicamente incorrigíveis, parece que elas não podem, no final das contas, ser distinguidas de impressões de regras.
Além de ser a maneira mais interessante e razoável de se reconstruir o argumento de Wittgenstein, essa interpretação expõe um pressuposto implícito ao que ele escreve. Ele notou, por exemplo, que mesmo que os nervos de uma pessoa A pudessem estar ligados aos da pessoa B, de modo que A pudesse sentir a dor da picada de uma vespa na mão de B, apenas a localização da dor seria compartilhada, pois a dor que A sente será a sua própria dor, enquanto a dor que B sente continuará sendo a dor do próprio B.[xxviii] Frege, em um artigo lido por Wittgenstein, notou que se outra pessoa pudesse penetrar em nossas mentes para observar uma representação visual, a representação por ela experienciada seria a sua própria e não a nossa.[xxix] Tais considerações nos conduzem a um dogma geralmente assumido pelos filósofos analíticos da época de Wittgenstein, qual seja, à tese da incompartilhabilidade lógica dos estados fenomenais. Essa tese consiste na afirmação de que a corrigibilidade intersubjetiva das regras da linguagem fenomenal é logicamente impossível.
Admitido isso, tudo o que precisamos demonstrar para derrubar o argumento da linguagem privada é que a tese da incompartilhabilidade lógica dos estados fenomenais é falsa. Ou seja, precisamos mostrar que as regras de uma linguagem fenomenal privada, embora sendo de um tipo que nunca foi de fato intersubjetivamente corrigido, são – contrariamente ao que Wittgenstein e muitos filósofos supunham – logicamente corrigíveis de modo intersubjetivo, sendo essa a falha oculta no fundamento que tacitamente sustenta o argumento da linguagem privada.
É difícil idealizar uma experiência em pensamento que demonstre que estados fenomenais são logicamente compartilháveis. Podemos começar fazendo uma analogia com computadores. Suponha que A e B sejam versões atualizadas de autômatos do tipo que Grey Walter chamava de machina speculatrix, que se alimentava de luz e vivia a sua procura. Suponha que ao se encontrar com B, o autômato A seja capaz de ler os conteúdos informacionais coletados por B em suas explorações. Embora o autômato A possa copiar esses dados primeiro, para só então lê-los em si mesmo, de modo que tal conteúdo de experiência se torne parte de si mesmo, não há contradição alguma em pensarmos que ele possa lê-los diretamente em B, compartilhando-os desse modo com o próprio autômato B! Esse seria, aliás, o método mais simples e direto. Ora, por que achar que em uma situação análoga nós humanos precisaríamos atuar de modo diferente do das máquinas?
Talvez seja mesmo possível imaginar no futuro dois seres humanos conscientes, A* e B*, que de algum modo compartilhem a função de partes de seus cérebros, digamos, de que o sistema límbico seja em parte o mesmo, mas que ainda assim permaneçam distintas as funções das regiões neocorticais de A* e de B*, e que isso baste para que eles sejam capazes de possuir duas consciências diversas. Nesse caso, parece concebível que um estado mental como o da dor, que se dá no sistema límbico, seja compartilhado por A* e por B*, embora a interpretação consciente da dor, que se dá no néocortex, seja diversa. Se entendermos como dor essencialmente o processo ocorrente no sistema límbico, então A* e B* realmente poderão compartilhar de uma mesma dor, demonstrando possível a checagem intersubjetiva de um estado fenomenal interno.
As experiências em pensamento consideradas acima sugerem ser possível separarmos logicamente:
(a) o sujeito (a consciência) que experiencia o estado mental
(b) o estado mental experienciado.
Ora, sendo essa separação logicamente possível, então o compartilhamento intersubjetivo de estados mentais fenomenais também é logicamente possível, o que torna a checagem intersubjetiva da regra de identificação de estados mentais em princípio possível. O argumento da linguagem privada falha por assumir um pressuposto falso: a incompartilhabilidade lógica dos estados mentais fenomenais. Ficamos, pois, intitulados a supor que o que cremos serem as regras da nossa linguagem fenomenal são realmente regras, uma vez que elas ainda continuam sendo ao menos logicamente passíveis de correção lingüística intersubjetiva, uma correção que na experiência humana tem sido imensamente confirmada por caminhos indutivos, ainda que sempre indiretos, através da correlação com uma multiplicidade de fenômenos físicos intersubjetivamente acessíveis.
Outro resultado de minha estadia em Munique foi um contato maior com a literatura filosófica norte-americana contemporânea, cada vez mais presente na Alemanha. Até então havia me restringido a alguns filósofos de língua alemã, como Frege e Wittgenstein, a alguns clássicos e a uns poucos filósofos analíticos ingleses. O aprendizado da discussão contemporânea anglo-americano-australiana era nas décadas de 1970-80 restrito aos poucos privilegiados que podiam realizar cursos universitários nesses países e, de preferência, permanecer por lá. A literatura secundária e introdutória era insuficiente ou pouco acessível, tornando-nos fadados à alienação. Desde então tem havido uma crescente democratização dessa situação. Um número cada vez maior de introduções, enciclopédias, coletâneas, invadiu as livrarias internacionais, permitindo que qualquer pessoa minimamente preparada e intelectualmente consciente em condições de adquirir os livros se torne capaz de formar uma idéia do que foi recentemente discutido. Isso, aliado às livrarias virtuais como a Amazon e ao material cada vez maior à disposição na internet, incluindo vídeos, está tornando a discussão filosófica contemporânea em princípio acessível a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, diminuindo a defasagem cultural, que em países como o Brasil ainda hoje é considerável.
Obviamente, isso também vale para a cultura em geral. A revolução cultural representada pela internet promete ser maior do que a produzida pela invenção da imprensa no século XV. Com efeito, Guttemberg tornou possível que qualquer um pudesse ter acesso a um único livro; mas a internet está tornando possível que qualquer um possa ter acesso a todo e qualquer livro. Trata-se da verdadeira biblioteca de Babel, com efeitos potenciais inimagináveis para o progresso cultural da humanidade, ainda que ameaçada por uma imensa sobrecarga de desinformação.
9. Conhecimento sem o problema de Gettier
Em 1996 iniciei um trabalho sobre um problema muito discutido na filosofia norte-americana: o problema de Gettier.[xxx] Essa discussão foi desencadeada por um artigo de duas páginas e meia, publicado em 1963 por Edmund Gettier. Esse artigo contém uma objeção tremendamente influente à tradicional definição tripartida de conhecimento como crença verdadeira justificada, que teve sua origem em Platão e foi desde então aceita.
Utilizando como símbolos a = pessoa cuja pretensão de conhecimento está sendo avaliada, S = operador de conhecimento, C = operador de crença, E = operador de evidência justificacional razoável (justificação), e p = proposição cuja verdade a pretende conhecer, podemos simbolizar a definição tripartida de “a sabe que p” ou aSp como se segue:
aSp = (i) p
&
(ii) aCp
&
(iii) aECp
Segundo essa fórmula, “a sabe que p” identifica-se com uma conjunção de três condições: (i) a condição da verdade de p, (ii) a condição da crença de a na verdade de p, (iii) a condição de a ter uma evidência justificacional razoável para a sua crença na verdade de p.
O problema de Gettier advém da descoberta de contra-exemplos: casos que obviamente não são de conhecimento, mas que mesmo assim parecem satisfazer as três condições da definição tradicional de conhecimento. Assim, imagine que o professor Pedro tenha dito a Ana ontem à noite que viria hoje pela manhã à universidade para presidir uma banca de doutoramento. Como Ana sabe que Pedro é uma pessoa altamente responsável e confiável, ela tem todo o direito de dizer que sabe que ele esteve na universidade esta manhã. Acontece que durante a noite a família de Pedro sofreu um grave acidente automobilístico, o que o obrigou a chamar um suplente para substitui-lo na banca... No entanto, Pedro realmente esteve na universidade esta manhã, pois precisou passar rapidamente em sua sala para pegar alguns documentos. A pretensão de Ana de saber que Pedro esteve na universidade essa manhã parece satisfazer as condições da definição tripartida: ela é uma crença verdadeira e a justificação que ela apresenta é perfeitamente razoável. Contudo, a crença de Ana é verdadeira por mera coincidência e ninguém diria que ela realmente sabe que Pedro esteve na universidade essa manhã.[xxxi]
Creio ter a resposta certa para o problema. A idéia básica, já aventada na literatura, é a de que a evidência justificacional não pode ser apenas razoável. Ela precisa ser também adequada no sentido de ser sempre parte daquilo que o avaliador da pretensão de conhecimento de a toma como capaz de tornar a proposição p verdadeira.[xxxii] Ora, a evidência justificacional que Ana tem para a sua crença de que Pedro veio à universidade esta manhã, com base na informação que ele lhe deu de que iria presidir uma banca, não é adequada; ela não é adequada porque não é parte daquilo que nós – os avaliadores da pretensão de conhecimento de Ana, que possuímos informação mais completa – consideraríamos como tornando verdadeiro o fato de Pedro ter vindo à universidade esta manhã. A evidência justificacional seria adequada se Ana nos dissesse ter sido informada por Pedro que ele precisou passar em sua sala, se ela nos dissesse haver cruzado com Pedro no corredor esta manhã, se ela nos dissesse ter visto o carro de Pedro estacionado em sua vaga etc.
Meu objetivo foi o de adequar esse insight à definição tripartida de forma suficientemente detalhada e precisa. A primeira coisa que fiz foi introduzir o símbolo E* para designar o conjunto de evidências que consideramos individualmente suficientes para certificar-nos da verdade ou da falsidade de p. Para dar um exemplo disso, considere as evidências justificacionais que uma pessoa s dispõe para a verdade de seu conhecimento de que a terra é redonda. Digamos que elas sejam somente E1 = “viagens de circunavegação da terra”, E2 = “o fato de que ao se distanciarem os navios parecem desaparecer no oceano”, E3 = “fotos da terra tiradas por satélites”. Nesse caso, o E* que s dispõe para seu juízo de que a terra é redonda é constituído por {E1, E2, E3}, onde cada evidência E é considerada suficiente para tornar a proposição p verdadeira, o mesmo devendo consequentemente acontecer com E* como um todo. (Supondo que o conjunto E* seja consistente, ele precisa ser constituído de membros que considerados ou individualmente suficientes para tornar p verdadeiro ou são individualmente suficientes para tornar p falso, mas não ambos.)
A relação de “suficiência” pode ser formalizada pela introdução do símbolo ‘~>’ que defino como, na suposição do antecedente ser verdadeiro, aquela que conduz à verdade do conseqüente com probabilidade 1 (no caso de verificações dedutivas, formais) ou com probabilidade muito próxima de 1 (no caso mais usual de verificações indutivas, empíricas). A isso tudo deve ser adicinado o símbolo t concernente ao momento da avaliação por parte do sujeito avaliador s (geralmente quem conta a estória). O estabelecimento de um conjunto E* deve ser sempre temporalmente indexado ao momento da avaliação da pretensão de conhecimento de a pelo sujeito avaliador s (geralmente designado pelo pronome pessoal “nós”). Essa indexação é necessária porque E* pode variar de acordo com a variação do conteúdo informacional ao qual o sujeito avaliador tem acesso. (Um exemplo: em 1499 as evidências para a verdade da crença de Colombo de que ele descobriu o caminho marítimo para as Índias poderiam ser consideradas suficientes para que um sujeito avaliador bem informado a aceitasse como conhecimento; mas alguns anos mais tarde elas deixaram por completo de sê-lo, até para o mesmo sujeito.)
Com isso é possível reformular a definição tradicional de conhecimento de maneira tal que a relação entre a condição de justificação (iii) e a condição de verdade (i) se torne suficientemente explícita sob a perspectiva do sujeito avaliador s em t. Ei-la:
aSp (para s em t) = (para s em t)
(i) (E* & (E* ~> p))
&
(ii) (aCp)
&
(iii) (aECp &(E Î E*))
Nessa definição a condição (i), da verdade de p, é desdobrada de modo a expor as evidências que conduzem o sujeito s, avaliador da pretensão de conhecimento de a, no momento t, o de sua avaliação, a considerar a proposição p verdadeira, posto que é impossível admitir qualquer verdade sem recurso a tais evidências. Com isso, se a condição (i) é satisfeita por p, ou seja, se admitimos que E* é o caso e que E* ~> p, então p pode ser considerada uma condição verdadeira (com probabilidade igual ou muito próxima de 1). Se, além disso, a condição (iii), de evidência justificacional razoável, é satisfeita para s, então não só aECp, mas E pertence a E*. Ora, como E* ~> p, pertencendo E a E*, podemos concluir que E & (E ~> p), ou seja, que a evidência sustentada por a contribui suficientemente para a verdade da proposição p. Para isso é necessário, naturalmente, que para o sujeito avaliador s em t a evidência E já pertença ao conjunto E*, ou que pelo menos o sujeito avaliador s em t considere razoável inclui-la como pertencente ao seu conjunto E*, ao conjunto daquilo que torna p verdadeiro sob a sua perspectiva.
Para aplicar essa definição a qualquer exemplo dado, precisamos imaginá-lo em suficiente detalhe, de modo a incluir a perspectiva do sujeito avaliador s nos casos do tipo Gettier.
Assim, imagine que eu seja o avaliador s da pretensão de conhecimento em questão, e que alguém viesse me dizer que Ana lhe disse que Pedro lhe telefonou do hospital lhe dizendo que foi à sala dele na universidade só para pegar alguns documentos. Como eu me encontrei com Pedro em sua sala hoje às 9 horas da manhã, quando ele me relatou o acidente e me disse ter vindo só para pegar alguns documentos, eu aceito em t essa evidência dada por Ana, uma vez que a vinda de Pedro à universidade para pegar alguns documentos é parte do meu conjunto de evidências E* e que Ana tenha recebido essa informação é coerente com tudo o que já sei. O mesmo aconteceria se Ana me dissesse que viu Pedro entrar na sala dele hoje pela manhã, ou que viu o seu carro estacionado no pátio às 9 horas... pois eu teria muitas boas razões para incorporar essas evidências ao meu E*. Mas como tudo o que Ana me apresenta como evidência para a verdade de p é que Pedro lhe disse que viria presidir uma banca de doutoramento, e como tenho todas as razões para me recusar a admitir essa evidência como pertencendo a E* (pois o próprio Pedro me disse ter precisado chamar o suplente etc.) eu concluo que ela não sabe que Pedro esteve na universidade esta manhã, pois E ∉ E*.
Com isso já nos encontramos em condições de responder a quaisquer contraexemplos do tipo Gettier sugeridos, pois como em nenhum deles a justificação E é aceita pelo sujeito avaliador em t como sendo capaz de pertencer ao conjunto das evidências justificacionais E*, cujos membros são por ele considerados individualmente suficientes para a admissão da verdade de p na ocasião de sua avaliação, nenhum dos contra-exemplos satisfaz a definição tradicional assim reformulada. O artigo no qual essa posição foi mais adequadamente elaborada chama-se “A Perspectival Definition of Knowledge”, tendo sido publicado na revista Ratio em 2010.[xxxiii] A meu ver ele recupera o essencial da concepção tradicional de conhecimento, além de dar o golpe de misericórdia no assim chamado problema de Gettier.
10. O cogito às avessas
Outro problema que me interessou na época foi o do cogito cartesiano. Em 1997, graças a um estágio de três meses na Universidade de Konstanz, pude ler praticamente tudo o que a biblioteca tinha de relevante sobre o cogito. Escrevi então um artigo junto ao professor Peter Stemmer intitulado “Über den Gewissheitsanspruch im cartesischen Cogito”.[xxxiv]
A reflexão sobre o cogito acabou por me conduzir a um trabalho mais pessoal intitulado “I’m Thinking”, escrito 1999, enquanto eu era visiting scholar em Berkeley. Esse artigo foi aceito e publicado pela prestigiosa revista inglesa Ratio,[xxxv] o que só aconteceu por duas razões. Primeiro porque eu o enviei de um bom endereço, a universidade de Berkeley. Segundo porque o editor da Ratio, John Cottingham, é um competente especialista em Descartes e se motivou a avaliar pessoalmente o artigo.
Quero expor algumas idéias do artigo junto a considerações adicionais. Ele começa com uma investigação dos atos de fala (ou pensamentos) nos quais alguém é intitulado a dizer “Estou pensando”, visando demonstrar que tais atos (diversamente do que autores como Jakko Hintikka pretenderam) não são autoverificadores, mas em princípio passíveis de erro. Assim, se João diz a Maria que está pensando, Maria está intitulada a lhe perguntar no que ele está pensando. E ela não ficará muito satisfeita se João lhe responder: “Estou pensando simplesmente, sem qualquer coisa na qual possa estar pensando”. Mas se João diz o que está pensando, por exemplo, “Estou pensando que irá chover”, Maria aceitará a resposta.
O que quis salientar com exemplos como esse é, em primeiro lugar, que quando digo ou penso que estou pensando, precisa haver sempre um conteúdo de pensamento p, que é o objeto desse pensamento (no exemplo dado: “irá chover”). Em outras palavras: o “eu penso”, se não for um mero soletrar mental de palavras destituído de conteúdo, precisa ser a cognição de algum conteúdo de pensamento, seja este último verdadeiro ou falso. Posso até pensar que penso em p, assim como posso crer que creio em p, mas não posso pensar que penso ou crer que creio pura e simplesmente.
Mas se isso for aceito, parece então que devemos admitir que o “Estou pensando” é em princípio passível de erro. E a razão disso é a seguinte. Quando eu penso que estou pensando p, esse conteúdo de meu pensamento, ou já deixou de estar presente no centro de sua consciência, ou ainda está presente, mas não se encontra no próprio centro de minha consciência, no qual se encontra o próprio dizer interior “Estou pensando que...”; ora, em cada caso já é suscitada a possibilidade de erro. Pois o incrível gênio maligno já teria condições de entrar em ação, fazendo com que essas palavras pensadas pela pessoa não se refiram ao conteúdo de pensamento efetivamente pensado e sim a outro ou a nenhum. Imagine, por exemplo, que João esteja sofrendo de demência e acredite ter tido um pensamento que em verdade não teve. Tudo o que acontece é que ao ser interpelado por Maria ele sem perceber imagina que acabou de pensar que está chovendo. Ora, nesse caso o pensamento “Estou pensando” será inevitavelmente falso! Conclusão: o “Eu penso” não é autoverificável.
O mesmo não se dá com o juízo “Eu existo”, que é mais propriamente autoverificador, pois me é impossível negar seriamente minha própria existência (posso negar que eu tenha existido no passado ou que venha a existir no futuro, mas isso já é outra coisa, posto que o “Eu existo” do cogito cartesiano é para ser entendido no sentido de “Eu estou existindo”). Ora, se o juízo “Eu penso” não é tão certo quanto o juízo “Eu existo”, ele não pode servir para garantir esse último de modo a tornar a inferência “Penso, logo existo” (cogito ergo sum) relevante. Mais relevante é aqui a inferência inversa: “Existo, logo penso” (sum ergo cogito). Afinal, meu pensamento de que existo tem a forma “Estou existindo”, o que me habilita à metacognição de que tenho esse mesmo pensamento de que estou existindo.
Assim sendo, a melhor escolha é a de sintetizar a descoberta de Descartes como sendo a da infalibilidade do “Eu existo”. Harry Frankfurt, o mais brilhante intérprete de Descartes, teve alguma razão ao sugerir que este último acabou por chegar a essa mesma conclusão em seu texto mais elaborado, as Meditações, no qual apresentou o cogito como “Eu sou, eu existo” (ego sum, ego existo), prescindindo assim de derivá-lo do “Eu penso”.[xxxvi]
11. Pode o “Eu existo” ser falso?
Ao terminar de escrever a última seção me perguntei: não podemos realmente imaginar situação alguma na qual o próprio “Eu sou, eu existo” cartesiano seja falso? Talvez, por uma identificação enganosa. Para tornar o que penso compreensível, imagine que Elvino desapareça nas mãos de um cientista do mal. Esse cientista substitui Elvino por um andróide idêntico a Elvino, que fala e age como ele, mas que não tem nada na cabeça, a não ser um mecanismo implantado que faz com que seu comportamento seja inteiramente controlado à distância pelo cientista. Quando os conhecidos de Elvino encontram o andróide, eles pensam que ele é Elvino e este lhes reassegurará dizendo “Eu sou, eu existo”. Mas esse proferimento é falso, pois Elvino já não existe mais e não há nenhuma consciência pensante ocupando o autômato...
A isso o defensor de Descartes irá responder que o cogito diz respeito ao sujeito que o pensa e não à sua interpretação por um auditório, de modo que o “Eu existo” pensado pelo andróide deverá ser entendido como verdadeiro. Ora, mas o andróide não pensa. Quem pensa o “Eu existo” proferido pelo androide é o cientista maligno que o controla. Aqui surge o problema. Se o cientista maligno estivesse se referindo a si mesmo, o “Eu existo” por ele pensado seria verdadeiro. Mas o seu objetivo é precisamente o de enganar as pessoas, fazendo com que o pronome pessoal ‘eu’ se refira ao andróide Elvino e não a ele mesmo, de modo que é incorreto dizer que com esse pronome pessoal ele está se referindo a si mesmo. O cientista se refere ao eu que ele tem em mente e quer que os outros tenham em mente, ou seja, a Elvino, que não existe mais. Eis um caso no qual o “Eu existo” parece ser simplesmente falso!
Contra essa conclusão poder-se-ia objetar que a função do pronome pessoal ‘eu’ é sempre a de se referir àquele que fala, ou seja, ao emissor do som, seja ele o que for. Como, no exemplo de Elvino, quem emite o som é um autômato, o ‘eu’ de “Eu existo” se refere ao autômato que de fato existe, e não a Elvino, o que torna o proferimento verdadeiro. O problema é que Descartes quer usar o pronome pessoal ‘eu’ em outro sentido, no qual ele se refere a uma consciência pensante, enquanto no sentido acima basta um autofalante emitir os sons idênticos ao da palavra ‘eu’ para que ele seja identificado como um eu. Ou seja: se, no exemplo de Elvino for coerentemente preservado o sentido cartesiano da palavra ‘eu’, o “Eu existo” por ele referido continua sendo expressão do pensamento do cientista maligno que, por sua vez, está se referindo a uma pessoa que não existe, o que o torna falso. Será essa conclusão correta? Deixo a resposta para o leitor.
12. O que é filosofia, afinal? E o que é ciência?
Na segunda metade da década de 1990 parecia-me demasiado óbvio que a produção filosófica de países como Alemanha e França havia se esvaziado consideravelmente, e que o centro irradiador da discussão filosófica havia se deslocado para os países de língua inglesa. Como resultado, envidei os meus esforços para a realização de um pós-doutorado nos Estados Unidos junto ao professor J.R. Searle, um filósofo que, tanto quanto eu fora influenciado pela filosofia da linguagem ordinária e cujo vigor intelectual e originalidade, adicionado à clareza e brilhantismo expositivos, sempre me foram inspiradores. Foi assim que acabei passando o ano de 1999 como visiting scholar na universidade de Berkeley, vivendo como anacoreta na água-furtada de uma casa cuja virtude era estar situada no alto das Berkeley Hills. Do alto dessas colinas cobertas de pinheiros tinha-se uma esplêndida visão da baía de São Francisco, com a velha prisão de Alcatraz no meio e a ponte Golden Gate ao fundo. Várias vezes por semana de bicicleta eu descia as colinas à alta velocidade em direção ao centro “pop” de Berkeley, onde comia um Chicken Marsalla ou um Hot Potato, visitava a biblioteca e ia assistir às fabulosas aulas do professor Searle.
O principal trabalho escrito por esse tempo foi um pequeno livro intitulado The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account.[xxxvii] Ele é uma síntese de reflexões metafilosóficas publicadas em vários locais, desde a introdução de minha tese de mestrado escrita dezessete anos antes. Não surpreende, portanto, que tenha precisado de apenas três meses para escrevê-lo. Vou tentar resumir alguns argumentos principais.
Minha estratégia metodológica consistiu em investigar a natureza da filosofia a partir de fora, através de sua relação com a ciência, a arte e a religião. Minha sugestão foi a de que a filosofia é um pouco como a ópera. A ópera deriva-se da combinação de três formas de arte: a música, a poesia e o enredo teatral. Fora disso, ela não tem uma natureza própria. Também a filosofia é uma atividade derivada: tal como tem sido apresentada em sua história, ela tem sido produto de uma combinação de elementos provenientes das três práticas culturais mais fundamentais: a religião, a arte e a ciência. Do impulso místico-religioso a filosofia retirou a sua pretensão de abrangência e de fundamentação última presente nos grandes sistemas, e com ela a ambição de explicar o universo e o lugar que o homem nele ocupa. A arte procede por metáforas; das formas do discurso artístico a filosofia derivou o caráter não-literal quase inevitável de muitos de seus conceitos e formulações. E do desiderato da ciência, que é o de alcançar um conhecimento objetivo do mundo, a filosofia retirou a pretensão de alcançar verdades objetivas, capazes de aceitação consensual por uma comunidade crítica de ideias.
Colocando os elementos estético, místico e científico em cada vértice de um triângulo, nós podemos entender a filosofia como ocupando o interior desse triângulo. Algumas filosofias estariam mais próximas do vértice científico. Esse é o caso de filosofias como as de Russell e Carnap, por exemplo. Esse também é o caso de Austin com a sua teoria dos atos ilocucionários. Existem outras filosofias que no interior do triângulo estão mais próximas do vértice estético. Um exemplo disso é a obra de um poeta-filósofo como Nietzsche. Um pensador como Novalis produziu algo que já se encontra entre filosofia e literatura, e Hölderlin se classifica mais como um poeta, tendo ultrapassado essa fronteira. E há também filósofos que estão mais próximos do extremo místico do triângulo, como Plotino e Hegel, ou ainda no limite entre filosofia e religião, como seria o caso dos grandes místicos alemães. Há aqueles que se aproximam de um dos lados do triângulo: Kant parece estar um pouco mais próximo do lado do misticismo e da ciência do que do vértice estético; Heidegger está muito mais próximo do lado da arte e do misticismo do que do vértice científico. E ainda há uma filosofia paradigmática como a de Platão, que se encontra mais ou menos no centro do triângulo, possuindo os elementos de abrangência, de metáfora e de objetividade epistêmica em proporções mais ou menos equilibradas.
Há, além disso, verdadeiras tradições filosóficas que se direcionaram a um dos vértices do triângulo. A tradição inglesa, a meu ver, sempre esteve mais próxima do vértice científico. A filosofia francesa do século XX aproximou-se do vértice estético. E a nebulosa tradição alemã sempre teve um pendor para o vértice místico.
Não tenho espaço aqui para tentar tornar essas idéias plausíveis, por isso irei me concentrar na relação vigente entre filosofia e ciência, que se torna de grande interesse hoje, em um mundo que, dominado pelo progresso exponencial da ciência, tende a deslocar a produção filosófica inovadora na direção do vértice científico do triângulo.
Um esclarecimento sobre a questão da relação entre filosofia e ciência pode ser trazido quando investigamos o nascimento da filosofia grega em substituição às explicações mitológicas e religiosas para as anomalias da natureza. Minha sugestão é que o principal responsável pelo surgimento da filosofia grega entre os pré-socráticos tenha sido a adoção de um uso especulativo do modelo científico de pensamento.
Há razões para se pensar assim. No século VI a.C. os gregos já importavam extensamente os desenvolvimentos científicos de outros povos em astronomia, engenharia, física, matemática e geometria. Mas enquanto outros povos, como os egípcios, usavam uma ciência como a geometria somente com objetivos práticos, como o de construir pirâmides, os gregos foram os primeiros a axiomatizá-la de modo a dar-lhe um tratamento abstrato. Ora, pelo próprio fato de terem abstraído a ciência de suas aplicações, os gregos passaram a possuir o que poderíamos chamar de a idéia da ciência – a idéia de como é o procedimento de generalização científica, tanto na ciência empírica quanto nas matemáticas.[xxxviii]
O que essas considerações nos sugerem é que a filosofia grega teria nascido de uma tentativa feita pelos pré-socráticos de aplicar especulativamente o raciocínio científico a campos de conhecimento que antes haviam sido tematizados apenas através da mitologia e da religião. Por exemplo: qual a origem do universo? Quais são as leis últimas que o fundamentam? Quais são os seus constituintes últimos? Como explicar as transformações da natureza? Os filósofos pré-socráticos, que em geral eram também cientistas, tematizaram especulativamente cada uma dessas questões usando como base a idéia que eles tinham da ciência. Esse teria sido, no mais famoso exemplo, o caso dos atomistas gregos como Leucipo e Demócrito, com a hipótese de que os objetos materiais são constituídos pelo que eles chamaram de átomos: elementos invisíveis, fisicamente indivisíveis cujas formas seriam infinitamente variadas. O que eles estavam fazendo era investigar especulativamente uma maneira como a realidade poderia ser constituída em seus elementos últimos.
É importante perceber o que distingue a filosofia, entendida da maneira que acabo de descrever, da ciência: a filosofia é conjectural, a ciência não. Mas o que é um trabalho conjectural ou especulativo? Trata-se, ao menos, de todo aquele trabalho de investigação cujos resultados não são aptos a serem tornados verdades consensuais. Com efeito, é aqui que reside a diferença fundamental entre a reflexão filosófica e a investigação científica. Em filosofia os resultados nunca são consensuais. Não é possível saber se teorias filosóficas são verdadeiras ou falsas, ao menos na época em que elas são desenvolvidas. O mesmo não acontece com teorias científicas. Em ciência estamos sempre à espera de resultados consensuais. Considerem, por exemplo, a previsão da teoria da relatividade generalizada, segundo a qual os raios de luz deveriam ser curvados por campos gravitacionais. Essa previsão foi famosamente confirmada pelas fotografias de estrelas situadas atrás do sol em um eclipse solar por Eddington em 1919, tendo esses resultados sido confirmados em 1989 e 1993 com muito mais precisão pelo satélite Hipparchos. Não há físico hoje que não concorde com as previsões matemáticas da teoria da relatividade sobre a deflexão da luz por campos gravitacionais.
Ninguém discute a extrema plausibilidade dos resultados da ciência. Mas por que eles são tão plausíveis? Ora, porque as explicações e predições na ciência empírica, assim como as provas e resolução de problemas nas ciências formais, são verdades consensuais. E elas são verdades consensuais porque são fundadas em procedimentos metodológicos ou probatórios cuja validade é consensualmente reconhecida e que são aplicados a dados consensualmente aceitos. E se surgem campos nos quais não se alcança consenso (como, por exemplo, com respeito à questão da eventual impossibilidade de comprovação experimental da teoria das cordas) o problema de se saber se essas teorias devem ou não ser admitidas como científicas também retorna. Nada disso, porém, encontramos na filosofia: a filosofia carece de consenso quanto aos seus resultados porque lhe falta consenso tanto metodológico quanto relativo aos dados e princípios que lhe são relevantes.
A oposição possibilidade/impossibilidade de consenso é, pois, um elemento determinante para a distinção entre ciência e filosofia. Em adição a isso, muitas questões conjecturais da filosofia acabaram por ceder lugar a questionamentos científicos, originando a idéia de que a filosofia é o berço da ciência, ou pelo menos o seu marcador de lugar. Como notou J.L. Austin, a filosofia é o sol seminal, originário e tumultuoso, do qual se desprenderam, uma a uma, as ciências particulares, como planetas frios que a partir de então passaram a evoluir progressivamente em direção a um estágio final distante.[xxxix] Isso aconteceu sucessivamente com ciências particulares como a matemática, a física e a química. Exemplos famosos são os da substituição do atomismo grego especulativo pelo atomismo contemporâneo da física de partículas e o da substituição da teoria especulativa dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo) pela tabela periódica. Outro exemplo interessante (entre muitos) foi a sugestão do pré-socrático Anaximandro de que a terra é um cilindro suspenso no vácuo, que por estar a meia distância entre as estrelas, não pende nem em uma nem em outra direção. Com isso, escreveu Popper, ele estava antecipando a idéia de inércia e mesmo a de atração gravitacional, que só seriam desenvolvidas cientificamente mais de vinte séculos depois por Galileu e Newton.[xl]
Por outro lado, em seus domínios mais centrais – como a metafísica, a epistemologia e a ética – a filosofia tem resistido a ceder lugar à ciência. Surge a pergunta. Será que toda filosofia, mesmo nesses domínios centrais, não é mais do que a antecipação conjectural, não-consensual, de um possível conhecimento científico-consensual? Muitos filósofos se sentem ameaçados frente a essa possibilidade, pois parece que se especulações tão vastas como as da metafísica e da epistemologia chegarem a ser substituídas pela investigação científica, os produtos dessa substituição só poderão ser descaracterizações positivistas, trivializadoras e redutoras do verdadeiro questionamento filosófico.
A preocupação é em meu juízo legítima, mas o raciocínio incorreto. A causa do erro está na concepção de ciência geralmente assumida. A filosofia da ciência predominante no século XX foi gerada sob influência do positivismo lógico, que tendeu a reduzi-la à filosofia de alguma ciência básica paradigmática como a física. Os membros do positivismo lógico tinham em geral formação em física e matemática. A tendência da filosofia da ciência daí surgida foi em meu juízo desde o início redutora da abrangência própria do termo, por confundir o conceito geral de ciência com os conceitos das ciências particulares mais desenvolvidas. Mesmo filósofos que se diziam antipositivistas, como Popper, mantiveram essa visão redutora (que o forçou, por exemplo, a quesrionar a legitimidade científica da teoria da evolução, pela impossibilidade de submetê-la ao critério de refutabilidade através de experimentos reproduzíveis[xli]). Ora, critérios como o da refutabilidade através de experimentos reproduzíveis podem ser (relativamente) bons para a física, mas podem não ser bons para toda e qualquer ciência. Considere ciências como a lingüística, a história, a arqueologia... Como aplicar-lhes semelhante critério? Se definíssemos a ciência por um critério de refutabilidade experimental e considerássemos a filosofia antecipação da ciência, então é certo que domínios filosóficos centrais, como os da metafísica, da epistemologia e da ética teriam de ser substituídos por formas bastante reducionistas de investigação, distorcivas e empobrecedoras do questionamento original.
Muito diferentes são os resultados quando decidimos questionar a natureza da ciência em termos de uma análise do que as pessoas – cientistas e leigos cultos – realmente entendem pela palavra. Quando nos fazemos essa pergunta, a resposta é sempre a mesma: eles entendem por ciência, antes de tudo, um conhecimento sobre o qual investigadores competentes são capazes de alcançar um acordo consensual autêntico. É por isso que a astrofísica é chamada de ciência, mas a astrologia não. Procurando na literatura filosófica não me foi difícil encontrar sociólogos da ciência que defenderam idéias similares, como John Ziman, para quem a ciência é “conhecimento público consensualizável” (consensualizable public knowledge).[xlii]
É importante salientar que não é qualquer consenso que serve. Comunidades de idéias que apoiaram a pseudociência e perseguiram a verdadeira ciência, como a que aprovou a genética marxista de Lysenko e a ciência ariana, ou a que provocou a condenação de Galileu, formaram consensos que resistiríamos a chamar de autênticos. Daí que o consenso gerado deve ser ao menos autêntico. Mas o que distingue o consenso autêntico? Minha sugestão é a de que a condição para o consenso autêntico é que ele seja formado dentro do que eu gostaria de chamar de uma comunidade crítica de idéias. Uma comunidade de ideias que satisfaça condições bem parecidas com as estabelecidas por Jürgen Habermas para o que ele chamou de situação ideal de fala (ideale Sprachsituation).[xliii] Seguindo essa linha de pensamento proponho que a comunidade crítica de idéias – aquela capaz de produzir consenso autêntico – deva satisfazer minimamente as condições de:
(i) compromisso com a verdade da parte dos participantes,
(ii) que eles sejam maximamente e igualmente competentes,
(iii) que sejam suficientemente e igualmente informados,
(iv) que tenham iguais oportunidades de participação, e
(v) que não sejam submetidos a nenhuma pressão que não seja a da melhor justificação.
A satisfação insuficiente dessas condições faz com que sociedades de idéias a serviço de interesses excusos, como a dos biólogos soviéticos forçados a apoiar Lysenko, a dos cientistas do terceiro Reich e a dos conselheiros da inquisição católica, permaneçam aquém do papel de comunidades críticas de ideias. Só quando uma comunidade de idéias satisfaz esse ideal em suficiente medida (ao menos) ela se torna capaz de produzir ciência.
Ora, se adotarmos essa última concepção de ciência, a diferença e contraste entre filosofia e ciência se tornam claras. Eis como podemos caracterizar a filosofia:
a filosofia é (minimamente) uma investigação não passível de ser legitimamente consensualizável, que se dá sob o controle (real ou virtual) de uma sociedade crítica de ideias.
Por contraste, a investigação científica, embora também se dando em uma comunidade crítica de idéias (real ou virtualmente suposta), é a única que alcança resultados sempre consensualizáveis. Eis como ela pode ser caracterizada:
a ciência é (minimamente) uma investigação legitimamente consensualizável, que se dá sob o controle (real ou virtual) de uma sociedade crítica de ideias.
Uma complementariedade entre as duas torna-se nesse caso claramente visível; elas diferem apenas na possibidade de consenso legítimo. E não há nada de reducionista ou positivista em esperarmos que os resultados de qualquer questionamento intelectual, mesmo o mais obstrusamente filosófico, possa em princípio dar lugar a formulações e resultados consensuais e nesse sentido científicos. Mesmo nos questionamentos mais abstratos e especulativos isso se torna em princípio concebível, principalmente quando pensamos no múltiplo e variado suporte que nossas novas teorias científicas em variados domínios são capazes de se dar entre si.
Curiosamente, a principal objeção que pode ser oposta a essas idéias vem da filosofia analítica da linguagem do século XX, segundo a qual a filosofia tem um método – que seria o da análise conceitual – e um objeto – que seria a aplicação dessa análise à estrutura dos conceitos mais centrais de nosso entendimento do mundo, como os de conhecimento, verdade, justificação, beleza, justiça...[xliv]
Minha resposta a essa objeção consistiu em adotar a idéia de ascensão semântica (semantic ascent) proposta por W.V-O. Quine.[xlv] Como esse filósofo percebeu, podemos transformar toda e qualquer investigação, mesmo as da ciência empírica, em questão de análise conceitual. Alguém poderia sugerir, por exemplo, que Watson e Krick, com base no conhecimento dos constituintes do ácido desoxirribonucleico (DNA), após muitas tentativas, conseguiram chegar a uma análise correta da estrutura do conceito que somos capazes de obter de sua molécula, entendendo-o como dizendo respeito a duplas hélices proteicas ligadas por sequências de nucleotídeos formadoras de códigos genéticos... O recurso aqui empregado é o da ascensão semântica, que nada mais é do que o uso de uma metalinguagem semântica[xlvi], com a qual falamos de conceitos expressos pelas palavras e, só através deles, indiretamente, dos seus próprios objetos. Fazer isso em biologia é possível, mas seria retórico e inútil. Contudo, em filosofia costuma ser diferente. Nesse terreno, onde tão facilmente nos enganamos quanto ao significado das palavras em argumentos, a ascensão semântica costuma ser um expediente metodológico útil e por vezes mesmo indispensável. Contudo, a prática da ascensão semântica confundiu filósofos analíticos fazendo-os pensar que a filosofia nada pode ter de empírico, que ela é pura análise conceitual. Contudo, quando estudamos questões como a da natureza da consciência, da relação mente-corpo, da estrutura da relação causal, da natureza do livre arbítrio etc. vemos que elas são questões de importe empírico, ainda que muito abrangentes. Apenas que é metodologicamente mais aconselhável começar o estudo de algo como a consciência através de uma investigação dos usos correntes dessa palavra, evoluindo para uma reflexão acerca da estrutura do conceito e comparando-a com os novos dados da neurociência, até chegar a eventuais propostas para o seu aperfeiçoamento ou alteração. O erro consistiria, pois, em confundir uma mera estratégia metodológica – que é a da ascensão semântica – com o indicador da natureza própria da filosofia. Eis porque a filosofia não precisa deixar de ser analítico-conceitual para poder ser sobre o mundo.
13. Método para desmontar pretensos juízos sintéticos a priori
De volta a Natal no ano 2000 fui colocado diante da difícil tarefa de servir de mediador entre os interesses conflitantes dos professores, de modo a criar o Mestrado de Filosofia da UFRN. Foi nesse tempo de desassossego, no qual o meu trabalho com filosofia consistia principalmente em reunir anotações de aula, que preparei um livro de 240 páginas intitulado Uma Introdução Contemporânea à Filosofia, o qual acabou sendo publicado pela editora Martins Fontes em 2002. Embora o livro tenha sido terminado às pressas e contenha erros, acho que se trata de uma clara introdução pessoal à filosofia analítica contemporânea.
Uma posição polêmica que foi defendida nesse livro e que considero de algum interesse é a concernente ao problema do conhecimento a priori. Como todos sabem, os velhos e ingênuos empiristas de cabeça dura (de Locke ao primeiro Wittgenstein, passando por Hume), acreditavam que só existem proposições analíticas e necessárias, exemplificadoras de conhecimento a priori, de um lado, e proposições sintéticas e contingentes, exemplificadoras de conhecimento a posteriori, do outro.[xlvii] Mas hoje sabemos que o quadro é desorientadoramente mais complexo. Afinal, viemos após Kant, que sugeriu a existência de juízos sintéticos a priori, ou seja, de juízos ampliadores do conhecimento e ao mesmo tempo não derivados da experiência; viemos após W.V-O. Quine, que dissolveu a velha distinção entre o analítico e o sintético; e ainda viemos após Saul Kripke, que descobriu a existência de proposições necessárias a posteriori e contingentes a priori...
Em oposição a essa opinião herdada, minha convicção é a de que os velhos empiristas de cabeça dura (e com eles também toda uma hoste de imaturos racionalistas pré-kantianos, de Descartes a Leibniz...) é que estavam com a razão, e que a maior parte do que veio depois foi um considerável acúmulo de sofisticadas falácias. Não tenho espaço aqui para argumentar a favor de uma posição que muitos identificarão como a consequência de uma lastimável combinação de pretensão com ingenuidade intelectual. Quero apenas ilustrá-la aplicando um método muito simples que idealizei para desmontar pretensos juízos sintéticos a priori. Considere a seguinte proposição:
(a) Uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde ao mesmo tempo.
Como sabemos, uma proposição analítica pode ser definida como aquela que é verdadeira em virtude dos sentidos de seus componentes, sendo por isso necessariamente verdadeira, além de ter em sua negação uma proposição contraditória ou incoerente. Mas não parece suficientemente claro que a proposição (a) seja algo do gênero. Daí muitos terem considerado essa proposição um bom candidato ao status de juízo sintético a priori. Contudo, a proposição (a) pode ser evidenciada como ocultamente analítica quando tornada conclusão do seguinte argumento:
1. Duas coisas diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo.
2. Uma superfície delimita um lugar.[xlviii]
3. (1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.
4. Cores são coisas que podem ocupar superfícies.
5. (3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar a mesma superfície ao mesmo tempo.
6. O vermelho é uma cor.
7. O verde é uma cor.
8. Vermelho e verde não são o mesmo.
9. (6,7,8) O vermelho e o verde são cores diferentes entre si.
10. (5,9) O vermelho e o verde não podem ocupar a mesma superfície ao mesmo tempo.
Se tentarmos negar as premissas 1, 2, 4, 6, 7 e 8, cairemos em contradições ou incoerências mais ou menos óbvias, como a de dizer que uma superfície pode não delimitar lugar algum ou que o vermelho não é uma cor ou que o vermelho e o verde são a mesma cor. Logo, as premissas são todas analíticas. Logo, como o argumento é todo ele dedutivo, a conclusão de que o vermelho e o verde não podem ocupar a mesma superfície também precisa ser analítica, mesmo que isso não seja imediatamente reconhecível, a dizer, mesmo que a sua negação não nos pareça obviamente contraditória ou incoerente. Parece-me, aliás, que a longa vida dos juízos sintéticos a priori se deve à impossibilidade de desmontá-los por outros meios que não os de um exame caso a caso pelo uso de procedimentos como o recém-exposto.[xlix]
14. A prova do mundo externo
Outros argumentos esboçados no livro e mais tarde aperfeiçoados em artigos dizem respeito à prova do mundo externo e à refutação do ceticismo.[l] Quero começar expondo meu argumento para provar que o mundo externo é real.
O argumento depende de uma análise semântica do conceito de realidade. Meu ponto de partida é a distinção entre dois modos de uso ou sentidos de expressões predicativas atribuindo realidade empírica, como ‘...é real’, ‘...é objetivamente real’, ‘...existe realmente’, usos através dos quais atribuímos realidade empírica a algo. A diferença é facilmente percebida quando imaginamos um cenário cético, como o de um cérebro imerso em uma cuba, com os feixes neuronais aferentes e eferentes ligados a um supercomputador no qual foi implementado um programa que o faz ter a ilusão de estarmos vivendo em um mundo como o nosso. [li] Nesse caso diremos que o mundo ficcional experienciado pelo cérebro na cuba é irreal, que ele não existe verdadeiramente. Mas ao mesmo tempo não negaremos que ele se apresenta à experiência como algo que possui a mais plena realidade. A primeira espécie de atribuição de realidade é a que chamo de aderente, enquanto a segunda eu chamo de inerente. No sentido inerente digo que minha mão é real, por contraste com uma mão imaginária ou com seres ficcionais como o Cíclope. Negar a realidade de algo no sentido inerente implica em negar a sua atualidade, a sua presença como aquilo que nos é concretamente dado, como é o caso de uma mão imaginária (em inglês se usa a expressão ‘non-actual’). Mas negar a realidade de algo no sentido aderente não implica em negar a sua presença, a sua atualidade (em inglês diríamos: “It remains actual”), pois ao menos em princípio uma coisa pode ser aderentemente irreal e inerentemente real (atual), como os cenários céticos evidenciam (há estados patológicos que produzem alucinações bastante reais e podemos hoje produzir realidades artificiais em alguma medida).
A distinção que acabei de fazer se deixa melhor investigar em termos criteriais. Como notou Wittgenstein, através dos critérios as palavras ganham os seus sentidos comuns.[lii] Quero investigar nessa seção os critérios para atribuição de realidade no sentido inerente, pelos quais dizemos que as coisas existem ao redor de nós.
Filósofos modernos como Locke, Berkeley, Hume, Kant, Mill e Peirce, além de alguns filósofos analíticos como G.E. Moore, tomaram em consideração uma variedade de critérios de realidade. A lista dos mais fundamentais critérios de realidade apontados por filósofos já foi feita ao discutirmos a teoria fenomenalista da percepção. Quero repeti-la aqui:
a) Máxima intensidade do conteúdo sensível experienciado (geralmente de modo co-sensorial),
b) O conteúdo sensível se apresenta geralmente na independência da vontade,
c) O conteúdo sensível é experienciado somente em certos contextos e em concordância com regularidades ou leis empíricas,
d) Há um acesso verificacional intersubjetivo potencial permanente do conteúdo sensível, enquanto o objeto experienciado puder ser dito existente (o que Mill chamou de a permanente possibilidade de sensações).
É verdade que algumas entidades imaginárias podem satisfazer um ou mais desses critérios por algum tempo, de modo que isoladamente eles não servem para muita coisa. Minha tese, porém, é a de que se uma coisa, qualquer que ela seja, satisfizer plenamente a todos esses critérios, ela será forçosamente entendida como sendo real no sentido que chamo de inerente. A satisfação de todos esses critérios pode não ser condição necessária, mas é certamente condição suficiente para a atribuição de realidade ou existência externa no sentido inerente da expressão, por uma razão que pode ser considerada simplesmente definicional.
Um exemplo para esclarecer. Se o pedaço de giz que estou segurando agora é percebido com a máxima intensidade visual e tátil, se ele é co-sensorialmente percebido (eu o vejo, eu o seguro na mão, ouço o seu riscar...), se ele não depende de minha vontade (diversamente do pedaço de giz de minha imaginação, que posso transformar em qualquer outra coisa), se ele é possivelmente perceptível com a máxima intensidade também por outros observadores que tenham contato com ele (todos os presentes podem vê-lo), e se ele segue as regularidades usuais (posso escrever com ele, posso quebrá-lo, esfarelá-lo, ele cai quando solto no espaço...), então posso seguramente dizer que há um sentido no qual ele é inevitavelmente real, concreto, externamente dado.
O que acabei de expor é a forma originária do sentido inerente das atribuições de realidade. Chamo-a de originária porque é pela experiência dos objetos que nos circundam que começamos a aprender sobre o mundo externo e sua realidade. Mas há também o que chamo de sentidos inerentes estendidos. É quando estendemos o sentido inerente originário recém-exposto para objetos que (a) são apenas indiretamente experienciáveis, ou que (b) não se encontram acessíveis à experiência presente.
O caso (a) diz respeito ao que é inobservável, por exemplo, sabemos que neutrinos existem (são entidades reais) com base em experimentos de captação de neutrinos em tanques de água pesada encravados no interior da terra, sabemos que os animais do período Jurássico existiram (foram reais) com base em achados fósseis, e sabemos que as forças eletromagnéticas existem (são reais) com base nos movimentos que elas podem gerar... O mecanismo pelo qual se dá a extensão semântica já foi investigado por Aristóteles: aqui nós estendemos o conceito de realidade de sua aplicação a coisas observáveis que satisfazem os critérios de realidade para as coisas inobserváveis que possuem valor explicativo como causas e/ou efeitos de coisas observáveis, dizendo então que essas últimas também são reais ou, como proponho dizer, que essas últimas satisfazem os critérios der realidade de modo indireto.
O caso (b) acontece quando dizemos que objetos observáveis que não nos circundam existem. Assim, sei que a torre Eiffel existe, ou por tê-la visto em fotos ou por ter estado em Paris, mas não tenho presentemente a experiência desse objeto. Eu me fio em minha memória e no que sei sobre o mundo para concluir que, dado o contexto adequado a experiência sensível da torre Eiffel se daria tanto para mim quanto para outros observadores, satisfazendo assim os critérios fundamentais de realidade no sentido inerente.
Há um limite extremo do sentido estendido da atribuição de realidade, que é aquele no qual afirmamos a existência ou realidade (inerente) do mundo externo como um todo. Essa generalização se dá (i) como resultado de uma indução das repetidas experiências passadas da realidade inerente das coisas que atualmente estão fora do alcance de nossa experiência (por exemplo, lugares que acabamos de deixar, lugares onde estivemos na infância). A isso é acrescentado (ii) o conhecimento da realidade inerente de coisas através do testemunho no sentido amplo (através disso sabemos, por exemplo, que Julio César existiu). Além disso, a experiência passada confirma (iii) que o mundo sempre mostrou possuir novas coisas que satisfazem os critérios inerentes de realidade, fazendo-nos chegar à conclusão de que ele é aberto: temos razões indutivas para a expectativa de que continuaremos a experienciar coisas novas, que também satisfarão critérios de realidade no sentido inerente. A conclusão indutiva inevitável dos casos (i)-(iii) adicionado ao caso (a) (que também se aplica a (i), a (ii) e a (iii)), é a de que existe todo um mundo de coisas (o nosso mundo) que se não são atualmente capazes de satisfazer os critérios de realidade inerente, são pelo penos potencialmente e/ou indiretamente capazes disso, dadas as circunstâncias adequadas – o que é uma maneira de dizer que nosso mundo inteiro os satisfaz.
Essa prova do mundo externo pode receber uma versão mais sistemática, que refaz de forma mais rigorosa o raciocínio que todos nós, no processo de nosso desenvolvimento, devemos ter inadvertidamente realizado de modo a adquirirmos a certeza de senso comum de que o mundo externo existe. Assim, usando a palavra coisa em um sentido amplo (que inclui objetos, propriedades, estados de coisas, eventos), usando a palavra ‘experiência’ não somente para referir à experiência direta (do giz, das mãos, do monitor de computador), mas também à experiência mais ou menos indireta (da eletricidade no computador, pela iluminação da tela, dos neutrinos atravessando a terra, pelos rastros deixados em tanques de água pesada...), e tendo como base somente o sentido inerente da atribuição de realidade externa, ou seja, os quatro critérios fundamentais de realidade externa, eis o argumento:
1. Muitas coisas que estão sendo presentemente experienciadas satisfazem os critérios de realidade externa (nossos corpos, os objetos ao nosso redor... e mesmo coisas indiretamente observáveis).
2. A maioria das coisas que experienciamos no passado satisfizeram sucessivamente os critérios de realidade externa sempre que foram novamente experienciadas.
3. (Indutivamente de 2) Existem muitas coisas que foram objeto de experiência no passado e que, embora não estejam sendo experienciadas agora, ainda são certamente capazes de satisfazer (ou seja: satisfazem) os critérios de realidade externa.
4. Sempre estivemos experienciando coisas novas ao nosso redor, as quais têm satisfeito os critérios de realidade externa.
5. (Indutivamente de 4) Deve haver portanto coisas não-experienciadas que são certamente capazes de satisfazer (satisfazem) os critérios de realidade externa.
6. Testemunho é uma forma geralmente confiável de conhecimento, ainda que experienciado apenas por outros.
7. Há muito testemunho de coisas que satisfazem os critérios de realidade externa.
8. (Dedutivamente de 6 e 7) Há muitas coisas não-experienciadas que devem satisfazer os critérios de realidade externa, sendo isso sabido via testemunho.
9. (Dedutivamente de 1, 3, 5 e 8) Há uma imensidade de coisas, algumas delas sendo (A) coisas presentemente experienciadas, satisfazendo (diretamente ou não) nossos critérios de realidade externa, outras delas sendo (B1) coisas que não estão sendo experienciadas, embora saibamos que satisfazem nossos critérios de realidade externa, pois os satisfizeram no passado, outras delas sendo (B2) coisas não-experienciadas por nós, mas que sabemos satisfazer os critérios de realidade externa via testemunho, e ainda outras delas sendo (B3) coisas ainda desconhecidas, mas que certamente são capazes de satisfazer (satisfazem) nossos critérios de realidade externa, pois nunca deixamos de experienciar novas coisas que satisfaziam esses critérios.
10. O que nós queremos dizer com a idéia do nosso mundo externo é o conjunto constituído pela totalidade das coisas, tal que parte dele é (A), parte dele é (B1), parte dele é (B2) e parte dele é (B3).
11. (Dedutivamente de 9 e 10) Nosso mundo externo como um todo satisfaz os critérios de realidade externa.
12. O que satisfaz os critérios de realidade externa é (inerentemente) real.
13. (Dedutivamente de 11 e 12) Nosso mundo externo como um todo é (inerentemente) real, ele existe.
Esse argumento é apenas uma aproximação que pode ser mais detalhadamente desenvolvida. Mesmo assim, parece-me claro que é por todos nós já termos de modo tácito realizado raciocínios semelhantes que, enquanto não-filósofos, sentimo-nos tão seguros em responder afirmativamente quando nos perguntam se o mundo externo existe. Parece claro que em seus traços essenciais um raciocínio similar tem sido implicitamente realizado pelos seres humanos de todas as épocas. Pois se perguntássemos ao homem primitivo se o mundo externo existe, se ele é real, podemos bem supor que ele responderia que sim, referindo-se com isso, sem sabê-lo, à soma de todas as coisas, próximas ou distantes, que ele viu ou de que ouviu falar, e mesmo às coisas desconhecidas de que nunca ouviu falar, mas que com boa razão acredita existirem por indutivamente saberem que o mundo é aberto. Kant reclamou que é um escândalo da filosofia o não ter conseguido produzir uma prova do mundo externo. Ei-la aqui. É uma prova simples, ao que parece implicitamente conhecida até mesmo pelo homem de Neandertal. Escandaloso é apenas que ela não nos tenha sido desde o início transparente, o que confirma a ideia de que precisamos reaprender a ver aquilo que sempre esteve próximo demais de nossos olhos.
Parte da importância das atribuições inerentes de realidade é que, quando generalizadas para o mundo como um todo, elas resgatam aquilo que o homem comum quer dizer ao afirmar coisas que parecem filosoficamente ingênuas como “É óbvio que o mundo existe” ou “Só filósofos e loucos colocariam em dúvida a realidade do mundo exterior”. Tudo o que ele quer dizer é que temos uma ampla base inferencial, essencialmente indutiva, para acreditarmos que o mundo inteiro, como a soma dos seus constituintes presentemente experienciados, já experienciados e ainda não experienciados, é capaz de satisfazer (direta ou indiretamente) os critérios fundamentais de realidade inerente, sendo exatamente por isso que estamos preparados para afirmar que ele é indubitavelmente real no sentido inerente da palavra. Se o mundo é real no sentido aderente é outra questão, que será tratada a seguir.
15. A ilusão cética
Intrinsecamente associada à análise do conceito de realidade empírica recém-apresentada foi minha resposta ao famoso argumento cético do modus tollens: o argumento da ignorância, destinado a provar que não podemos saber que o mundo externo existe. Esse argumento, que está conosco pelo menos desde Descartes, depende sempre de alguma hipótese cética – que abreviarei como HC – acerca do mundo externo. Exemplos de HC são:
(1) o mundo externo é apenas um sonho,
(2) ele é uma alucinação constante,
(3) sou apenas uma alma flutuando no vazio, continuamente enganada por um gênio maligno, que me faz crer que tenho um corpo humano, que estou sentado escrevendo etc.
(4) sou um cérebro imerso em uma cuba, cujos nervos aferentes e eferentes encontram-se ligados a um supercomputador que produz em mim a contínua experiência de um mundo que na verdade é meramente virtual.
Pois bem: podemos saber que tais HC são falsas? Podemos demonstrar que não é possível que estejamos sonhando um mundo externo? Parece que não. Mas se não podemos saber que as HC são falsas, então estamos em papos de aranha, pois considerando p a expressão de um conhecimento trivial qualquer (como “Tenho duas mãos”, “Essa mesa existe”, “A torre Eiffel fica em Paris”), o seguinte argumento cético da ignorância (ou do modus tollens) pode ser construído:
AI
1. Se sei que p (ex: se sei que tenho duas mãos), então sei que a HC é falsa (ex: então sei que não estou sonhando).
2. Não sei se HC é falsa (ex: não sei se não estou sonhando).
3. Logo: não sei se p (ex: não sei se tenho duas mãos). (MT 1,2)[liii]
Ou seja: se realmente sei alguma coisa sobre o mundo externo, então preciso saber que a hipótese cética (da qual resulta que ele é mera ilusão) é falsa. Mas como não há critério para saber que a hipótese cética é falsa – como não posso saber que o mundo externo não é ilusório – então não posso saber mais de coisa alguma!
Há uma variedade de respostas assaz interessantes a esse argumento, como as de Hilary Putnam, Robert Nozick, Fred Dretske e David Lewis, todas elas prenhes de dificuldades. A resposta que propus é menos emocionante do que todas essas, mas parece-me de longe a mais convincente. Ela consiste em um argumento em duas etapas. Na primeira é demonstrado que em cada passo dos argumentos acima atribuições/desatribuições de realidade estão sendo assumidas. Na segunda etapa do argumento são esclarecidos os tipos de atribuição de realidade – se inerentes ou aderentes – que estão sendo assumidos. Como em seus passos o argumento confunde atribuições de realidade inerentes com aderentes, o argumento da ignorância termina por se demonstrar equívoco e, portanto, falacioso.
Vejamos a primeira etapa. Nela entendo o argumento AI como uma formulação simplificada de algo mais complexo. Para introduzi-lo quero fazer notar algo quase óbvio, que Kant já havia apontado em sua análise dos conceitos máximos do entendimento, quando demonstrou que juízos assertóricos se distinguem pela aplicação da categoria de existência.[liv] Ou seja: quando afirmo que p é o caso (quando p está no lugar de qualquer proposição sobre o mundo externo) isso implica em dizer que aquilo que é referido por p possui existência real, é concretamente dado no mundo externo. Assim, se afirmo que tenho duas mãos, isso é o mesmo que dizer que tenho duas mãos que possuem realidade objetiva. Por conseguinte, quando admito que não sei se não-HC (ex: não sei se não estou sonhando), disso decorre que em algum sentido não sei se o mundo externo é objetivamente real, se ele realmente existe. Admitido isso, o argumento AI pode ser reapresentado de modo a explicitar as atribuições de realidade nele envolvidas. Eis como ele fica:
AI(1)
1. Se sei que realmente p, então sei que há um mundo externo real (exemplificado no que é referido por p).
2. Se sei que há um mundo externo real, então sei que HC (da qual decorre que o mundo externo nada tem de real) é falsa.
3. Não sei se HC (da qual decorre que o mundo externo nada tem de real) é falsa.
4. (2,3) Portanto, não sei se há um mundo externo real.
5. (1,4) Portanto, não sei se realmente p.
Em um exemplo concreto: se sei que tenho duas mãos reais, então sei que o mundo externo (exemplificado por minhas mãos e outras coisas similarmente acessíveis) é real. Então sei que não o estou sonhando. Mas não sei se não o estou sonhando. Logo, não posso saber se o mundo externo é real, nem mesmo se minhas mãos (a ele pertencentes) são reais.
Uma vez chegados à versão AI(1), entendida como uma explicitação do argumento AI, estamos preparados para a segunda etapa do argumento, que depende da análise semântica das duas formas gerais de atribuição de realidade: a inerente e a aderente. A forma inerente de atribuição de realidade já foi examinada na seção anterior. Resta ainda examinarmos o sentido aderente das atribuições de realidade. Como já notei, esse sentido vem associado às HCs, como seria no caso em que nos perguntamos se o mundo não é um sonho, se não somos almas enganadas pelo gênio maligno ou indefesos cérebros em cubas.
Fundamental é notar que se a HC for verdadeira, o mundo externo será irreal em algum sentido que não será o sentido inerente generalizado, posto que nesse sentido ele pode muito bem continuar a ser real, dado que ele continua satisfazendo todos os critérios de realidade inerente, mesmo nas generalizações indutivas de sua aplicabilidade para as suas partes não presentes. Afinal, mesmo que eu seja um cérebro na cuba (pace Putnam), acreditando que estou usando um pedaço de giz para escrever em um quadro negro, esse giz continua sendo inerentemente real, ou seja, real no sentido de que me produz um complexo de sensações de peso, volume, forma etc. que é maximamente intenso, que intersubjetivamente experienciável, que independe da minha vontade etc., continuando experienciável esteja ele presente ou não, o mesmo podendo ser dito do quadro negro e de todo o meu mundo. Contudo, como faz sentido dizer que se uma HC for verdadeira esse giz, o quadro negro e todo o mundo no qual me encontro é, de certo modo, irreal, esse só pode ser um caso de desatribuição de realidade em outro sentido, que chamo de aderente.
Examinemos agora as atribuições de realidade no sentido aderente. Elas podem ser feitas tanto com relação a uma porção menor ou maior do mundo (como nos casos de HC), como também com experiências particulares. Assim, em um experimento com realidade artificial posso, com a minha mão dentro de uma luva especial, ter a impressão de tocar em uma xícara holográfica que acredito estar vendo, mas que na verdade não existe, mesmo que a mesma experiência possa ser compartilhada com outra pessoa que segure a mesma xícara usando uma luva semelhante. Há aqui uma máxima intensidade sensorial, co-sensorialidade e intersubjetividade virtual, de modo que a xícara chega a ser em alguma medida um objeto real no sentido inerente de atribuição de realidade (falta-lhe ainda realidade inerente porque, por exemplo, se fechar com força a minha mão eu acabo fazendo com que ela penetre na xícara, ela não serve para se derramar chá etc. – ela não satisfaz, pois, muitas das regularidades esperadas). Contudo, a xícara continua sendo um objeto irreal no sentido aderente da atribuição de realidade.
Há critérios para atribuições de realidade em sentido aderente? Quanto ao experimento com realidade artificial, há critérios para uma desatribuição de realidade que são simplesmente as informações recebidas sobre os detalhes do experimento que está sendo realizado. Mas como será em casos de HC? Ora, suponhamos que eu seja na verdade um habitante do planeta Ômega, onde as experiências com cérebro na cuba são usuais, e que meu cérebro seja implantado em um corpo vivo compatível. Uma vez acordado, outros habitantes do planeta Ômega tentam me convencer que em toda minha vida pregressa eu havia sido submetido ao programa “Professor de filosofia na terra”, e que esse é um procedimento pedagógico usual no planeta Ômega, visando assegurar maior diversidade mental entre seus habitantes. Agora, porém, parece que estou no mundo aderentemente real, o mundo de Ômega, ao qual me estou adaptando rapidamente e da maneira até mais agradável do que a princípio supunha...
Ora, parece que também aqui tenho critérios para crer que o mundo no qual havia vivido antes era de fato ficcional. Tais critérios estão nas experiências muito diversas que estou tendo, na coerência das explicações de meus anfitriões, e até em uma visita à incubadora na qual meu cérebro viveu até há pouco... Essencial, contudo, é notar que os critérios de realidade aqui considerados, os critérios aderentes, são completamente diversos dos critérios de realidade no sentido inerente, o que demonstra que o sentido da palavra ‘realidade’ aqui considerado é também diverso e suplementar, não havendo nada que os una exceto o apelo a outra realidade inerente mais fundamental, por meio da qual se produziu uma pseudorealidade capaz de satisfazer provisoriamente os critérios de realidade no sentido inerente, mas que depende da existência da primeira para continuar a satisfazê-los.
As diferenças se tornam mais patentes quando variamos os exemplos de HC. Podemos não só imaginar critérios para que alguém saiba que sua vida passada foi irreal, mas também com respeito a sua vida presente e futura. Suponha que, por razões humanitárias, a pena de morte e a prisão perpétua tenham sido banidas do planeta Ômega. Como alternativa, os irrecuperáveis são sentenciados a terem os seus cérebros retirados de seus crânios e colocados em cubas nas quais viverão uma vida ficcional na qual poderão cometer tantos crimes quanto desejarem, os quais serão igualmente ficcionais, não podendo dessa forma trazer mais nenhum malefício à sociedade. Uma vez sentenciado, porém, o criminoso sabe que passará a viver em um mundo ficcional, de modo que uma vez iniciada a nova vida ele preservará a consciência algo desagradável de que a sua vida não é no mundo real, e que embora completamente real ela no fundo nada tem de real... Os critérios que o fazem pensar que seu mundo atual é real são os usuais critérios de realidade inerente, os quais continuam sendo perfeitamente satisfeitos, enquanto que os critérios que o fazem pensar que seu mundo atual não é real relacionam-se a lembranças como a da pena à qual foi condenado e outras crenças de seu sistema. Em suma: seu mundo é inerentemente real e aderentemente irreal.
Alguém poderia nesse ponto objetar que tais critérios de realidade aderente são demasiado frágeis. Imagine que eu acorde em outro mundo, que aprendo a ver como o mundo real do planeta Ômega, quando na verdade meu cérebro foi apenas transportado para outra cuba, onde lhe é implementado um novo programa, qual seja, “Sendo acordando da vida como cérebro na cuba”. Pode até mesmo ser que a minha vida até agora tenha sido real e que hoje à noite, enquanto estiver dormindo, eu seja raptado pelos extraterrenos, os quais me retiram o cérebro e o colocam em uma cuba na qual seja implementado o programa “Sendo despertado da vida como cérebro na cuba”. Nesse caso eu estarei sendo duplamente enganado: em crer que agora não sou mais um cérebro na cuba e em crer que eu havia sido antes um cérebro na cuba.
A resposta a essa objeção é a de que o conceito aderente de realidade é realmente de aplicação muito mais incerta do que o de realidade inerente, pois se trata de um conceito relativo, só utilizável comparativamente em circunstâncias especiais. Os critérios de realidade aderente, diversamente dos critérios de realidade inerente, permitem conclusões sempre e inevitavelmente relativas às informações que o avaliador presentemente possui sobre circunstâncias nas quais uma realidade inerente ilusória é produzida como subproduto de outra realidade, que por contraste é considerada não-ilusória.[lv] Devido a essa fragilidade dos critérios de aplicação, só podemos realmente afirmar que sabemos que uma HC é verdadeira e que nosso mundo é aderentemente irreal em um sentido relativo se nos for dada uma razão para tal e relativamente a essa razão. Não é possível, pois, afirmar que sabemos que nosso mundo atual é real no sentido aderente, pois para tal precisariamos usar o sentido aderente der realidade de forma absoluta ou não-relativa. Se tudo o que o cético quisesse afirmar fosse isso ele teria razão!
Estamos agora em condições de descobrir o que há de errado com o argumento da ignorância. Ele é falacioso porque nele nos deslocamos sub-repticiamente de uma justificada recusa a atribuir realidade aderente para uma injustificada recusa a atribuir realidade inerente. Eis como as atribuições/desatribuições de realidade no argumento AI(1) podem ser entendidas de uma forma que explicite o tipo de atribuição de realidade mais naturalmente pensado em cada sentença do argumento. Eis como o cético quer que entendamos o seu argumento:
AI(2)
1. Se sei que é inerentemente real que p, então sei que há um mundo externo inerentemente real (pois constituído de fatos tais como o exemplificado por p).
2. Se sei que há um mundo externo aderentemente real, então sei que HC, da qual decorre que o mundo externo nada tem de aderentemente real, é falsa.
3. Não sei se HC, da qual decorre que o mundo externo nada tem de aderentemente real, é falsa.
4. (2,3) Portanto, não sei se há um mundo externo aderentemente real.
5. (1,4) Portanto, não sei se é inerentemente real que p.
Esclarecendo: na premissa 1, quando digo que ao saber que p sei que o mundo externo (ou parte dele) é real, estou fazendo uma atribuição de realidade em um sentido obviamente inerente da palavra. Pois aqui apelo a atribuições ordinárias inerentes de realidade. Mas não é esse o caso das premissas 2 e 3, pois elas estão ligadas ao contexto da HC. Se quisermos dar sentido a elas, isso só será possível se com elas fizermos atribuições aderentes de realidade. Assim, o condicional 2 afirma que se eu souber que o mundo externo é aderentemente real, então tenho bases para saber que HC é falsa, pois se ela fosse verdadeira o mundo externo seria aderentemente irreal. E 3 afirma que não sabendo que HC é falsa, não posso saber que o mundo externo é real, obviamente, no sentido aderente. A primeira conclusão, 4, que aplica o modus tollens a 3 e 2 como premissas, me leva a concluir que não sei se o mundo externo (ou parte dele) é real no mesmo sentido de realidade das premissas 3 e 2, ou seja, no sentido aderente. Essa é também uma conclusão correta. O Equívoco só aparece no final, na sentença 5 do argumento, quando concluo que não posso saber que p é inerentemente real ao aplicar o modus tollens às sentenças 4 e 1, pois em 4 o sentido da atribuição de realidade é aderente, enquanto em 1 o sentido dessa atribuição é inerente. Pelo fato de que não posso saber que o mundo externo é real no sentido aderente, e que através disso posso concluir que não posso saber se partes desse mundo são reais também no sentido aderente, não me torno autorizado a concluir que não posso saber se p é o caso no sentido inerente, por exemplo, que não posso saber se tenho duas mãos inerentemente reais.
Em resumo: o cético, não tendo feito a distinção entre os sentidos aderente e inerente das atribuições de realidade, quer nos fazer concluir que pelo fato de não podermos absolutamente saber se o mundo externo é real no sentido aderente, não podemos saber se esse mundo e as coisas nele incluídas são reais no sentido inerente, como se lhes faltasse a concretude própria das coisas inerentemente reais, como se elas fossem de algum modo subjetivas, dependentes, ilusórias, etéreas, fantasmagóricas, como aconteceria se elas não pudessem satisfazer critérios para as atribuições de realidade no sentido inerente.
A interpretação da conclusão como concernente à forma inerente de realidade pode ser disputada. É possível interpretar a conclusão do argumento da ignorância como a de que não podemos saber que p é real no sentido aderente, alterando também o entendimento da primeira premissa como tratando de atribuições de realidade aderente. Nesse caso o argumento seria correto, mas trivializador. Certamente não é disso que o cético se alimenta. Ele quer nos convencer que não podemos saber que o mundo do homem comum é real no único sentido no qual ele quer e pode afirmá-lo. E ao pretender isso ele intenta produzir em nós uma ilusão conceitual.
Apresentei o argumento recém-exposto em algum detalhe em uma conferência da AMPOF em 2004 em São Paulo, e a única pessoa que me fez objeções pertinentes foi o professor Oswaldo Porchat, que é um grande especialista em ceticismo. Mais tarde enviei o artigo para duas revistas que o rejeitaram. A combinação de relevância filosófica com originalidade parece extrapolar os padrões de avaliação da maioria dos referees.
16. A ilusão dogmática
A mesma estratégia pode ser aplicada para provar que o argumento converso, que podemos chamar de argumento do conhecimento (argumento do modus ponens), também é equívoco. Enquanto o argumento da ignorância partia da nossa impossibilidade de saber que a HC é falsa, o argumento do conhecimento parte da constatação de senso comum de que sabemos que a proposição p é verdadeira. Assim, segundo esse argumento:
AC
1. Sei que p (ex: que tenho duas mãos).
2. Se sei que p (ex: que tenho duas mãos), então sei que a HC é falsa (ex: que não estou sonhando).
3. Logo: sei que HC é falsa (ex: sei que não estou sonhando).
Basta considerarmos quais as atribuições de realidade que devem ser naturalmente assumidas em cada passo do argumento para constatarmos que também o argumento do conhecimento é equívoco e, portanto, falacioso:
AC(2)
1. Sei que é inerentemente real que p (ex: sei que tenho duas mãos inerentemente reais).
2. Se sei que é inerentemente real que p, então sei que há um mundo externo inerentemente real (pois constituído de fatos tais como o representado por p).
3. (1,2) Portanto, sei que há um mundo externo aderentemente real.
4. Se sei que há um mundo externo aderentemente real, então sei que HC, da qual decorre que o mundo externo nada tem de aderentemente real, é falsa.
5. (3,4) Portanto, sei que HC, da qual decorre que o mundo externo nada tem de aderentemente real, é falsa.
O argumento do conhecimento incorre no equívoco de tentar concluir que o mundo externo possui realidade aderente com base em constatações de realidade inerente (na passagem das premissas 1 e 2 para a conclusão 3). Com isso ele objetiva algo impossível. Ele intenta nos oferecer uma garantia absoluta da realidade do mundo externo em seu sentido aderente, de maneira a torná-lo imune às hipóteses céticas. Nada nos garante, porém, que as hipóteses céticas são falsas. Contudo, uma vez que a realidade inerente das coisas está garantida, pouco nos importa não podemos saber se porventura não seríamos cérebros em cubas ou almas cartesianas enganadas por gênios malignos.
17. Projeto para dar cabo do problema humiano da indução
Em 2003 recebi uma bolsa de pesquisa para um pós-doutorado de um ano em Oxford. Há coisas não filosóficas que me apraz dizer sobre a Inglaterra. Achei de incomparável bom gosto a arquitetura aconchegante das Villages, com os seus encantadores jardins; e gostei especialmente da integridade e afabilidade das pessoas em geral. A atmosfera social era cortês e a palavra de ordem capaz de abrir os corações era ‘nice’ (que prefiro a ‘Entschuldigung’). Não é sem razão que tenha sido na Inglaterra que Norbert Elias escreveu sua famosa obra medindo a civilização em termos do desenvolvimento de normas de conduta social, capazes de aumentar a coordenação de nossas ações, disso resultando a maior eficácia no funcionamento da sociedade.
Quanto à filosofia em Oxford, embora os tempos áureos já se tenham ido, um Departamento com mais de 70 docentes ainda é de certo modo único, pelo leque de alternativas que oferece. Em quatro terms tive o prazer de assistir cursos com vários professores que conhecera antes apenas em livros, como Newton Smith, Quassim Cassam e John Foster, entre outros. Estive no seminário de pesquisa de Derek Parfit no All Souls, mesmo sem me interessar por ética, movido pela curiosidade de conhecer os métodos de um filósofo cujo trabalho eu admiro. Assisti também a uma exposição de Timothy Williamson, um filósofo que divagava caminhando de um lado para o outro da sala com os olhos quase fechados por trás dos óculos. Embora seu trabalho fosse considerado a última novidade de Oxford, minha impressão foi a de uma mistura algo incômoda de clareza lógica com confusão semântica, sem que os resultados fossem tão compensadores assim. Trata-se, metodologicamente, da antítese da filosofia da linguagem ordinária com a qual comecei. O ideal, pensando bem, deve residir no meio-termo, pois a filosofia da linguagem ordinária que recuse o apelo à análise lógica torna-se uma filologia cega, enquanto uma filosofia da linguagem ideal que perca o contato com as intuições da linguagem ordinária e do senso comum recai em um formalismo vazio. Apesar de tudo, onde mais aprendi foi nos livros altamente selecionados da biblioteca do Departamento.
Fui para Oxford tendo como anfitrião o professor Richard Swinburne, que talvez seja o mais influente filósofo teísta da religião contemporâneo. Minha escolha do professor Swinburne não se deu, porém, devido ao meu interesse menor pela filosofia da religião, mas pelo fato de ele ter editado The Justification of Induction (1974), que ainda hoje é a melhor coletânea que possuímos sobre o intratável problema da indução. Esse problema consiste na pretensa demonstração feita por Hume de que é impossível uma justificação racional para a validade de nossas inferências indutivas.[lvi] O longo ensaio que escrevi em Oxford entitulado “The Metaphysics of Inductive Reasoning”, é uma tentativa impublicável (pela inadequação dos detalhes) de encontrar uma justificação analítico-conceitual para nossas inferências indutivas.
A ideia central, porém, é clara e pode ser repetida aqui. Antes de apresentá-la quero reconstruir rapidamente o argumento de Hume. Embora ele tenha apresentado o problema em meio a sua crítica à necessidade causal, na reconstrução que se segue eu abstraio o argumento dessa crítica, de maneira a tornar mais claro o que nos interessa discutir.
Segundo Hume, nossas inferências indutivas requerem princípios metafísicos de uniformidade da natureza que as garantam. Embora a indução possa ser não só do passado para o futuro, mas também do futuro para o passado e de uma região espacial para outra, por razões de simplicidade me restringirei aqui ao primeiro caso, cujo princípio de uniformidade pode ser enunciado como:
PF: o futuro será semelhante ao passado.
Se esse princípio for verdadeiro, ele garantirá as inferências indutivas do passado para o futuro. Considere o seguinte exemplo muito simples de justificação de um argumento indutivo pela introdução de PF como primeira premissa:
1. O futuro será semelhante ao passado (PF).
2. O sol sempre nasceu a cada dia.
3. Portanto: o sol nascerá amanhã.
Essa parece à primeira vista uma maneira natural de justificar a inferência de que se o sol sempre nasceu a cada dia ele nascerá amanhã, uma inferência que também poderia ser estendida na forma da generalização “O sol sempre nascerá a cada dia”.
É nesse ponto que começa a se delinear o problema da indução. Ele se inicia com a constatação de que a primeira premissa do argumento, uma formulação de PF, não é nenhuma verdade da razão caracterizada pela incoerência de sua negação, ou seja, não é nenhuma proposição analítica. É perfeitamente imaginável, escreve Hume, que o futuro se torne muito diverso do passado, por exemplo, que árvores floresçam no inverno e que a neve queime como fogo. Mesmo assim podemos ganhar a convicção de que o futuro será semelhante ao passado com base em nossa experiência de futuros que já passaram, os quais foram semelhantes aos seus próprios passados. Eis a inferência que parece justificar PF:
1. Os futuros já passados sempre foram semelhantes aos seus próprios passados.
2. Portanto: o futuro será semelhante ao passado.
O problema é que essa é uma inferência indutiva. Ou seja: para justificar a indução recorremos a PF, o princípio de que o futuro será semelhante ao passado, mas para justificar PF precisamos recorrer outra vez à indução. A intentada justificação da indução demonstra-se assim circular, posto que ela depende de um princípio que acaba ele próprio por depender da indução para ser firmado. A conclusão de Hume é a de que não há justificação racional possível para a indução, não havendo, portanto, justificação racional, nem para as expectativas criadas pelas leis da ciência empírica, nem sequer para as nossas próprias expectativas cotidianas de senso comum, posto que ambas baseiam-se claramente na indução. É verdade que possuímos uma disposição muito forte para crer em nossas inferências indutivas. Mas para Hume essa disposição se deve tão somente a nossa constituição psicológica. Nós somos por natureza dispostos a adquirir certos hábitos produtores de expectativas indutivas, que uma vez formados nos fazem agir como as mariposas, que são dispostas pela sua natureza a voar sempre em direção à luz. Essa é uma conclusão extremamente cética e não é sem razão que só alguns poucos filósofos acompanharam Hume nesse ponto. A maioria pensa que algo deve estar errado em algum lugar.
A estratégia que procurei seguir me parece ter ao menos a virtude de ser suficientemente vigorosa para penetrar no fundo do problema, enquanto outras tentativas, mesmo que interessantes pelos insights parciais e úteis que contém, não tem suficiente poder de penetração.[lvii] Quero primeiro explicar minha tese geral e depois mostrar como ela se aplicaria a um princípio indutivista escolhido.
1. Minha tese geral possui um leve sabor kantiano, embora sem o indigesto condimento do sintético a priori. Trata-se da idéia de que faz parte de nosso conceito de um mundo (natureza, realidade) qualquer, que ele seja necessariamente aberto à indução.
Penso que essa seja uma verdade conceitual, do mesmo modo que, digamos, é uma verdade pertencente ao nosso conceito de mundo externo que ele possa ser em princípio e de algum modo apresentado à percepção sensível.
Entendendo por mundo um conjunto qualquer de entidades compatíveis entre si (para recorrer a uma concepção minimalista útil aos nossos propósitos), o argumento pode ser apresentado como se segue.
Para nós um mundo externo só pode existir se ele for ao menos concebível. Mas não podemos conceber um mundo externo sem nenhum grau de uniformidade, de regularidade. Ora, como só podemos experienciar o que podemos conceber, então fica claro que não podemos experienciar nenhum mundo completamente destituído de regularidade. Mas como a existência de regularidade ou uniformidade é o que basta para que algum procedimento indutivo seja aplicável, então não é possível haver para nós nenhum mundo concebível nem experienciável que não seja aberto à indução. É, pois, uma verdade conceitual que se um mundo nos for dado então algum procedimento indutivo deverá ser a ele aplicável.
A objeção a essa tese é esperada: o que nos autoriza a supor que não possa existir um mundo caótico, um mundo destituído de qualquer regularidade e, portanto, fechado à indução? A generalizada crença nessa possibilidade tem sido a meu ver um grande erro, cuja responsabilidade deve ser atribuída a David Hume. Esse erro foi logo de início introduzido pelo fato de Hume ter elegido a regularidade causal como foco de sua discussão, reforçando-o pelos próprios exemplos por ele escolhidos. No que se segue quero justificar esse ponto.
A regularidade causal é o que eu gostaria de chamar de uma regularidade diacrônica, qual seja, aquela na qual um fenômeno dado vem regularmente seguido por outro fenômeno diverso dele mesmo. Tais regularidades constituem uma espécie de vir a ser do mundo. Mas não é impossível conceber um mundo sem nenhum vir a ser, sem regularidades diacrônicas, incluindo entre elas a regularidade causal. Esse seria o caso de um mundo sem mudança, estático, congelado. Ainda assim parece que ele poderia ser corretamente chamado de mundo. Vemos, pois, que se nos concentramos nas regularidades diacrônicas e pensamos nelas como se fossem todas as regularidades existentes em um mundo, parece bastante possível pensarmos a existência de algum mundo que não as possua, mas que, por possuir regularidades sincrônicas, seja aberto à indução. Afinal, mundos sem regularidades diacrônicas são concebíveis e mesmo (talvez) em princípio cognoscíveis, embora fechados à indução no que concerne a elas.
O problema com esse foco argumentativo humiano restrito à inferência indutiva diacrônica é que ele nos desvia a atenção do fato de que um mundo empírico é igualmente constituído de regularidades sincrônicas, as quais, tanto quanto as regularidades diacrônicas, só podem ser conhecidas através de procedimentos indutivos. Mas o que são as regularidades sincrônicas? Podemos defini-las como sendo as relações simultaneamente vigentes entre os fenômenos diversamente localizados no espaço, na medida em que essas relações perduram no tempo. Esse é o caso das relações que existem entre as faces de um cristal, para tomarmos um exemplo distintivo. É a indução que deve justificar a persistência das relações sincrônicas, fazendo-nos saber, por exemplo, que o cristal permanecerá reconhecível como sendo o mesmo quando observado outras vezes no futuro. O domínio das regularidades sincrônicas é extremamente amplo, dado que não só qualquer objeto, mas qualquer propriedade complexa, qualquer condição, situação ou estado de coisas reconhecível, possui relações constitutivas entre suas partes – relações essas que devem perdurar enquanto o objeto, a propriedade, a condição, a situação ou o estado existirem.
A forma mais interessante de regularidade sincrônica é a que constitui aquilo que chamamos de estrutura: estados de coisas constitutivos de alguma coisa. Ao perdurar no tempo a estrutura forma uma regularidade sincrônica. Se um mundo for congelado e nele faltarem regularidades diacrônicas, ele não poderá deixar de possuir regularidades sincrônicas, uma vez que deve possuir alguma estrutura. Por conseguinte, a indução é aplicável a essa estrutura, uma vez que ela é sempre aplicável a regularidades sincrônicas de modo a capacitar a previsão de sua permanência.
Tentemos agora imaginar um mundo sem regularidades diacrônicas nem sincrônicas, sem estrutura nem devir. Algo próximo a isso pode ser ao menos ilustrado quando pensamos em um mundo como sendo constituído de repetições irregulares ou temporalmente randômicas de um único ponto luminoso, ou de algum som.[lviii] Contudo, mesmo que o ponto luminoso ou o som ocorram irregularmente, eles precisarão repetir-se alguma vez (enquanto o mundo durar), o que demonstra a regularidade diacrônica de uma repetição aleatoriamente intervalada; ora, disso resulta que a indução se aplica a tais mundos minimalistas enquanto eles durarem: ela prevê alguma vez a repetição do ponto luminoso ou do som.
Mas o que dizer de um mundo absolutamente destituido de ambas as espécies de regularidade, sem estrutura nem vir a ser – seria ele concebível? A resposta é clara: um mundo sem regularidade alguma é inconcebível, não sendo, portanto, acessível à experiência. Não podemos pensar nenhum conjunto de elementos empíricos compatíveis sem lhe dar alguma estrutura ou vir a ser.
Mas se é assim, se um mundo sem regularidades é algo inconcebível, considerando que a existência de regularidades é tudo o que precisamos para que alguma inferência indutiva seja aplicável, então não é possível que exista um mundo que não seja aberto à indução. Onde há mundo precisa haver alguma regularidade, e onde há alguma regularidade algum acesso indutivo é logicamente possível. Conceber um mundo ao qual a indução não se aplica redundaria, pois, em conceber um mundo sem regularidade de espécie alguma, o que contradiz nosso próprio conceito de mundo.
Resumindo o argumento: ao concentrar-se na relação causal Hume convidou-nos a ignorar que o mundo também seja constituído de regularidades sincrônicas, o que por sua vez nos leva a crer que ao concebermos a existência de um mundo cujo vir a ser seja inteiramente imprevisível, isso o torna inacessível à inferência indutiva.[lix] Quando levamos em devida consideração as duas espécies gerais de regularidade às quais a indução se aplica, percebemos que um mundo inteiramente imprevisível, por ser inteiramente caótico ou destituído de regularidades, é impossível, pois qualquer mundo possível é constituído por suas regularidades, sendo por isso intrinsecamente aberto à indução.[lx]
Não sou o primeiro a chegar a semelhante conclusão. Keith Campbell tem um argumento para demonstrar a inevitabilidade da aplicação de procedimentos indutivos que ele elabora de modo algo diverso e que por isso mesmo vale recordar.[lxi] Como ele notou, para que possamos experienciar cognitivamente um mundo – uma realidade objetivamente estruturada – é preciso que estejamos continuamente reaplicando conceitos empíricos, os quais, por sua vez, para serem fixados, aprendidos e usados, exigem uma reidentificação dos designata de suas aplicações como sendo idênticos; ora, isso só é possível se houver certo grau de uniformidade no mundo, que seja suficiente para permitir a reidentificação. Com efeito, se o mundo pudesse perder totalmente as suas regularidades – não só as diacrônicas, mas também as sincrônicas, implicitamente referidas no argumento de Kampbell – então nenhum conceito mais se reaplicaria, a experiência do mundo cessaria e ele deixaria, para nós, de existir.
Mas não poderia existir um mundo parcialmente caótico, com um mínimo de estrutura ou uniformidade, a qual por isso mesmo seria insuficiente para a aplicação de nossos procedimentos indutivos? Parece que não. E a razão disso é que a indução tem uma natureza autoajustável, ou seja, a aplicação de seus princípios deve ser sempre calibrável em conformidade com a natureza daquilo a que eles se aplicam. A exigência de uma base indutiva, de uma repetida e variada experimentação indutiva, pode ser tornada sempre maior, na medida da maior improbabilidade da uniformidade esperada; por conseguinte, mesmo um sistema com uniformidade mínima, exigindo uma máxima busca indutiva, sempre acabaria possibilitando o sucesso indutivo.[lxii] Ou seja: basta haver alguma uniformidade para que alguma exigência de base indutiva mais ampla nos permita idealmente encontrá-la.
Essas considerações gerais sugerem um entremeado de inferências conceituais, como as seguintes:
Possível experiência cognitivo-conceitual do mundo ↔ aplicabilidade de conceitos empíricos ↔ aplicabilidade de procedimentos indutivos ↔ existência de regularidades no mundo (existência do próprio mundo).
Ao que parece tais conceitos são internamente relacionados entre si no sentido de se derivarem extensionalmente uns dos outros, do mesmo modo que o conceito de percepção sensível se deriva extensionalmente do conceito de experiência e vice-versa (onde houver percepção sensível haverá experiência e vice-versa, embora os sentidos envolvidos não sejam exatamente os mesmos). Por esse meio, ao contrário do que Hume acreditava, quando adequadamente entendidos os princípios da uniformidade deverão revelar-se verdades analítico-conceituais, ou seja, verdades da razão aplicáveis a qualquer mundo possível. O objetivo passa agora a ser o de estabelecer esses princípios de maneira mais adequada, evidenciando-os como verdades conceituais.
2. Para mostrar como a sugestão recém-apresentada poderia ser aplicada à reformulação dos princípios da uniformidade ou indução, gostaria de reconsiderar em algum detalhe PF, o princípio de que o futuro será semelhante ao passado. Se minha sugestão é correta então deve ser possível transformar esse princípio em uma verdade analítico-conceitual, constitutiva de nossas possibilidades de conceber e experienciar o mundo. Entendo aqui uma proposição analítico-conceitual como sendo aquela cuja verdade depende apenas da combinação de seus constituintes semânticos. Essa verdade caracteriza-se por não ser ampliadora de nosso conhecimento (opostamente às proposições sintéticas), e por ser tal que a sua negação implica em contradição ou incoerência ou impossibilidade de ser concebida.
A questão que se coloca é se PF é capaz de satisfazer essa caracterização usual de analiticidade. Parece que não. Hume pensava que não. Como já vimos, ele considera que podemos conceber que a neve passe a queimar como fogo e que as árvores passem a florescer no inverno... Mas esses exemplos de Hume são tão sugestivos quanto ilusórios, pois como uma enorme multidão de outras regularidades, principalmente as sincrônicas, permanece, eles estão longe de tornar o futuro tão dessemelhante do passado a ponto de invalidar procedimentos indutivos. Contudo, parece ainda assim concebível que algum cataclismo cósmico imprevisível modifique tão profundamente o futuro a ponto de torná-lo realmente muito diferente do passado, mostrando que PF não se aplica, que ele não é uma verdade conceitual necessária. Tentando tornar PF imune a essa objeção, podemos propor a seguinte reformulação de PF:
PF*: O futuro deverá ter alguma semelhança com o seu passado.
Diversamente de PF, PF* pode ser mais facilmente aceito como expressando uma verdade analítico-conceitual. Primeiro porque PF* pode ser visto como satisfazendo a caracterização de analiticidade acima apresentada. Sem dúvida, pertence ao conceito de futuro que ele seja futuro de seu próprio passado. Ele não pode ser o futuro de um outro passado qualquer. Mas se um futuro não tivesse nada a ver com o seu passado, não poderíamos sequer reconhecê-lo como sendo o futuro de seu próprio passado, pois ele poderia ser então o futuro de um outro passado qualquer... Usando o recurso a mundos possíveis: o futuro F do mundo atual m só pode ser o futuro de m, ou seja, Fm, que só pode ser o futuro do passado de m, ou seja, de Pm; ele não pode ser o futuro dos outros inúmeros mundos possíveis m1, m2, m3... que tiveram como passados respectivamente Pm1, Pm2, Pm3... É preciso, pois, que haja algo que identifique Fm como sendo o futuro de Pm. E esse algo só pode ser alguma margem de semelhança. Ou seja: a noção de futuro deve se encontrar de alguma forma conceitualmente ligada à noção de seu passado como lhe sendo em alguma medida, de algum modo, semelhante. Por essa razão PF* termina satisfazendo o conceito de analiticidade, pois não amplia nosso conhecimento e não pode ser negado sem incoerência, na medida em que não nos é possível pensar que o futuro não possua qualquer semelhança com o seu passado sem de algum modo caírmos em uma incoerência.
Com efeito, parece que toda vez que, na tentativa de rejeitar PF*, concebemos uma dessemelhança tão grande entre futuro e passado que invalide todos os procedimentos indutivo, nós, falhamos em conceber uma natureza, um mundo objetivo minimamente estruturado. Esse ponto pode ser facilmente ilustrado através de exemplos. Imagine, em uma tentativa de imaginar um futuro completamente diferente de seu passado, uma “completa transformação do mundo” como a narrada no livro bíblico do Apocalipse. É difícil imaginar alterações mais drásticas do que as que foram aí descritas. Afinal, trata-se da narração do próprio fim do mundo por nós conhecido! Mas é um erro pensar que a destruição de nosso mundo descrita no Apocalipse implicaria em uma negação de PF*, posto que a idéia de uma “completa transformação” não é aqui entendida em um sentido literal. Se examinarmos o texto mais de perto veremos que a grande maioria das coisas com as quais estamos familiarizados – ou seja, as regularidades sincrônicas básicas e mesmo a maioria das regularidades diacrônicas – continua inalterada após a transformação, embora elas tenham sido bizarramente combinadas, como na passagem bíblica descrevendo os gafanhotos enviados pelo quinto anjo:
O aspecto desses gafanhotos era o de cavalos aparelhados para a guerra. Nas suas cabeças havia uma espécie de coroa com reflexos dourados. Seus rostos eram como os de homem. Seus cabelos como os de mulher e seus dentes como os dentes de leão. Seus tórax pareciam envoltos em ferro e o ruído de suas asas era como o ruído de carros de muitos cavalos correndo para a guerra. Tinham caudas semelhantes à do escorpião, com ferrões e o poder de afligir os homens por cinco meses.[lxiii]
Ora, nada há nesse relato que ponha PF* em questão. Aliás, um exame acurado do exemplo demonstra que ele sequer põe PF em questão! Pois embora esses gafanhotos bíblicos se nos afigurem delirantemente estranhos, eles são constituídos por combinações de partes com as quais já estamos muito bem familiarizados – como cabelos, mulheres, homens, dentes, escorpiões, ferrões – as quais incluem internamente e externamente uma vasta soma de regularidades, de associações estruturais – como rostos de pessoas – e seqüenciais – como a relação causal entre a ferroada do escorpião e os efeitos do seu veneno nos seres humanos por certo tempo, além de inúmeras outras menos aparentes – que permanecem preservadas e indutivamente acessíveis, a despeito das alterações. Com efeito, não fosse assim o Apocalipse não chegaria a ser compreensível, pensável, concebível, nem passível de descrição lingüística, e o que não é nada disso é também impossível de ser experienciado. O relato ilustra a idéia já mencionada de que o mundo futuro precisa, ao menos na medida de sua maior proximidade com o presente, continuar suficientemente semelhante ao seu passado para que se deixe conceber como o futuro desse mesmo passado, ou seja, ele deve continuar suficientemente semelhante ao seu passado para caucionar a aplicação de procedimentos indutivos no reconhecimento da continuidade de um mesmo mundo.
Mas o que dizer de um futuro imensamente posterior ao presente? Ele não poderia ser totalmente diferente de seu passado? Parece que sim. Se interpretássemos PF* como podendo se referir a um futuro remotamente distante, destacado de todos aqueles que o antecederam, então parece claro que PF* poderia ser falseado, pois não é inconcebível que uma seqüência contínua de pequenas alterações possa no curso de um tempo muito longo dar lugar a alguma coisa completamente diversa. Mas não é nesse sentido que eu pretendi entender PF*, pois quando o apresentei já estava implícito que ele incluiria pelo menos o futuro que vem imediatamente após o presente, sendo nesse sentido a continuação de seu próprio passado.
Essa última consideração nos conduz a outra verdade conceitual, constatável na relação considerada por PF*. É que quanto mais nos aproximamos do ponto de junção entre o futuro e o passado, maior deve ser a semelhança entre ambos, tornando-se futuro e passado idênticos em seu limite, que é o presente. Esse ponto pode ser aproximado quando nos recordamos da análise aristotélica da mudança como pressupondo a permanência de um algo que continua idêntico e que, de um modo contínuo, ganha ou perde.[lxiv] A sugestão é a de que toda mudança pressupõe alguma base de permanência, ou seja, alguma regularidade sincrônica (estrutural), o que não só permite a inferência indutiva, mas a requer para ser conhecida.
Mas isso não é tudo. Há uma constatação relevante que ainda precisa ser feita, agora sobre a medida da permanência do que é pressuposto. É que enquanto se dá a mudança, eu sugiro, a medida da permanência precisa ser inversamente proporcional ao período de tempo em que a mudança se dá. Em outras palavras: se nos é dada uma sequência de mudanças que fazem parte de uma mudança mais completa, as mudanças que fazem parte da sequência pressupõem mais permanência do que a mudança mais completa.
Esse princípio pode ser ilustrado através de um exemplo: considere as mudanças resultantes do aquecimento de um pedaço de cera. A mudança do estado sólido para o estado líquido pressupõe a mesma cera como material. Mas a mudança seguinte, da cera líquida para a cinza de carbono, pressupõe apenas a permanência de átomos de carbono. Se o aquecimento for ainda mais intenso o carbono perderá a sua configuração eletrônica, dando lugar a um plasma superaquecido de nêutrons, prótons e elétrons. Temos aqui quatro momentos consecutivos: do momento t1 a t2 pressupomos como permanecendo a mesma a cera, composta dos mesmos átomos de carbono, que por sua vez são compostos por seus mesmos constituintes subatômicos, prótons, nêutrons e elétrons. Do momento t1 a t3 pressupomos como permanecendo idênticos apenas os átomos de carbono e os seus constituintes subatômicos. E do momento t1 a t4 a única coisa que permanecerá a mesma serão os constituintes subatômicos.
Note-se que esse modelo não se restringe a mudanças no mundo físico-material. A natureza não dá saltos. Em alterações psicológicas, sociais, econômicas, históricas, enfim, em qualquer outro domínio que venhamos a imaginar, o mesmo modelo se repete: quanto mais próximo o futuro estiver do ponto de junção com o seu passado, mais identidades serão assumidas. Melhor dizendo: pertence à própria estrutura do mundo da experiência possível que as mudanças que se dão em um período de tempo mais curto tendam a pressupor mais permanências do que as mudanças mais completas em que elas tomam parte. Uma conseqüência disso é que o futuro suficientemente próximo do presente deve ser em mais aspectos mais semelhante ao seu passado que os futuros mais distantes (os quais, como já notamos, podem se tornar até mesmo irreconhecivelmente diversos do presente). No que concerne à indução, esse princípio garante que as previsões indutivas se tornem tanto mais prováveis, quanto mais próximo for o futuro ao qual elas dizem respeito.[lxv] Com base nisso o princípio PF* pode ser aqui aperfeiçoado como:
PF**:
Quanto mais próximo o futuro estiver do ponto de junção com o seu próprio passado, mais ele tenderá a assemelhar-se a esse seu passado.
Para o correto entendimento de PF** é preciso adicionar apenas que inclusos na aplicação desse princípio devam estar sempre os futuros que se prolonguem a partir do presente e que estejam suficientemente próximos dele, uma vez que é necessário que alguma coisa deles contenha a continuação das mudanças iniciadas no passado. E a adição de que o futuro mais próximo deve apenas tender a assemelhar-se mais ao seu passado serve apenas para salvaguardar a possibilidade do caso anômalo, mas possível, de serem encontrados momentos sequenciais divergentes, em que o momento mais próximo do presente seja mais diverso do momento anterior.
Acredito que PF** possa ser analisado mais precisamente e mais formalmente do que consegui fazer aqui. Mas parece-me que esse princípio já satisfaz claramente a caracterização de analiticidade aqui sustentada, pois ele demonstra pertencer ao próprio conceito de futuro que vem logo após o presente que ele se assemelhe cada vez mais ao seu passado, quanto mais próximo ele estiver de seu ponto de junção com este último, que é o presente, convergindo para a identidade no próprio presente. Assim compreendido PF** satisfaz mais claramente as condições de identificação da proposição analítica do que PF* e PF: universalidade e impossibilidade de ser negado sem incoerência.
É a validade de PF** que torna natural pensar que quanto mais distante do ponto de junção com o seu passado um período de tempo futuro estiver, menos prováveis serão as previsões indutivas a ele concernentes. Isso ajuda a explicar porque as nossas generalizações indutivas sobre o futuro nunca chegam a ser sobre um futuro indefinidamente remoto, como pode parecer a um primeiro exame. Quando dizemos, por exemplo, que a indução nos permite inferir que o Sol sempre nascerá, ‘sempre’ é uma palavra que deve ser colocada entre aspas. Faz sentido afirmar, tendo como base indutiva o fato de o Sol sempre ter nascido, que ele nascerá amanhã e mesmo daqui a mil anos. Mas não faz sentido algum (e na verdade a astronomia sugere ser preditivamente falso) usar a mesma base indutiva para dizer que o Sol nascerá daqui a 17 bilhões de anos.[lxvi]
Finalmente, PF** pode garantir aplicações restringidas de PF, tornando PF analítico qando entendido de maneira a se restringir ao domínio dessas aplicações: se o futuro em questão estiver suficientemente próximo de seu ponto de junção com o passado, então este futuro será necessariamente semelhante a esse passado. O problema, naturalmente, é que nos falta estabelecer critérios para sabermos o quão próximo precisa estar um futuro do seu passado para que PF a ele necessariamente se aplique. Podemos especular se a resposta não depende do domínio de regularidades no qual a mudança que está sendo considerada, um domínio de regularidades ao qual se aplica todo um sistema de crenças suficientemente bem entrincheiradas (well entrenched) entre si.
Buscando um exemplo: a conclusão indutiva de que sol nascerá amanhã pertence ao domínio de regularidades implicadas nas mudanças investigadas pela astronomia, o que inclui um futuro muito distante para que as mudanças mais amplas aconteçam, como, por exemplo, a morte do sol. É possível, embora muito improvável, que sem razão aparente o sol não nasça amanhã, como o próprio procedimento indutivo prevê. Mas isso só será concebível ao preço de uma imensa perda de outras regularidades bem entrincheiradas e, subseqüentemente, da perda de nossa atual inteligibilidade de uma boa parte do mundo físico que nos cerca.
Ainda assim, o que nos faz considerar altamente provável a permanência futura de regularidades particulares, como a de que o sol nasce a cada dia? A resposta parece partir da inevitável assunção do fato bruto de que o mundo que experienciamos, o nosso mundo como um todo, continuará a existir como um sistema de regularidades. E essa assunção é, somos forçados a admitir, uma verdadeira e inevitável aposta.[lxvii] Mas uma vez feita essa assunção geral – de que nosso mundo como um todo permanecerá existindo – parece que o resto decorre: somos inevitavelmente levados a admitir como provável a existência de certos domínios coesos de regularidades e das regularidades particulares implicadas nesses domínios como sendo de permanência provável. Conversamente, se decidirmos rejeitar arbitrariamente a permanência futura de uma regularidade mais central – como a de que o sol deve nascer a cada dia – isso nos será difícil, pois precisaremos colocar em questão a permanência futura de todo o sistema de regularidades no qual ela se inclui. Por isso, porque a própria expectativa da regularidade em questão é medida com base na admissão da permanência futura desse domínio de regularidades, deixa de ser racional que ela seja isoladamente rejeitada.
Os argumentos que acabo de expor foram apenas toscamente desenvolvidos, além de se limitarem a uma única forma de indução: do passado para o futuro. Ainda assim, eles indicam um caminho a ser aberto, o que já pode ser de alguma ajuda para um problema que visto sob qualquer outro ângulo tem se afigurado desorientador e intangível.
18. Um paradoxo não tão relevante
Por curiosidade li na época aquilo que o filósofo norte-americano Nelson Goodman chamou de o novo enigma da indução, com o qual pretendeu substituir o velho enigma humiano.[lxviii] Para expô-lo ele começou por sugerir um novo conceito, o de verul (grue), por ele definido como se estendendo a todas as coisas que são verdes antes do momento t e azuis depois de t. A questão que ele apresenta é: por que a observação de uma classe de coisas – digamos, esmeraldas – que são verdes antes de t, não é uma boa base indutiva para a inferência de que esmeraldas após t serão azuis, enquanto a observação de que as esmeraldas são verdes antes de t é uma boa base indutiva para a inferência de que elas serão verdes depois de t? Por que verul não é um predicado projetável?
Esse paradoxo não me parece em nada comparável ao difícil problema humiano, apesar de cumprir com a função de todo paradoxo, que é a de nos forçar à reflexão. A reação mais natural é notar que o predicado ‘verul’, diversamente da maioria, é um predicado processual, no sentido de ser definido por referência a uma propriedade com duas partes que se sequenciam no tempo: o tempo de antes e o de depois de t. Sendo assim, qualquer aplicação observacional desse predicado é dependente da observação do que é o caso não só antes, mas também depois de t, sendo incompleta enquanto isso não acontecer. Constatar que algo é verul antes de t é como adivinhar o resultado da Segunda Guerra Mundial após ter sido informado sobre o que sucedeu no seu primeiro ano. Como no caso em questão, as observações que nos devem fornecer suporte evidencial para ‘verul’ ocorrem todas antes de t, não temos nenhum modo de aplicar tal predicado à propriedade de maneira a formar um verdadeiro suporte evidencial para inferências indutivas.
Como contraste, suponha que antes de t alguém faça a associação observacional (i) “A esmeralda A é verde”. Nesse caso a pessoa se encontra observacionalmente justificada em dizer que a proposição é verdadeira, posto que ‘verde’ não é nenhum predicado processual e já pode ser efetivamente aplicado. Sendo assim, o acúmulo de observações como (i) pode contar como elemento para formar suporte evidencial indutivo para a conclusão de que esmeraldas encontradas após t são verdes. Por outro lado, suponha que antes de t alguém tente fazer a afirmação: (ii) “A esmeralda A é verul”. Como ‘verul’ é um predicado processual, e como sua aplicação só se completa na dependência do que for observado também depois de t, é impossível tornar essa afirmação verdadeira somente através da observação anterior a t, disso resultando a impossibilidade de se produzir um suporte evidencial para a conclusão indutiva “Esmeraldas encontradas depois de t são verduis”. (Observe que após t a aplicação observacional do predicado ‘verul’ se torna possível. Suponha que todas as esmeraldas examinadas depois de t se tenham tornado azuis e sejam, por conseguinte, veruis. Nesse caso haverá suporte indutivo para a expectativa de que a próxima esmeralda a ser encontrada também seja verul).
Contra respostas como a que acabei de propor, Goodman sugeriu que também o verde pode ser temporalmente definido. Definindo ‘azerde’ como o que é azul antes de t e verde depois de t, diz ele, podemos de algum modo definir ‘verde’ como o que é verul antes de t e azerde depois de t.
Contudo, essa é uma definição incorreta de verde, pois transforma ‘verde’ em um predicado processual, enquanto chamamos de verde aquilo que é verde ao ser observado. Não precisamos saber que uma esmeralda continua verde depois de t para sabermos que ela é verde antes de t. Só no caso de antes de t observarmos repetidamente esmeraldas e verificarmos que elas continuam verdes, teremos boas razões indutivas para concluirmos que elas continuarão verdes depois de t, ou seja, que elas são veruis antes de t e azerdes depois de t.
19. Níveis de ação e a teoria do cérebro triúno
Há dois artigos relacionados um ao outro que comecei a desenvolver em Oxford e terminei em Natal. Um deles consistiu na investigação de três níveis de ação e das relações dinâmicas entre eles. O outro foi sobre o livre arbítrio, elucidando o compatibilismo com base na teoria da ação.
O primeiro artigo foi publicado sob o título de “Três níveis de ação” na revista Ethic@. A idéia é simples. Há três níveis de ação claramente hierarquisáveis. O mais inferior (já presente até mesmo nas ações dos vermes e insetos) é o das ações autônomas. Tais ações são movimentos corporais com propósitos evolucionariamente herdados, que nada têm de conscientes. Exemplos disso são: a ação de construção da teia pela aranha e a ação do coração de bombear o sangue. Elas são teleológicas no sentido de que servem a um propósito evolucionariamente originado, diferindo de movimentos corporais sem propósito, como os de uma crise epiléptica ou o de um tique nervoso. Esse nível está presente mesmo nos seres humanos, muitas vezes sob a forma de ações automatizadas.
Os dois níveis seguintes requerem mentalidade. O segundo nível (comum a homens e a vertebrados em geral) é o de ações volitivas, que são causadas por um querer ativo, mas na independência de razões. Exemplo disso é o cantar do galo ao amanhecer, ou (geralmente) a ação de deglutir o alimento. O terceiro nível, enfim (comum a homens e a uns poucos mamíferos superiores), é o das ações raciocinadas, em que o querer é causado por razões. Exemplos disso são as minhas ações de mudar de emprego, de ir ao médico, de declarar o imposto de renda. Eu as realizo com base em crenças sobre como satisfazer desejos, ou seja, em razões. A transição do nível da ação volitiva para o nível da ação raciocinada foi em meu juízo registrada pelo famoso experimento de Wolfgang Köhler com chimpanzés, os quais, após alguns momentos de “reflexão”, decidiam empilhar caixas umas sobre as outras para, subindo nelas, alcançar as bananas.[lxix]
Quando repetidas muitas vezes as ações tendem a passar de um nível superior a um nível inferior, de modo a deixar a mente consciente livre para tratar de outros negócios. Assim, quando uma pessoa começa a aprender digitação, para digitar a letra ‘e’ ela precisa procurar pela letra. Ela precisa pensar no que vai fazer, daí ser esta uma ação raciocinada. Mais tarde essa ação se torna volitiva, pois a pessoa precisa ainda querer apertar a tecla, embora não precise mais raciocinar para chegar a isso. Finalmente, quando a pessoa se encontra bastante treinada a ação se torna totalmente automatizada, de modo que ela não é mais capaz sequer de dizer quando ou quantas vezes digitou a letra ‘e’ em uma frase. É verdade que a letra ‘e’ é automaticamente digitada dentro do escopo da ação de produção de uma frase que ainda é volitivamente desencadeada, e que essa frase se encontra dentro do escopo da ação da produção de um texto, a qual é racionalmente escolhida, mas essas sobreposições não nos precisam confundir.
Para essa distinção psicológico-comportamental entre três níveis de ação dinamicamente relacionados encontrei um fundamento neurofisiológico na teoria do cérebro triúno, do grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean. Segundo a sua teoria, o cérebro opera como três computadores biológicos interconectados, que foram sucessivamente adicionados no processo evolucionário:
1) O archipalium (responsável por processos autônomos, como o da respiração) já presente em insetos.
2) O mesopalium ou sistema límbico (responsável pelas emoções e desejos) e comum aos vertebrados.
3) O neopalium (responsável pelo entendimento e razão) e típico dos mamíferos superiores.
É fácil identificar o archipalium como sendo primariamente responsável pelas ações autônomas, o sistema límbico pelas ações volicionais e o neopalium pelas ações raciocinadas.
20. Livre arbítrio: refinando o compatibilismo tradicional
O Segundo artigo terminado em Oxford foi “Free Will and the Soft Constraints of Reason”.[lxx] Ele foi enviado à revista Ratio, que já havia publicado “I’m Thinking”. O novo artigo não só foi aceito como me valeu um convite do editor, John Cottingham, para almoçar com ele no Saint John’s College. Lá ele me informou que a publicação havia sido recomendada por ele próprio e pelo professor Galen Strawson, reconhecido especialista no assunto. Quero resumir a idéia principal.
O problema clássico do livre arbítrio é o de explicar como é possível que possamos decidir e agir livremente se somos partes de um mundo que (ao menos fora do nível da microfísica) parece ser completamente determinado por causas. Há tipicamente três tipos de resposta. A primeira é a do determinismo cético: não somos realmente livres, a liberdade é uma ilusão. A segunda é a do libertarismo: embora participemos de um mundo causalmente determinado, somos uma exceção: quando decidimos livremente tornamo-nos causas incausadas, rompendo as cadeias do determinismo causal. A terceira resposta é a do compatibilismo. Segundo o compabilismo tradicional, liberdade e determinismo são compatíveis, pois a liberdade de decisão é redefinida como não se constituindo no rompimento das cadeias do determinismo causal (exista ele ou não). A liberdade de decisão e ação se define tão somente pela ausência de restrições: ser livre é não ser restringido. Assim, dizemos que o escravo alforriado tornou-se livre porque ele agora pode fazer o que quiser, e dizemos que o rio que rompeu a barragem agora segue livremente o seu curso. Mas isso não significa que o escravo alforriado ou o rio que rompeu a barragem deixaram de ser causalmente determinados.
Há problemas com a definição compatibilista tradicional, tal como foi defendida com base em Hobbes. Considere , por exemplo, o contraexemplo do suicídio coletivo dos seguidores de Jim Jones. Alguns dirão que eles não agiram livremente, pois foram restringidos pela influência de um líder fanático. Mas outros poderão dizer que eles fizeram isso porque quiseram, logo, nada os restringiu, logo, agiram livremente. Afinal, eles mesmos, em sua grande maioria, teriam dado precisamente essa resposta se estivessem vivos para contar. Como decidir?
Uma maneira contemporânea de se lidar com muitos contraexemplos é recorrer às assim chamadas definições compatibilistas hierárquicas de livre arbítrio como a introduzida por H.G. Frankfurt.[lxxi] Mas também há problemas com as definições hierárquicas, que embora respondam muito bem a alguns contraexemplos, deixam escapar outros que a definição compatibilista tradicional parecia resolver.
Minha maneira de lidar com tais questões consistiu tão somente em elaborar e refinar a tradicional definição compatibilista de livre arbítrio. Não tenho espaço para detalhar isso aqui, mas quero expor a principal chave argumentativa, que consistiu em analisar a questão tendo em mente a moderna teoria causal da ação, dado que essa teoria é enquanto tal determinista.[lxxii] Em seu cerne essa teoria nos diz que uma ação é tipicamente um evento (em geral um movimento corporal) causado por um querer ativo (intention in action, proximal intention, trying...) que o acompanha. Em muitos casos esse querer ativo é causado por um querer prévio (previous intention). A emergência de um querer ativo ou de um querer prévio é o que chamamos de decisão. O querer prévio e, por vezes, o querer ativo, são freqüentemente causados por razões, geralmente entendidas como conjunções de desejos e crenças. Por exemplo: quero encher o tanque de gasolina do carro; se me perguntarem por que razão quero fazer isso eu direi: porque desejo fazer uma longa viagem e creio que para tal o tanque precisa estar cheio. Essa conjunção de desejo e crença é a razão de minha decisão de encher o tanque, desse meu querer prévio. O querer prévio, por sua vez, causa o meu querer ativo, que faz com que eu pare em um posto e realize a ação de colocar gasolina no tanque de modo a realizar o efeito intencionado, que é o de chegar ao meu destino. Eis um esquema de uma ação raciocinada:
RAZÃO (desejo + crença)
↓
QUERER PRÉVIO (1ª Decisão)
↓
QUERER ATIVO (2ª Decisão)
↓
MOVIMENTO CORPORAL → EFEITOS
EXTERNOS
Ora, essa teoria é ideal para caucionar uma classificação e investigação detalhada dos diversos níveis de restrição da liberdade pessoal sob a perspectiva compatibilista. Antes de fazê-lo, porém, precisei refinar a noção de restrição e do contexto no qual ela pode se dar.
A primeira distinção que introduzi diz respeito à origem da restrição. Distingui duas origens causais:
(a) externas (como a falta de água em um deserto, que impede a pessoa de saciar a sede) e
(b) internas (como a compulsão do alcoólatra, que o força a beber contra a sua vontade).
Cada origem costuma ser pragmaticamente identificada do ponto de vista daquilo que é mais próximo e mais importante. Assim, embora uma grande decepção amorosa tenha transformado Elvino em um alcoólatra... essa origem está demasiado distante no tempo para ser considerada a restrição interna, a compulsão que acaba de induzi-lo ao ato de roubar uma garrafa de wodka contra a própria vontade.
Outra distinção, que tomei de empréstimo de Richard Taylor, foi a que vige entre:
(a) as limitações (que nos diminuem as alternativas disponíveis) e/ou
(b) as coerções (que nos forçam a certas alternativas disponíveis).[lxxiii]
Repetindo um exemplo de Taylor, se estou com o punho cerrado de minha mão direita sobre uma mesa e o dedo indicador aberto, eu sou livre para movê-lo tanto para a direita quanto para a esquerda. Se um pesado livro for colocado ao lado do dedo e eu não puder mais movê-lo para a esquerda, isso é uma limitação de minha liberdade de mover o dedo. Mas se uma pessoa puxar o meu dedo para a direita, ela aplicará uma coerção em minha liberdade de mover o dedo.
Mais além, a noção de restrição (por limitação ou coerção) do livre arbítrio é sempre contextualmente dependente. Ela depende do contexto da decisão/ação em que a liberdade ou ausência de liberdade está sendo avaliada. Mais precisamente, nosso uso do conceito de liberdade é restrito a leques de alternativas razoáveis, sempre contextualmente determinados. Assim, posso reclamar que não sou suficientemente livre, como professor, para dar as aulas que desejo, devido a restrições exageradas e arbitrárias impostas pelos planos de cursos, posto que essa opção encontra-se contida no leque de alternativas razoáveis dentro do qual vige a minha liberdade. Contudo, não posso dizer que não sou livre para ocupar o tempo das aulas de filosofia cantando árias de óperas, pois isso extrapola os limites do leque de alternativas razoáveis que o contexto coloca a meu dispor. O menosprezo por esse vínculo contextual pode levar a declarações absurdas de filósofos que assumem que dispomos de alguma forma absoluta de liberdade.
Cientes dessas distinções, podemos agora opô-las ao esquema mais complexo da ação raciocinada em seus vários níveis. A primeira coisa que encontraremos serão restrições físicas da liberdade (liberty), no nível da passagem dos movimentos corporais para os efeitos intencionados (como no caso de alguém que tenta ligar um carro cuja ignição não funciona) ou mesmo da passagem do querer ativo ao movimento corporal (como no caso de uma pessoa amarrada a um poste). A restrição pode ser aqui externa (pessoa amarrada a um poste) ou interna (pessoa que tomou um sedativo) e por limitação (nos casos apontados) ou por coerção (pessoa que possui um tique nervoso).
Só nos níveis seguintes é que temos o que pode propriamente ser chamado de restrições do livre arbítrio da vontade (liberum arbitrium voluntatis).
Na passagem do querer prévio ao querer ativo (como no próprio querer ativo) podem ocorrer restrições ocasionadas por volições intervenientes, como o do soldado que não consegue atirar no inimigo (limitação interna), ou do alcoólatra que não consegue se impedir de tomar mais uma dose (coerção interna). Ter liberdade da vontade (freedom of will) é não ser restringido a esse nível.
Finalmente, o mais interessante dos casos é quando a restrição se dá ao nível da formação de razões ou de sua passagem para o querer (liberum arbitrium). Para exemplificar temos o caso do psicopata racista, que acredita que fará um bem à humanidade matando o maior número possível de pessoas de cor negra (coerção no sentido de uma indução racional interna), ou ainda o caso do psicótico que se recusa a comer, por crer que a comida esteja envenenada (limitação por uma indução racional interna). Outros exemplos são o caso do suicídio coletivo dos seguidores de Jim Jones (em que temos uma indução racional externa), ou o caso da pessoa que por superstição não faz negócios no dia 13 (limitação racional externa). Tais casos são de especial interesse, pois somos com demasiada frequência restringidos em nossa liberdade por influências externas da parte de outras pessoas ou da sociedade, sem nos darmos conta disso. Em todos esses casos entram em questão razões intervenientes de origem interna ou externa, que restringem a autonomia do processo deliberativo por limitação ou coerção, no sentido de induzir a pessoa a tomar decisões que sob outro ponto de vista não são livres, embora sob o ponto de vista dela própria sejam livres.
A coisa mais importante sobre as restrições de ordem racional é que quando delas falamos estamos geralmente nos referindo ao ponto de vista de uma terceira pessoa, de um sujeito avaliador externo. É geralmente assim porque a pessoa que decide com base em razões restritivas (ao menos no momento de sua decisão) não está consciente de que não faz isso livremente. É por sermos sujeitos avaliadores externos, ou por fazermos parte de uma comunidade de sujeitos avaliadores externos, com perspectivas e valores similares, que geralmente avaliamos se em casos particulares (por exemplo, no do suicídio coletivo dos seguidores de Jim Jones) a razão é ou não é livre.
Esse ponto leva a uma questão: o que dá ao sujeito avaliador externo a sua condição eventualmente privilegiada sobre outros sujeitos? Sem uma resposta a essa questão cairemos no relativismo sobre a liberdade do arbítrio. Minha sugestão é que a condição do sujeito avaliador se torna privilegiada quando a sua avaliação é apoiada em algo próximo àquilo que Habermas chamou de uma comunidade ideal de fala (ideale Sprachgemeinschaft), ou seja, no que podemos chamar de uma comunidade crítica de avaliadores potenciais que possuem o acesso máximo à informação pertinente, a maior competência, a mais completa liberdade de expressão e intercâmbio de opiniões etc.
Juntando todos esses elementos cheguei a uma formulação mais elaborada e precisa da definição compatibilista tradicional de livre arbítrio. Chamando de A o agente a ser avaliado e de S o sujeito avaliador e (admitindo que S possa eventualmente ser o próprio A em um esforço posterior de auto-avaliação), a definição pode tomar a seguinte forma[lxxiv]:
A age livremente sob a perspectiva de S (geralmente ancorado em uma comunidade crítica de avaliadores potenciais)
see
dentro de um leque de alternativas razoáveis, a ação de A não for nem externamente nem internamente limitada e/ou constrangida, quer ao nível físico, quer ao nível da volição, quer ao nível da razão.
Não sei de contraexemplos ao compatibilismo que revelem conformidade com as exigências dessa definição.
21. Pequena cartografia da consciência
Em 2005 passei a participar do primeiro doutorado em filosofia da região Nordeste do país, criado sob a iniciativa do professor André Leclerc. Pela mesma época comecei a desenvolver um pequeno ensaio intitulado “Definindo Consciência”.[lxxv] Meu objetivo foi desenvolver uma definição imanente do que queremos dizer com a palavra ‘consciência’ e investigar, com base nisso, as suas principais subdivisões. Meu ponto de partida foi a sugestão de Owen Flanagan de que a consciência se define como experiência.[lxxvi] Mesmo substituindo a palavra ‘experiência’ pela palavra ‘representação’, mais adequada, tal definição seria ampla demais: podemos dizer que quando sonhamos temos representações (e experiências) sem termos consciência em sentido pleno.
Ora, qual é a diferença entre representações como as do sonho e representações conscientes? A resposta para esse caso é fácil. A representação consciente tem a propriedade de ser verídica: ela representa a coisa tal como ela é. É isso que a faz diferir da representação meramente sonhada, que por isso mesmo é comparativamente chamada de não-consciente. Assim, uma marca mais genérica da representação consciente é o seu caráter de representação verídica, ou seja, de representação das coisas tal como elas são, melhor dizendo, de como elas são capazes de serem tidas por nós como realmente sendo.
Claro que ainda continua sendo possível conceber uma representação verídica inconsciente, como no caso de experimentos com experiências perceptuais subliminares.[lxxvii] Contudo, uma resposta para essa dificuldade pode ser dada quando distinguimos, como fez o filósofo australiano David Armstrong, [lxxviii] entre consciência perceptual e consciência introspectiva ou, como prefiro chamar (seguindo Locke), consciência reflexiva.
A consciência perceptual, como a entendo, é a representação (ou experiência) verídica do mundo exterior, ou seja, dele, tal como ele para nós realmente é. Como notou Armstrong, nesse sentido estar consciente é estar acordado, atento, percebendo o mundo externo e o próprio corpo. Essa modalidade é tão abrangente quanto irrelevante, pois é com base nela que dizemos, por exemplo, que um camundongo sedado com éter perdeu a consciência; contudo, não é certamente um conceito de consciência aplicável a camundongos aquele que estamos mais interessados em investigar.
A segunda e para Armstrong realmente importante modalidade de consciência, que parece ser quase restrita à espécie humana, pode ser entendida como a representação (ou experiência) verídica do mundo interior, ou seja, dos estados internos da mente, tal como eles realmente são. Essa é a consciência que uma pessoa tem de estar feliz, de estar pensando, de estar contemplando uma paisagem etc. Ela é a consciência introspectiva ou reflexiva, a qual certamente exige alguma espécie de cognição (pensamento, juízo) de ordem superior, a dizer, uma metacognição de um estado mental de nível inferior que lhe é simultâneo, caso no qual dizemos que esse último estado se tornou consciente. [lxxix]
Posso, para oferecer um exemplo, ter uma dor de dente muito leve que só se torna consciente quando penso nela, quando tenho uma cognição dela. Digo então que tenho consciência da dor (forma relacional) ou que essa dor é consciente (forma predicativa). Para Armstrong, essa forma de consciência teria surgido pela necessidade evolucionária de sistemas cognitivos mais complexos de monitorar os seus processos mentais de primeira ordem através de estados mentais de ordem superior.
Curiosamente, é só pela consciência reflexiva que nos tornamos cientes da existência da consciência perceptual, pois a consciência perceptual é inconsciente de si mesma: o camundongo acordado não sabe que está acordado; ele deve sentir medo ao ver um gato, mas ele não deve ter consciência de que tem medo. Isso resolve o problema criado pelas representações verídicas inconscientes, como é o caso das percepções subliminares. Elas são inconscientes apenas quando entendidas em termos de consciência reflexiva; mas elas constituem, enquanto representações verídicas, parte da consciência perceptual, que não passa como já notei de uma consciência inconsciente.
Outra marca da consciência reflexiva é que ela tem função unificadora. Se eu tenho a cognição de certo estado mental isso significa que posso mais facilmente associá-lo a outros a ele relacionados. Usando uma metáfora conhecida: a consciência reflexiva é como a luz de um refletor (a vontade) que ilumina um ator (o estado mental dito consciente) no palco da consciência (onde estão os estados mentais a ele diretamente associados), tornando-o visível para o auditório (ou seja, associável a outros estados mentais mais distantes). Pode ser que uma metacognição que não tenha essa função unificadora não seja capaz de produzir consciência reflexiva.
Finalmente, em um artigo mais desenvido, sugeri que deve existir ainda uma forma importante de consciência que chamei de consciência pensante (thinking consciousness).[lxxx] Trata-se do problema de explicar a espécie de consciência que usualmente temos de pensamentos que são apenas mediatamente relacionados à experiência emocional, sensorial ou perceptual. Considere, por exemplo, pensamentos como "Schliemann foi quem descobriu Tróia com base nas indicações dadas por Ritcher", ou “Fg = M1 + M2/D²”. É claro que podemos ter consciência reflexiva desses pensamentos. Mas também parece muito claro que esses pensamentos podem ser ditos conscientes mesmo quando ao te-los nós não estejamos tendo nenhuma cognição de ordem superior de que os estamos pensando. E eles são muitos...
Qual seria então a razão disso? A razão pela qual os pensamentos mediados podem ser ditos conscientes, mesmo não vindo acompanhados de metacognições reflexivas, é a meu ver que eles ganham o seu valor-verdade por meio de mais ou menos complexas relações indiretas com outros estados mentais representativos que os verificam, inclusive, eventualmente, na forma de consciência perceptual. Essas relações fazem com que eles contenham representações verídicas de outros pensamentos, que podem conter representações verídicas de ainda outros pensamentos, o que nos permite dizer que eles – no conteúdo abrangente que de algum modo os constitui – são conscientes. A estrutura dessa forma de consciência não difere tanto assim da estrutura da consciência reflexiva, daí porque ela seria também consciência no sentido importante da palavra.
Creio que a ideia advinda da tradição cartesiana e ainda hoje defendida, segundo a qual todo pensamento gera intrinsecamente sua própria metacognição reflexiva, seja uma confusão ganha a partir da consideração de exemplos de consciência pensante. Essa confusão paga o preço de ter de admitir a inexistência de estados mentais inconscientes, além de não possuir base intuitiva alguma.
Algumas conseqüências dessas distinções mais básicas se refletem nas subdivisões e estensões das modalidades consideradas. O que tem sido chamado de consciência fenomenal, por exemplo, acaba por demonstrar-se uma mistura ambígua de consciência perceptual com consciência reflexiva de estados mentais fenomenais, revelando-se assim um conceito “sujo”. E o que chamamos de consciência moral pode ser a espécie de consciência que se dá quando o estado mental de nível inferior veridicamente representado tem a ver com moralidade (daí a relação próxima entre consciousness e conscience). E há também o que é chamado de consciência individual, que deve depender de um grupo de metacognições de estados mentais constituintes de uma única pessoa e que importam para sua auto-identificação.
22. Estados mentais como estados neurofuncionais
Outro projeto que me interessou desenvolver na época consistiu na tentativa de ressuscitar o essencial da teoria da identidade type-type. Segundo essa teoria, os (tipos de) estados mentais são o mesmo que os (tipos de) estados cerebrais.[lxxxi] A princípio nada mais razoável. Mas há fortes objeções contra isso. A única que considerei em algum detalhe foi a da múltipla realizabilidade, devida a Hilary Putnam. Segundo essa objeção, um mesmo estado mental, por exemplo, a dor, pode se realizar como descarga de “fibras-C” no homem, mas como descarga de “fibras-D” no polvo, e ainda de forma completamente diferente no cérebro de líquido verde de um marciano ou no cérebro mecânico de um robô... o que destrói a suposta identidade de tipo.[lxxxii]
A resposta que me ocorreu ainda enquanto estava em Berkeley era a de que, ao menos no que diz respeito a estados fenomenais tal objeção é falaciosa, pois identifica estados mentais com estados “materiais” do cérebro (histológicos, anatômicos, bioquímicos...), quando deveria identificá-los com estados também materiais, mas de ordem neurofuncional. Assim, se ao invés de recorrermos a uma definição histológico-funcional, falando enganosamente de “fibras-C”, preferirmos identificar genericamente a dor com uma excitação de certos centros pré-corticais de tal e tal maneira, que é interpretada ao nível cortical de tal e tal maneira e que geralmente é causada pelas descargas de neurônios nociceptores periféricos, os quais são definidos como ativáveis pelo calor e inibidos por substâncias sedativas como a morfina etc. estaremos nos aproximando de uma definição neurofuncional. Em tal caso, porém, torna-se plausível dizer que tanto o homem quanto o polvo possam ter realizações neurofuncionais de dor que sejam suficientemente similares para caber na definição. Afinal, se o polvo tiver células nervosas ativáveis pelo calor e inibíveis pela morfina, elas serão células definíveis como nociceptoras, tanto quanto as nossas. Mas isso já é bastante plausível. Bom, mas o que dizer da dor dos marcianos e dos andróides? Ora, essa questão eu deixo para ser avaliada pelos que conseguem levar a sério um filme como Artificial Inteligence, de Steven Spielberg.[lxxxiii]
Parece, pois, que a objeção da múltipla realizabilidade aplicada a estados fenomenais (qualia) incorre em uma falácia de falsa especificação. Todavia, não creio que a teoria da identidade de tipo possa resistir à objeção da múltipla realizabilidade aplicada a estados cognitivos (pensamentos, crenças, intenções...). De fato, parece-me desesperadora a expectativa de que possamos encontrar uma realização cerebral única para o pensamento de que hoje é Sábado. Assim sendo, mesmo sendo possível encontrar uma identidade type-type para estados fenomenais, parece-me que estados cognitivos, devido à sua natureza abstrata, só são capazes de identidade token-token. Disso alguns concluiriam que, como identidades token-token podem ser de qualquer coisa com qualquer outra coisa, o amplo domínio do mental-cognitivo pode ser totalmente “despregado” do cérebro biológico.
Pode-se aceitar esse resultado, favorável à crença medieval de que pelo menos a alma intelectiva seria capaz de sobreviver à morte do cérebro. Mas como materialista e defensor de um naturalismo biológico do mental, eu rejeito esse resultado com base no seguinte argumento. Falsos estados cognitivos, como os “pensamentos” e “raciocínios” de um computador, não vêm associados a estados fenomenais: computadores não têm sensações nem emoções como nós. Já os verdadeiros estados cognitivos são inevitavelmente associados a estados fenomenais, que são em algum sentido capazes de fundamentá-los, de torná-los aquilo eles que são. Como notou Kant, pensamentos sem intuições são vazios; e como notou Hume, os raciocínios precisam estar atrelados às paixões. Ora, o que essas considerações sugerem é que os estados cognitivo-indefinidamente-neurofuncionais, com as suas identidades token-token, acabam por depender inevitavelmente de estados fenomenais-definidamente-neurofuncionais, com as suas identidades type-type, sendo que essa dependência sozinha já basta para pregar firmemente o completo domínio do mental em seu cérebro biológico.
23. O que faz de uma pessoa ela mesma?
Nessa mesma época também escrevi alguns textos sobre o problema da identidade pessoal, que pode ser definido como sendo o de estabelecer os critérios pelos quais podemos saber que uma pessoa permanece a mesma pessoa no curso do tempo. O texto mais desenvolvido se intitula “Identidade pessoal: por uma criteriologia mista”[lxxxiv], onde defendi a existência necessária de critérios físicos e psicológicos. O critério físico pode ser de dois tipos:
F1 permanência da mesma matéria,
F2 uma conexão causal entre as estruturas materiais
que as preserve no curso do tempo.
A exigência de que ao menos um dos dois tipos seja satisfeito cobre casos difíceis, como o da máquina de substituição de corpo, imaginado por Sydney Shoemaker.[lxxxv] Esse autor nos faz considerar uma civilização na qual o alto índice de radioatividade faz com que as pessoas facilmente desenvolvem algum tipo de câncer. Felizmente, lá existem máquinas de substituição do corpo. Elas funcionam assim: uma vez que uma pessoa entra em uma dessas máquinas, cada molécula de seu corpo é substituída por uma nova molécula igual, a qual é disposta exatamente no mesmo lugar, de modo que após algumas horas a mesma pessoa sai da máquina com a sua matéria corporal totalmente renovada. Pode parecer que essa experiência prove que a continuidade de uma pessoa depende totalmente de características psicológicas e não de qualquer característica física. Mas quem pensa assim está considerando apenas o critério físico do tipo F1. Quando consideramos o critério do tipo F2, a conexão causal material, vemos que ainda há um elemento físico responsável pela continuidade da pessoa, que é a conexão causal entre a estrutura material do corpo antes de passar pela máquina e depois disso, pois sem o papel causal da estrutura matérial anterior, tendo como efeito a preservação de uma mesma estrutura material posterior, a máquina não seria capaz de realizar a substituição. Tanto é assim que quando o critério F2 também falta, nós nos recusamos a dizer que se trata da mesma pessoa. Assim, suponhamos (pace Putnam) que dois cérebros perfeitamente idênticos, A e B, se encontram em cubas, tendo exatamente as mesmas experiências ilusórias de um mesmo programa de computador. Eles formam duas pessoas diferentes com exatamente as mesmas experiências. Suponhamos agora que devido a uma falha no sistema, o cérebro A deixa de ser alimentado e morre, e que o responsável pela falha, tentando acobertar o seu erro, coloque logo em seguida o cérebro B na cuba onde se encontrava o cérebro A, de modo que ele continuará a ter as mesmas experiências de A, como se nada tivesse acontecido. Nesse caso não diríamos que B é a mesma pessoa que A, mas apenas uma pessoa qualitativamente idêntica a A. E a razão disso é que não há nenhuma relação causal entre o cérebro A e o cérebro B. A pessoa B não é nem um continuante material nem um continuante causal de A.
Embora a condição F1 ou F2 precise ser suficientemente satisfeita, isso não basta, o que pode ser demonstrado pela experiência imaginária de modificação do cérebro. Imagine que uma pessoa esteja em uma mesa de cirurgia com a calota craniana aberta e que neurocientistas façam com que ela ganhe características mentais, implantando então novas memórias e redesenhando o seu cérebro de maneira que ela passe a ter características psicológicas, intelectuais e afetivas totalmente novas... A pessoa que acordará da mesa de cirurgia será certamente uma outra, mesmo que o material físico do seu cérebro continue o mesmo. Isso significa que certa permanência de características psicológicas, intelectuais e emocionais, além da memória a elas ligada, é necessária para a identidade. Considerando que características cognitivas e memória, além de um elemento volicional, são indispensáveis, pois não parece que uma mente possa trabalhar sem ao menos esses elementos, sugeri que as características mentais indispensáveis fossem basicamente:
M1 a permanência de características cognitivas (pensamento, raciocínio, reflexão...)
M2 a permanência de características mnêmicas (memória de habilidades, memória de conhecimento, memória pessoal...).
M3 a permanência de características afetivo-volicionais (traços de personalidade, caráter...)
O critério de identidade pessoal torna-se então uma regra de segunda ordem, que se aplica às características dos tipos F e M. Aqui está ele:
IP: Para que uma pessoa permaneça a mesma ela deve satisfazer os critérios F1 e/ou F2 e, em alguma medida também, M1, M2 e M3.
Mas não seria esse critério muito vago? Afinal, IP não estabelece o grau de satisfação de cada um desses critérios! Minha resposta foi a de que a vaguidade é aqui inevitável. Se, por exemplo, existisse um ser humano que não envelhecesse e vivesse por centenas de anos, e se nele pouco a pouco as memórias fossem sendo perdidas e substituídas por outras mais recentes e completamente diversas e se mesmo as suas habilidades intelectuais e disposições emocionais acabassem por se modificar completamente, e, ainda mais, se todas essas modificações ocorressem várias vezes, por fases, tenderíamos a dizer que o mesmo corpo encarnou várias pessoas no correr de sua longa vida. Mas não parece que nos possa ser dada uma medida certa, um inequívoco ponto de corte para determinarmos quando isso ocorre ou deixa de ocorrer, a não ser recorrendo a estipulações pragmáticas quaisquer.
Minha conclusão foi a de que em última análise mesmo o conceito de identidade pessoal usado pelos filósofos é vago no sentido de ser solto (loose) em sua aplicação, variando o grau de fouxidão com a circunstância de aplicação. Assim, se dizemos que uma pessoa que esteve na guerra ou que passou muitos anos vivendo um país distante mudou tanto que ela agora é outra pessoa, estamos usando um conceito de identidade pessoal mais solto do que aquele geralmente usado em filosofia. E se dizemos que o novo corte do cabelo de Albita fez dela outra pessoa, estamos usando esse conceito de um modo ainda muito mais solto. Mas tudo é uma questão de grau. Pois em si mesmo o conceito de identidade pessoal possui um insuperável elemento de arbítrio, que o faz depender sempre de nossos interesses práticos, daquilo que com ele queremos em circunstâncias determinadas. Essa é a principal razão pela qual se tem encontrado tanta dificuldade em se estabelecer os critérios de identidade pessoal: eles não fazem o serviço limpo que alguns filósofos gostariam que eles fizessem.[lxxxvi]
24. Como nomes próprios referem?
O próximo problema que considerei não pertence, como o da identidade pessoal, à metafísica. Ele pertence à filosofia da linguagem. Interessei-me por ele em 2007, pelo fato de ter precisado orientar uma tese doutoral sobre a questão da referência dos nomes próprios. Tive a oportunidade de discuti-lo com o professor João Branquinho na universidade de Lisboa e de desenvolvê-lo melhor em um pós-doutorado que fiz na universidade de Konstanz de 2009 a 2010, junto ao professor Wolfgang Spohn. Lembro-me do conselho do professor Manuel Garcia-Carpintero: “dará muito trabalho, mas valerá a pena”.
1. O problema é o de saber de que maneira é possível que nomes próprios como Aristóteles, Paris, Vênus etc. sejam capazes de designar seus objetos? Segundo a tradicional teoria do feixe de descrições, que já vinha sugerida nos escritos de Frege, Russell, Wittgenstein e P.F. Strawson, encontrando-se mais claramente apresentada por J.R. Searle, o que podemos ter em mente com um nome próprio de maneira a sermos capazes de usá-lo referencialmente, é exprimível por um subconjunto indefinido de um conjunto aberto de descrições co-referenciais (minimamente, um subconjunto com um único membro). Assim, um nome próprio como ‘Aristóteles’ pode vir ao menos no lugar de descrições definidas (as que começam com um artigo definido) como ‘o estagirita’, ‘o autor da Ética a Nicômano’, ‘o autor da Metafísica’, ‘o discípulo de Platão’, ‘o fundador do Liceu’, ‘o tutor de Alexandre’.[lxxxvii]
Uma dificuldade com essa teoria é que, como Saul Kripke e outros pretendem ter demonstrado,[lxxxviii] um nome próprio pode se aplicar sem que nenhuma das descrições usualmente associadas a ele necessariamente se aplique. Assim, podemos imaginar um mundo possível no qual Aristóteles existiu, mas morreu ainda criança, não tendo sido discípulo de Platão e não tendo escrito nenhuma das obras a ele atribuídas. E também podemos imaginar um mundo possível no qual Aristóteles existiu, mas não nasceu em Estagira e sim em Roma, duzentos anos mais tarde. Fica assim claro que nenhuma das descrições que associamos ao nome próprio se aplica necessariamente. Além do mais, Kripke notou que uma pessoa pode usar um nome próprio referencialmente, mesmo que tenha em mente uma única descrição indefinida (que começa com artigo indefinido) ou mesmo incorreta. Assim, uma pessoa pode se referir a Feynman, dele sabendo apenas que foi um cientista norte-americano, e alguém pode perfeitamente se referir a Einstein pensando incorretamente que ele foi o inventor da bomba atômica. Considere, por fim, o caso de nomes de personagens semificcionais, como Robin Hood. Sabemos que deve ter existido uma pessoa que esteve na origem desse personagem, mas nada sabemos sobre ela, nem mesmo se realmente se chamava Robin Hood! Em todos esses casos a descrição não possui nenhum papel relevante.
A solução encontrada por Kripke, Keith Donnellan e outros, foi causal. Esses filósofos concluíram que aquilo que suporta a referência de um nome próprio é uma cadeia causal-histórica externa, que começa com um batismo inicial do objeto através do nome. Se ao proferir o nome ‘Aristóteles’ esse proferimento for o último elo de uma imensamente complexa cadeia causal-histórica que começou com o batismo de Aristóteles em 384 a .C. em Estagira, isso é suficiente para eu me referir a Aristóteles. Descrições podem acompanhar a cadeia causal, mas a sua função será meramente auxiliar. Importante é apenas que o ouvinte queira, ao repetir o nome, se referir ao mesmo objeto referido pelo falante, preservando assim a mesma cadeia causal. Essa hipótese pode parecer de início um tanto mirabolante, mas tornou-se de algum modo a nova ortodoxia.[lxxxix]
A resposta que tenho sugerido desde 2008 consiste na defesa de uma forma mais sofisticada de descritivismo.[xc] Ela se resume na descoberta de uma meta-regra capaz de selecionar elementos do feixe de descrições, dando-lhe a estrutura valorativa adequada. Só acrescido dessa meta-regra o descritivismo ganha o poder explicativo que merece, tornando a hipótese causal-histórica dispensável como tentativa de explicar a referência.
Para chegarmos onde queremos precisamos primeiramente distinguir o que chamo de descrições fundamentadoras das descrições auxiliares várias, que merecem ser descartadas. Considere, por exemplo, descrições inteiramente contingentes como ‘o tutor de Alexandre’, ‘o fundador do Liceu’, ‘o pai de Nicômano’, ‘o neto de Achaeon’ ou ‘o amante de Herphylis’. Aristóteles certamente continuaria sendo ele mesmo, ainda que não tivesse sido nada disso. Além disso, há muitas descrições definidas metafóricas, como ‘o estagirita’ e ‘o mestre dos que sabem’, que tem função meramente expressiva, fazendo muito pouco para caucionar a identificação do objeto referido. Finalmente, existem descrições que são adventícias e temporárias, como a usada pelo aluno que só sabe dizer de Aristóteles que ele é ‘o filósofo mencionado pelo professor na última aula’.
Minha sugestão é a de que as descrições fundamentadoras para a referência do nome próprio são de outro tipo, e que as formas tradicionais da teoria do feixe são enganosas em parte por seus proponentes (como Frege e Wittgenstein) terem sido desviados do que mais importa por terem recorrido a descrições auxiliares como exemplos. A meu ver as descrições realmente fundamentadoras são expressões lingüísticas de duas espécies de regras identificadoras do objeto, que são:
A. REGRA LOCALIZADORA: que estabelece a localização e carreira espacio-temporal do portador do nome próprio,
B. REGRA CARACTERIZADORA: que estabelece uma caracteri-zação daquilo que consideramos como mais relevante no portador do nome próprio, de modo a justificar nossa aplicação do mesmo.
Assim, para um nome próprio como ‘Aristóteles’ a descrição ‘a pessoa nascida em Estagira em 383 a .C., que viveu grande parte da sua vida em Atenas e que faleceu em Chalcis em 322 a .C.’ exprime resumidamente nossa regra localizadora de Aristóteles no espaço e no tempo. Já a descrição que permite caracterizar Aristóteles por aquilo que nele consideramos importante a ponto de justificar nossa identificação através do nome próprio pode ser resumida como ‘o autor do conteúdo relevante do opus aristotélico’.
Mas o que justifica a escolha das regras-descrições localizadora e caracterizadora como sendo fundamentadoras? Minha resposta é apelar para as intuições de nossa linguagem natural. J.L. Austin, o filósofo da linguagem ordinária, aconselhava-nos a procurar nos dicionários se quisermos entender as condições de referência das palavras. Como nomes próprios raramente são dicionarizados falta-nos aqui esse recurso. Mas como eles são muitas vezes enciclopedizados, essa falta é sobejamente compensada quando procuramos as condições de referência dos nomes próprios dadas pelas enciclopédias. Com efeito, as enciclopédias geralmente explicam o que os nomes próprios querem dizer a partir de descrições dos tipos A e B. Eis o que encontro sobre o nome ‘Aristóteles’ em meu Penguin Dictionary of Philosophy, que escolho por ser o mais conciso:
(384 - 322 a .C.) Nascido em Estagira no norte da Grécia. Aristóteles produziu o mais completo e poderoso sistema filosófico da antiguidade. (Segue-se uma breve exposição da vida de Aristóteles, seguida de um resumo das principais obras...)
Essa descrição concentra-se nos critérios identificadores dos tipos A e B. Algo semelhante resulta se procurarmos pela elucidação lexical de outros nomes, não só de pessoas, mas também de coisas, como ‘Taj Mahal’, ‘Paris’ e ‘Rio Amazonas’.
Uma primeira consideração a ser feita é que para a identificação do objeto a satisfação de “A & B”, da conjunção das condições, é desnecessária. As descrições A e B são fundamentadoras, mas não são essenciais, se por essencial se entende o mesmo que necessário. O que é indispensável é apenas “A ou B”, ou seja, a disjunção (inclusiva) dessas condições. Assim, podemos conceber um mundo possível m1, muito próximo ao nosso, no qual Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a .C., filho de Nicômano, o médico da corte de Felipe, mas onde ele morreu de febre aos dezesseis anos, em sua viagem para Atenas, não chegando a escrever o opus aristotélico. Nesse caso, diremos que nosso Aristóteles existiu, digamos, “em potência” em m1. Nesse caso apenas a regra localizadora é aplicada e mesmo assim parcialmente. E podemos conceber um mundo possível m2, também muito próximo ao nosso, no qual Aristóteles viveu em Roma, mais de duzentos anos mais tarde, tendo lá escrito o seu opus. Nesse caso tenderemos a dizer que m2 também teve o seu Aristóteles, embora ele tenha existido mais tarde. Podemos até mesmo imaginar que esses indivíduos não se chamavam Aristóteles, pois descrições do tipo ‘a pessoa de nome N’ também são auxiliares (Se em um mundo possível o autor do opus aristotélico for chamado de Pitacus, reconheceremos Pitacus como sendo o nosso Aristóteles). O que não podemos de maneira alguma imaginar é “~A & ~B”, ou seja, que nenhuma das duas regras-descrições se aplique em medida alguma. Assim, glosando um exemplo de Searle, se um estudioso de Aristóteles viesse nos dizer que descobriu que ele na verdade não foi nem grego nem filósofo, mas um vendedor de peixes veneziano analfabeto que viveu na renascença tardia, nós responderíamos que ele só pode estar brincando, pois esse não pode ser o nosso Aristóteles.[xci]
Em adição a isso, mesmo que esse Aristóteles satisfizesse descrições auxiliares como ‘o tutor de Alexandre’ ou ‘o amante de Herphylis’, sem a satisfação das descrições fundamentadoras elas de nada valeriam, pois o Alexandre não poderia ser o maior conquistador da antiguidade nem a Herphylis poderia ser a concumbina estagirita dos últimos anos da vida de Aristóteles. As descrições auxiliares só auxiliam a aplicação das regras-descrições fundamentadoras. Caso contrário, são inúteis.
Nesse ponto pode ser objetado que as condições A e B não precisam ser inteiramente satisfeitas e que isso acontece mesmo quando só um disjunto se aplica! Afinal, no mundo m1, no qual Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a .C., mas morreu aos dezesseis anos, não só a condição caracterizadora não está sendo satisfeita, mas a condição localizadora está sendo apenas parcialmente satisfeita, já que ele não teve a carreira espacio-temporal esperada: não viveu em Atenas nem morreu em Chalcis em 322 a .C. E no mundo possível m2, em que Aristóteles viveu em Roma uns duzentos anos depois, podemos conceber que ele tenha escrito apenas a Ética a Nicômano, a Metafísica e alguns outros escritos menores. Se não houver nenhum Aristóteles grego para competir com ele, nós tenderemos a admitir que apesar de tudo ele realmente existiu em m2, mesmo que grande parte da condição B não esteja sendo satisfeita. Mas não é difícil responder a essa objeção. Basta exigir satisfação suficiente e não mais completa da disjunção.
Finalmente, é necessário adicionar o proviso de que se houverem dois ou mais objetos que satisfaçam as condições fundamentadoras, o verdadeiro objeto referido pelo nome próprio será aquele que tiver satisfeito a disjunção de modo mais completo. Essa é a condição de predominância. Se no mundo m3 além do Aristóteles estagirita tivesse existido um filósofo de nome Aristóteles que tivesse escrito independentemente o opus aristotélico em Roma duzentos anos depois, nós acharíamos essa coincidência milagrosa, mas prefeririamos considerar o Aristóteles de Estagira como sendo o nosso Aristóteles, uma vez que ele satisfaz a condição de localização além da condição de caracterização.
Juntando a disjunção das condições fundamentadoras com as condições adicionais de suficiência e predominância chegamos à regra meta-identificadora capaz de organizar as descrições do feixe para qualquer nome próprio dado. Ela pode ser considerada uma regra de regras, uma meta-regra que pode ser apresentada como:
RMI: Um nome próprio N se aplica em um mundo possível qualquer para um objeto da classe C see ele satisfizer suficientemente e mais do que qualquer outro objeto pertencente à classe C a condição A para N e/ou a condição B para N no mundo possível em questão.
Aplicando RMI às descrições localizadora e caracterizadora de um nome próprio qualquer, nós estabelecemos o que pode ser chamado de a regra de identificação (RI) para esse nome. Assim, se o nome for ‘Aristóteles’ teremos:
RI-‘Aristóteles’: O nome próprio ‘Aristóteles’ se aplica em um mundo possível para um objeto da classe dos seres humanos see ele satisfizer suficientemente e mais do que qualquer outro objeto pertencente à classe dos seres humanos a condição de ter nascido em Estagira em 384 a .C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a .C. e/ou a condição de ter sido o autor das grandes idéias contidas no opus aristotélico.
Se aplicarmos essa regra de identificação ao caso de um filósofo árabe medieval cognominado Aristóteles que em um mundo possível muito próximo foi a única pessoa que escreveu o opus aristotélico, veremos que ele satisfaz unicamente e suficientemente a condição (B), mas não a condição (A), o que já basta para que ele satisfaça a regra de identificação para Aristóteles. Contudo, se nesse mundo possível também houvesse outro Aristóteles nascido em Estagira em 384 a.C., filho do médico Nicômano, mas falecido jovem, antes de se tornar filósofo, ou se alguma outra pessoa tivesse escrito o conteúdo da Ética a Nicômano na Grécia antiga, teríamos razões para repensar nossa decisão de nele identificar o pensador árabe medieval como sendo Aristóteles, pois outra pessoa estaria satisfazendo suficientemente a disjunção de condições, e talvez até mais do que o filósofo medieval.
Se a medida da satisfação dos objetos concorrentes for aproximadamente a mesma pode não haver como decidir, o que significa que não teremos mais como aplicar a regra, devendo concluir que Aristóteles não existe. Com efeito, na lógica dos conflitos criteriais 1 + 1 = 0. O paradoxo do navio de Teseu exemplifica esse ponto.
2. Essa solução permite responder ao problema do significado dos nomes próprios, entendendo a palavra ‘significado’ no sentido de ‘sentido’ (Sinn) ou ‘conteúdo informativo’ (infomatives Gehalt) ou ainda do que não seria incorreto chamar de ‘conteúdo epistêmico’ (Erkenntniswert) fregeanos. Em que ele consiste? Certamente não na forma da regra meta-identificadora (RMI), que é a mesma para cada nome próprio. Também não nas descrições auxiliares, embora se possa dizer delas que formam franjas de significação. O significado de um nome próprio deve consistir centralmente naquilo que lhe é mais distintivo, qual seja, em suas regras-descrições localizadora e caracterizadora.
Dessa conclusão resulta que aquele que realmente sabe o significado do nome é quem, em maior ou menor medida, domina essas regras, sendo essa pessoa o que chamo de usuário privilegiado do nome próprio. Assim, o historiador W.K.C. Guthrie sabia muito bem o significado do nome ‘Aristoteles’. Outras pessoas, como o passante que sabe apenas que Aristóteles foi um filósofo grego (descrição indefinida) ou que acredita que ele foi o descobridor da lei da alavanca (descrição errônea, mas convergente) pode ser capaz de inserir o nome ‘Aristóteles’ corretamente no discurso, praticamente quase nada sabem de seu significado (conteúdo informativo), devendo assumir que usuários privilegiados existem e são capazes de completar ou corrigir o pouco que sabem. Assim, o conhecimento do significado de um nome próprio não precisa ser propriedade de cada um dos seus usuários. Ele é muitas vezes propriedade apenas dos usuários privilegiados, como o especialista que sabe quase tudo sobre Aristóteles. E nem sequer os usuários privilegiados precisam, individualmente, conhecer todo o significado do nome, sendo possível que cada um deles saiba parte de seu significado. A condição é a de que o significado do nome seja propriedade da comunidade lingüística formada pelo conjunto de seus usuários, podendo ser neles atualizada.
Minha sugestão, pois, é que pessoas que só conseguem associar ao nome descrições auxiliares ou genéricas ou mesmo insuficientemente corretas, só são capazes de se referir ao objeto de um modo incompleto, insuficiente ou parasitário por se fiarem na existência de usuários privilegiados do nome, que são capazes de resgatar o referente por saberem realmente quem ele foi. Só esses últimos usuários referem-se ao objeto de modo adequado e independente, por associarem seu nome a descrições fundamentadoras. Há aqui um equivalente ao que Putnam chamou de divisão do trabalho lingüístico, só que essa divisão possui caráter cognitivo, mesmo quando implícito, sendo inteiramente compatível com o descritivismo. Essa divisão cognitivista do trabalho linguístico seria benvinda para um filósofo como Locke, que parece ter sido o primeiro a tê-la pensado.[xcii]
Um efeito do que acabamos de considerar é que em situações nas quais os usuários privilegiados do nome próprio desaparecessem, e com eles os próprios meios de se obter o conhecimento das descrições fundamentadoras, o significado do nome próprio também se perderia. Imagine que após uma guerra atômica restasse apenas uma comunidade de nativos em algum lugar do mundo que fosse capaz de ler em inglês, mas que nada soubesse sobre a cultura norte-americana. Digamos que eles encontrem alguma folha de papel onde se possa ler a frase “Richard Feynman foi um especialista em Tannu Tuva ” e que essa seja realmente a última referência que resta no mundo ao criador da eletrodinâmica quântica. Ora, por terem aprendido que Feynman foi um especialista em Tannu Tuva não diremos agora que eles, em sua comunidade lingüística, se tornaram capazes de se referir a Feynman. E a razão é que as condições últimas para a referência desse nome se tornaram irrecuperáveis.
Essas sugestões permitem-nos explicar porque é possível dizer que alguém se refere a Feynman através de uma descrição indefinida e a Einstein através de uma descrição errônea. Minha sugestão é que essas pessoas são capazes de fazer uma referência incompleta, parasitária, um gesto em direção à referência, e que isso muitas vezes é o que precisamos. Mas para que isso aconteça são necessárias ao menos duas coisas. Primeiro, é preciso que a descrição que ela associa ao nome próprio seja convergente. Se alguém crê que Feynman foi um grande cientista, essa descrição indefinida é convergente, pois já contém alguma informação sobre Feynman, ela o classifica corretamente como um cientista. Se alguém crê que Einstein foi o inventor da bomba atômica, mesmo que essa descrição seja errônea, ela nem por isso deixa de ser convergente, pois ela já implica que Einstein foi um ser humano e um cientista, o que também é uma classificação correta. O mesmo não ocorreria se as descrições fossem divergentes, por exemplo, se alguém acreditasse que Feynman fosse o nome de uma marca de perfume ou que Einstein fosse o nome de uma pedra preciosa. Pois nesse caso a pessoa estaria classificando os nomes próprios erroneamente como termos gerais!
A segunda condição é a de que a pessoa possua conhecimento tácito do mecanismo de referência dos nomes próprios, ou seja, de RMI. Com isso ela sabe ao menos o quão pouco sabe sobre as descrições fundamentadoras exigidas, o que a faz limitar seu emprego a contextos suficientemente vagos. Com essas duas condições, com o pouco saber convergente que a pessoa tem e com o fato de que ela tem consciência de sua ignorância semântica, ela já é capaz de inserir o nome próprio adequadamente no discurso, em contextos que ela reconhece como sendo suficientemente vagos. Eis a razão pela qual alguém pode se referir a Feynman sabendo apenas que ele foi um grande cientista e a Einstein acreditando que ele foi o inventor da bomba atômica. Na verdade a pessoa está fazendo uma referência parasitária, em si mesma insuficiente, posto que confia que a comunidade linguística possui recursos para completá-la.
3. A solução sugerida também permite responder à objeção de que a teoria do feixe não dá conta do caráter de designador rígido do nome próprio, entendido como sendo o de se aplicar a um mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto venha a existir. Afinal, a regra de identificação para um nome próprio que satisfaz RMI se aplica ao mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual ele exista, posto que simplesmente define aquilo que é capaz de ser individuado como o portador do nome. Com efeito, basta lermos RI-‘Aristóteles’ como uma descrição definida complexa para descobrirmos que ela é analítica. Aqui está ela:
o nome que se dá ao ser humano que satisfaz suficientemente e mais do que qualquer outro ser humano a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a .C. e/ou a condição de ter sido o autor das grandes idéias contidas no opus aristotélico.
Essa descrição forçosamente se aplica em qualquer mundo possível no qual Aristóteles tenha existido e em nenhum mundo no qual ele não tenha existido.
Certamente, haverá mundos possíveis nos quais não saberemos se a regra de identificação para um nome próprio é minimamente satisfeita ou não (digamos que em um deles tenha nascido um Aristóteles em Estagira em 384 a .C., filho de um médico da corte, mas que ele tenha morrido logo após o nascimento... e que ninguém tenha escrito o opus aristotélico). Mas isso sugere apenas que a semântica dos mundos possíveis deve ser reescrita de modo a dar conta dos casos indecidíveis. Para dar conta disso o designador rígido precisa ser redefinido como aquele que se aplica a todos os mundos possíveis nos quais o objeto definidamente existe. Que nossas regras de identificação sejam vagas não é um defeito; ao contrário do que se possa pensar, trata-se de uma virtude, pois se não fosse assim elas não refletiriam a vaguidade inerente à própria linguagem natural.
A resposta acima permite explicar porque, enquanto os nomes próprios são designadores rígidos, as descrições definidas são, em geral, designadores flácidos, referindo-se a diferentes objetos em diferentes mundos possíveis. O nome próprio ‘Floriano Peixoto’, por exemplo, é rígido: ele se aplica em todos os mundos possíveis nos quais Floriano Peixoto existiu, posto que a sua regra de identificação sempre se aplica em mundos possíveis onde ele existiu, já que ela simplesmente define quem pode ter sido Floriano Peixoto. O mesmo não acontece com a descrição definida ‘o marechal de ferro’, que associamos ao nome de Floriano. Ela não se aplica em um mundo possível no qual outro militar foi chamado de o marechal de ferro ou mesmo no qual Dom Pedro II não foi deposto e o Brasil se tornou uma monarquia constitucionalista. Por que é assim?
A resposta encontra-se à mão. Por força da regra de identificação do nome próprio, nós incluímos a satisfação das descrições definidas no feixe de descrições associado ao nome próprio no que diz respeito ao nosso mundo atual, tal como o conhecemos ou pensamos conhecer. Mas embora provável, a satisfação dessas descrições pelo objeto é contingente. Nenhuma das descrições, nem mesmo as mais fundamentais, se encontra necessariamente vinculada à aplicação do nome próprio. A dita inclusão, digamos assim, é “frouxa”. Ela não precisa manter-se em outros mundos possíveis e nem sequer vale necessariamente para o nosso. Eis porque uma descrição definida como ‘o marechal de Ferro’ é um designador flácido e não rígido.
A evidência a favor dessa sugestão é que descrições definidas fundamentadoras que não se encontram semanticamente subordinadas a nenhum nome próprio tendem a ser vistas como designadores rígidos – o que a teoria causal-histórica não é capaz de explicar. Considere, por exemplo, a descrição ‘o terceiro regimento de cavalaria de Sintra’. Ela pode ser considerada rígida, aplicando-se em qualquer mundo possível no qual esse objeto exista, mesmo que composto por diferentes cavaleiros e cavalos. Ela é rígida porque exprime uma regra de identificação que não vem associada a nenhum nome próprio, não podendo por isso dar-se uma divergência entre o objeto de aplicação dessa regra e o objeto de aplicação de um nome próprio ao qual ela se vincule em alguma situação ou mundo possível. Outros exemplos de descrições naturalmente rígidas são: ‘o assassinato do arquiduque Ferdinand em Sarajevo em 1914’ e ‘a última idade do gelo’, que designam respectivamente um evento e um processo. Ainda que o assassino não fosse Gavrilo Princip, mas outra pessoa qualquer, e mesmo que essa pessoa não tivesse atirado com uma pistola, mas, digamos, asfixiado o arquiduque, o acontecimento expresso pela descrição definida continuaria sendo o mesmo. E ainda que a última idade do gelo se desse, digamos, trinta mil anos antes, ela ainda assim seria a última.
4. A teoria meta-descritivista recém-resumida permite respostas mais convincentes aos muitos contraexemplos ao descritivismo.
Considere primeiro o caso inicialmente mencionado de nomes semificcionais, como Robin Hood. Se forem realmente semificcionais, esses nomes devem estar associados a conteúdos descritivos realmente aplicáveis ao objeto (caso o nome não seja na verdade meramente ficcional) junto a conteúdos descritivos puramente imaginários posteriormente adicionados, embora não saibamos bem quais são o que. Nossa situação diante desses nomes assemelha-se a das pessoas que possuem apenas um conhecimento incompleto ou insuficiente ou parasitário de sua referência última. Mas não é impossível que ela nos seja revelada.
Imagine que sejam descobertos documentos sobre uma pessoa chamada Robart Hude, que foi um justiceiro fora da lei que defendia os fracos contra os poderosos e que viveu nas florestas próximas a Nottingham no século XIII e que a sua história tenha dado origem as lendas sobre Robin Hood. Com isso ganharemos elementos descritivos suficientes para identificar e aplicar tanto o que sabemos de correto da descrição localizadora (século XIII, Nottingham) quanto o que sabemos de correto da descrição caracterizadora (justiceiro fora da lei que tirava dos ricos para dar aos pobres, originador da lenda de Robin Hood).
Imagine agora o caso de um bandido desconhecido tenha atacado um bardo do século XIII que passeava pela floresta de Sherwood, roubando-o e deixando-o inconsciente. Em sua convalescença o bardo inventou a estória de Robin Hood, motivado pelo acontecimento. Nesse caso nós diríamos com razão que Robin Hood é um personagem meramente ficcional, pois o bandido não satisfaz praticamente nada do conteúdo descritivo que associamos a Robin Hood, não satisfazendo a condição de suficiência. Kripke, no entanto, poderia ser instado a concluir que o bandido foi Robin Hood, que está na origem da cadeia causal-histórica.
Imagine, por fim, que se descubra que de fato houve alguém que inspirou o primeiro escritor medieval a inventar a lenda de Robin Hood, mas que se tratava de alguém a quem nenhuma das descrições se aplica, ou seja, um bravo cão chamado Robin, que acompanhava o bardo em suas caçadas pela floresta de Sherwood. Inspirado pela nobreza de seu cão o bardo inventou a estória de Robin Hood. Nesse caso parece que Kripke deveria concluir que Robin Hood é o nome do cão, regressando causalmente ao ato do batismo do animal. Mas isso é absurdo. Já nossa teoria nos permite em tal caso concluir que Robin Hood é, no final das contas, um personagem meramente ficcional, pois a relação causal que encontramos com o cão, não se encontrando apoiada por nenhuma descrição pertencente à classe C dos seres humanos, é por isso meramente contingente.
Um famoso contraexemplo de Kripke é o de um falante que associa ao nome do matemático Kurt Gödel a descrição ‘o inventor da prova da incompletude’. Imagine agora, escreve ele, que se descubra que essa prova foi na verdade descoberta por Schmidt, que morreu em Viena em circunstâncias misteriosas e que seu amigo Gödel tenha roubado a prova e publicado em seu próprio nome. Nesse caso, se nomes fossem abreviações de descrições, pensa Kripke, uma vez informada disso a pessoa deveria admitir que Gödel é Schmidt, pois é a Schmidt que ela deve agora associar a descrição. Mas isso é contra-intuitivo, pois a pessoa continuará certa de que Gödel é Gödel e não Schmidt, mesmo sabendo que ele foi um falsário e que não descobriu nenhuma prova da incompletude.[xciii]
A resposta que a versão meta-descritivista da teoria do feixe dá ao exemplo em questão é, diversamente do esperado, perfeitamente intuitiva. O usuário privilegiado do nome ‘Gödel’ o reconhece por satisfazer a regra de localização (A) de ter nascido em Brünn em 1906, estudado em Viena, emigrado para os EUA e trabalhado em Princeton, onde faleceu em 1976, e por satisfazer a regra de caracterização (B) de ter sido um grande matemático que descobriu o teorema da incompletude, além de ter feito muitas outras contribuições menores. Assim, mesmo que Gödel deixe de satisfazer parte (digamos 2/3) da regra de caracterização, ele continua satisfazendo integralmente a regra de localização, satisfazendo, pois, RI para ‘Gödel’ bem mais do que RI para ‘Schmidt’. Eis porque Gödel não pode ser Schmidt!
Quanto à pessoa que associa ao nome ‘Gödel’ somente à descrição ‘o inventor da prova da incompletude’, como falante competente ela tacitamente conhece RMI, a forma da regra de identificação para nomes próprios e, por conhecê-la, ela percebe que a regra que essa descrição exprime é incompleta, recusando-se por isso a aceitar que Gödel é Schmidt enquanto não tiver acesso a maiores informações.
Quero, por fim, analisar rapidamente um instrutivo contraexemplo proposto por Donnellan.[xciv] Imagine, escreve ele, que se descubra que Tales na verdade não foi nenhum filósofo, mas um sábio cavador de poços cansado de sua profissão que uma vez disse “Quem me dera se tudo fosse água para eu não ter de cavar esses malditos poços”, tendo essa frase passado equivocamente a Herótodo, a Aristóteles e a outros como sendo a ideia do filósofo Tales de que a água é o princípio de tudo. Digamos também que a ideia de que tudo é água tenha sido sustentada por um eremita que viveu em um tempo tão remoto que nem ele nem suas doutrinas guardam qualquer conexão histórica conosco. Nós não diremos que o eremita foi Tales, mesmo que só ele realmente satisfaça a descrição. E a razão, pensa Donnellan, é que Tales é quem está no início da cadeia causal-histórica e não o eremita.
A resposta que a teoria metadescritivista irá oferecer é que em certos casos a descrição da história causal é tão importante que ela simplesmente faz parte da descrição caracterizadora. Ora, esse é precisamente o caso de Tales, pois o que mais nos importa na formação da regra caracterizadora para Tales é seu lugar e influência na origem da filosofia ocidental. A descrição caracterizadora de Tales não poderia ser apenas a afirmação de que tudo é água, pois apartada de seu contexto histórico ela é uma ideia ridícula. A verdadeira descrição caracterizadora deve ser (resumidamente):
a pessoa que originou a doxografia encontrada em Aristóteles e outros, a qual a descreve como tendo sido o primeiro filósofo grego, o qual defendeu que a água é o princípio de todas as coisas, que tudo é vivo, que tudo é um etc.
Quanto à regra-descrição localizadora, sabemos que Tales pelo menos foi:
o milesiano que viveu de 624 a 547-8 a .C. e que provavelmente visitou o Egito.
Em vista disso, se retornarmos ao exemplo de Donnellan concluiremos que o eremita não pode ter sido Tales. E a razão é que o Tales cavador de poços satisfaz a condição de predominância da regra de identificação para o nome. Basta compararmos os dois casos. O eremita não satisfaz nada da descrição localizadora; tudo o que ele satisfaz é uma pequena parte da descrição caracterizadora. Já o cavador de poços milesiano satisfaz completamente a descrição localiadora, pois viveu de 624 a 547-8 a.C. Além disso, embora não tenha sido um filósofo e embora não tenha dito que tudo é água, ele satisfaz uma boa porção da regra caracterizadora por ter sido a pessoa que originou a doxografia encontrada em Aristóteles e outros, a qual o descreve erroneamente como tendo dito que tudo é água. Assim, apesar de tudo o nosso Tales de Mileto satisfaz as regras fundamentadoras muito mais completamente do que o eremita, sendo por isso o objeto de aplicação da regra de identificação para o nome.
Afora isso, é bom notar que dependendo dos detalhes que forem adicionados ou subtraídos ao exemplo dado nossas intuições podem se alterar, levando-nos tanto à conclusão de que nenhum Tales realmente existiu quanto, eventualmente, à conclusão de que Tales na verdade foi o eremita.
Acredito que se conseguirmos nos abstrair da influência meramente autoritativa da atual ortodoxia causalista, fica fácil concluir que a teoria aqui muito brevemente resumida é muito mais plausível.
25. O conceito de água
O que estive sugerindo sobre nomes próprios é importante porque em teorias da referência a questão dos nomes próprios sempre foi a pedra angular. Se uma nova teoria sobre o mecanismo de referência dos nomes próprios é desenvovida, como fez Kripke nos anos 70, isso significa que também outros termos, como descrições, indexicais, expressões conceituais e mesmo sentenças precisam ganhar uma nova explicação para seus mecanismos de referência.
Considerando que Hilary Putnam desenvolveu uma teoria externalista do significado dos termos gerais tomando por base uma muito original experiência em pensamento sobre o conceito de água,[xcv] decidi considerá-la através de uma crítica da linguagem à lá Wittgenstein em uma exposição que fiz na universidade de Konstanz em 2010, a convite do professor Spohn.[xcvi]
A experiência em pensamento de Putnam é bem conhecida. Em 1750, no planeta Terra, Oscar aponta para a chuva que cai e diz “Isso é água”. Mas existe um planeta chamado Terra-Gêmea em algum recanto do universo em que praticamente tudo é idêntico ao que é na Terra. Quando o Oscar da terra diz “Isso é água”, lá na Terra-Gêmea o seu Oscar-Gêmeo olha para a chuva que cai e também diz “Isso é água”... Acontece que existe uma pequena grande diferença entre a água da Terra e a água da Terra-Gêmea. A primeira é constituída, como é sabido, de H2O, enquanto a segunda é constituída de uma fórmula química muito complicada que Putnam decide resumir como XYZ, embora as propriedades fenomenais de ambos os compostos sejam perfeitamente idênticas, pois a água da Terra-Gêmea também cai das nuvens sob a forma de chuva, é transparente, inodora, insípida, enche rios, lagos e mares, aplaca a sede, hidrata o organismo, apaga o fogo etc.
A conclusão que Putnam tira desse experimento é impressionante: ele pretende ter dessa maneira demonstrado que o significado está fora de nossas cabeças, determinado pela constituição essencial dos líquidos apontados pelos Oscares no mundo externo. Em 1750 nada se sabia sobre a composição química da água. O que Oscar tinha em sua cabeça era o mesmo que aquilo que Oscar-Gêmeo tinha na cabeça dele, ou seja: a ideia de um líquido transparente, inodoro, insípido, que cai sob a forma de chuva etc. Mas aquilo a que eles estavam se referindo, o que eles “significavam” (have meant) com a palavra ‘água’ era algo bem diferente. O Oscar da terra estava significando aquilo que tem por essência H2O, enquanto o Oscar da Terra Gêmea está significando aquilo que tem por essência XYZ. Ora, como esses significados extensionais são diferentes e o que estava nas cabeças dos Oscares era a mesma coisa, eles não podem estar nas cabeças dos Oscares, só podendo se encontrar no mundo externo que os cercava. Eles são determinados externamente, pela composição microestrutural essencial diversa dos diferentes volumes d’água apontados.
Minha resposta baseou-se no desenvolvimento de uma análise neodescritivista e internalista do conceito de água. Para o descritivista tradicional (Carl Hempel, A.J. Ayer...), as propriedades superficiais de uma espécie natural são o objeto da descrição abreviada pelo termo geral que exprime o seu significado. Assim, o significado de água é para o descritivista ‘líquido transparente inodoro e insípido, que mata a sede, apaga o fogo etc.’ Ora, se a explicação descritivista se reduzir a isso, Putnam tem boas razões para sugerir uma alternativa. Mas nada nos contrange a reduzir o descritivismo à descrição de propriedades superficiais dos tipos de coisas! Como Avrum Stroll percebeu, qualquer bom dicionário contemporâneo descreve o significado da palavra ‘água’ como também incluindo a constituição química H2O.[xcvii] Assim, somos livres para admitir que o significado da palavra ‘água’, entendido como o conteúdo descritivo, tenha sofrido uma evolução. Inicialmente ele possuía apenas o que podemos chamar de um núcleo popular de significação, expresso por “Água = líquido transparente, inodoro e insípido, que aplaca a sede e apaga o fogo, que cai sob a forma de chuva etc.”, que prefiro resumir na expressão ‘líquido aquoso’. Mas desde a primeira metade do século XIX foi desenvolvido um núcleo científico de significação descritiva da palavra água, segundo o qual: “Água = líquido com estrutura química H2O, que pode ser produzido pela combinação de 2H2 + O2, que se decompõe por eletrólise, que pela atração mútua dos átomos de hidrogênio produz uma alta tensão superficial...” Trata-se de um conjunto de relações inferenciais que prefiro resumir no símbolo ‘H2O’.[xcviii] Claro que não precisamos saber de tudo isso para usarmos a palavra água. Em geral sabemos pouco. Há quem sequer sabe que a água possui a estrutura química H2O. Mas conquanto usemos a palavra no sentido convergente, nós seremos capazes de introduzi-la no discurso produzindo assim referências parasitárias a essa espécie natural.
Outro ponto é que dependendo do que chamei de o contexto de interesse no qual a palavra ‘água’ é usada, um diferente núcleo de significacão pode ser privilegiado. Assim, em um laboratório no qual os alunos estejam fazendo experiência com eletrólise, o contexto de interesse é tal que aquilo que as pessoas tem em mente ao usar a palavra ‘água’ é o seu núcleo semântico científico. Se por alguma razão essa água não for transparente, nem inodora, nem potável, isso pouco importa. ‘Água’ precisa significar (simplificadamente) H2O, e isso basta. Já no contexto de interesses de uma comunidade de pescadores que precisa cavar um poço para obter água potável, o que eles tem em mente ao usar a palavra ‘água’ é o seu núcleo semântico popular. Água precisa apenas ser o líquido transparente, inodoro e insípido, que aplaca a sede, preserva a vida etc. Se a estrutura química da água é H2O ou XYZ para eles tanto faz, sob o suposto de que os seus benefícios sejam exatamente os mesmos.
Como resultado dessas variações contextuais do que se quer dizer com a palavra ‘água’, podemos distinguir ao menos três significações diversas: a palavra ‘água’ pode ser usada (a) de um modo genérico, liberal, contextualmente neutro, significando tanto o núcleo científico quanto o núcleo popular, em uma disjunção inclusiva. Esse é o caso no qual não há uma especificação contextual restritiva envolvida. Nesse caso basta um único núcleo de significação para reconhecermos que o líquido é água; mas a palavra ‘água’ também pode ser usada em contextos de interesse específicos que restringem o seu significado. É quando ela significa mais propriamente (b) o núcleo de significação popular, ou mais propriamente (c) o núcleo de significação científico.
Esses resultados nos permitem reinterpretar o que acontece na fantasia da Terra Gêmea. Aquilo a que os Oscares estavam se referindo em 1750 era apenas o núcleo de significação popular da palavra ‘água’ como líquido aquoso, o único conhecido na época. Mas isso é exatamente o que ambos tinham em mente, donde os significados que só podiam ser populares estavam mesmo onde nunca poderiam ter deixado de estar, ou seja, em suas cabeças. Já quando nós consideramos, como Putnam, que os Oscares estavam se referindo a volumes líquidos com estrutura química essencial diferente e, portanto, com significação diferente, não estamos consideramos o que eles tinham em suas cabeças, mas o que nós mesmos temos nas nossas ao nos referirmos ao que eles se referiram, quando temos em mente os núcleos científicos. É preciso notar que frequentemente nos referimos a uma coisa sem saber do que ela é feita; nesse caso queremos dizer essa coisa e não aquilo de que ela é feita.[xcix] Ora, esse foi o caso dos Oscares ao se referirem aos líquidos aquosos. Eles não significavam (mean) espécies naturais diferentes. Somos nós que, bem familiarizados com os dois núcleos semânticos diferentes, somos capazes de projetar o núcleo de significação científico nos atos de ostensão dos Oscares usando-os alternativamente como instrumentos indexicais para dois núcleos de significação científicos diferentes – H2O e XYZ – os quais se encontram alternativamente em nossas cabeças. Como a diferença nos significados corresponde a uma diferença nas descrições que temos em nossas cabeças quando nos referimos dessa maneira ao que foi apontado pelos Oscares, não há nada de errado com a ideia de que o significado está na cabeça.
Outra consequência de minha proposta é que o enunciado “Àgua é H2O” deixa de ser necessário a posteriori, como Putnam e Kripke acreditam. A ideia desses filósofos é a de embora tenha sido descoberto a posteriori que água é o mesmo que H2O, essa identidade é metafisicamente necessária, pois a água não poderia ser outra coisa senão H2O.
Minha razão para pensar diferente resulta de uma análise mais sutil do que podemos querer dizer ao proferirmos o enunciado: “Água é H2O”. A sentença “Água é H2O” pode adquirir no mínimo três significados:
(1) “Água é H2O” = “O líquido aquoso e/ou constituído de H2O é (constituído) de H2O”. Aqui temos em mente o significado (a) genérico, contextualmente neutro da palavra ‘água’, e o enunciado é contingente a posteriori, pois a negação dessa identidade não é impossível.
(2) “Água é H2O” = “Dihidróxido de hidrogênio é (idêntico a) H2O”. Isso acontece em contextos de interesse científicos. Aqui tem-se em mente o significado científico de água, tratando-se de um enunciado de identidade obviamente analítico.
(3) “Água é H2O” = “O líquido aquoso é (constituído) de H2O”. Isso acontece em contextos de interesse populares. Aqui a palavra ‘água’ tem o significado popular e o enunciado é entendido como contingente a posteriori, posto não ser impossível que o líquido aquoso possa ter outra constituição química.
Ora, o que filósofos como Putnam e Kripke fazem é simplesmente confundir o significado científico da palavra ‘água’ com o seu significado popular (ou com o significado genérico), misturando equivocadamente o caráter necessário do enunciado (2) com a natureza a posteriori do enunciado (3) (ou (1)). Podemos nos perguntar aqui se esse resultado pode ser generalizado através de uma elucidação pragmática de outros pretensos enunciados necessários a posteriori. Quero crer que sim.[c]
26. Os fundamentos últimos da moralidade
Conjuntamente com questões sobre filosofia da linguagem e metafísica, a questão do sistema ético mais fundamental me motivou. Para encontrá-lo, minha primeira pergunta foi: qual é o locus originário do valor moral? A intenção moral, a ação moral ou o seu efeito? Esclarecendo: considerando que geralmente a intenção (boa ou má) conduz à ação (boa ou má) que conduz à conseqüência (boa ou má) surge a pergunta: o que é mais fundamental, o bem da intenção, o bem da ação ou o bem de sua conseqüência?
Minha resposta encontra-se no artigo “Razões para o utilitarismo”.[ci] Suponha que as conseqüências de certas intenções e ações boas se tornassem sempre más (ex: suponha que dar presentes passasse a trazer má sorte às pessoas que os ganhassem); nesse caso as ações que produzem tais conseqüências acabariam por deixar de serem esperadas como sendo boas, assim como as próprias intenções que as motivaram. Mas uma conseqüência má não deixa de ser má, mesmo que seja sempre o produto de intenções ou ações boas. Ora, essa assimetria nos sugere que o locus originário do valor moral esteja na conseqüência da ação, pois ela é boa ou má na independência da qualidade valorativa da ação e da intenção. Com isso caem as éticas da virtude (na medida em que priorizam as boas intenções), e com isso caem também as éticas deontológicas (na medida em que priorizam as regras morais envolvidas na ação) – ao menos em termos de prioridade. O que resta são os conseqüencialismos (na medida em que priorizam os resultados da ação).
Mas que conseqüencialismo? Há três formas: egoísmo, altruísmo e utilitarismo. Nem o egoísmo nem o altruísmo me pareceram respeitar a natureza humana. O primeiro, buscando o bem para o agente sem consideração pelos outros, nega as nossas disposições naturais para fazer o bem, não dando lugar a coisas importantes como o exercício da amizade e o amor. O segundo, buscando o bem para os outros, mas desconsiderando o bem para o próprio agente, ignora motivações de autorealização e constrange a liberdade individual. O utilitarismo, porém, busca preservar o melhor de ambos: o bem de todos, incluindo o do próprio agente, podendo o seu princípio máximo ser entendido como sendo o do bem maior para todos os que possam ser envolvidos, na medida de seu envolvimento.[cii] E como o bem só pode ser pensado em termos de aumento do prazer e/ou diminuição do desprazer (o que só estóicos e similares negariam), cheguei à conlusão de que o utilitarismo hedonista é a doutrina que exprime o princípio ético mais originário.
O utilitarismo hedonista pode tomar duas formas: a de um utilitarismo de ação e a de um utilitarismo de regras. Segundo o utilitarismo de ação, devemos seguir o princípio recém-exposto de procurar o bem maior para todos. Segundo o utilitarismo de regras, devemos seguir as regras que se tenham demonstrado produtoras do bem maior para todos os que possam ser envolvidos. Minha resposta, que logo descobri já ter sido sugerida na década de 1970 por R.M. Hare[ciii], consiste em admitir um utilitarismo em duas camadas, combinando essas duas formas, embora dando prioridade decisional última ao utilitarismo hedonista de ação.
No nível mais fundamental, de nossas ações cotidianas, vale o utilitarismo de regras, pois seguimos as regras de ação já estabelecidas (Hare diz que em tais casos nos comportamos como proles). Aqui seguimos aquelas regras que a experiência demonstrou que costumam produzir o bem maior para a maioria. Nós seguimos tais regras sem avaliá-las porque não temos tempo para tanto, porque não nos encontramos em condições de fazer uma avaliação independente, porque precisamos segui-las para facilitar a coordenação de nossas ações em sociedade e, particularmente, porque a última coisa que queremos por em risco é nossa credibilidade e a do próprio sistema de regras.
Não obstante, há uma segunda e infrequente camada, para a qual vale o utilitarismo de ação (Hare nota que em tais casos nos comportamos como arcanjos). Trata-se de situações excepcionais, nas quais ou não existe regra, ou percebemos que ao seguirmos a regra não estamos mais produzindo um bem maior para todos, mas um mal tão grande que a decisão de evitá-lo sobrepuja quaisquer vantagens ganhas em se assegurar nossa credibilidade ou a credibilidade do sistema de regras ou qualquer outra coisa. Em tais casos deveremos esquecer a regra, seja ela qual for, e seguir o princípio do utilitarismo de ação, de fazer o bem maior para todos os que possam estar envolvidos.
Um exemplo ilustrativo é o do inocente homem gordo lembrado por Kai Nielsen.[civ] O inocente homem gordo guia um grupo de doze pessoas em cavernas junto ao mar. Como o nível da água está subindo, ele se apressa em conduzir as pessoas para fora da caverna através do único buraco existente. Contudo, ao subir ele fica entalado no buraco, não conseguindo mais nem sair nem voltar. Se essa situação continuar, todos morrerão afogados, com exceção do homem gordo. Felizmente, alguém tem uma banana de dinamite consigo, que se explodida junto ao inocente homem gordo permitirá que todos os outros se salvem. Para um filósofo utilitarista como Kai Nielsen, provocar a morte do homem gordo para salvar a vida dos demais não só é a alternativa correta, mas uma obrigação; e abster-se de fazê-lo é revelar uma forma de frouxidão moral.
Embora demandando investigação muito mais detalhada, o utilitarismo em duas camadas dá a nossas avaliações uma flexibilidade muito maior do que a oferecida pela rígida ética deontológica de fundamento discutível, ou pela instável ética da virtude dependente de variações circunstanciais, possibilitando uma explicação genética da mudança e da evolução dos sistemas de regras morais e mesmo das virtudes capazes de sustentá-los.
27. O inefável sentido da vida
Em 2006 acontecimentos da vida pessoal fizeram renascer em mim o interesse por problemas existenciais como o do sentido da vida. A leitura de alguns artigos da excelente coletânea reunida por E.D. Klemke[cv] e de um inspirado livrinho de John Cottingham intitulado On the Meaning of Life[cvi] me fizeram ver no sentido da vida um problema filosófico substancial, para além da idéia que havia mantido até então de que a vida – obviamente – não tem sentido algum.
Minha conclusão, justificada no artigo “O inefável sentido da vida”[cvii], foi a de que esse sentido, redefinido como o grau de significação de uma vida, o seu propósito, o seu valor, pode ser avaliado em termos de felicidade, idealmente entendida em termos de uma satisfação duradoura de desejos físicos, emocionais e intelectivos, não acompanhada de insatisfação. Quanto ao valor dos variados prazeres resultantes da satisfação desses desejos, pensei-os à lá Bentham, em termos hedonistas. Para Bentham não há nada de especial nos prazeres mais superiores ou sublimes. Ele deu primazia a esses prazeres apenas porque eles são mais duradouros, não vêm seguidos de desprazeres e têm o poder de produzir outros prazeres, sendo por isso mais férteis (essas seriam, digamos, diferenças entre o duradouro prazer produzido pela leitura de um bom livro, que pode levar a outros, e o prazer produzido por um lauto jantar ou pelo bom sexo, que são breves, não levam a outros e podem ser facilmente associados a desprazeres). Essa posição contrasta com a ideia de J.S. Mill, segundo a qual alguns prazeres (como os da fruição estética e da conversação inteligente) valem mais devido a sua própria natureza, ou seja, porque são em si mesmo superiores. Por isso a ideia de Mill me parece não só elitista como também supérflua. Afinal, em que sentido os prazeres mais elevados poderiam ser superiores, a não ser no de satisfazerem as condições já assinaladas por Bentham?
A identificação da felicidade com o sentido da vida tem sido, todavia, recusada sem maiores delongas por muitos filósofos. A razão disso é que ela parece obviamente falsa. Os dois conceitos parecem ter extensões apenas parcialmente inclusivas. É muito fácil encontrarmos exemplos de vidas felizes e sem sentido e de vidas infelizes, mas plenas de sentido. Considere o caso do famoso playboy Porfírio Rubirosa, cujo pênis, segundo consta, tinha a espessura de um punho humano. Ele conquistou as mais belas atrizes de cinema e ascendeu na vida pelo casamento sucessivo com duas mulheres milionárias. Foi supostamente feliz, mas não parece ter tido uma vida particularmente valorosa ou plena de significado. Considere, por outro lado, a vida de um pintor desesperado e insano como Van Gogh. Ela foi certamente miserável, terminando na loucura e no suicídio, mas ninguém dirá que lhe faltou sentido ou valor. Pelo contrário, a vida de Van Gogh foi plena de significado. Como responder a tais objeções?
A resposta não é difícil de ser encontrada: quando identificamos o grau de significação da vida de uma pessoa com a felicidade que ela produz, não devemos ter em mente a sua felicidade individual, mas a felicidade (ou o bem) que ela traz ao mundo, o que inclui tudo aquilo que ela trouxe de bom, não só para ela mesma, mas também, e com valor correspondente, para as outras pessoas. Com isso se explica porque a vida de Rubirosa deve ter sido pouco expressiva em termos de valor ou sentido, pois além do bem para si mesmo, não sabemos sequer se ele realmente trouxe um bem maior para outras pessoas. Já Van Gogh, apesar de ter falhado em trazer felicidade para si mesmo, trouxe um bem elevado e fértil para um imenso número de pessoas, um bem que se estende no tempo até hoje, para aqueles em condições de apreciar a sua arte.
É pelo fato de a felicidade que trás sentido à vida ser pensada em termos coletivos que entendemos porque um cientista como Einstein, um compositor como Beethoven, ou líderes com profundo senso de responsabilidade social, como Emiliano Zapata, Martin Luther King ou Mahatma Ghandi, tiveram vidas plenas de sentido. É também através disso que entendemos porque genocidas como Hitler ou Stalin tiveram vidas sem valor ou propósito, posto que eles foram causa de indescritível sofrimento para um imenso número de pessoas.[cviii]
Interessante aqui é a complexa ligação entre felicidade e altruísmo. Aristóteles chegou a identificar a felicidade pessoal com a felicidade que alguém trás ao mundo através de sua noção de eudaimonia. Essa identificação era natural para Aristóteles porque entre os gregos a polis era vista como uma extensão do indivíduo, a tal ponto que morrer heroicamente em uma batalha era visto como a forma mais valorosa e digna de se terminar a existência.
Essas considerações nos sugerem algo sobre a causa e relevência da felicidade associada ao altruísmo. Ela se baseia na constatação de que os desejos cuja satisfação é fonte de felicidade são capazes de se espraiar como que em anéis crescentes, envolvendo intencionalmente outras pessoas pertencentes a círculos cada vez mais distantes. Assim, um colecionador de selos faz algo que trás felicidade para si mesmo e para mais ninguém. Um estudioso solitário da filosofia oriental faz algo que traz felicidade para si mesmo, mas que está pelo menos potencialmente relacionado ao bem coletivo. Uma mãe que tem sucesso em educar bem os seus filhos trás felicidade para ela mesma e também para outras pessoas mais próximas. Um empresário inovador costuma produzir um maior bem para um grande número de pessoas. Um grande líder político trás um bem maior para os cidadãos de toda uma nação. E grandes artistas do passado valorizaram as vidas das pessoas que viveram séculos adiante deles mesmos. Esses últimos três casos, ao menos, pertencem àquilo que chamo de felicidade beneficial, que transcende desejos ego-centrados, ainda que possa ter sido deles originada. Por envolverem a coletividade de forma altruista, essas últimas formas de felicidade estão mais ligadas ao bem.
Considerei então o conceito de felicidade pessoal, entendendo-a como o resultado de um balanço positivo entre as demandas individuais e sua satisfação. No final do artigo procurei uma fórmula abstrata para a felicidade pessoal, concluindo que ela resulta de uma acomodação de nossas demandas às circunstâncias concretamente dadas. Ela é a satisfação suficiente de demandas razoavelmente concebidas, como pensou Stuart Mill. O que torna as coisas mais difíceis é que tanto as demandas quanto as circunstâncias são como areia movediça. Elas costumam variar, forçando um constante reajuste na relação entre ambas. Como notou Einstein, “viver é como andar de bicicleta: é preciso estar sempre pedalando para não perder o equilíbrio”.[cix]
O resultado disso é que somos felizes quando as circunstâncias dadas possibilitam uma satisfação razoável das demandas pessoais. E somos infelizes na medida em que a distância entre as circunstâncias dadas e as nossas demandas pessoais tiver se tornado difícil ou mesmo impossível de ser transposta. Procurei ilustrar esse ponto com uma história sobre a vida dos Inuits na Groelândia. Na primeira metade do século XX, quando ainda se encontravam isolados, eles viviam sob condições mínimas de subsistência. Mesmo assim eram felizes. Filmes da época, que os mostram caçando focas com os seus minúsculos caiaques entre grandes blocos de gelo, revelam rostos transbordantes de alegria. Já no final do século XX eles tinham uma condição de vida bem melhor, sendo tutelados pelo governo canadense... Mas apesar disso passavam o tempo se alcoolizando, vendo pela televisão uma vida da qual não podiam participar e se sentindo miseráveis. A explicação é que antes eles eram felizes porque tudo o que queriam ser e ter, que era quase nada, era o que eles eram e tinham; depois eles se tornaram infelizes porque mesmo tendo um pouco mais, eles deixaram de ser o que eram e quase nada do que eles passaram a querer ser e ter lhes foi mais concedido.
28. Autocompreensão
No recesso de 2007 assisti no Youtube dezenas de filmes sobre a síndrome de Asperger. Esses filmes e mais uma dúzia de livros me proporcionaram um melhor insight sobre mim mesmo do que qualquer psicólogo seria capaz.[cx] A síndrome de Asperger nada mais é do que uma forma limítrofe de autismo. No autismo severo faltam por completo habilidades sociais inatas. Por causa disso a pessoa não consegue ler expressões faciais, não entende o comportamento, não aprende a reconhecer a interioridade de outros seres humanos, não consegue aprender a linguagem, não desenvolve a inteligência e acaba em geral sendo institucionalizada. Há, contudo, todo um spectrum, que vai desde o autismo severo até a normalidade. No meio caminho entre esses dois extremos está o autismo leve ou Asperger, que atinge cerca de 0,4% da população. Nesses casos a pessoa consegue se socializar o suficiente para aprender a linguagem. Ora, ao conseguir isso ela obtém acesso ao mundo da cultura e se torna capaz de desenvolver a inteligência. Com isso o autista Asperger se torna capaz de aprender, por uma via não-empática, um pouco do mundo interior das outras pessoas, embora a sua conexão emocional com elas permaneça sempre algo deficiente e seu comportamento social permaneça desajeitado e frequentemente impróprio. E como o “aspie” tem dificuldades em entender os sentimentos alheios, ele não consegue avaliar bem os próprios. Como ele é consciente dessas inadequações, a consequência é uma inevitável ansiedade frente à maioria das situações sociais. A síndrome tem comprovação neurológica: quando uma pessoa normal observa expressões fisionômicas e gestos, ela apresenta uma estimulação dos chamados “neurônios espelhos” do córtex motor, uma reação que tem importância para a interação e o aprendizado imitativo. Diante dos mesmos estímulos, uma pessoa com síndrome de Asperger não apresenta as mesmas descargas neuronais.
Já há muitos anos eu desconfiava que minhas dificuldades sociais tivessem a ver com autismo, mas aqui estavam as evidências. A síndrome é, aliás, de difícil diagnóstico, especialmente para adultos, pois a experiência os ensina a dirimir e camuflar os sintomas.
A consciência de ter essa síndrome me fez compreender também a razão de meu interesse pela filosofia. É que depois da “dislexia social”, o outro principal sintoma é o interesse hiperfocado e obsessivo por assuntos específicos. No meu caso, ao invés de interessar-me por espécimes de borboletas, aconteceu de interessar-me por filosofia, uma área na qual poderia exercitar minhas fixações cognitivas sem grandes contatos sociais e que, com alguma sorte, fui capaz de transformar em profissão. Com efeito, para um assunto complexo e árido como a filosofia, que pode exigir da pessoa passar muito anos colecionando pequenas peças de pensamento, o interesse obsessivo pode ser uma vantagem. Outra vantagem é que não me sinto muito pressionado a fazer o que os outros fazem, ou a obter suporte dos outros membros da comunidade de idéias, podendo seguir mais facilmente o rumo ditado pela curiosidade e pelo interesse pessoal.
As desvantagens são, contudo, consideráveis. Uma delas é que vivo em geral demasiado envolvido comigo mesmo para ser capaz de seguir uma palestra ou me concentrar na leitura de textos. Outra é que o contato com as outras pessoas nunca deixou de produzir em mim algum grau de ansiedade e conflito geralmente post factum, levando-me a evitar envolvimentos sociais, o que limita minha capacidade de concentração. As dificuldades de contato e entendimento social têm sido de várias maneiras limitadoras da própria carreira acadêmica. Mas elas não são apenas minhas. Elas podem atingir de modo bem mais sério pessoas com síndrome de Asperger, sendo responsabilidade da sociedade o desenvolvimento de mecanismos de compensação e apoio.
Por fim, é importante notar que o ingrediente autista é socialmente útil e talvez mesmo indispensável à evolução social. O pensamento divergente é necessário à mudança. Se fosse inútil, a seleção natural já o teria feito desaparecer. Hans Asperger, o pediatra vienense que primeiro identificou a síndrome (o qual, segundo dizem, também a tinha) escreveu que qualquer cientista ou artista precisa ter ao menos uma gota de autismo, necessário à vida interior. Sintomas autistas são facilmente encontráveis em grandes pensadores do passado, muitos deles mais ou menos “nerds”. Aliás, o ingrediente autista, a meu ver aliado a certo grau de narcisismo sublimado, ajuda a explicar o que tem sido chamado de “gênio”. Evitando exageros, eis uma lista de alguns colegas ilustres que são suspeitos de terem síndrome de Asperger: Sir Isaac Newton, que depois de ter passado quatorze anos em Cambridge veio para Londres sem ter deixado para trás um amigo sequer; Kurt Gödel, que só se comunicava com o seu departamento em Princeton por telefone; Ludwig Wittgenstein, cuja presença deixava qualquer um apreensivo; Saul Kripke, que precisa viajar assistido para não se perder.
29. Recriando Deus
Escrevi em 2007 uma divagação meramente especulativa no domínio da filosofia da religião, que aparece no final de um artigo intitulado “Deus: natureza e existência”.[cxi] Parece fora de dúvida que a existência de um Deus pessoal, tal como ele é relatado pelos textos bíblicos, tornou-se demasiado improvável no interior da cultura científica em que vivemos. Parece ter acontecido com esse Deus o que aconteceu com o Homem das Neves e o Pé Grande: como essas criaturas nunca foram vistas e os poucos traços por elas deixados sempre se demonstraram ilusórios, elas quase certamente não existem.
Há hoje uma farta literatura ateísta ocupada em explorar esse ponto, ou seja, em confirmar o óbvio. O problema real que o ateísta deixa em aberto é, em meu juízo, outro. Ele pode ser formulado como: não haveria algum elemento de verdade próprio, substantivo e resgatável, oculto sob as mais diversas fantasias religiosas?
É certo que há boas explicações psicológicas para a crença em Deus, como a de Freud, que via na prática religiosa uma neurose coletiva de caráter obsessivo-compulsivo, a servir de conforto para mentes imaturas. Há também a explicação sociológica de Émile Dürkheim, que via nos rituais religiosos uma maneira de fazer com que os membros de um grupo social se sentissem irmanados entre si em torno de um pai comum. Mas tomar essas explicações como suficientes implica em reducionismo psicológico ou sociológico. A questão é: há um resgate não-reducionista para alguma coisa importante incluida na crença em Deus? Gostaria de sugerir que sim.
Essa suspeita se reforça quando consideramos que há concepções sublimadas imanentes de Deus, que rejeitam a ingênua ideia de um Deus pessoal sustentada pelas religiões. Assim, o filósofo Spinoza concebia Deus como uma substância-natureza com infinitos atributos, dois deles cognitivamente acessíveis a nós, o do pensamento e o da extensão. Hegel pensava de modo parecido. Para ele Deus – o espírito absoluto – é a totalidade do universo, incluindo o ser vivo consciente, que é a parte do universo na qual ele próprio é pensado. A diferença para com Spinoza é que Hegel é um idealista que considera todo o universo como sendo de ordem mental. Outro imanentista religioso foi Einstein, para quem Deus é a infinita inteligência que se exprime na perfeição e complexidade das leis que regem o universo, a consciência disso devendo produzir em nós um sentimento de reverência e de mistério. Ainda nessa linha, de forma mais minimalista, encontra-se a posição de Wittgenstein, para quem a religiosidade em última análise concerne às atitudes humanas diante da vida e não ao sentido literal de suas crenças, ou a de Ingmar Bergman, para quem Deus está no coração dos homens.
A versão de Spinoza ainda possui resquícios antropomórficos, uma vez que qualquer coisa, mesmo um grão de areia, também precisará ser uma modificação do atributo mental. A versão de Hegel, para quem Deus, o espírito, a ideia absoluta, é o próprio mundo, é de um naturalismo idealista que por pouco não se reverte em seu oposto (não seria a diferença para com o naturalismo realista meramente retórica?). A concepção de Einstein de Deus como a inteligência expressa nas leis perfeitas que regem o universo pode ser objetada como envolvendo um ocioso fetichismo cósmico. E as posições de Wittgenstein e Bergman padecem dos defeitos da vaguidade e da metáfora.
Se a natureza enquanto tal não chega a ser suficiente para o que buscamos, podemos nos perguntar se o conceito de Deus como uma idéia reguladora, como ideal normativo, não prestaria melhor serviço. Antes de prosseguir, é importante explicar o que é aquilo que Kant entendia como sendo uma idéia reguladora. Trata-se de um conceito cujo objeto é tal que se encontra para além de qualquer possibilidade de experiência, não podendo a sua existência ser comprovada nem refutada. Nem por isso esse conceito é destituído de sentido ou inútil, posto que nos serve como uma virtualidade norteadora de nossos processos de pensamento.
O conceito de verdade absoluta pode servir-nos de exemplo. Como notou Popper, não estamos em condições de saber se tal conceito realmente se aplica a alguma crença ou não, pois o conhecimento que podemos ter do mundo é sempre intrinsecamente falível; na verdade, nunca poderemos saber tanto, pois mesmo que a ciência nos permita um dia alcançar a verdade absoluta, não teremos meios de reconhecê-la como tal. Isso não significa, porém, que o ideal normativo da verdade absoluta seja inútil. Pois como Popper também notou, ele poderia servir como meio para possibilitar a comparação interteórica.[cxii] Parece que podemos de algum modo comparar em ciência uma teoria T1 com uma teoria T2, ambas com o mesmo escopo, concluindo que T2 tem maior poder explicativo e se encontra mais próximo do ideal da verdade absoluta do que T1, ou seja, que T2 é mais verossímil do que T1. Por conseguinte, parece ser com base em um ideal normativo de verdade absoluta que podemos dar preferência a T2 sobre T1, mesmo que esse ideal normativo permaneça enquanto tal para sempre inapreensível.
A maneira pela qual Kant entende o conceito de Deus como idéia reguladora na Crítica da Razão Pura parece bastante obscura e confusa. Para ele a idéia normativa de Deus é a da causa de todas as causas. Não obstante, o que podemos conceber com isso hoje é algo como o Big-Bang, que além de não ter nenhum interesse fora da cosmologia, já deixou de existir há muito tempo.
Ainda assim minha sugestão foi tentar interpretar o conceito imanentista de Deus aventado por pensadores como Spinoza e Einstein em termos de uma idéia normativa kantiana. Para tal, comecei tomando em consideração algo próximo a outra idéia da razão sugerida por Kant: a de mundo, como a síntese de todas as sínteses, externas e internas.[cxiii] Essa idéia como tal também não nos serve porque o mundo como um todo, a natureza, como insistiu Hume, é algo bastante imperfeito. Deus, ao contrário, foi classicamente definido por filósofos como o ser que possui todas as perfeições.
Minha sugestão meramente especulativa consistiu em tentar conciliar o que há de positivo nessas respostas, tentando substituir a visão causal genética de Kant por uma visão teleológica. Penso que poderíamos admitir a ideia filosófica de Deus como o ser que possui todas as perfeições e conciliá-la com o imanentismo teológico de Spinoza e outros, se refizermos a noção kantiana de mundo como um ideal normativo em termos de uma noção da totalidade como perfeição absoluta. Talvez possamos então resgatar um elemento imprescindível à noção de Deus quando passamos a considerá-lo como uma espécie de, digamos, ideal normativo do mundo como perfeição.
Note-se que não podemos dizer do mundo como perfeição que ele possui existência presente, mas parece ser possível formar a idéia normativa de mundo como perfeição como uma admissível “idéia de Deus”. Podemos até mesmo tentar comparar um mesmo constituinte de dois mundos possíveis diversos em termos de maior ou menor proximidade da perfeição, tendo como medida a idéia reguladora do mundo como perfeição.
Mas em que consiste, afinal, o ideal normativo de mundo como perfeição? Só sou capaz de tentar responder com ainda mais especulação! Segundo uma tradição que vem da antiguidade, a idéia de perfeição seria especialmente caracterizada por uma tríade: o verdadeiro em si, o bem em si e o belo em si (três noções que parecem complementares). Mas em nosso caso a verdade, o bem e a beleza em si, não são mais do que ideais normativos, conceitos sem objeto experienciável. O ideal do mundo como perfeição seria o ideal do mundo que possui ao menos o verdadeiro em si, o bem em si e o belo em si.
Note-se que ainda poderia haver uma hierarquia de conceitos normativos subsumidos sob esses três: o ideal da justiça absoluta, por exemplo, parece estar subsumido sob o ideal do bem absoluto. Se esse for o caso também para outros conceitos normativos, então a definição de Deus como ideal normativo do mundo como perfeição poderia se resolver no ideal normativo imposto por essa tríade conceitual. E o que as próprias religiões tentam fazer, com o auxílio de simbolismo, é voltar os diversos aspectos de nossas vidas em direção a esse ideal de mundo que reuna em si todas as perfeições subsumidas sob as ideias-ideais do verdadeiro, do bem e do belo.
Embora também aqui não entre em questão a existência de objetos que satisfaçam esses ideais, parece que podemos em alguma medida comparar diferentes verdades, bens e belezas efetivamente dadas com base em seus correspondentes ideais normativos. Com efeito, na medida em que por natureza buscamos a perfeição (seguindo o que Leibniz chamou de “o princípio do melhor”), nós tendemos a pensar valendo-nos de tais virtualidades reguladoras e a fazer escolhas baseadas nelas.
Precisamos de conceitos normativos que dirijam não só os nossos pensamentos, mas também as nossas ações. As ideias-ideais da verdade, do bem e do belo absolutos seriam respectivamente capazes de nortear idealmente nossos pensamentos teóricos, nossos pensamentos práticos e, talvez (seguindo uma sugestão kantiana), a relação entre ambos, entre contemplação e ação, na medida em que as harmonizasse entre si. Essas ideias-ideais nos permitiriam comparar pensamentos e ações em busca do melhor, mesmo que eles se mantivessem sempre para além de nossas possibilidades efetivas (curiosamente, aproximamo-nos aqui da concepção aristotélica de Deus, não como origem criadora, mas como um telos em direção ao qual se todas as coisas se moveriam atraidas pelo amor...).
Mas por que somos impelidos em direção a semelhantes ideais? O que há de racional nisso? Parte da resposta pode ser que pertencemos à natureza e que sabemos que a natureza tem um misterioso poder de auto-organização, que faz com que a partir de estados de coisas mais simples sejam nela criados sistemas cada vez mais complexos, como a evolução natural e a emergência da consciência o tem demonstrado.
Outro elemento que poderia nos colocar no caminho de uma resposta é o princípio de homeostase: “La vie c’est la fixité du millieu interior”, na frase de Claude Bernard. Do mesmo modo que, como produtos evolucionários somos providos da necessidade de manter a homeostase – o equilíbrio dos sistemas vitais (o que podemos chamar de bio-homeostase) – também pode ser razoável supor que, como produtos evolucionários dotados de consciência, sejamos providos da necessidade de produzir e manter a homeostase como um equilíbrio dos constituintes mentais, ou seja, como uma psico-homeostase – visando a produção e manutenção da ordem e equilíbrio em nossa relação psicológica com nós mesmos – a desdobrar-se em uma sócio-homeostase – visando a produção e manutenção do equilíbrio com o meio social que nos envolve – e até mesmo em uma eco-homeostase – visando a produção e manutenção do equilíbrio no meio natural, não humano, no qual também estamos envolvidos. Talvez essa necessidade de alcançar equilíbro seja capaz de prover ao menos parte da explicação de nossa necessidade de pensar e agir tendo em mira o ideal normativo de um mundo como perfeição e do fato de que se nos recusarmos a isso acabaremos de algum modo levados a violar nossa própria natureza.
Ainda outra tentativa de justificar nossas aspirações de perfeição poderia partir da velha constatação de que são inúmeros os caminhos do erro e muito poucos os da verdade. Afinal, encontramo-nos em um mundo no qual a justificação racional de nossas escolhas cognitivas e de ação costuma ser inevitavelmente incerta e lacunar. Em outras palavras: o que nos espera em um prazo suficientemente longo pode ser um número indeterminado de combinações de escolhas de pensamento e ação cujos efeitos últimos encontram-se muito além do que nos é dado prever, fazendo com que os resultados finais de nossas decisões inevitavelmente transcendam o domínio da escolha racional. Mas se essa é a nossa condição, então parece ser pragmaticamente saudável e em última análise mais racional que nos deixemos conduzir em nossas escolhas pelos caminhos que parecem se nortear pelos ideais reguladores da verdade, do bem e da beleza. Pois como escreveu Herman Hesse: “O espírito universal não quer atar-nos, mas elevar-nos degrau por degrau, ampliando-nos o ser”.[cxiv]
30. Perspectivas
Por volta de 2010 o departamento de filosofia da UFRN não só já me havia preterido o lugar de professor titular em três oportunidades, mas encontrava-se mais politizado do que nunca, criando situações que interferiam em meu trabalho de pesquisa, que demanda concentração, que por sua vez demanda tranquilidade, o que no meu caso demanda uma boa dose de isolamento.
Decidi pedir limitação ergonômica: com síndrome de Asperger, hipertensão e arritmia mista, foi-me de direito. Retirei-me da pós. Fiz concurso para a vaga de teoria do conhecimento do departamento de filosofia do IFCS (UFRJ) em 2011. Fui o único candidato aprovado. Fácil para quem já conhece o caminho das pedras.
Mas após algumas visitas ao Rio de Janeiro acabei desistindo. O Rio é uma cidade culturalmente cosmopolita e intelectualmente atraente, mas não oferece qualidade de vida. E aos 60 anos você sente que o tempo está ficando escasso: há coisas demais a serem aprendidas e a consciência de que quando as tiver aprendido talvez não haja mais o que fazer com elas. Restam a simpatia, a cordialidade, o ainda existente charme do Nordeste.
Em 2014 publiquei o livro Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, pela Cambridge Scholars Publishing. Nele se encontra, em versão mais aprofundada, meus melhores artigos escritos em inglês. Nele fica clara a diferença entre a espécie de filosofia por mim praticada e a “mainstream philosophy”. Mainstream é a “filosofia normal”, que pressupõe o valor autoritativo de modelos de pensamento pré-determinados pelos filósofos de um passado mais recente (como Quine e Kripke na filosofia norte-americana). Esses modelos tem sido de um ou de outro modo redutivamente cientificistas. E o cientificismo (scientism) tem tido em meu juízo um efeito superficializador na filosofia contemporânea, atomizando-a de diversas maneiras e fazendo-a romper com a abrangência encontrada na tradição. A filosofia não é para existir apartada da ciência, por certo. Mas por outro lado, não deve tomar uma ou outra teorização de uma ciência particular, formal ou empírica, como uma fonte impositiva de valores, ao preço de se tornar uma ideologia expansionista dessa ciência – uma “ciência X filosofante”. Por exemplo, uma lógica filosofante, de interesse especulativo circunscrito, certo, mas pagando com isso um preço em implausibilidade ou vacuidade.
Em meu trabalho tento seguir, ao invés, tanto quanto me é possível, uma linha independente, inspirada nas ideias filosóficas que me tem parecido realmente plausíveis, sem perder de vista os desenvolvimentos científicos pertinentes. Nesse sentido ele não rompe com a tradição, tornando ao menos idealmente possível salvar a possível abrangência própria do pensamento filosófico. Ele não é reducionista como o cientismo nem (espero) trivializador como a filosofia do senso-comum, mas “multiperspectivamente fundado”, fazendo jus à antiga ambição filosófica de ser um “saber sem um centro”, que visa integrar nosso entendimento do mundo como um todo, tanto quanto isso for razoável.
Há também uma variedade de interesses filosóficos que geraram esboços sobre verificacionismo, sobre os paradoxos da referência e a teoria das descrições, sobre indexicais,[cxv] sobre justificação, causalidade, epistemologia da memória, o problema dos universais e como ele poderia ser abordado através de uma teoria dos tropos (como seria se as matemáticas também pudessem ser derivadas de uma teoria dos tropos?), a teoria expressivista da grande arte, a questão do estado justo e da necessidade da instituição de algo pelo menos semelhante a um estado mundial, entre outras coisas. Muitos desses esboços nunca serão desenvolvidos, menos ainda publicados.
A abrangência de escopo tem para mim um valor heurístico ao favorecer
a visão do todo e com isso a percepção daquilo que possa ser filosoficamente mais relevante. Não pretendo investigar o que esse ou aquele filósofo escreveu, mas os problemas em si mesmos, na independência do fardo por vezes paralizador da tradição e menos ainda dos valores filosóficos provisoriamente adotados por essa ou aquela velha ou nova comunidade de idéias. Também não me creio capaz de inventar o absolutamente novo, se é que ele existe. Minha estratégia é a de buscar conexões abrangentes, postando-me como vigia em uma torre – a de minha consciência intelectual – e prestando atenção à multidão desconexa de idéias que desfilam ao redor. Deixando-me levar apenas pela curiosidade e pelo prazer do conhecimento, espero até encontrar algum elo de significação entre elas. E uma vez encontrado, tento iluminá-lo com o modesto holofote analítico de que disponho.
[i] Paulo Francis: Opinião Pessoal (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1966).
[ii] Ainda penso assim, mesmo admitindo que a psicanálise freudiana contenha uma visão incompleta e freqüentemente errônea dos fatos.
[iii] Ver, por exemplo, Friedrich Nietzsche: “Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral” (São Paulo: trad. Abril Cultural 1974).
[iv] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Investigações filosóficas) (Frankfurt: Suhrkamp 1983), sec. 122.
[v] Ludwig Wittgenstein: Eine philosophische Betrachtung (O livro marrom) (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 122.
[vi] Bronislaw Malinowski: “O problema do significado em linguagens primitivas”, publicado como suplemento de C.K. Ogden e I.A. Richards: O Significado do Significado (Rio de Janeiro: trad. ed. Zahar 1976).
[vii] Não há mais hoje quem concorde com a tese em alguns momentos insinuada por Wittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confusões lingüísticas. Apesar disso, preservamos a idéia de que a prática filosófica é muito facilmente produtora de confusões lingüísticas, e que por isso uma atenção analítica prévia aos sentidos ordinários de nossos conceitos filosóficos é propedeuticamente desejável, se não indispensável.
[viii] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Investigações filosóficas), sec. 111.
[ix] Ele só foi defendido mais tarde, nos capítulos IX e X da tese de doutorado.
[x] As noções de deslocamento e condensação são fundamentais na teoria psicanalítica. Ver Sigmund Freud, Traumdeutung (A interpretação dos sonhos), cap. 7.
[xi] Freud chegou a notar que o discurso filosófico lembra o discurso delirante do psicótico, com a diferença de que enquanto o psicótico trata o abstrato como o concreto, o filósofo faz o oposto.
[xii] A mesma distinção, mas sem relação com a psicanálise, pude encontrar mais tarde indicada em algum lugar do livro de Antony Kenny: Wittgenstein (Cambridge Mass.: Harvard University Press 1973).
[xiii] C.F. Costa: Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphilosophischen Semantik (Konstanz: Hartung Gorre Verlag 1990).
[xiv] Um aluno alemão me observou que eu não deveria me sentir incomodado: “Essa é a nota usualmente reservada aos alunos estrangeiros”.
[xv] Um resumo das principais idéias da tese de doutorado encontra-se em C.F. Costa A Linguagem Factual (Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro 1995), sob o título de “Wittgenstein: a gramática do significado”.
[xvi] Essa concepção de existência é compatível com a concepção fregeana, segundo a qual a existência é a propriedade do conceito de sob ele cair ao menos um objeto. Afinal, essa é a propriedade do conceito de ser aplicável a ao menos um objeto, o que redunda em dizer que o conceito (em nosso caso a regra conceitual) é efetivamente aplicável.
[xvii] J.S. Mill: Um Exame da Filosofia de Sir William Hamilton (São Paulo: Abril Cultural 1976) cap. XI.
[xviii] Ver capítulo 7 de meu livro Uma introdução contemporânea à filosofia (São Paulo: Martins Fontes 2002).
[xix] Bertrand Russell: “The Relation of Sense-Data to Physics”, in Mysticism and Logic (London: Penguin Books 1953).
[xx] Uma das objeções contra o fenomenalismo é que ele não resiste ao argumento wittgensteiniano da linguagem privada. Que tal argumento é mais fraco do que alguns pretendem é algo que penso ter demonstrado nos artigos “Das Paradox der privaten Erfahrung” (Prima Philosophia, vol. 10, 2, 1997) e especialmente em “A linguagem privada e o heteropsíquico” em meu livro Paisagens conceituais: ensaios filosóficos (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2011).
[xxi] Ver meu artigo “Fatos Empíricos”, in C.F. Costa: A Linguagem Factual. Argumentos de P.F. Strawson encontram-se em: “Truth”, in Logic-Linguistic Papers (Oxford: Oxford University Press 1971). Um brilhante, mas esquecido libelo contra a posição strawsoniana é “Unfair to Facts” de J.L. Austin, publicado postumamente em seus Philosophical Papers (Oxford: Oxford University Press 1979).
[xxii] Moritz Schlick: “Das Wesen der Wahrheit nach der modernen Logik”, em Philosophische Logik (Frankfurt: Suhrkamp 1986(1911)), p. 71 ss.
[xxiii] Em sua versão mais desenvolvida esse artigo foi publicado em Paisagens conceituais: ensaios filosóficos.
[xxiv] “Das Paradox der privaten Erfahrung”, Prima Philosophia 10(4), 1997. O mesmo argumento foi desenvolvido em um ensaio de escopo mais amplo intitulado “A linguagem privada e o heteropsíquico”, in Paisagens conceituais: ensaios filosóficos.
[xxv] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Investigações Filosóficas), parte I, sec. 258-9.
[xxvi] Os argumentos de Wittgenstein não são susceptíveis de uma reconstrução única e definitiva. Por isso importei-me mais em interpretar o argumento da linguagem privada de modo a torná-lo filosoficamente impactante, dele resultando a destruição da subjetividade humana tal como ela costuma ser entendida. Um argumento da linguagem privada com resultados triviais seria de escasso interesse.
[xxvii] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Investigações Filosóficas), sec. 328.
[xxviii] Ludwig Wittgenstein: Das Blaue Buch (The Blue Book) (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 89.
[xxix] Ver Gottlob Frege, “Über Sinn und Bedeutung” (“Sobre sentido e referência“), in Funktion, Begriff, Bedeutung, ed. por Günter Patzig (Göttingen: Vanderhoeck & Ruprecht 1980), págs. 43-44 (p. 29 do texto original).
[xxx] E.L. Gettier: “Is Justified True Belief Knowledge?“, Analysis 23, 1983, pp. 121-3.
[xxxi] Retirei esse exemplo (com algumas alterações) do livro de Brian Carr e D. J. O’Connor: Introduction to the Theory of Knowledge (Branch Line, 1982).
[xxxii] Após ter tido essa ideia fui buscá-la na literatura, pois achei improvável que ninguém tivesse chegado a uma conclusão tão natural. (Se você tem uma ideia nova em filosofia, ou ela já foi de algum modo aventada, ou não é uma boa ideia.) Com efeito, a ideia foi vez que outra aventada na literatura sobre o problema pelo menos desde a década de 1970. Sua melhor formulação foi feita por R.J. Fogelin em seu livro Pirrhonian Reflections on Knowledge and Justification (Oxford: Oxford University Press 1994), cap. 1. Meu artigo objetivou dar a essa idéia uma expressão suficientemente elaborada e formal, de modo a torná-la forçosa.
[xxxiii] C.F. Costa: “A Perspectival Definition of Knowledge”, Ratio XXIII, 2010, 151-167. O artigo foi republicado de forma mais completa em meu livro Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Cambridge: Cambridge Scholars Publishing 2014).
[xxxiv] C.F. Costa: “Das Paradox der privaten Erfahrung”, Prima Philosophia, 10(4), 1997, pp. 433-448.
[xxxv] C.F. Costa: “I am Thinking”, Ratio XIV 3, setembro 2001, pp. 222-233.
[xxxvi] Ver Harry Frankfurt, Demons, Dreamers and Madmen (Indianapolis: Bobbs-Merril 1970), p. 102 ss.
[xxxvii] C.F. Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (Langham: UPA 2002). Essa monografia foi traduzida para o português com o título de A indagação filosófica: por uma teoria global (Natal: Edufrn 2005).
[xxxviii] Por exemplo, através de observação de fatos, indução ou sugestão hipotética de leis explicativas abstratas, no caso das ciências empíricas, e, algo parcialmente análogo, pela comprovação de teoremas com base em axiomas e dados formais nas ciências formais. Tais ideias foram sistematizadas pela primeira vez no Organon aristotélico.
[xxxix] J.L. Austin: Philosophical Papers (Oxford: Oxford University Press 1961), p. 232.
[xl] Karl Popper: “Back to the Pre-Socratics”, in Conjectures and Refutations (London: Routledge 1989), p. 138.
[xli] Karl Popper: Conjectures and Refutations, pp. 339-340.
[xlii] John Ziman: “What is Science?”, em E.D. Klemke , Robert Hollinger & A.D. Kline (eds.), Introductory Readings in the Philosophy of Science (New York 1980), p. 42. (Geralmente em filosofia uma ideia original ou já foi sugerida ou não é uma boa ideia.)
[xliii] Jurgen Habermas: “Wahrheitstheorien”, em H. Fahrenbach (ed.), Wirklichkeit und Reflexion (Frankfurt: Suhrkamp 1973).
[xliv] Ver, por exemplo, Ernst Tugendhat: “Überlegungen über die Methode der Philosophie aus analytischer Sicht”, in Philosophische Aufsätze (Frankfurt: Suhrkamp 1992)
[xlv] W.V-O. Quine: Word and Object (Cambridge Mass.: MIT-Press 1960), p. 270 e ss.
[xlvi] A alternativa é uma metalinguagem sintática, com a qual falamos somente das palavras e de suas relações gramaticais.
[xlvii] Seria um erro tendencioso sustentar que essa é uma tese empirista, visto que uma posição semelhante foi historicamente mantida por Descartes, Spinoza e Leibniz, filósofos exemplarmente racionalistas. Contudo, a adição kantiana do juízo sintético a priori tende a favorecer a perspetiva racionalista.
[xlviii] Assim como usualmente dizemos que um volume delimita um lugar tridimensional, uma superfície delimita um lugar bidimensional como o ocupado por uma cor.
[xlix] Escolho essa proposição devido às disputas entre os positivistas lógicos sobre o seu pretenso status de juízo sintético a priori. Mesmo hoje há filósofos que a entendem como um bom equivalente do juízo sintético a priori; ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In Defense of Pure Reason (Cambridge: Cambridge University Press 1998) pp. 100-101.
[l] Ver Peter Unger em Ignorance: A Case for Scepticism (Oxford: Oxford University Press 1975), cap. 1. Uma coletânea de artigos centrais sobre o ceticismo quanto ao mundo externo é a de K. DeRose & T. Warfield, Scepticism (New York: Oxford University Press, 1999). Ver também Claudio Costa: Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. 6.
[li] Hilary Putnam desenvolveu um influente argumento anticético contra a possibilidade de sermos cérebros em cubas em seu livro Reason, Truth and History (Cambridge: University Press 1981). Não obstante, esse argumento não precisa ser discutido, primeiro porque ele não se deixa generalizar facilmente para outras HC, como a do sonho ou de uma alucinação sistemática, segundo, porque ele próprio é controverso por razões que já expus em meu livro Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, pp. 135-6 (nota).
[lii] Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Books (Oxford: Basil Blackwell 1958), p. 57.
[liii] Esse argumento pode ser apresentado de várias maneiras, também analogamente a (AI) como: 1. Se sei que realmente p então sei que o mundo de HC é real. 2. Não sei se o mundo de HC é real. 3. Logo: não sei se realmente p.
[lv] Quando nos perguntamos sobre a relação entre os dois tipos de critério, ou seja, entre os dois sentidos da palavra ‘realidade’, vemos que a desconfirmação da realidade aderente acaba sendo dada pela falta de uma adequada confirmação intersubjetiva (ex: os outros habitantes de Ômega não compartilham das experiências do cérebro na cuba), o que mostra que a sua falta é, no final das contas, sempre respaldada por critérios de realidade em seu sentido inerente.
[lvi] David Hume: An Inquiry Concerning Human Understanding (Uma investigação sobre o entendimento humano) ed. L.A. Selby-Bigge (Oxford: Oxford University Press 1989), sec. IV. Ver também David Hume: A Treatise of Human Nature (Um tratado da natureza humana), parte III.
[lvii] C.F. Costa: “Como resolver o problema da indução?” in: Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia, 5, 14, 2013, pp. 1-31.
[lviii] Certamente, esses mundos não são fisicamente realizáveis nem experienciáveis sem a suposição de uma estrutura subjacente mais complexa. Contudo, parece que podemos ao menos logicamente concebê-los.
[lix] A ideia de um mundo caótico ao qual a indução não se aplica foi sempre repetida na literatura sobre o assunto, de P. F. Strawson a Wesley Salmon.
[lx] Em uma introdução elementar à filosofia encontrei uma exposição da mesma idéia formulada em termos do que a linguagem é capaz de dizer, o que sugere que o verdadeiro insight filosófico possa estar sendo inibido: “Seria impossível dizer verdadeiramente que o universo é um caos, pois se o universo fosse genuinamente caótico não poderia haver linguagem para dizê-lo. A linguagem depende de coisas e qualidades que tenham suficiente persistência no tempo para serem identificadas pelas palavras e essa mesma persistência é uma forma de uniformidade”. J. Teichman & C.C. Evans: Philosophers: A Beginners Guide (Oxford: Blackwell 1995), p. 181.
[lxi] Keith Campbell: “One Form of Scepticism about Induction”, in R. Swinburne (ed.): The Justification of Induction (Oxford: Oxford University Press 1974), pp. 80-83.
[lxii] Como já observei estamos geralmente falando de uma possibilidade ideal e não prática. Do ponto de vista prático, para que procedimentos indutivos se apliquem é já necessário um mundo com uma estrutura e um devir extraordinariamente complexos, no qual caibam seres humanos conscientes em condições de observar e agir.
[lxiii] João: Apocalipse, sec. 9.
[lxiv] Aristóteles: Física, 200b 33-35.
[lxv] Podemos imaginar um mundo cíclico no qual em um futuro muito distante o futuro imediatamente próximo ao do presente será repetido em todos os seus detalhes. Mas a hipótese de um mundo cíclico é compatível com PF**.
[lxvi] Essa poderia ser eventualmente uma maneira de se obter um tratamento unificado do procedimento indutivo, que nos permitisse tratar induções humianas como induções estatísticas.
[lxvii] Não há razão que torne nem improvável nem provável que tudo desapareça no próximo momento (o mundo e nós mesmos). Mas há razões que tornam improvável que uma parte dependente do mundo desapareça no próximo momento, enquanto outras continuem existindo, pois isso já pressupõe a admissão da permanência do mundo como base.
[lxviii] Nelson Goodman: Fact, Fiction and Forecast (Cambridge Mass.: Harvard University Press 1974), cap. III.
[lxix] Wolfgang Köhler: The Mentality of Apes (Fisher Press, 2011 (1924)).
[lxx] C.F. Costa: “Free Will and the Soft Constraints of Reason”, Ratio, vol. 19, 2006, pp. 1-23.
[lxxi] H.G. Frankfurt: “Freedom of the Will and the Concept of a Person”, The Journal of Philosophy, 68, 1, 1971, pp. 5-20.
[lxxii] Versões diversas da teoria causal da ação são encontradas em Donald Davidson , Essays on Actions and Events (Oxford: Clarendon Press 1980); A.I. Goldman, A Theory of Human Action (Englewood Cliffs: Prentice Hall 1970); J.R. Searle, Intentionality: an Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press 1983), cap. 3; Robert Audi: Action, Intention and Reason (Ithaca: Cornell University Press 1993). Ver também a coletânea editada por A.R. Mele, The Philosophy of Action (Oxford: Oxford University Press 1997).
[lxxiii] Essa distinção foi feita por Richard Taylor, um filósofo libertarista. Ver seu livro Metaphysics (Englewood Cliffs: Prentice-Hall 1983), p. 41.
[lxxiv] Considere, por exemplo, a teoria de Frankfurt, segundo a qual a ausência da liberdade da vontade decorre da ausência de controle das volições de ordem superior sobre os desejos que deveriam causar a ação. Parece possível traduzir isso em termos do bloqueio de uma cadeia causal complexa, apoiada por volições de ordem superior, devido a uma cadeia causal interveniente constrangedora, que toma o lugar da primeira na produção dos movimentos corporais. Ver H. Frankfurt: “Free Will and the Concept of a Person”, Journal of Philosophy, 68, 1971, pp. 5-22. Acredito que uma investigação detalhada na direção indicada seria capaz de incorporar elementos positivos de posições compatibilistas hierárquicas, como as de Garry Watson, Richard Double, Susan Wolf e outros.
[lxxv] Ver C.F. Costa: Filosofia da Mente (Rio de Janeiro: Zahar 2005), cap. 1.
[lxxvi] Owen Flanagan: “Consciousness”, in W. Bechtel & G. Graham: A Companion to Cognitive Science (Oxford: Blackwell 1998), p. 184.
[lxxvii] Esse é o caso, por exemplo, quando são apresentadas imagens tão rapidamente que a pessoa não as percebe, embora em testes posteriores seja possível demonstrar que houve um registro inconsciente de seu conteúdo.
[lxxviii] David Armstrong: “What is Consciousness?” In N. Block, O. Flanagan e G. Güzeldere (eds.): The Nature of Consciousness: Philosophical Debates (Cambridge Mass: MIT-Press 1997).
[lxxix] Ver também David Rosenthal: Consciousness and Mind (Oxford : Oxford University Press 2006).
[lxxx] Ver “Consciousness and Reality (A Small Cartography of Consciousness)”, in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. 10.
[lxxxi] Ver principalmente J.J.C. Smart, “Sensations and Brain Processes”, Philosophical Review 68, 1959.
[lxxxii] Ver Hilary Putnam: “The Nature of Mental States”, in Mind, Language and Reality: Philosophical Papers (Cambridge: Cambridge University Press 1975), vol. 2.
[lxxxiii] Ver “Multiple Realisability and the Functional Structure of Neurophysiological Types”, in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. 9. No final do artigo sugiro uma resposta ao argumento segundo o qual os qualia não podem ser reduzidos ao comportamento neuronal.
[lxxxiv] “Identidade pessoal: por uma criteriologia mista”, in Paisagens conceituais: ensaios filosóficos.
[lxxxv] Sydney Shoemaker & Richard Swinburne: Personal Identity (Oxford: Blackwell 1984), p. 109.
[lxxxvi] Roderick Chisholm (seguindo Thomas Reid) pretendeu distinguir o sentido filosófico do sentido solto (loose) da identidade pessoal. Se, por exemplo, digo que depois do casamento ela virou outra pessoa, estou usando o sentido solto. O que pretendi evidenciar é que, para desconsolo de alguns, todos os sentidos desse conceito são, no final das contas, soltos. O sentido filosófico é apenas o menos solto: aquele pelo qual dizemos que a pessoa do final da vida é a mesma que foi em seu início. Ver Roderick Chisholm: Person and Object (Chicago: Open Court 1976), p. 104 ss.
[lxxxvii] Ver especialmente o artigo de J.R. Searle: “Proper Names”, Mind 67, 1958.
[lxxxviii] Ver Saul Kripke: Naming and Necessity (Oxford: Oxford University Press 1981 (1970)), cap. II. Para uma resposta importante e nunca refutada, ver J.R. Searle: Intentionality: an Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press 1983), cap. 9.
[lxxxix] Que geralmente existe uma cadeia causal é um fato que mesmo descritivistas como Strawson reconheceram. O que eu contesto é que essa cadeia causal-histórica seja aquilo que primariamente explica a função referencial dos nomes próprios. Tentativas de usar a cadeia causal-histórica como princípio explicativo independente nos conduzem inevitavelmente a uma petição de princípio. De resto, existem muitos contraexemplos de nomes próprios sem cadeias causais-históricas, desde nomes vazios, como Vulcano e Eldorado, até nomes próprios como ‘Brasília’, que já se referia a essa cidade bem antes de ela ter sido construída.
[xc] Essas idéias foram primeiramente publicadas em um artigo na revista Ratio em 2011, embora sob a forma de uma teoria mista, causal-descritivista. Uma versão muito corrigida e expandida do artigo só foi publicada em 2014 no livro Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. 2, sob o título de “An Outline of a Theory of Proper Names”.
[xci] J.R. Searle: “Proper Names”, The Encyclopedia of Philosophy, ed. Paul Edwards (New York: Macmillan Publishing & Free Press 1972), vols. 4-5, p. 490.
[xcii] Ver A.D. Smith: “Natural Kind Terms: A New-Lokean Theory”, European Journal of Philosophy 13, 2005, pp. 70-73.
[xciii] Saul Kripke: Naming and Necessity, pp. 83-84.
[xciv] Keith S. Donnellan: “Proper Names and Identifying Descriptions”, in D. Davidson e G. Harmann: Semantics of Natural Language (Dordrecht/Boston: Reidel 1972), pp. 373-375
[xcv] Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, em seu Mind, Language and Reality – Philosophical Papers (Cambridge: Cambridge University Press 1975).
[xcvi] Wolfgang Spohn foi quem prmeiro traduziu o artigo de Putnam para o alemão. Em sua formulação final meu artigo foi publicado sob o título de ‘On the Concept of Water’ como o capítulo 3 de Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions.
[xcvii] Avrum Stroll: Sketches and Landscapes: Philosophy by Examples (Cambridge MA: MIT Press 1996), p. 71.
[xcviii] Minha concepção do significado de termos gerais é a meu ver inferencialista, sendo aplicável mesmo às descrições de superfície, distinguindo-se por focar diferenciadamente as inferências mais relevantes para cada termo.
[xcix] Putnam notou que em 1750 os Oscares já eram capazes de ter a ideia de um substrato microestrutural único desconhecido constitutivo dos volumes de água. Mas esse não seria o caso se os Oscares fizessem seus proferimentos há 10.000 anos. Além disso, há substratos que carecem de um constituinte único, como urina e pó.
[c] Essa análise vem de encontro ao bidimensionalismo semântico, com a vantagem de levar em conta as diferenças contextuais no que queremos dizer.
[ci] Em Cartografias conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea (Natal: Edufrn 2008), cap. 17.
[cii] Digo “todos os que possam ser envolvidos” porque quero obstar a busca do bem maior para o que está demasiado distante e desconectado da ação, e digo “na medida do seu envolvimento” porque quero salientar o papel da reciprocidade, além do fato apontado por Sidgwick de que sabemos avaliar melhor aquilo com o que estamos mais proximamente envolvidos e familiarizados.
[ciii] R.M. Hare: Moral Thinking (Oxford: Clarendon Press 1981), parte I.
[civ] Kai Nielsen: “Against Moral Conservatism”, em L.P. Pojman (ed.): Ethical Theory: Classical and Contemporary Readings (Belmont 1989).
[cv] E.D. Klemke (ed.): The Meaning of Life (Oxford : Oxford University Press 2000).
[cvi] John Cottingham: On the Meaning of Life (London : Routledge 2000).
[cvii] Publicado em meu livro Paisagens conceituais: ensaios filosóficos, cap. 6.
[cviii] Já me foi objetado que se fosse assim a vida de Hitler poderia no final das contas ter tido sentido, pois do que ele fez resultou uma transformação na consciência social européia; mas tal objeção é claramente falaciosa, pois essa não foi a sua intenção, mas a de outros, conduzidos a isso sob a evidência do desastre produzido pelo nazismo. A intencionalidade (consciente ou não) daquilo que fazemos é certamente um fator indispensável.
[cix] Retirado de Denis Brian: Einstein: a Life (New York: John Willey & Sons 1996).
[cx] A literatura sobre o assunto é vasta, minha introdução preferida é o livro de Christopher Gilberg: A Guide to Asperger Syndrome (Cambridge: Cambridge University Press 2002).
[cxi] Cartografias Conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea, cap. 19.
[cxii] Karl Popper pretendeu formular essa idéia mais precisamente no capítulo X de Conjectures and Refutations (London: Routledge 2002). O reconhecido insucesso de Popper pode ser devido a sua epistemologia anti-indutivista, não nos devendo fazer pensar que tal empreendimento seja irrealizável.
[cxiii] Immanuel Kant: Crítica da Razão Pura A 685, B 613.
[cxiv] Herman Hesse: “Stufen”, in Das Glasperlenspiel (Frankfurt: Suhrkamp 1972).
[cxv] Trata-se presentemente de um livrinho em inglês intitulado Cognitive Semantics e de um esboço muito mais longo intitulado Como expressões referenciais referem?
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