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SENTIDOS FREGEANOS COMO REGRAS
Meu objetivo nesse primeiro capítulo
é o de preparar algumas ferramentas conceituais que serão úteis para o restante
desse livro. Gostaria de fazer isso tomando a semântica fregeana como ponto de
partida, posto que na base da filosofia da linguagem contemporânea se encontra
essa última, até mesmo quando a rejeitamos. Quero revisar a semântica fregeana
evidenciando duas coisas. Primeiro, que o conceito básico de sentido pode ser parafraseado em termos do
que chamarei de regra semântico-cognitiva.
Segundo, que os conceitos de existência e verdade podem ser reinterpretados em
termos da propriedade de efetiva aplicabilidade
de regras semântico-cognitivas. A primeira sugestão já se encontra em Michael
Dummett, mas creio que merece ser aprofundada. A segunda é uma defesa mais
sofisticada da velha ideia de que a existência é uma propriedade de conceitos e
não de coisas. É verdade que não farei muito mais do que apresentar sugestões conjecturais
que clamam por elaboração. Meu objetivo, porém, não é o de trazer resultados,
mas o de testar ideias, o que não deixa de ser um procedimento filosóficamente admissível.
Como é bem sabido, Frege explica a referência (Bedeutung) recorrendo a um elo semântico intermediário, por ele
chamado de sentido (Sinn). O esquema (1) mostra como Frege
considera esses dois níveis tendo em vista o caso fundamental da frase
predicativa singular:
(1)
termo singular
termo geral frase
Sentido modo de apresentação ? pensamento
Referência objeto conceito > objeto valor-verdade
Embora a semântica fregeana seja um desenvolvimento de incomparável
importância para a filosofia da linguagem, ela não é isenta de bem conhecidas
excentricidades. Algumas maneiras concebíveis de expurgá-la de suas maiores
estranhezas resultarão da própria análise que irei fazer de seus principais
elementos semânticos em termos de regras semântico-cognitivas.
Referência do termo singular
Comecemos com os termos singulares. A
referência de um termo singular é, para Frege, o próprio objeto por ele
referido, tomado no sentido mais amplo. A referência do nome ‘Lua’, por
exemplo, é a própria Lua com as suas crateras... Para designar a referência ele
usa a palavra alemã ‘Bedeutung’, cuja tradução literal para o português é
‘significado’ e para o inglês é ‘meaning’. Os lúcidos tradutores ingleses
preferiram palavras como ‘reference’, ‘denotation’ e ‘nominatum’, que exprimem
o que Frege efetivamente tinha em mente. Outros termos usados foram ainda
‘semantic value’, ‘semantic role’ e ‘truth-value potential’, que salientam a
contribuição das referências dos componentes da frase para o valor-verdade da
frase como um todo. A tradução mais fiel ao texto original é a literal, ou
seja, ‘meaning’ em inglês e ‘significado’ em português. Mas por razões de
sistematicidade e clareza, manterei aqui a palavra ‘referência.’[1]
Há uma discussão entre intérpretes sobre a razão pela qual Frege teria
escolhido a palavra ‘Bedeutung’. Há duas interpretações conflitantes, uma que
começa com o Bedeutung da frase,
outra que começa com o Bedeutung do
nome. A primeira delas é a que explora o fato de que um dos significados de
‘Bedeutung’ (como também de ‘significado’ e ‘meaning’) é relevância ou importância.
Como aquilo que mais importa na frase, para o lógico, é o seu valor-verdade
(posto que aquilo que o argumento válido e correto faz é transmitir a verdade
das premissas para a conclusão), o Bedeutung
da frase deve ser o seu valor-verdade.[2]
A interpretação mais convincente, contudo, por ser especialmente apta à
explicação da relação entre o sentido e a referência dos termos singulares, que
é por onde Frege introduziu a própria distinção, é a meu ver a seguinte: ao
introduzir o termo ‘Bedeutung’ Frege estaria substantivando o verbo ‘bedeuten’,
usado para expressar, não mais o apontar (deuten),
o designar (bezeichnen), mas já aquilo que é apontado (die
Bedeutung), aquilo que é designado (das
Bezeichnete), o que é significado (was
gedeutet wird), ou seja, a própria referência.[3]
Em alemão essas transições se apresentam como:
Bedeutet...
→ deutet... bezeichnet... → /was
gedeutet, bezeichnet wird/
(significa)
(aponta... designa...) (aquilo que é referido)
↓
die Bedeutung
(o significado = a referência)
Essa teria sido a pequena torção semântica com a qual Frege transformou a
palavra ‘Bedeutung’ em um termo técnico, uma torção que trai um resquício de
referencialismo semântico.[4]
Sentido do termo singular
Passemos agora ao sentido do termo
singular. Para introduzi-lo, compare as duas frases seguintes:
- A estrela da manhã possui
uma densa atmosfera de CO2.
- A estrela da tarde
possui uma densa atmosfera de CO2.
As frases (1) e (2) referem-se à
mesma coisa, que é o planeta Vênus. Mas apesar disso, uma pessoa pode saber a
verdade de (1) sem saber a verdade de (2). A explicação disso é que embora os
termos singulares ‘estrela da manhã’ e ‘estrela da tarde’ se refiram ao mesmo
planeta Vênus, eles veiculam conteúdos
informativos diferentes, eles têm sentidos (Sinne) diferentes. O sentido é definido por Frege como sendo o modo de se dar do
objeto (die Art des Gegebenseins des Gegenstandes), o que bem se traduz
como o seu modo de apresentação. Os
sentidos dos termos singulares ‘a estrela da manhã’ e ‘a estrela da tarde’ são
diferentes porque o primeiro termo singular apresenta Vênus como o corpo
celeste mais brilhante geralmente visto próximo ao horizonte pouco antes do sol
nascer, enquanto o segundo apresenta o mesmo planeta Vênus como o corpo celeste
mais brilhante geralmente visto próximo ao horizonte pouco depois do sol se
por.
Segundo Frege, palavras expressam o sentido (drücken den Sinn aus) enquanto o sentido determina (bestimmt) a referência. O sentido é condição para a referência: ele mostra o caminho para
a referência, mesmo nos casos em que a constatamos como inexistente, tendo já
sido interpretado como sendo o modo de apresentação pretendido e não o efetivamente dado.[5]
Por isso para Frege uma expressão pode ter sentido sem ter referência, mas não
pode ter referência sem ter sentido.
A noção de sentido em Frege é abrangente, constituindo no caso do
sentido das frases o que ele chama de valor
epistêmico (Erkenntniswert). O sentido fregeano possui interesse epistemológico
por envolver o conteúdo informativo da expressão lingüística,
sendo, no dizer de Dummett, aquilo que
entendemos quando entendemos a expressão.[6]
A importância filosófica da semântica fregeana resulta principalmente dessa
importância epistemológica do seu conceito de sentido e ainda de algumas
consequências ontológicas que esse conceito é capaz de envolver.
Frege é um platonista sobre os sentidos. Ele os concebe como entidades
abstratas, que ele só analisa em termos de outros sentidos que lhe sejam
constituintes. Ou seja: ele não analisa os sentidos através de outros
conceitos. Essa análise, porém, é algo que naturalmente se impõe. Afinal,
parece mais do que plausível entendermos os sentidos fregeanos como sendo algo
como regras criteriais semântico-cognitivas, ou seja, regras que demandam
a satisfação de critérios para a sua satisfação, critérios que uma vez
satisfeitos nos permitem a tomada de consciência de algo.[7]
A plausibilidade da identificação dos sentidos com regras fica particularmente
clara quando tomamos expressões numéricas como exemplos. Considere as
expressões
“1 + 1”, “6/3”, “2 . (7 + 3 – 9)”.
Todas elas têm a mesma referência, o número 2,
mas sentidos fregeanos bem diversos. Ao mesmo tempo é óbvio que elas expressam
diferentes procedimentos, diferentes métodos, diferentes regras ou combinações
de regras semântico-cognitivas baseadas em critérios que nos conduzem à
identificação do mesmo número 2.[8]
Aqui reside, aliás, a conexão fundamental que pode ser feita entre as reflexões
semânticas de Frege e as do último Wittgenstein.[9]
Outra razão para tratarmos sentidos como regras cognitivas é o contraste
com aquilo que Frege chamou de colorações
(Färbungen). Colorações são o mesmo
que sentidos expressivos, ou seja, estados afetivos que regularmente associamos
a certas expressões. Assim, as palavras ‘amor’ e ‘cão do inferno’, na frase “O
amor é um cão do inferno” (Bukowski), se associam contrastivamente a emoções
específicas. Como Frege percebeu, a fixação por diferentes pessoas de
colorações emocionais similares a uma mesma palavra é uma regularidade (e não
uma regra) que resulta da relativa semelhança entre as naturezas humanas dos
falantes, não se fundamentando, pois, em convenções pré-estabelecidas entre os
falantes, como no caso dos sentidos. Por isso alguns compreendem certas
poesias, outros não; e por isso é tão difícil traduzir poesia, que sempre
depende em muito das colorações específicas adquiridas por uma expressão em
certa língua. Podemos assim supor que a razão da objetividade
(intersubjetividade) e conseqüente comunicabilidade dos sentidos – em contraste
com a relativa falta de objetividade das colorações – reside no fato de os
sentidos serem regras cognitivas, convencionadas de modo geralmente
pré-reflexivo,[10]
quando não são, supostamente, o que as combinações dessas regras constituem.
À luz dessas suposições, o sentido do termo singular deve passar a ser
considerado o mesmo que uma regra ou método ou procedimento convencionalmente
fundado, cuja função é a de servir de meio para a identificação do objeto. Essa
regra se deixa em geral exprimir por meio de descrições. Assim, a regra
associada ao termo singular ‘a estrela da manhã’ deixa-se explicitar pela
descrição definida ‘o corpo celeste mais luminoso geralmente visto próximo do
horizonte pouco antes do sol nascer...’ E um nome próprio como ‘Aristóteles’,
como Frege notou, tem como particupantes de seu sentido diferentes modos de
apresentação do objeto, expressos por descrições como (i) ‘discípulo de Platão
e tutor de Alexandre o Grande’ ou (ii) ‘pessoa nascida em Estagira’.[11]
Segundo seu entendimento (i) e (ii) exprimem diferentes sentidos ou, como
diríamos, diferentes regras que de um ou de outro modo podem nos auxiliar na
identificação de Aristóteles. Além disso, podemos suspeitar que (i) e (ii)
façam parte de alguma regra mais geral, estabelecedora de um vínculo unificador
entre essas duas regras na identificação de um mesmo objeto. Ainda que assim
parafraseado, o sentido continua a determinar a referência: para que se
identifique a referência é preciso que regras semânticas identificadoras do
objeto se demonstrem aplicáveis, a dizer, que as configurações criteriais
demandadas para a aplicação dessas regras sejam por ele satisfeitas.
Referência do termo geral
Frege tem algo a dizer
sobre a referência do termo geral em posição predicativa, a qual ele chama de
conceito (Begriff). Isso é estranho
porque parece natural pensarmos o conceito como sendo o próprio sentido da expressão conceitual, o seu
modo de apresentação da referência, a qual deveria ser uma propriedade. Além
disso, para ele o conceito é uma função. O conceito matemático de função pode
ser definido como sendo uma regra que tem como input argumentos e como output valores (por exemplo: ‘3 . x = ...’ é uma função que recebe quando
o argumento é o número 2 o número 6 como valor). Para Frege um conceito é uma
função cujo argumento é o objeto que “sob ele cai” (fällt unter) e cujo valor é um valor-verdade, que pode ser o
Verdadeiro (das Wahre) ou o Falso (das Falsche). Assim, o conceito
designado pela expressão conceitual ‘...é vermelho’ tem o valor Verdadeiro
quando sob ele cai o objeto ponte Golden Gate e tem o valor Falso quando sob ele
cai o objeto Lua.
Frege nunca explicou satisfatoriamente o que são conceitos entendidos
nesse sentido referencial. Mas para ele conceitos não poderiam ser nem objetos,
nem coleções de objetos, nem extensões. A razão disso é que um objeto, uma coleção
de objetos, uma extensão, são entidades independentes
(unabhängig), não precisando de mais nada
para completá-las. O conceito, por contraste, sendo uma função, se caracteriza
por ser aberto, ou seja, por ser uma entidade incompleta (unvollständig)
ou insaturada (ungesätig), precisando poder ser sempre preenchida por argumentos,
que no caso são os objetos que sob ele podem cair. Só os objetos é que são, por
contraste, completos, saturados, independentes.
Por exemplo: o predicado ‘...é um cavalo’ é uma expressão insaturada,
designando um conceito também insaturado, que se deixa completar pelo objeto
que sob ele cai, o qual é referido por um termo singular, por exemplo,
‘Bucéfalo’. Predicado incompleto e termo singular completo se combinam para
formar a frase (Satz) completa
“Bucéfalo é um cavalo”, que por ser completa também deve nomear um objeto. A
tese de que a frase completa funciona como o nome de um objeto seria confirmada
pela possibilidade que temos de nominalizar frases transformando-as em descrições
definidas, que são termos singulares. Assim, a frase “Bucéfalo é um cavalo” pode
ser transformada na descrição ‘o cavalo de nome Bucéfalo’, que pode comparecer
na frase “O cavalo de nome Bucéfalo pertenceu a Alexandre”. Mas como termos
gerais também podem ser nominalizados, esse argumento não nada tem de decisivo:
o termo predicativo ‘...é vermelho’, por exemplo, pode ser substantivado como
‘o vermelho’ comparecendo na frase “O vermelho é uma cor”.
O status ontológico da referência das
expressões predicativas
A discussão sobre a natureza
insaturada da referência das expressões predicativas nos leva à questão da
natureza ontológica daquilo que Frege entende por conceito. A sua identificação
da referência da expressão predicativa com o conceito não é facilmente aceitável.
Frege tem o bom senso de admitir que conceitos vazios existem. O termo
predicativo ‘...é um unicórnio’ refere-se para ele a um conceito, mesmo que sob
ele não caia objeto algum. Contudo, isso complica as coisas ainda mais, pois parece
intuitivamente claro que ‘...é um unicórnio’, ainda que obviamente exprimindo
um conceito, não possui referência alguma. O que Frege chama de conceito François
Recanati traduz com razão pelo termo ‘propriedade’ (propriété),[12]
o que no contexto lhe outorga um sentido inevitavelmente plantonista. Por
razões tais meu receio é o de que a identificação fregeana da referência da
expressão predicativa com o conceito além de arbitrária é irremediavelmente insatisfatória,
resultando de uma contaminação do domínio do sentido – no qual falamos de
conceitos como modos de apresentação – pelo domínio da referência. A opção mais
razoável poderia ser a de admitir que o conceito seja mesmo aquilo mesmo que
ele sempre pareceu ser: o sentido da
expressão predicativa, o seu modo de apresentação, de modo que a referência
dessa expressão seja algo que, com efeito, “caia sob” esse conceito-sentido,
mesmo que a sua referência não possa ser algo completo como um objeto, uma
coleção de objetos, uma extensão. Mas que algo é esse?
Quero aqui propor a resposta que me parece
mais viável. É possível revisar Frege, interpretando a referência da expressão
predicativa originariamente em termos do que hoje chamamos de tropos, que nada mais são do que propriedades espaço-temporalmente singularizadas,
como o branco que vemos quando olhamos para a Lua e que, de certo modo, está lá
(como a reflexão de todos os comprimentos de onda do espectro visível). Em sua
forma mais conseqüente, a moderna ontologia dos tropos foi introduzida em 1953
pelo filósofo austrialiano D. C. Williams e representa um projeto completamente
inovador como solução para o problema dos universais e dos objetos
particulares. Segundo a teoria dos tropos em sua forma mais coerente, o
universo inteiro e tudo o que a ele pertence é constituído de tropos, que em
suas formas mínimas são como que suas pedrinhas de construção.[13]
Exemplificando: aquele som agudo que acabei de ouvir, essa superfície rugosa
que sinto pelo tato, o vermelho que nela se encontra, e mesmo (talvez) a forma arredondada
dessa poltrona, são tropos ou conjuntos de tropos. Universais poderiam ser
definidos como tropos iguais a um tropo-modelo T* (o qual pode variar com o
sujeito cognitivo e até para o mesmo sujeito em diferentes ocasiões).[14]
E objetos materiais poderiam ser minimamente analisados como pacotes (bundles) de tropos compresentes, ou
seja, co-localizados e co-temporais. Esses pacotes poderiam conter núcleos de
tropos eventualmente constituídos por combinações indispensáveis, circundados por
tropos acidentais.[15]
O restante do universo, galáxias, átomos e forças naturais, estados mentais, espaço
e tempo, talvez até mesmo números, seriam por suposto construções derivadas
desses tropos originariamente e imediatamente dados aos sentidos.
Embora a ontologia dos tropos seja uma
aquisição muito jovem e traga consigo sua própria carga de problemas
irresolvidos, ela não produz mais dificuldades do que as tradicionais doutrinas
do realismo e do nominalismo. Em compensação, ela promete uma solução
extremamente econômica para os problemas ontológicos, que se realizada seria
capaz de libertar-nos de entidades questionáveis como universais
platônico-aristotélicos e substâncias incognoscíveis, as quais ocuparam as
cabeças filosóficas por mais de dois milênios sem que um progresso significativo
as tornasse mais plausíveis. Como não é aqui o lugar para fazer uma defesa pormenorizada
de uma radical ontologia dos tropos, posso propor ao leitor a admissão bem
menos polêmica de que nossos termos predicativos empíricos se referem originariamente
a propriedades singularizadas, ou seja, tropos como o do vermelho desse sofá,
sua forma arredondada, aquele som agudo que acabei de ouvir, que lhes servem
como critérios de aplicação em frases predicativas singulares. Assim, quando
digo “Esse sofá é vermelho”, o predicado ‘vermelho’ se refere à propriedade
singularizada da vermelhidão que faz parte desse sofá e que serve como seu
critério de aplicação do predicado ‘...é vermelho’. Essa suposição de bom senso
já bastará.
Segundo a releitura que gostaria de propor, é possível supor que a
expressão predicativa ‘...é vermelho’ na frase “A ponte Golden Gate é vermelha”
tem como referência, não um conceito, mas uma propriedade singularizada
composta, digamos, dos arranjos de tropos de vermelho da ponte que se dão aos diversos
observadores. Ainda aqui, a propriedade singularizada (melhor dizendo, um
conjunto dos arranjos de tropos de brancura iguais entre si), ela mesma, poderia
ser interpretada como uma função. Ela seria uma função cujo argumento, no caso,
seria o objeto ponte Golden Gate, e cujo valor poderia ser simplesmente o fato
de essa ponte ser vermelha. Nesse caso, a função referida pela expressão
predicativa ‘...é vermelha’ seria satisfeita pelo objeto referido pelo nome ‘ponte
Golden Gate’, dando como valor o fato ou estado de coisas referido pela frase
“A ponte Golden Gate é vermelha”. Ainda que desnecessariamente artificiosa, em
termos de referência essa seria uma melhor opção que o recurso fregeano ao
valor-verdade como o valor da função conceitual – uma opção que só exploraremos
mais tarde.
Finalmente, quero notar que mesmo que a referência primeira do predicado
possa ser um tropo (ou uma combinação de tropos), isso não exclui que com ele
estejamos aludindo a um universal. Pois ao sabermos que na frase predicativa
singular o termo geral se refere a um tropo associado a um objeto particular
referido pelo termo singular, sabemos muito bem que esse tropo pertence à
classe formada por tudo aquilo que for como ele, ou seja, que ele instancia um
universal concebido como um tropo ou qualquer outro tropo exatamente similar a
ele.
Insaturação como dependência
ontológica
O mais grave problema com a idéia da
incompletude ou insaturação é que ela não é suficiente para distinguir a função
predicativa. Entre o objeto e a propriedade designada pelo predicado vige uma
bem conhecida assimetria: o objeto é tipicamente
referido pelo sujeito e a propriedade é tipicamente referida pelo predicado
(ex: “Sócrates é sábio”); mas enquanto a propriedade pode de algum modo passar
a ser referida pelo predicado em sua forma nominalizada (ex: “Sabedoria é uma
virtude”), o objeto referido pelo sujeito não pode passar a ser referido por
predicado algum. Contudo, a distinção saturado/insaturado nada faz para explicar
essa assimetria. Afinal, parece igualmente possível afirmar que os termos
singulares e, por conseguinte, os seus referentes, também são insaturados.
Afinal, qual é a diferença entre os preenchimentos de “(Bucéfalo, Silver,
Pégaso...) ...é um cavalo” e “Bucéfalo é... (branco, indócil, veloz...)”? Tanto
o termo geral quanto o termo singular podem ser vistos como exprimindo funções
que podem ser completadas por uma infinidade de outros termos, o mesmo se
aplicando aos seus possíveis referentes.
Contudo, a noção de insaturação insinua algo mais do que isso. Em
química um composto de carbono é dito insaturado quando contém ligações
carbono-carbono removíveis pela adição de átomos de hidrogênio, o que torna o
composto saturado. Haveria uma maneira de resgatar essa metáfora? Será que
Frege não a explorou satisfatoriamente?
Quero mostrar que o recurso a uma leitura da referência da expressão
predicativa em termos de tropos tem a virtude de possibilitar uma paráfrase
esclarecedora da distinção fregeana entre saturação e insaturação. Essa
paráfrase inspira-se em uma das definições aristotélicas de substância, qual
seja, a de ser aquilo que existe na
independência de outras coisas.[16]
Aplicada aos objetos como pacotes de tropos, a intuição passa a ser a de que tais
pacotes de tropos são normalmente mais estáveis do que os tropos a eles
contingentemente associados, no sentido de que eles existem de maneira relativamente independente deles. Com efeito,
tropos não existem sozinhos: um tropo de verde, por exemplo, nunca existe na
independência de um tropo de forma, que para se localizar precisa estar
espaço-temporalmente relacionado a outros tropos.
Admitindo que os tropos tem sua
existência dependente de objetos particulares, os quais seriam constituídos de pacotes
relativamente independentes e estáveis de tropos, podemos fazer o seguinte
raciocínio: se os referentes de termos gerais (empíricos) forem tropos, ou
seja, propriedades espacio-temporalmente localizadas, parece que podemos
parafrasear melhor a dicotomia insaturação/saturação ou incompletude/completude
através da dicotomia dependência/independência,
raramente usada por Frege. Afinal, o que distingue a referência de um termo
geral, no caso da frase predicativa ou mesmo relacional singular, é que essa
referência é um tropo (ou complexo de tropos) cuja existência depende de um todo que é o sistema de
tropos essencialmente constitutivo do objeto particular referido pelo termo
singular. Assim, o predicado ‘...é rápido’ na frase “Bucéfalo é rápido” e a
relação ‘...pertence a...’ na frase “Bucéfalo pertence a Alexandre” aplicam-se
respectivamente às combinações de tropos próprias do ser rápido e do pertencer
a Alexandre, as quais só podem mesmo existir e se tornar identificáveis na
dependência da existência de pacotes de tropos mais complexos, estáveis,
independentes, que são os pacotes constitutivos dos objetos Bucéfalo e
Alexandre. Já os pacotes de tropos constitutivos dos referentes dos nomes
próprios ‘Bucéfalo’ e ‘Alexandre’ são objetos que são capazes de existir na
independência da existência das combinações de tropos constitutivas do “ser
rápido” ou do “pertencer a alguém”. Se entendermos a insaturação como
dependência é possível sugerir que as propriedades referidas pelos predicados
possuem uma inevitável relação de dependência
para com objetos particulares e que isso se deixa melhor explicar quando as
entendemos como sendo propriedades singularizadas ou tropos.
Note-se que a relação de dependência/independência não se preservaria se
as referências dos termos predicativos fossem as suas extensões, entendidas
como classes de objetos às quais os termos predicativos se aplicam. A relação
de dependência/independência só se preserva quando entendemos a referência do
predicado em termos de tropos. Tal relação tem sua origem ao nível ontológico
da referência, mas ela se reflete nos dois níveis seguintes, do sentido e de
sua expressão linguística, como o próprio Frege pretendeu para a sua relação de
insaturação/saturação. Ela se reflete ao nível da linguagem, na assimetria que
funda a distinção lógica entre sujeito e predicado. E ela se reflete ao nível
epistêmico do sentido, como veremos, pelo fato de que o sentido, o modo de apresentação
do objeto a ser referido pelo termo singular se faz de maneira independente do
modo de identificação de tropos contingentes, através de predicados associados
ao mesmo termo singular, enquanto o sentido do termo geral, o modo de
apresentação de tropos ou combinações de tropos, é dependente da prévia
identificação do objeto referido pelo termo singular.
É preciso notar que a relação de dependência/independência não precisa
ficar restrita ao domínio dos particulares empiricamente dados. Até mesmo os
objetos formais prioritariamente considerados por Frege se submetem a ela.
Considere uma predicação como ‘...é um número par’, aplicada à referência do
nome próprio ‘6’. Ela é dependente, pois depende do reconhecimento da
existência do número 6. E o próprio conceito de ser um número par, expresso
pela regra de ser um número divisível por 2 e por si mesmo, não teria lugar na
independência da existência de números pares particulares aos quais ele possa
ser atribuido.
O mais importante é que essa espécie de solução explica a assimetria
entre objeto particular e propriedade pela independência da referência do termo
singular. O nome próprio ‘Sócrates’ não pode passar à posição de predicado
porque aquilo a que ele se refere é algo independente (e independentemente
identificável), ou seja, é o sistema de tropos que constitui essencialmente o
objeto particular. Mesmo o nome de um objeto abstrato como o número ‘6’ não
pode passar à posição de predicado, posto que se refere a algo independente relativamente
a suas propriedades (embora por suposto não as que lhe possam ser definitórias),
sendo identificável na independência de muitas de suas predicações, digamos
‘...é par’ ou ‘...é maior do que 2’, ‘...é o número de vértices da estrela de
David’.
Sentido do termo geral
Frege não explica o que ele entende
pelo sentido do termo geral em sua função predicativa. Isso é compreensivel, já
que ele se vê impedido de lhe atribuir a função de um conceito. Mas a lógica de
nossa reconstrução nos leva a pensar que esse sentido, esse modo de
apresentação, não deva ser nada mais do que aquilo que poderíamos chamar de a regra de aplicação ou de caracterização do termo geral, e que
essa regra seja algo que realmente merece ser chamado pelo nome de conceito.[17]
Tal como acontece com o sentido do termo singular, o sentido do termo
geral também pode se alterar sem que a sua referência se altere. Considere as
frases:
1. A Lua é branca.
2. A Lua reflete todos os comprimentos de
onda.
A referência dos predicados de (1) e (2) – os arranjos de tropos que
constituem a brancura da Lua – permanece a mesma, enquanto os sentidos dos
predicados são diversos, o que faz com que os sentidos das frases sejam
diferentes: uma pessoa pode saber que a Lua é branca sem saber que a sua
superfície reflete todos os comprimentos de onda do aspectro visível. Isso quer
dizer, em nosso entendimento, que os sentidos-conceitos, os modos de
apresentação, as regras criteriais de caracterização-aplicação dos predicados
(1) e (2) são diferentes.
Como já notei a distinção ontológica entre saturação e insaturação, melhor
dizendo, entre independência e dependência, também se reflete ao nível epistêmico
do sentido. Isso fica mais claro quando pensamos no sentido do termo geral como
regra. A regra de identificação do termo singular se aplica ao objeto, o qual é
considerado como ontologicamente independente em relação às propriedades
singularizadas que contingentemente possuem. Por isso mesmo a regra de
identificação também é passível de ser aplicada independentemente das regras de
caracterização, podendo ser ela mesma isoladamente concebível em sua aplicação,
sendo nesse sentido independente, completa, saturada. O mesmo não acontece,
porém, com as regras de caracterização expressas pelos termos gerais. Sendo os
tropos ou conjuntos de tropos aos quais elas ultimadamente se aplicam na dependência
dos pacotes de tropos constitutivos dos objetos aos quais as regras de
identificação se aplicam, as regras de caracterização dos predicados demandam a aplicação prévia das regras de
identificação de objetos, de modo a se tornarem elas próprias aplicáveis, o
que as torna dependentes das regras de identificação dos termos singulares, como
reflexo do fato de que as propriedades-s são dependentes dos objetos que as
possuem.[18]
O sentido do termo geral, que
(divergindo de Frege) podemos identificar com o conceito por ele expresso, deve
ser, pois, uma regra cuja aplicação a um objeto depende da prévia aplicação de
outra regra. A regra de caracterização do termo predicativo é dependente e,
nesse sentido, incompleta, insaturada, pois ela demanda a aplicação prévia da
regra identificadora do termo singular para poder se aplicar. É preciso em
suficiente medida identificar, ou seja, localizar no espaço e no tempo algum
objeto particular, para só então poder caracterizar. Considerando exemplos, é
preciso aplicar a regra que nos permite localizar espacio-temporalmente o
animal chamado Bucéfalo para, com base nisso, aplicar-lhe regras de
caracterização de termos gerais como ‘...é um cavalo’, ‘...é branco’, ‘...pertence
a Alexandre.’ E é preciso aplicar a regra que nos permite identificar
mentalmente o número 6 para podermos aplicar a ele o predicado ‘...é par’, cujo
sentido-conceito é a regra de identificação de números pares, que é a de ser um
número divisível por 2 e por ele mesmo.
Uma objeção seria a de que, afinal de contas, é possível predicar sem
identificar o objeto. É possível dizer “Aquilo é um cavalo” ou “Lá está uma
coisa branca”, sem identificar Bucéfalo. Mas com essa objeção se esquece que a
identificação pode ser cada vez menos específica, até o ponto em que ela se
reduz à identificação da mera localização espácio-temporal. Termos singulares
indexicais como ‘aquilo’ e ‘lá’, acompanhados de um gesto de ostensão, já são
capazes de identificar um particular na forma de alguma coisa espaço-temporalmente
localizável de modo independente, explicitável por expressões como ‘aquele
animal’, ‘aquele objeto’, ‘aquele algo’, ‘aquilo que está faltando’, o que já
admite a adição de uma predicação.
Concluímos, pois, que não só a
referência do predicado é dependente, mas também o seu sentido. É assim que a
relação de dependência epistêmica – ao nível do sentido – espelha a relação de
dependência ontológica – ao nível da referência.
O conceito de existência
Nesse ponto podemos
adicionar uma consideração especial sobre o conceito de existência.
Aprofundando uma ideia já presente em Kant, Frege sugeriu que a existência é
uma propriedade (Eigenschaft) do
conceito, qual seja, a propriedade que este tem de não ser vazio, mas
satisfeito, preenchido.[19]
Considerando que um conceito de primeira ordem preenchido é aquele sob o qual
cai ao menos um objeto, podemos dizer que para Frege a existência é uma
propriedade de ordem superior, a dizer, a propriedade de um conceito de sob ele
cair pelo menos um objeto. A mesma idéia foi defendida por Russell na sugestão
de que a existência é a propriedade de uma função proposicional do tipo “Ǝx(...)” de ser verdadeira para ao menos
uma instância.[20]
Seguindo uma terminologia mais atual,
tomemos como exemplo a frase geral “Cavalos existem”.[21]
Essa frase se deixa analisar como:
Existe ao
menos um ... tal que ... é um cavalo.
Essa frase, como lembra
John Searle, contém dois componentes. O último deles é expresso pelo predicado
‘...é um cavalo’, simbolicamente Cx
(onde x está no lugar de ‘...’ e C no
lugar do predicado ‘é um cavalo’). O primeiro componente, por sua vez, é o
predicado de existência, a frase aberta ‘Existe ao menos um ... tal que ...’,
simbolicamente Ǝx(...) (onde Ǝ está
no lugar de ‘Existe ao menos um', e ‘...’ é a lacuna a ser preenchida por algum
conceito). Isso significa que a predicação de existência Ǝx(...)
é um conceito de conceito, um conceito de ordem superior, um metaconceito sob o qual o que pode cair
não é mais um objeto, mas outro conceito. A frase Ǝx(Cx) expressa, pois, um
conceito de segunda ordem aplicado a um conceito de primeira ordem. O que esse
conceito de ordem superior faz é, no dizer de Frege, dizer que ao menos um objeto cai sob o conceito de
primeira ordem, ou seja, dizer que ele é satisfeito,
preenchido, ou ainda, atribuir a aplicabilidade desse conceito de
primeira ordem a ao menos um objeto. Essas são obviamente maneiras diversas de
se dizer o mesmo.
A
última maneira de dizer, ou seja, dizer que a existência é a aplicabilidade da
regra conceitual é a que mais nos interessa. Ela nos interessa por facilitar a
análise do conceito em termos de regras, dado que é próprio das regras serem
aplicáveis. Assim, ao dizermos que a lua existe, estamos querendo dizer que o
conceito expresso pelo predicado ‘...é a lua’ é aplicável, o que significa
dizer – admitindo que conceitos são sentidos que são regras – que a regra
conceitual para a identificação da lua é efetivamente aplicável. Com o termo
‘efetivamente’ quero enfatizar que a regra conceitual não é aplicável apenas
como possibilidade antevista por nossa imaginação, mas que ela é aplicável originariamente
ao domínio de discurso sobre objetos físicos reais (“Essa pedra existe”), seguido do domínio do discurso do
psicológico (“Minha náusea existe”), que entendemos como lhe sendo mais propriamente
pertencentes. Resumindo, podemos dizer que a
existência é a propriedade de uma regra conceitual de ser efetivamente aplicável
em um dado domínio.
É preciso acrescentar que o conceito de
aplicabilidade da regra também não tem nada de antropomórfico. Mesmo que não
existissem seres humanos capazes de aplicar a regra de identificação da lua, a
lua continuaria existindo, pois sua regra de identificação continuaria
aplicável em seu domínio. Ela continuaria aplicável mesmo que não fosse jamais
pensada ou aplicada, mesmo que ninguém estivesse aqui para afirmar que a lua
existe. Em oposição à aplicabilidade a aplicação
da regra é antropomórfica. A aplicação é um ato ou sequência de atos. A
aplicação da regra cognitiva de identificação da lua realmente demanda a
existência de seres cognitivos capazes de aplicá-la. A aplicação de regras
cognitivas depende de ações cognitivas reais, pelas quais formamos juízos.
Nosso juízo de que a lua existe depende da experiência de aplicação da regra
por nós mesmos ou por alguém que nos testemunhe a sua aplicabilidade por tê-la
aplicado...
Passemos agora à questão do conceito vazio. Quando dizemos que cavalos
existem estamos aplicando uma regra conceitual de segunda ordem – a de
atribuição de existência – que é uma regra conceitual que se demonstra
aplicável a uma regra conceitual de primeira ordem quando esta última é efetivamente aplicável a ao menos um objeto.
(defino o efetivamente aplicável como aquilo cuja aplicabilidade pode ser
demonstradamente comprovável para distinguir a aplicabilidade da qual falamos
de uma aplicabilidade meramente possível.) Uma consequência disso é que o
metaconceito de existência não pode, obviamente, ser aplicado a um conceito
vazio, pois essa última regra conceitual não seria capaz de satisfazê-lo, uma
vez que não é aplicável a nenhum objeto. É por isso que “Existem unicórnios” é
uma frase falsa: a regra de aplicação de primeira ordem constitutiva do
conceito de unicórnio, de primeira ordem, não satisfaz o metaconceito de
existência, pois sob ela não cai nenhum objeto, ou seja, ela não é aplicável a
nenhum pacote de tropos constitutivo de um objeto do gênero unicorniano.
Com base nessas considerações é possível
rebater uma objeção que os defensores da ideia de que a existência é uma
propriedade de coisas devem ter em mente: a objeção de que se a existência é
uma propriedade de conceitos, então ela não tem mais a ver com os próprios
objetos que caem sob esses conceitos, o que parece absurdo, pois nos leva a
pensar que a existência não tem mais nada a ver com o mundo real.
A
resposta a essa objeção está na consideração do tipo peculiar de propriedade
conceitual que é a da existência. Na medida em que os tropos ou pacotes de
tropos possam ser ditos existentes, eles precisam ter a propriedade de poderem
cair sob conceitos, melhor dizendo, a propriedade de satisfazerem ou
preencherem suas regras conceituais, ou, ainda melhor, de terem regras de aplicação
conceituais aplicáveis a eles. Isso fica mais claro se considerarmos que o que
satisfaz os conceitos de primeira ordem são tropos ou suas combinações: se a
existência do tropo f é a
propriedade Ǝ da regra conceitual
R ( que constitui seu conceito), que é a propriedade de R ser aplicável à f, então a propriedade Ǝ também é uma
propriedade da propriedade-s f, qual seja, a de ter a regra conceitual R aplicável a si mesma. Assim, o
vermelho desse sofá só existe na medida em que esse objeto (o sofá) tem a
propriedade de cair sob o conceito de
ser vermelho, no dizer fregeano. Ou, expessando isso de forma mais adequada,
segundo a qual conceitos se aplicam a tropos: o vermelho desse sofá só existe
na medida em que a regra de aplicação constitutiva do conceito de ser vermelho
tem a propriedade de se aplicar aos tropos de vermelho desse sofá; mas isso
significa também dizer que os tropos de vermelho que esse sofá tem de ser
vermelho possuem a propriedade de ter, aplicável a eles mesmos, a regra de aplicação
constitutiva do conceito de ser vermelho, ou seja, os tropos possuem a
propriedade de satisfazer ou preencher a regra que os caracteriza. É um engano,
pois, pensarmos que a identificação da existência com uma propriedade conceitual
faz com que ela deixe de ter a ver com a referência do conceito, com as coisas
em si mesmas. É uma característica peculiar do conceito de existência a de que,
sendo propriedade de um conceito de primeira ordem, ele deve ser também uma
propriedade de entidades pertencentes ao mundo real.
A ideia de que a existência é uma propriedade
de conceitos diz respeito a termos gerais, mas também a termos singulares,
posto que ambos exprimem sentidos-conceitos. Consideremos o caso dos nomes
próprios. Como vimos, eles tem sentidos, regras de identificação. Como a
existência é a aplicabilidade de uma regra cognitiva, a existência do objeto
referido pelo nome próprio precisa ser a propriedade da efetiva aplicabilidade
de sua regra de identificação.
Podemos tentar demonstrar isso
transformando os nomes próprios em expressões predicativas aplicadas a um único
particular: isso mostrará que os sentidos dos nomes próprios podem ser
reduzidos a conceitos de predicados. Uma primeira maneira de se tentar fazer isso
é predicalizar o nome próprio. Assim, ‘Sócrates’ em “Sócrates existe” pode ser
predicalizado de modo a obtermos a frase “Existe algo que socratiza”, ou “Ǝx(x
socratiza)”, o que é lingüisticamente bizarro, além de ser inadequado ao deixar
aberta a possibilidade de existir mais de um Sócrates. Apesar disso “Ǝx(x
socratiza)” aponta na direção certa ao sugerir que a existência do portador do
nome próprio seja uma propriedade de conceitos-sentidos de termos predicativos,
pois o verbo socratizar pode ser visto como abreviação dos predicados que
comparecem naquelas descrições definidas que o nome próprio ‘Sócrates’, seguindo
a sugestão fregeana, está abreviando. Para
ilustrar podemos supor que a frase “Ex(x socratiza)” seria capaz de ser mais
adequadamente parafraseada como:
Ex (x foi o inventor da maiêutica, x foi o mestre de Platão... x foi o marido de Xantipa).
Naturalmente, isso nos
convida a analisar a função individuadora do artigo definido à lá Russell, mostrando que os predicados
quantificados que se aplicam a um único objeto, como em:
Ex (x foi inventor da maiêutica e exatamente
um x foi inventor da maiêutica, x foi mestre de Platão e exatamente um x foi mestre de Platão... x foi marido de Xantipa e exatamente um x foi marido de Xantipa).
A simbolização pode tornar o que queremos dizer mais preciso ao
demonstrar que o x que comparece em
cada locução é sempre o mesmo. Assim, simbolizando os predicados ‘inventor da
maiêutica’ por P1, ‘mestre de Platão’ por P2, e ‘marido de Xantipa’ por Pn, e
substituindo as vírgulas por disjunções, a frase acima se deixa formular
simbolicamente como se segue:
Ǝx (P1x ˅ P2x ˅... ˅ Pnx) & (y) ((P1y → (y = x))
& (P2y → (y = x))&… & (Pnx → (y = x)))
O importante é notar que o sentido do nome próprio é traduzido em conceitos-sentidos
de expressões predicativas como P1, P2 e Pn, que em nossa análise nada mais são
do que regras de caracterização de predicados, que aqui são mostrados como se
aplicando a uma única coisa. Predicar a existência do nome próprio assim
analisado é dizer que o seu sentido, a sua regra de identificação, se aplica.
Como essa regra de identificação do nome próprio foi aqui analisada em termos
de um conjunto de regras de caracterização de predicados que devem ser
aplicadas a um mesmo e único indivíduo, a existência do portador do nome
próprio passa a ser a aplicabilidade de regras de caracterização de predicados a
um mesmo e único indivíduo. (desconsidero
aqui a obscura crítica de Russell ao conceito de sentido em Frege: até onde
chegamos sentidos fregeanos e análises à
lá Russell de descrições definidas são duas coisas perfeitamente
compatíveis).
Aqui alguém poderia objetar que semelhante
tentativa descritivista de explicar o sentido do nome próprio estão fadadas ao
fracasso, pois são uma versão da teoria do agregado, que encontra bem
conhecidas dificuldades nas objeções feitas a ela por Kripke, Keith Donnellan,
Michael Devitt e outros. Contudo, é preciso notar que, diversamente de um
preconceito corrente, essas objeções pouco afetam versões mais sofisticadas da
teoria descritivista, tendo sido respondidas em sua maioria por J. R. Searle.[22]
A teoria do agregado pode não convencer, mas não foi refutada.[23]
Além disso, mesmo a análise que apresentei acima é uma simplificação. No
capítulo 4 do presente livro desenvolverei uma versão mais elaborada da teoria
do agregado, que possui (em meu modesto juizo) um poder explicativo bem
superior ao de qualquer teoria anterior e permite respostas mais completa aos
contra-exemplos conhecidos, indo também além da análise formal aqui exposta.
A grande vantagem da maneira de conceber a
existência propugnada por Frege é que não encontraremos problemas em negá-la.
Se ao afirmarmos a frase “Vulcano não existe” a negação da existência devesse
ser aplicada ao próprio objeto, teríamos primeiro de identificar o objeto, para
então podermos negar que ele possui a propriedade de existir. Mas como para
identificarmos o objeto precisaríamos admitir que ele existe, nós cairíamos em
contradição. Ou seja: teríamos de admitir que a existência de Vulcano não pode
ser negada. Contudo, em minha interpretação da concepção fregeana isso não é
necessário. Pois tudo o que fazemos ao negar a existência de Vulcano é admitir
que o conceito-sentido expresso pelo nome próprio ‘Vulcano’ não cai no conceito de existência por não ser um
conceito preenchido ou satisfeito ou uma regra efetivamente aplicável.
Substituindo o nome ‘Vulcano’ pelo predicado ‘vulcaniza’, a sentença fica sendo
“~Ex (x vulcaniza)”, segundo a qual o sentido do nome próprio é o sentido
de um predicado, uma regra conceitual de caracterização. Vimos que essa formulação é insuficiente
porque não individua o portador do nome como sendo um e o mesmo. Assim, é
melhor dizer que esse sentido do nome pode ser expresso por descrições
definidas, pelos conceitos que elas exprimem quando são transformadas em
predicados por uma análise russelliana. Assim, na análise sugerida “Vulcano existe”
é uma maneira abreviada de dizer que (para ilustrar) “~Ex (x é o pequeno planeta que orbita entre
Mercúrio e o Sol)”, melhor dizendo, “~Ex
(x é um pequeno planeta que orbita
entre Mercúrio e o Sol e para todo y,
se y for um planeta que orbita entre
Mercúrio e o Sol, y = x).” Aqui, o que cai sob o escopo de ‘~Ǝx’ nada mais é do que a expressão da
regra de identificação do nome próprio, que é constituída de regras de
caracterização de predicados que devem ser aplicadas a uma e a mesma coisa. O
que ‘~Ǝx’ faz é apenas negar a
efetiva aplicabilidade dessa regra de identificação.
O entendimento da existência como a propriedade de aplicabilidade de
regras conceituais permite-nos explicar as ampliações a que a aplicação desse
conceito está sujeita. Pois embora a existência seja primariamente atribuída a
propriedades e objetos do mundo externo ou estados psicológicos, também podemos
dizer que objetos imaginários existem. Alguns crêem que até mesmo objetos
contraditórios existem. Podemos de algum modo dizer mesmo que tudo existe, pois não há nada que de
modo algum exista. E até mesmo da própria existência pode ser dito que ela
existe. Mas como isso é possível? Como isso se concilia com a inexistência?
Vejamos. Sobre a existência de objetos imaginários devemos notar que as
regras conceituais podem ser aplicadas apenas na imaginação. Se imagino Vulcano
orbitando o sol eu aplico a regra de identificação desse nome em minha
imaginação (mesmo que em uma concepção vaga e precária). Considerando outro
exemplo: a Alice do conto “O mágico de Oz” não existe no mundo real; mas ela
existe no pequeno mundo ficcional construído por essa estória. Ela existe
porque temos uma regra para a sua identificação nesse mundo, a qual se
demonstra efetivamente aplicável, por ter sido preenchida, satisfeita dentro
desse domínio. Ela é ainda objeto de aplicação de descrições como ‘a menina de
oito anos, que tem um gato, cuja casa foi levada por um tufão...’ nesse mundo
imaginário.
Contudo, a atribuição de existência a contradições como “o quadrado
redondo” já não procede, pois não podemos combinar a regra de identificação do
quadrado com a regra de identificação do redondo, de modo a construir uma regra
de identificação que seja aplicável em algum mundo possível. Por isso é mister
reconhecer que o quadrado redondo não existe, posto que não podemos aplicar uma
regra cognitiva que somos incapazes de construir. Essa é de fato a nossa
intuição mais forte: contradições não existem, dado que são carentes de sentido
cognitivo.[24]
Finalmente, sabemos que a própria existência existe no sentido de que
sabemos que a aplicabilidade de regras conceituais aos diversos donínios existe.
Ela existe no sentido de que podemos construir uma metameta-regra cujo critério
de aplicação é a efetiva aplicabilidade de meta-regras conceituais de
existência. Como essas metaregras de fato se aplicam (como as coisas existem),
a metameta-regra – que demanda a efetiva aplicabilidade das meta-regras de modo
a se tornar efetivamente aplicável a elas – também se aplica, disso resultando a
segura conclusão de que a própria existência também existe!
A referência da frase
Passemos agora à referência da frase
(Satz) em Frege. Ele a entende como
devendo ser aquilo que permanece o mesmo quando mudamos o sentido dos
componentes da frase sem alterar a sua referência. Isso acontece quando
substituímos “A estrela da manhã é iluminada pelo sol” por “A estrela da tarde
é iluminada pelo sol”; aqui as referências dos componentes permanecem as
mesmas. Logo, a referência da frase também deve permanecer a mesma. Mas o que
não se alterou? A resposta de Frege é: o valor-verdade. Ambas as frases
permanecem verdadeiras. Disso ele conclui que ao menos nas linguagens
extensionais, a referência das frases é o seu valor-verdade. Em adição a isso ele
nota que a busca da verdade é o que nos leva do sentido para a referência. E o
valor-verdade é certamente da maior importância (Bedeutung) para a lógica, por ser aquilo que deve ser preservado em
argumentos válidos.
Não obstante, a despeito de qualquer vantagem teórica que essa sugestão
possa prover, ela não deixa de ser absurdamente implausível. A consequência
anti-intuitiva óbvia de se supor que a referência da frase seja o seu
valor-verdade é que todas as frases verdadeiras passam a ter a mesma
referência, que é o Verdadeiro (das Wahre),
enquanto todas as frases falsas passam a ter como referência o Falso (das Falsche). Contudo, é completamente
contra-intuitivo que frases que nada têm em comum, como “2 + 2 = 4” e “Napoleão
nasceu em Córsega” tenham a mesma referência, além de conduzir a resultados absurdos,
como o de que a frase “2 + 2 = 4 é o mesmo que “Napoleão nasceu em Córsega”,
por conter duas frases referindo-se à mesma coisa, ou seja, ao Verdadeiro, seja
verdadeira. Além disso, a referência da frase, que deveria pertencer ao mesmo
domínio ontológico da referência dos seus componentes, passa usualmente para
outro domínio: enquanto a referência do nome ‘Napoleão’ é o próprio Napoleão de
carne e osso, a referência de “Napoleão nasceu em Córsega” é o objeto abstrato
o Verdadeiro. Por fim, mesmo sob a perspectiva da semântica fregeana essa idéia
é falsa, pois viola um princípio da composicionalidade, segundo o qual o todo
depende das partes, de modo que uma alteração na parte produz uma alteração no
todo. Pois se a referência da frase for o seu valor-verdade, ela não pode ser
constituída por partes, posto que o valor-verdade é um objeto simples. Os
componentes da frase, porém, tem referências próprias, que não se identificam
com o valor-verdade.
Esse resultado é tanto menos aceitável por existir uma alternativa muito
mais intuitiva à mão, a qual, como notou Antony Kenny, não foi sequer aventada
por Frege.[25]
Podemos, como Wittgenstein, Russell e outros, admitir que a referência de uma
frase possa ser o fato capaz de verificá-la, entendido como combinação de
entidades dado no mundo. Afinal, fatos seriam independentes, completos,
fechados, satisfazendo a definição fregeana de objeto que seria apropriada à
referência da frase. Admitindo por hipótese essa resposta, uma pergunta se
impõe: como estabelecer qual o fato-referência do pensamento que a frase
exprime? Considere as seguintes frases:
- A estrela da manhã é
a estrela da manhã,
- A estrela da manhã é
a estrela da tarde,
- A estrela da manhã é
Vênus,
- Vênus é o segundo
planeta a orbitar o sol,
- A estrela da manhã é
o segundo planeta a orbitar o sol.
Como todos os componentes dessas
frases possuem a mesma referência, pelo raciocínio fregeano essas frases
deveriam ter todas elas as mesmas referências também, só mudando os seus
sentidos, dependentes dos sentidos variados de seus componentes. Isso nos
mostra que o fato, entendido como a referência fregeana da frase, não pode ser
aquilo que é imediatamente considerado quando usamos a palavra ‘fato’ na
introdução de tais frases em um discurso indireto, ou seja, após a cláusula-que.
Por exemplo, quando digo “É um fato que
Vênus é a estrela da manhã”, estou considerando um fato diferente daquele que
considero quando digo “É um fato que
Vênus é o segundo planeta a orbitar o sol”, pois o fato de Vênus ser a estrela
da manhã não é obviamente o mesmo que o desse planeta orbitar o sol. Por isso,
os fatos imediatamente enunciados por essas frases não podem ser o
fato-referência, o fato fundamentador
ultimadamente responsável pelo valor-verdade de todas elas.
A questão que se levanta é: existe uma enunciação privilegiada do fato
fundamentador que ultimamente verifica os pensamentos expressos por todas essas
frases, além dos pensamentos expressos por um número indeterminado de outras
frases de identidade que podem ser produzidas acerca de Vênus? Minha sugestão é
a de que essa tarefa possa ser realizada por frases de identidade entre nomes próprios. Admitindo por hipótese
que em sua intuição fundamental a teoria dos nomes próprios como abreviações de
agregados de descrições, primeiramente aventada por Frege, seja correta, então
o nome próprio ‘Vênus’ abrevia em seu sentido modos de apresentações
exprimíveis através de descrições como ‘a estrela da manhã’, ‘a estrela da
tarde’, ‘o segundo planeta a orbitar o sol’ etc. Ora, nesse caso minha proposta
é de que a frase capaz de descrever o fato fundamentador, que seja o
verificador único das frases de 1 a 4 seja a seguinte:
(i)
Vênus
é (o mesmo que) Vênus.
Essa frase seria capaz de
se referir ao único fato verificador, que ultimamente verifica todas as outras
frases acima. Com efeito, se o nome próprio ‘Vênus’ é uma abreviação das
descrições definidas capazes de identificar univocamente o seu objeto, então
esse nome próprio abrevia as descrições ‘a estrela da manhã’, ‘a estrela da tarde’,
‘o segundo planeta a orbitar o sol’ etc. Ora, nesse caso a frase ‘Vênus é
Vênus” é capaz de implicar “A estrela da manhã é Vênus” pela substituição da
primeira ocorrência do nome ‘Vênus’ pela descrição ‘a estrela da manhã’, disso
resultando a frase (3) e assim com todas as outras frases co-referenciais acima
apresentadas. Uma objeção a ser feita a essa sugestão seria a de que “Vênus é
Vênus” é uma tautologia analítica, cuja verdade não demanda verificação. Mesmo
assim “Vênus é Vênus” não é o mesmo que “Alguna coisa é alguma coisa”,
possuindo o nome próprio ‘Vênus’ um conteúdo cognitivo a ser considerado.
O status ontológico dos
fatos
Importa ainda responder a uma
controvérsia entre os que julgam que fatos empíricos são entidades objetivas
que estão no mundo e aqueles que, como Frege, acreditavam que fatos são sempre
entidades abstratas ou algo do gênero. Em um influente artigo P. F. Strawson
sugeriu que fatos empíricos – o que certamente deve incluir fatos
observacionais – são meros correlatos pseudo-materiais, não se encontrando,
pois, no mundo.[26]
Seu mais incisivo argumento é o de que os fatos empíricos não são
espaço-temporalmente localizáveis, diversamente dos eventos. Assim, em um exemplo clássico, o evento da travessia do
Rubicão por Cesar, por exemplo, deu-se no ano 47 a.C.; mas esse fato não
ocorreu no ano 47 a.C., pois fatos simplesmente não ocorrem.
Contudo, essa controvérsia é falsa. Uma
maneira fácil de contorná-la foi proposta por John Searle. Para ele nós
precisamos de uma palavra para designar aquilo no mundo que torna o pensamento
verdadeiro. A palavrinha fato encontra-se à mão. Assim, por que não usá-la estipulativamente para designar o
fazedor da verdade, seja ele qual for?[27]
Contudo, parece-me claro que mesmo esse recurso é desnecessário, sendo
ao menos curioso que os argumentos de J. L. Austin contra a posição de Strawson
tenham sido tão pouco debatidos.[28]
Não estou querendo dizer que tudo o que podemos chamar de fato empírico seja
objetivamente real. Podemos dizer que é um fato que o sol não é verde, mas esse
não é propriamente um estado de coisas efetivamente dado no mundo. Mas quero sugerir
que em geral os fatos empíricos, particularmente os fatos ditos observacionais,
devem ser considerados objetivamente reais. Acredito ter um argumento-chave
para regenerar a ideia de que os fatos empíricos são correlatos objetivos dos
pensamentos, de modo que fatos empíricos enunciados por sentenças afirmativas
singulares possam ser, no final das contas, combinações de elementos dados no
mundo (supostamente propriedades-s como correlatos de predicados e combinações
de propriedades-s como correlatos de termos singulares). Minha sugestão de
princípio é a de que a oposição fato-evento proposta por Strawson é falsa, simplesmente
porque eventos nada mais são do que sub-espécies de fatos. Melhor dizendo:
‘fato’ é uma palavra guarda-chuva, um hiperônimo, que cobre um campo semântico
mais abrangente, no qual se incluem os eventos. Hipônimos de ‘fato’ são situações,
estados de coisas, eventos, acontecimentos, processos... Esses hipônimos, por
sua vez, dividem-se em duas classes, sendo que entre elas é que ocorre a
oposição entre ocorrência e alguma outra coisa. Essas duas classes são as de:
- Fatos estáticos (formais ou
empíricos): situações, condições, circunstâncias, estados de coisas...
- Fatos dinâmicos (somente
empíricos): eventos, ocorrências, processos, acontecimentos... [29]
Fatos estáticos definem-se como aqueles que mantém as mesmas relações básicas
entre seus elementos durante todo o período de sua existência. Fatos formais da
matemática e da lógica são estáticos em um sentido trivial: o fato de que 2 + 2
= 4 é atemporal. Mas também há muitos fatos empíricos que são estáticos, como o
de que Frege usava barba (situação), o de que ele foi casado (circunstância), o
de que o livro está sobre a mesa (estado de coisas), o de que a Terra orbita o
sol (estado de coisas). Mesmo o fato de a Terra orbitar o sol, embora
apresentando mudanças internas repetidas, é estático no sentido de que a propriedade
da terra de girar em torno do sol permanece sempre a mesma.
Já os fatos dinâmicos são aqueles
que se deixam analisar em termos de configurações de elementos que se alteram
durante o período de sua existência seguindo certa ordem. Por exemplo: o evento
da queda das Torres Gêmeas. A diferença entre o evento e o processo é que o
processo é comparativamente mais duradouro. Assim, a Primeira Guerra Mundial
foi um processo desencadeado pelo evento do assassinato do arquiduque
austríaco. E o aquecimento global é um processo muito mais lento e gradual.
Tudo isso, no entanto, são obviamente fatos: que as Torres Gêmeas desmoronaram,
que a Primeira Guerra se deu, que o arquiduque foi assassinado e que o
aquecimento global está ocorrendo podem ser chamados de fatos empíricos.
A travessia do Rubicão por César, por sua vez, é um caso especial.
Trata-se de uma expressão ambígua e enganadora: ela é geralmente entendida de
forma ilustrativa como se referindo a um fato social estático; o estado de coisas instaurado pela entrada
do exército de Cesar no território italiano, violando a lei que proibia essa
ação e forçando o estado romano a declarar guerra contra ele. Raramente a
travessia do Rubicão será entendida no sentido literal, como um fato dinâmico,
o evento físico da travessia de um riacho irrelevante, constituído pelo
deslocamento de Cesar sobre o Rubicão de t1 a tn.
Devido à natureza própria dos fatos dinâmicos, deles dizemos não só que
se situam, mas também que ocorrem no tempo, enquanto dos fatos
estáticos dizemos apenas que eles se situam no tempo, quando nele se encontram.
Com efeito, apenas os fatos dinâmicos têm a propriedade de ocorrer no tempo,
sendo a palavrinha ‘evento’ a mais apropriada para designar essa propriedade.
Parece, pois, que por não terem percebido que eventos são subespécies de fatos,
percebendo apenas que dos eventos dizemos que ocorrem no tempo, filósofos como
Strawson concluíram apressadamente que só os eventos estão no tempo, opondo-os
aos fatos atemporais. Mas isso não é correto, pois a própria intersubstitutividade
salva-veritate evidencia que eventos
são subclasses de fatos: não é incorreto dizer que o evento, a ocorrência, da
travessia do Rubicão por Cesar foi um
fato e que esse fato se deu em 47 a.C., um fato concreto
dinâmico. Por outro lado, o estado de coisas social estabelecido pela travessia
daquele riacho foi muito mais duradouro, pois foi um fato estático social, uma
situação da qual resultou, como é sabido, o fim da república.
Por sua abrangência maior, o fato continua sendo o candidato ideal ao
papel de fazedor da verdade dentro do contexto da teoria correspondencial da
verdade. Nesse caso o fato dado no mundo poderá ser visto como sendo
constituido de uma configuração estática ou dinâmica de elementos, a qual pode
corresponder ou não à configuração de elementos criteriais (propriedades-s e
pacotes de propriedades-s compresentes) demandada pela regra de verificação,
tal como ela se deixa conceber pelos sujeitos epistêmicos. E não parece
implausível a sugestão de que a correspondência depende da constatação de
alguma espécie de isomorfismo estrutural entre as configurações criteriais
concebidas e demandadas pela regra, de um lado, e as configurações de elementos
(combinações de propriedades-s) constitutivos ou indicadores do fato no mundo,
de outro. Contra essa sugestão e outras aqui expostas poderia ser erguida uma
muralha de argumentos impossíveis de serem considerados nesse curto espaço.
Contudo, faço-o na lembrança de que é do direito da filosofia não possuir
verdades anunciadas.
Sentido da frase: o pensamento
Passemos agora ao sentido da frase.
Aqui Frege acertou em cheio! Ele acertou ao sugerir que o sentido da frase
completa é o pensamento (Gedanke) por ela expresso. Ele chega a
esse resultado pela aplicação do seu princípio da composicionalidade, segundo o
qual o sentido de uma expressão complexa é formado pelos sentidos de suas
expressões componentes apresentadas em certa ordem. Se, por exemplo, na frase
“A estrela da manhã é um planeta” substituirmos a expressão ‘a estrela da
manhã’ por ‘a estrela da tarde’, que é co-referencial, mas de sentido diverso,
a referência da frase não pode mudar, mas muda o sentido, e muda, sem dúvida, o
pensamento por ela veiculado. Como o pensamento é aquilo que se modifica quando
uma expressão componente da frase é substituída por uma expressão co-referencial
com sentido diverso, Frege concluiu de modo muito convincente que o pensamento
é o sentido da frase.
A palavra ‘pensamento’ é ambígua. Ela pode ser usada para designar um processo psicológico de pensar, como na
frase “Estava agorinha mesmo pensando em você!”. Mas ela também parece designar
algo que independe de ocorrências mentais particulares, um conteúdo de pensamento como o expresso pelo proferimento “O
pensamento expresso pela frase 12 x 12 = 144 é verdadeiro”. Frege tinha esse
último sentido em mente. Nesse sentido a palavra ‘pensamento’ é o único
correspondente na linguagem natural a termos técnicos denotadores daquilo que a frase diz, como
‘proposição’, ‘conteúdo proposicional’ ou ‘conteúdo enunciativo’.[30]
Para Frege faz parte do pensamento tudo o que contribui para a
determinação do valor-verdade da frase. Por isso as frases “A estrela da manhã
é Vênus” e “A estrela da tarde é Vênus” podem ser contadas como exprimindo
pensamentos diferentes: os termos singulares que compõem essas duas frases de
identidade referem-se ao mesmo planeta, mas por uma combinação de modos de
apresentação diferentes, por diferentes caminhos determinadores do seu
valor-verdade, ou ainda, por diferentes regras de identificação constitutivas
dos seus procedimentos verificacionais. (Já as sentenças “Alfredo não chegou” e
“Alfredo ainda não chegou”, escreve Frege, expressam o mesmo pensamento, pois o
advérbio ‘ainda’ exprime apenas uma expectativa sobre a chegada de Alfredo, não
contribuindo para o valor-verdade.)[31]
O pensamento como o portador primário
da verdade
Outra tese fregeana bastante
plausível é a de que o portador da
verdade não é a frase, mas o pensamento. Para Frege aquilo que dizemos ser
verdadeiro (ou falso) deve ser sempre verdadeiro (ou falso), de modo que só o
pensamento, sendo imutável, possui a estabilidade requerida. Com efeito, frases
idênticas exprimindo pensamentos diferentes podem possuir diferentes
valores-verdade; esse é o caso de um proferimento indexical como “Sinto dores”,
cujo pensamento se altera com o falante. E frases diferentes exprimindo o mesmo
pensamento, como “It rains” e “Il pleut” proferidas no mesmo contexto, devem possuir
o mesmo valor-verdade. Assim, na relação entre pensamento e valor-verdade há
uma covariância que falta à relação entre frases e valor-verdade, o que nos leva
à conclusão de que o portador primário da verdade, aquele que a detém
propriamente, é o pensamento e não a frase.[32]
Frege também sugeriu que aquilo que chamamos de fato é o pensamento verdadeiro, pois quando o cientista descobre
um pensamento verdadeiro ele diz que descobriu um fato.[33]
Mas essa conclusão não é forçosa, pois o cientista também poderá dizer a mesma
coisa – e com mais propriedade – entendendo por fato aquilo que corresponde ao seu pensamento verdadeiro.
Afinal, é natural pensar que se ele descobre o pensamento verdadeiro é porque a fortiori ele descobriu o fato que lhe
é correspondente. A razão pela qual Frege pensava que o fato é o pensamento
verdadeiro é, aliás, que ele defendia uma concepção da verdade como
redundância. A mais natural e plausível concepção de verdade, porém, é a
correspondencial, sugerindo-nos que fatos são combinações de elementos no mundo,
capazes de ser, de algum modo, isomorficamente representados pelos seus
pensamentos, os quais, quando isso acontece, são chamados de verdadeiros.[34]
No que se segue irei adotar a concepção correspondencial da verdade em minha
revisão dos sentidos fregeanos em termos de regras semântico-cognitivas para
ver até onde isso nos poderá levar.
O pensamento como uma regra de
verificação
Em consonância com a
nossa reconstrução pensamentos também devem poder ser parafraseados em termos
de regras semânticas. Se o sentido dos constituintes da frase são regras, então
o sentido da frase deve ser uma combinação
dessas regras, como sugere a sua dependência da sintaxe da frase. Mas se o
pensamento é uma combinação de regras ou, se quisermos, considerando que uma
combinação de regras é uma regra, uma regra resultante dessa combinação, então
a propriedade do pensamento de ser o portador da verdade ou da falsidade é uma
propriedade dessa regra ou combinação de regras. A combinação de regras que
constitui o pensamento deve ter a propriedade de ter um valor-verdade. Mas o
que torna esse sentido-pensamento-regra verdadeiro ou falso? A resposta é: a
sua efetiva aplicabilidade ao fato, a sua satisfação, o seu preenchimento pelo
fato. O sentido-pensamento-regra expresso pela frase será verdadeiro se esse
pensamento-regra for aplicável ao fato e falso se ele não for a ele aplicável.
Se a frase não possuir um sentido-pensamento-regra que possa ser ao menos
aplicável, então ela não poderá por definição ter sentido.
Chegamos aqui, por outro caminho, ao famoso
princípio da verificação. Esse princípio foi sugerido pela primeira vez por
Wittgenstein aos membros do Círculo de Viena no final de década de 1920.[35]
Segundo tal princípio, o sentido
cognitivo da frase assertiva é a sua regra ou modo ou método ou procedimento de
verificação. Se supusermos que o sentido ou conteúdo cognitivo da frase
seja esse e admitirmos que ele é o pensamento, esse pensamento obviamente nada
mais é do que a própria regra de verificação da frase. É dessa maneira que
devemos entender também palavras como ‘método’ ou ‘procedimento’
verificacional: trata-se de combinações de regras convencionais com função
semântico-cognitiva. Como o sentido-pensamento expreesso pela frase deve ser
uma combinação de regras semântico-cognitivas, o mesmo podemos dizer da regra
de verificação, que no caso da frase predicativa singular nada mais deve ser do
que uma combinação da regra de identificação do objeto (sentido do termo
singular) com a regra de caracterização do predicado (sentido do termo predicativo),
uma conclusão que, em outro contexto, já havia sido chegada por Ernst Tugendhat.
A identificação que pode ser especulativamente proposta entre
sentido-pensamento e regra de verificação da frase é corroborada pela sugestão
fregeana de que o critério para identificarmos aquilo que pertence ao
pensamento é ter alguma função no
estabelecimento de sua verdade. Sendo assim, então o sentido-pensamento fregeano
que a frase exprime é o mesmo que o significado cognitivo identificado pelo
verificacionista com a regra (procedimento, método) que permite o
reconhecimento da verdade da frase, o que costuma redundar para Wittgenstein em
um ramificado de procedimentos verificacionais avaliáveis, baseados em uma
diversidade hierarquizada de configurações criteriais.[36]
Voltemos agora à relação entre pensamento e valor-verdade. Se o
pensamento é o portador da verdade e ele é a regra de verificação, então é a
própria regra de verificação que é o portador da verdade (não em casos
concretos de sua aplicação, obviamente, mas na abstração deles, como regra type). E como o que torna o pensamento
verdadeiro (assumindo a teoria correspondencial) é a sua correspondência com o
fato, o que torna a regra de verificação verdadeira deve ser a correspondência
das configurações criteriais por ela demandadas com aquilo que às satisfaz e ou
as preenche e, em última análise, com o fato (ou os fatos) no mundo. Mas isso é
o mesmo que dizer que a regra de verificação é verdadeira quando essa regra é efetivamente aplicável (que pode ser demonstrada
como aplicável, não sendo aplicável apenas em princípio), ou seja, quando as
configurações criteriais cuja satisfação ela demanda são satisfeitas. Assim, o
pensamento será considerado verdadeiro quando a regra de verificação que o
constitui se demonstrar aplicável; e ele será considerado falso quando a regra
de verificação que o constitui não se demonstrar aplicável. Daí ser possível
também dizer que a efetiva (demonstrada, garantida, contínua) aplicabilidade da
regra de verificação (enquanto o fato existir) é o mesmo que a verdade do
pensamento, e que, por outro lado, a efetiva (demonstrada, garantida, contínua)
inaplicabilidade da regra de verificação (dado à inexistência do fato) é o
mesmo que a falsidade do pensamento.
Note-se que sob esse entendimento o fato não deixa de ser uma combinação
de elementos dados no mundo. Por sua vez, parece razoável pensar que essa
combinação de elementos constitutiva do fato deve satisfazer a regra
verificacional quando ela é correspondente, por isomorfismo estrutural, às
combinações de configurações criteriais demandadas pela regra verificacional
para que ela se demonstre efetivamente aplicável. O que chamamos de juízo, por
sua vez, é o reconhecimento que o sujeito epistêmico faz da efetiva
aplicabilidade da regra verificacional em algum domínio de aplicação, o
reconhecimento de que a verificação de um ou de outro modo foi realizada. Por
isso dizer “É verdade que p”, “Eu
ajuízo que p” ou “Eu afirmo que p” são coisas similares.
Essas admissões conjecturais sugerem uma inesperada proximidade entre os
conceitos de verdade e existência aqui examinados. Pois o conceito de verdade
aplicado ao conteúdo de pensamento se demonstra análogo ao conceito de
existência aplicado ao conteúdo conceitual. Pois assim como a existência é a
efetiva aplicabilidade da regra de caracterização ou identificação de um
conteúdo conceitual em certo domínio, a verdade é a efetiva aplicabilidade da
regra verificacional constitutiva de um conteúdo de pensamento a um fato.
Usando uma terminologia fregeana: assim como a existência é a propriedade de
segunda ordem do conceito de sob ele cair um objeto, a verdade deve ser a
propriedade de segunda ordem do pensamento de sob ele “cair” o fato que lhe
corresponde. A verdade é, pois, o correspondente da existência ao nível da
combinação de sentidos que constitui o pensamento. Ou ainda, expressando-nos de
um modo algo hegeliano: a verdade é a existência do pensamento, enquanto a
existência é a verdade do conceito.
O status ontológico do pensamento
Antes de terminarmos é importante
notar que para Frege os pensamentos (incluindo os sentidos dos quais são
compostos) são entidades platônicas pertencentes a um terceiro reino
ontológico, que não é nem psicológico nem físico. Para ele há primeiro um reino
de entidades físicas, como os objetos concretos, que são objetivas e reais.
Elas são objetivas no sentido de serem intersubjetivamente acessíveis e
independentes da vontade; e são reais no sentido de estarem situadas no espaço
e no tempo. Há um segundo reino, o das entidades psicológicas, dos estados
mentais que ele chama de representações (Vorstellungen).
Essas entidades são subjetivas e reais. Elas são subjetivas por não serem
interpessoalmente acessíveis e geralmente dependerem da vontade. Contudo, nem
por isso elas deixam de ser reais, pois se encontram no espaço e no tempo, a
saber, nas cabeças dos que as têm. Há, por fim, um terceiro reino, dos
pensamentos e dos seus sentidos constitutivos. Esse reino é objetivo e não
real. Ele é objetivo porque os pensamentos são intersubjetivamente acessíveis;
mesmo assim ele não é real, posto que os pensamentos não se encontran nem no
espaço nem no tempo.
Com efeito, para Frege os pensamentos são atemporais (eternos),
imutáveis, para sempre verdadeiros ou falsos, além de não serem criados, mas
descobertos por nós. A razão que ele tem para introduzir esse terceiro reino de
pensamentos é que pensamentos são comunicáveis e, para serem comunicáveis, eles
precisam ser objetivos, ou seja, intersubjetivamente acessíveis. Representações
são, ao contrário, estados psicológicos subjetivos, contingentes, variáveis em
sua dependência dos objetos. Por isso para Frege a única maneira de explicar
como é possível que sejamos capazes de compartilhar de um mesmo pensamento é
distingui-lo rigorosamente das representações psicológicas. Sem isso será
sempre possível objetar que se os pensamentos estiverem no nível das
representações psicológicas, eles poderão sofrer variações de pessoa para pesso.
Eles serão como o que Frege chamava de colorações, como é o caso do variável
sentimento que uma melodia desperta em pessoas diferentes. Além disso, se
fossem representações os pensamentos não possuiriam a estabilidade requerida ao
papel de portadores da verdade.
Apesar disso, muito poucos hoje aceitariam a solução platonista de
Frege. Afinal, ela parece comprometer-nos com uma duplicação dos mundos, sem
falar das demais dificuldades do platonismo. O preço que Frege estava disposto
a pagar para não incorrer no subjetivismo psicologista parece-nos hoje alto
demais.
Acredito que a dificuldade antevista por Frege na sugestão de que o status
ontológico do pensamento como o portador da verdade possa ser de ordem
psicológica eram exageradas e que não é difícil garantir a comunicabilidade, a
objetividade, a invariabilidade e a estabilidade do pensamento psicologicamente
concebido. Para demonstrá-lo quero aplicar uma estratégia muito simples,
inspirada no particularismo ontológico dos filósofos do empirismo inglês,
segundo o qual o universal não existia para além da similaridade exata com uma
idéia mental.[37]
Ora, chamando o pensamento no sentido ambicionado por Frege de algo estável,
espacio-temporalmente ilocalizado, portador da verdade... de pensamento-f, e
chamando o pensamento como mera ocorrência psicológica de pensamento-p, parece
que podemos garantir a comunicabilidade e estabilidade do pensamento-f sem
hipostasiá-lo como uma entidade platônica e mesmo sem recorrer a classes de
pensamentos-p através da seguinte definição:
Um pensamento-f X
(Df.) = um dado pensamento-p X instanciado em alguma mente ou algum
outro pensamento-p Y qualquer precisamente
similar a X, instanciado na mesma
mente ou em alguma outra mente qualquer.
Essa definição reduz o pensamento-f a
pensamentos-p, mas sem que ele perca sua estabilidade, ua função de portador da
verdade e uma ausência de localização espácio-temporal específica.
Exemplificando: o pensamento-f expresso na frase “A torre Eiffel é feita de
metal” pode ser identificado como o pensamento-p que eu tenho em mente ao
escrever essa frase, mas também por, digamos, o pensamento-p que você tem em
mente ao lê-la, ou ainda, pelo pensamento-p que nós possamos vir a ter em outro
momento ou que alguma outra pessoa qualquer tenha. Caracterizado pela disjunção
entre quaisquer pensamentos similares ao instanciado em uma mesma mente ou em
outra mente qualquer, o pensamento passa a ser considerado na abstração de sua
dependência desta ou daquela mente humana específica na qual ele venha a se
instanciar. Com isso evitamos recorrer não só a pensamentos-ocorrências
específicos, mas também à alternativa usual, que seria a de explicar os
pensamentos-f em termos de classes de pensamentos-p iguais entre si, o que
conduz a petição de princípio, dado que classes são candidatos a entidades
abstratas.[38]
Sob a definição proposta o pensamento-f não deixa de ser psicológico.
Ele não é menos psicológico do que qualquer um dos pensamentos-p, posto que ele
não é passível de ser considerado na independência de sua instanciação em ao menos uma mente qualquer que o pense.
Assim, quando dizemos que temos um mesmo pensamento, o que queremos dizer é
apenas que temos conteúdos psicológicos de pensamento instanciáveis que são
aptos a serem considerados iguais entre si. Essa seria uma maneira de trazer os
pensamentos do domínio das entidades platônicas para o domínio do psicológico,
sem comprometimento com a psicologia transitória dos indivíduos particulares.
Me parece claro que um dos mais sérios erros que os filósofos sempre
foram tentados a cometer consiste em ver identidade numérica onde existe apenas
identidade qualitativa ou similaridade estrita. É verdade que podemos falar do
número 3 no singular e podemos perguntar pelo significado da palavra ‘chaussure’ usando o artigo definido, mas
isso é assim apenas por simplicidade de expressão. O que na verdade temos em
mente são ocorrências cognitivas de conceitos iguais do número 3 e ocorrências
cognitivas de significados iguais da palavra ‘chaussure’ e nada mais. Podemos falar do pensamento de que 2 + 2 =
4, mas se não estamos nos referindo a uma ocorrência desse pensamento, estamos
nos referindo a uma ou a outra ocorrência qualquer, sem levar em consideração
ou especificar qual ela seja, sendo essa a razão pela qual falamos no singular
do pensamento de que 2 + 2 = 4, e não dos muitos pensamentos iguais de que 2 +
2 = 4. A recém proposta adoção da definição de pensamento-f (que é facilmente
generalizável para conceitos ou sentidos fregeanos) é o máximo em abstração a
que podemos chegar sem recairmos em alguma das variadas formas de reificação
platonista que infestaram a filosofia em toda sua história.
Aqui se levanta, porém, a seguinte dúvida: mas como é possível que a
definição psicologicamente dependente do pensamento recém-sugerida seja capaz
de garantir a objetividade dos pensamentos-f, o seu acesso intersubjetivo, a
sua comunicabilidade? Como vimos se para Frege pensamentos fossem entendidos
como representações psicológicas, como é o caso dos pensamentos-p, eles seriam
subjetivos, não sendo susceptíveis de serem comparados entre si. Daí a
necessidade que Frege sente de admiti-los como pertencentes a um terceiro
reino, de pensamentos-f entendidos como entidades não-psicológicas, platônicas.
Mas essa conclusão parece precipitada. Não há dúvida que aquilo que Frege chama
de representações, os conteúdos mentais psicológicos, podem ser em boa medida
expressos pela linguagem e através dela subjetivamente identificados e
reidentificados como sendo os mesmos. É verdade que um estado mental que só uma
pessoa é capaz de ter, por exemplo, certa aura epiléptica, não é comunicável, a
não ser indiretamente, por metáforas. Mas a maioria dos estados mentais, como é
o caso de sentimentos, imagens, sensações, são coisas que todos nós somos
capazes de ter e que podemos aprender a identificar em nós mesmos, através de
indução por exclusão, e, em outras pessoas, através de indução por analogia,
baseada em estados físicos intersubjetivos acompanhantes. É verdade que há
argumentos filosóficos importantes contra essa resposta tradicional sobre nosso
aprendizado do autopsíquico e do heteropsíquico, mas esse é um desses pontos
que só filósofos colocam em questão.[39]
Vale aqui o que vale para todos os paradoxos. É justo que eles sejam seriamente
discutidos por razões heurísticas. Mas
não é justo que os fatos bastante certos que por eles são questionados sejam
desacreditados sempre que pretendamos filosofar, assim como não é justo
acreditar que por causa do paradoxo sorites
não existem mais montes nem cabeças calvas. Se todo o campo da filosofia for
coberto de paradoxos e eles forem levados por demais a sério, nenhum trabalho
sistemático em filosofia se torna mais possível.
É importante também salientar que não é necessário um modelo ou padrão
único que sirva como objeto de consideração intersubjetiva. Não há certamente
nenhuma instanciação de pensamento que sirva como um modelo fixo ao qual se precise recorrer. O que
fazemos é simplesmente recorrer alternadamente à variedade de modelos que nos
são dados geralmente com auxílio da memória: a um e depois a outro, que
reconhecemos como sendo idêntico ao primeiro, e ainda a outro e assim por
diante. Mas nenhum deles existe sem estar sendo psicologicamente instanciado. E
a linguagem é o veículo de comunicação que permite a reprodução de um conteúdo
psicológico de pensamento precisamente similar nas mentes dos ouvintes.
É verdade que pode a primeira vista parecer paradoxal que a linguagem
seja capaz de reproduzir em outras mentes e mesmo na própria mente
repetidamente o mesmo modelo subjetivo, o mesmo conteúdo de pensamento, a mesma
instanciação reconhecível de uma combinação convencionalmente fundada de regras
semânticas. Contudo, compare esse caso com o da informação genética, por
exemplo, que se reproduz idêntica em sucessivos indivíduos biológicos. As
próprias mutações são acidentes cuja probabilidade de incidência precisa ser
evolucionariamente calibrada. Só espécies cujos organismos seriam capazes de
sofrer mutação em quantidades adequadas seriam capazes de se preservar. Uma
espécie fixa, sem mutações, é algo provavelmente possível, mas não possuiria a
flexibilidade necessária à sobrevivência de seus membros.
Ora, por que com as convenções, que
devidamente combinadas se instanciariam na constituição de pensamentos-p, e que
são aptas a serem sustentadas em sua similaridade precisa através de mecanismos
de correção, não poderia acontecer o mesmo? Erros eventuais estariam então sujeitos
a mecanismos de correção não só intersubjetiva mas também intrasubjetiva. Não
há razão para pensarmos que as coisas não devem ser assim quando elas podem
dever ser assim.
Finalmente, podemos aplicar à tese da objetividade do pensamento-f a
distinção feita por John Searle entre o que é ontologicamente e o que é epistemicamente
objetivo e subjetivo.[40]
Esse filósofo notou que possuímos uma tendência muito forte em tomar aquilo que
é apenas ontologicamente subjetivo por aquilo que é epistemicamente subjetivo.
Contudo, uma coisa pode ser ontologicamente subjetiva – por exemplo, a alta
qualidade estética da obra de Picasso – sem deixar de ser epistemologicamente objetiva,
uma vez que concordamos quase todos com isso; mas se Picasso foi melhor pintor
do que Goya ou não é algo que não só é ontologicamente subjetivo, mas também
epistemologicamente subjetivo, posto que somos incapazes de alcançar uma
concordância interpessoal sobre disso. Em contrapartida, um fenômeno pode ser
ontologicamente subjetivo sem deixar de ser epistemologicamente objetivo – por
exemplo, a dor em ponta de faca provocada por um acesso de pancreatite aguda –
pois todos (médicos e pacientes) irão concordar sobre a sua natureza e
existência. Algo semelhante pode ser dito acerca dos pensamentos-f. Esses
conteúdos de pensamento são, em sua natureza ontológica, subjetivos (posto que se
não formos platonistas teremos de admitir que esses conteúdos são sempre redutíveis
a eventos psicológicos que se instanciam em alguma mente); mas nem por isso
eles deixam de ser epistemologicamente objetivos. Afinal, nós somos
intersubjetivamente capazes, tanto de admitir a sua existência quanto de
avaliar o seu valor-verdade. Assim, uma frase como “O amor é o amém do
universo” (Novalis), nem expressa um pensamento-f nem possui valor-verdade. Ela
possui apenas coloração, sendo susceptível apenas a uma apreciação estética com
certo grau de subjetividade. Contudo, uma frase como “A torre Eiffel é feita de
metal”, exprime um pensamento-f que todos nós reconhecemos como sendo
verdadeiro. Esse pensamento, como qualquer outro, é ontologicamente subjetivo, afinal
ele ocorre em nossas mentes. Mas nem por isso deixa de ser epistemicamente
objetivo no sentido fregeano, posto que tanto ele quanto o seu valor-verdade
são plenamente avaliáveis e comunicáveis com base em nossas convenções e em
nosso conhecimento dos fatos. Frege não foi aqui uma exceção: como outros de
suas época, ele acreditava que o caráter ontologicamente subjetivo dos
conteúdos de pensamento nos compromissaria inevitavelmente com a admissão de
sua subjetividade epistêmica. Mas esse é um pressuposto desnecessário.
[1]
Sobre a espinhosa questão de como traduzir ‘Bedeutung’, ver Michael Beaney
(ed.): The Frege Reader, p. 36 ss.
[2] Para uma interpretação desse gênero, ver
Ernst Tugendhat: “Die Bedeutung des
Ausdrucks ‘Bedeutung’ bei
Frege”, Philosophische Aufsätze,
p. 231.
[3] Procurando na literatura vejo que esse mesmo ponto
foi percebido por W. Kneale e M. Kneale em The
Development of Logic, p. 495.
[4]
Ver a introdução da distinção em Gottlob Frege, “Funktion und Begriff”, p. 14
(paginação original).
[5] Max Textor: Frege on Sense and Reference, p. 134.
[6] Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, p. 92.
[7]
Penso que a consciência de algo não significa a consciência da regra, pois é a
própria regra que produz em nós a consciência de algo. A consciência de algo é
um resultado com consequências inferenciais amplas. A consciência da regra
semântica, por sua vez, é daquilo que constitui o sentido, não precisando para
tal ser consciente. Por isso é plausível supor que a consciência da estrutura
regulativa exija metacognição em termos de consciência reflexiva. Quando isso
não acontece, a regra permanece sendo cognitiva, mas implícita, tácita.
Considere, por exemplo, nossa regra para a caracterização de um artefato como a
cadeira. De seu uso resulta o nosso reconhecimento dessa peça do mobiliário.
Mas não precisamos para isso reconhecer a regra de caracterização, que nos diz:
“Se o critério de um objeto com encosto feito para uma pessoa sentar for
satisfeito então esse objeto deve ser reconhecido como referência da palavra
conceitual ‘cadeira’”.
[8] Ver exemplo similar nos comentários de
Edmund Runggaldier sobre a interpretação de Dummett em seu livro Zeichen und Bezeichnetes:
sprachphilosophische Untersuchungen zum Problem der Referenz, p. 91 ss.
[9]
Esse entendimento se deve principalmente a Michael Dummett. Mas orientações
semelhantes podem ser encontradas em autores como P. F. Strawson e Ernst
Tugendhat, com origens em Wittgenstein.
[10] O fato de serem pré-reflexivas não significa
que não sejam cognitivas: elas podem ser cognitivas de modo irrefletido, inconsciente,
por exemplo, por nunca terem sido objeto de uma reflexão metacognitiva que as tornasse
conscientes.
[11] G. Frege: “Über Sinn und Bedeutung“, p.
28 (paginação original).
[12] François Recanati, Philosophie du langage (et de l’esprit), p.
34.
[13] D. C. Williams em seu artigo “The
Elements of Being I”, pp. 3-18. Keith
Campbell, The Metaphysics of Abstract
Particulars, pp. 477-488. Para acesso à literatura ver artigo de 2013 de Anna-Sophia
Maurin na Stanford Encyclopedia of
Philosophy (internet).
[14]
Sugiro essa caracterização dos
universais de modo a contornar o usual recurso a classes de tropos iguais entre
si; esse último recurso é problemático já que classes são geralmente entendidas
como universais – o que limitaria o alcance da teoria dos tropos.
[15] Ver as considerações de Paul Simons em “Particulars in
Particular Clothing: Three Trope Theories of Substance”, pp. 553-575.
[16]
Aristóteles: Categorias, sec. 5.
[17] Ernst Tugendhat usou a expressão Verwendungsregel (regra de aplicação)
para nomear a regra de designação do predicado. Ver E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propädeutik, cap.
13.
[18]
Essa dependência que a aplicação da regra predicativa tem de uma prévia
aplicação da regra de identificação do termo singular foi apontada por Ernst
Tugendhat em sua análise das condições de verdade da frase predicativa
singular: “‘Fa’ é exatamente então verdadeira se, na medida em que a regra de
identificação de ‘a’ foi seguida, com
base no resultado do seguimento dessa regra, ‘F’ for aplicável de acordo
com a sua regra de aplicação”. E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propedeutik, p. 235.
[19] Gottlob Frege: Die Grundlagen der Arithmetik, sec. 53.
[20] Bertrand Russell: “The Philosophy
of Logical Atomism”, pp. 232, 250-54. Essa posição sustentada por
Russell e Frege tem sido disputada por muitos filósofos contemporâneos, que
preferem considerar a existência como uma predicação de primeira ordem. As
razões disso me parecem contornáveis. João Branquinho, por exemplo, sugere que
só podemos analisar uma frase como “Há coisas que não existem” se admitirmos
que predicados de existência são de
primeira ordem, enquanto quantificadores
significam apenas uma atribuição de “ser” no sentido meinonguiano. Assim, a
simbolização da frase acima seria ∑x(~Ǝx), onde ∑ quer dizer ‘há’ (ver
“Existência”, in Enciclopédia de Termos
Lógico-Filosóficos, eds. J. Branquinho, D. Murcho e N. G. Gomes, p. 300).
Mas a frase acima também poderia ser analisada ao modo fregeano. Podemos
traduzi-la como “Existem coisas na mente que não existem no mundo externo”.
Nesse caso, sendo M = ‘...na mente’ e R = ‘...na realidade externa’, é possível
simbolizar tal sentença como “(x)(y)(Ǝx(Mx) & ~Ǝy(Ry) & (x = y))”. Tal
discussão, porém, foge aos limites do presente texto.
[21] Ver J. R. Searle: “The Unity of
Proposition”, p. 176.
[22] Ver J. R. Searle: Intentionality, cap. 9.
[23] Ver as avaliações equilibradas de David Braun e Marga Reimer em seus respectivos artigos
para a Stanford Encyclopedia of
Philosophy.
[24] Contudo, se a afirmação de que o quadrado redondo
existe for uma maneira equívoca de dizer que podemos combinar sintaticamente os
adjetivos quadrado e redondo, ou seja, uma maneira de dizer que há uma regra
sintática aplicável na mera combinação dessas palavras, então fará sentido
dizer que ele existe. Mas nesse caso o que estamos tentando dizer será
corretamente expresso pela frase metalingüística: “A expressão ‘o quadrado
redondo’ é dada no domínio do que é gramaticamente construível”. Aqui o apelo
meinongiano ao Sosein se reduz à
afirmação de uma trivialidade sintática.
[25] A. Kenny: Frege: An Introduction to the Founder of Analytic Philosophy, p.
133.
[26] P. F. Strawson: “Truth”. Essa posição foi
mais tarde abandonada por Strawson. Ver “Reply to John Searle”, p. 402.
[27]
J. R. Searle: “Truth: A Reconsideration of Strawson’s Views”.
[28] J. L. Austin: “Unfair to Facts”.
[29]
Ver C. F. Costa: “Fatos empíricos”, p. 122 ss.
[30]
Como nota Tyler Burge em “Sinning against Frege”, “a palavra ‘pensamento’ é o
melhor substituto de ‘proposição’ por sua naturalidade semântica dentro do
escopo apropriado à filosofia linguística”, in T. Burge: Truths, Thoughts, Reason: Essays on Frege, pp. 227-8.
[31] G. Frege: “Der Gedanke”, p. 64 (paginação
original).
[32]
C. F. Costa: “O verdadeiro portador da verdade“, in Cartografias conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea.
[33] “Fatos! Fatos! Fatos!’, exclama o
pesquisador da natureza, quando ele quer proclamar a necessidade de uma
fundamentação segura da ciência. O que é um fato? Um fato é um pensamento que é
verdadeiro.” Gottlob Frege: “Der
Gedanke”, p. 74.
[34]
Embora a teoria pictorial do pensamento da maneira como foi apresentada por
Wittgenstiein no Tractatus seja
indefensável, o seu insight fundamental, de que a representação não é concebível sem alguma espécie de
isomorfismo estrutural possível entre o que representa (o pensamento) e o que é
representado (o fato), parece-me incontornável. Se rejeitarmos qualquer forma
de isomorfismo, então ficaremos para todo o sempre impossibilitados de explicar
a representação. Para uma breve defesa da teoria correspondencial, ver C. F.
Costa: “A verdadeira teoria da verdade”, in Paisagens
conceituais: ensaios filosóficos, cap. 1.
[35]
No próximo capítulo argumentarei no
sentido de demonstrar que o princípio da verificação, tal como o entendemos
aqui, nada tem de implausível.
[36] Ver Ludwig Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-1935,
p. 29.
[37] Mesmo sem aceitar o imagismo de Berkeley, a
idéia básica é exemplarmente expressa na seguinte passagem sua: “...uma idéia,
que se considerada em si mesma é particular, torna-se geral ao ser feita para
representar ou estar no lugar de todas as outras idéias particulares do mesmo
tipo. (...) uma linha particular torna-se geral por ser tornada um signo, de
modo que o nome linha, que
considerado absolutamente é particular, ao ser um signo é tornado geral”.
George Berkeley: Principles of Human
Knowledge, introdução, seção 12. Ver também David Hume: A Treatise of Human Nature, livro I,
parte 1, seção VII.
[38]
Sob essa definição o pensamento, para existir, precisa sofrer sempre alguma
instanciação mental, o que explica porque não faço nessse livro uma distinção
categorial erntre a cognição concreta e o fato semântico dela abstraído.
[39]
Refiro-me aqui principalmente ao famoso argumento da linguagem privada proposto
por Wittgenstein, segundo o qual não é possível construir regras para a
referência de expressões cujos correlatos empíricos são estados mentais, posto
que não há como corrigir tais regras publicamente e regras publicamente
incorrigíveis não se distinguem de impressões de regras (Investigações Filosóficas, parte I, sec. 258).
A dificuldade básica com esse argumento origina-se
da constatação de que regras privadamente instituidas só serão incorrigíveis se
forem logicamente incorrigíveis, pois regras incorrigíveis por razões práticas
são perfeitamente concebíveis (pense, por exemplo, nas regras inventadas por
Robinson Cruzoé em sua ilha). Contudo, é questionável se as regras de uma
linguagem privada (como parece ser a nossa própria linguagem fenomenal) são
logicamente incorrigíveis, pois isso depende da vigência de um princípio da incompartilhabilidade lógica dos estados mentais (na opinião de Frege, por
exemplo, se penetrássemos nas mentes de outras pessoas teríamos nossas próprias
experiências de suas experiências e nunca as suas próprias experiências
enquanto tais, donde não estaríamos realmente verificando seus estados
mentais.). Há razões, contudo, para pensar que tal princípio da
incompartilhabilidade lógica do mental seja falso. Basta para tal admitir que o
estado mental do qual se tem a experiência seja logicamente separável do
sujeito (ou da consciência) que o tem, pois nesse caso será logicamente possível
que dois sujeitos possam compartilhar de um mesmo conteúdo experiencial. É essa
idéia inconcebível? Parece que não! Afinal, é natural imaginar, por exemplo, um
computador A lendo diretamente um programa instalado no computador B, ao invés
de ter de copiá-lo para só então poder lê-lo em si mesmo. Para uma crítica mais
detalhada ao argumento da linguagem privada, complementada por uma demonstração
da razoabilidade de uma versão mais elaborada do tradicional argumento da
analogia para outras mentes, ver C. F. Costa “Linguagem privada e o
heteropsíquico”, em Paisagens
conceituais: ensaios filosóficos.
[40]
John R. Searle: Mind, Language,
and Society, pp. 43-45.
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