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NEODESCRITIVISMO SOBRE O CONCEITO DE
ÁGUA
Este capítulo contém uma refutação do
argumento da Terra Gêmea de Putnam, conhecido por conduzir à conclusão de que o
significado está “fora da cabeça”, além de uma breve refutação da sugestão de
Kripke de que “Água é H2O” exprime uma identidade necessária e a posteriori.
Essas refutações resultam do desenvolvimento de uma análise neodescritivista
mais elaborada do conceito de água. É por ela que começaremos.
O descritivismo como deve ser
Para começar, consideremos a
concepção descritivista ou neo-fregeana tradicional do significado da palavra
‘água’. Ela explica o significado ou conteúdo informativo em termos de um sentido ou modo de apresentação (Art des Gegebenseins) fregeano. Por ser assim, para o descritivista
tradicional o sentido da palavra ‘água’ deve ser expresso linguisticamente na
forma de descrições de propriedades fenomenais como as de transparência, falta
de gosto e de odor etc. Esse sentido ou modo de apresentação, por sua vez, determinaria a referência e a extensão,
tal como Frege sugeriu.[1]
Essa maneira de ver contrasta com a concepção causal-externalista
advogada por Hilary Putnam, segundo a qual o significado relevante da palavra
‘água’ não é aquilo que se instancia internamente em nossas cabeças na forma do
que ele chamou de estereótipos, mas algo externo, determinado pela
microestrutura essencial H2O compartilhada pelos volumes líquidos que formam a
extensão do conceito.
Uma primeira coisa a ser notada contra a maneira de ver tradicionalmente
e quase que perversamente atribuida ao descritivismo é que o descritivista não
tem obrigação alguma de restringir-se a meras descrições de superfície de
propriedades fenomenais perceptíveis, como a de ser um líquido transparente,
inodoro e insípido, no caso da água. Como bem o percebeu Avrum Stroll,
descrições também podem ser de ordem funcional ou dinâmica.[2]
Elas podem denotar processos temporais como, por exemplo, ‘um composto que
reage com oxigênio e ferro produzindo oxidação’. Mas se é assim, então
precisamos notar que também não há razão alguma para excluir a própria
microestrutura essencial de uma substância do alcançe das descrições. Uma
expressão como ‘composto químico com dois átomos de hidrogênio e um átomo de
oxigênio’ não é menos descritiva do que a expressão ‘líquido transparente e
inodoro que serve para beber’. Como percebeu Stroll, que tudo isso faz parte do
conteúdo cognitivo-informativo expresso pela palavra ‘água’ é atestado de forma
inquestionável por modernos dicionários nas mais diversas línguas. Assim, só
para dar um exemplo, o melhor dicionário da língua portuguesa, o Houaiss, nos diz que a água é:
1. Substância (H2O) líquida e incolor, inodora e
insípida, essencial à vida da maior parte dos organismos e excelente solvente
para muitas outras substâncias; óxido de hidrogênio 2. (hidrol.) a parte
líquida que cobre 70% da superficie terrestre sob a forma de lagos, mares e
rios.
Descrições como essa cobrem
propriedades superficiais e profundas, funcionais ou não. Se quisermos defender
um descritivismo consequente devemos admitir o ponto suficientemente óbvio de
que aquilo que as definições de qualquer dicionário moderno tentam fazer é
sumarizar descritivamente o significado da palavra ‘água’. Tais descrições, por
sua vez, são expressões resumidas das convenções constitutivas do conteúdo epistêmico
da palavra.
Evolução do conceito de água e sua regra de caracterização
Se a concepção descritivista que
acabo de introduzir for correta, então deve ter acontecido com o conceito de
água o que aconteceu com muitos outros. O conceito de água – o significado
dessa palavra[3]
– sofreu um crescimento histórico em complexidade, resultante do acréscimo de
convenções constitutivas, sendo interessante investigá-las. Comecemos, pois,
com o homem das cavernas.[4]
Como ele teria entendido o seu termo para designar aquilo que chamamos de
‘água’? Certamente, ao menos isso ele sabia:
Água = líquido transparente, sem gosto e inodoro, que
aplaca a sede e apaga o fogo, cai das núvens sob a forma de chuva e enche os
rios, lagos e mares.
Esse é o único significado da palavra água que se identifica com o
significado que Kripke e Putnam sugeriram que o descritivista defende que ela
tem. Mas é preciso reconhecer que isso aconteceu já há muito tempo... A maioria
de nossos conceitos sofre em sua história alterações semânticas bem conhecidas
dos linguístas e a palavra ‘água’ não é exceção. No curso de vários milhares de
anos, o significado, o conteúdo semântico dos termos correspondentes à palavra
‘água’ em diferentes línguas tem gradativamente sofrido alterações, geralmente
sob a forma de acréscimos. Aos poucos lhe foram sendo adicionadas descrições de
propriedades disposicionais mais complexas. Eis algumas delas, que já se haviam
adicionado às já mencionadas uns três séculos atrás, na Europa:
Água = líquido que é um bom solvente, que não se
mistura com óleos, que é mal condutor de eletricidade quando em estado puro,
mas que a conduz muito bem quando misturado com sais, que reage em contato com
o ferro produzindo ferrugem...
Tais descrições são funcionais ou dinâmicas, dizendo respeito a
disposições que envolvem algum experimento. O núcleo de sentido que inclui as
descrições já conhecidas pelo homem das cavernas, adicionadas ao que o senso
comum informado já nos dizia por volta de 1700, constitui o que eu gostaria de
chamar de o sentido popular da palavra ‘água’.
Mas a evolução desse conceito não parou por aí. Entre 1760 e 1830 deu-se
uma revolução em nosso entendimento do conceito de água.[5]
Em 1768 Lavoisier colocou hidrogênio e oxigênio em uma garrafa e aqueceu a
mistura. O resultado foi uma explosão que liberou gás e água. Através dessa e
de outras experiências ele acabou por concluir que a água é composta de duas
porções de hidrogênio e uma de oxigênio. Em 1781 Cavendish fez na Inglaterra
uma experiência similar usando fagulhas elétricas. Em 1783 Lavoisier conseguiu
realizar o procedimento inverso, decompondo a água em oxigênio e hidrogênio. Em
1811 Avogadro estabeleceu a composição atômica da água como sendo HO1/2, um
resultado que foi corrigido por Berzelius, que finalmente estabeleceu a fórmula
H2O em 1821... Com o passar do tempo, mais e mais detalhes da microestrutura
foram sendo descobertos, como o de que a água é um composto dipolar que tende a
formar estruturas isoméricas quando em estado líquido, o que determina
propriedades macrofísicas, como a da alta tensão superficial.
As adições ao significado da palavra ‘água’ resultantes da investigação
científica de sua microestrutura subjacente fizeram surgir então descrições
microestruturais centradas na idéia de que:
Água =
composto químico constituido de dois átomos de hidrogênio e
um átomo de
oxigênio (além de ser um composto dipolar etc).
Pode ser que essa descrição da microestrutura já constitua tudo o que realmente
importa. Mas suspeito que o quadro mais completo não seja tão simples. Afinal,
parece que faz parte de um conhecimento mais completo de que água é H2O
sabermos que 2H2 + O2 → 2H2O. Além disso, parece que o químico não deixa de
enriquecer o conhecimento do conteúdo informativo envolvido ao aprender que a
ferrugem se forma pelo contato do ferro com a água pela equação geral “2Fe + O2
+ 2H2O → 2Fe(OH)2”, embora essa me pareça ser mais propriamente uma
contribuição para o entendimento da constituição de 2Fe(OH)2 (ferrugem), assim
como a fórmula anterior o foi para o entendimento da constituição de H2O.
Também parece que as descrições de superfície de experiências científicas (como
as de Lavoisieur, Cavendish, Avogadro e muitos outros) fazem parte do que os
químicos precisam saber para entenderem que a água seja composta de H2O. Além
disso, o conhecimento da microestrutura é o que permite entender propriedades
fenomenais da água, como as de ter alta tensão superficial e de ser um solvente
universal. Assim sendo, parece que nosso entendimento da composição química se
complementa através de uma grande variedade de relações inferenciais que
nos permitem derivar o micro do macro representado por eventos de superfície e
vice-versa. Parece que quando nos referimos à água como o composto de estrutura
química H2O, estamos nos referindo de forma abreviada às múltiplas descrições
que apontam para a fórmula química como o elemento inferencial central na
constituição daquilo que os especialistas – os químicos – são capazes de ter em
mente com o termo. Trata-se aqui da água como sinônimo do que os químicos
chamam de ‘hidróxido de hidrogênio’, ‘óxido de hidrogênio’, ‘monóxido de
dihidrogênio’ etc. Chamo a esse núcleo de significação, centrado na descrição
microestrutural do composto, de sentido
científico da palavra conceitual ‘água’,
em contraposição ao seu núcleo de significação popular mencionado
anteriormente.[6]
Aqui surge a questão. Em que medida a introdução dessas relações entre a
estrutura química e outros fenômenos faz realmente parte do sentido da palavra
‘água’? Uma resposta aparece quando fazemos um paralelo entre esse caso e o
caso das propriedades fenomenais macroestruturais da água consideradas no início.
A água é fenomenalmente, em primeiro lugar, um líquido transparente, inodoro e
insípido – o assim chamado ‘líquido aquoso’. Mas a isso já havíamos juntado
descrições de relações inferenciais: ela serve para aplacar a sede, para lavar,
para apagar o fogo... Mais tarde aprendemos que em contato prolongado com o
ferro ela produzia ferrugem. Se admitimos que no sentido popular tudo isso passou
a fazer parte do significado da palavra ‘água’ (como os dicionários insistem em
afirmar), devemos concluir que também deve ser assim quando tratamos do significado
científico da palavra – de água como ‘hidróxido de hidrogênio’ – devendo o
conhecimento das reações químicas e experiências relacionando macro e micro e
vice-versa ter a ver com o conhecimento do inteiro conteúdo informativo
(significado) que pode ser visado através da palavra, tal como ele é conhecido por
usuários privilegiados como é o caso dos especialistas (o que pode ser mais
detalhadamente constatado se consultarmos léxicos e enciclopédias).
A objeção a essa sugestão não se deixa esperar: o número de relações
inferenciais é indeterminadamente amplo. Parece que se admitirmos isso corremos
o risco de recair em uma espécie indesejável de holismo semântico extremado,
segundo o qual qualquer coisa pode significar qualquer outra, ou seja, que nada
significa nada. Contudo, é possível responder que as descrições funcionais
relativas a vínculos inferenciais externos à fórmula química da água ou à sua
descrição fenomenal contribuem para o significado da palavra ‘água’ apenas na
medida em que estão mais próximas dos núcleos descritivos microfísico e
macrofísico respectivamente, e que a contribuição para o significado diminui gradativamente com o afastamento desses
centros, na medida em que elas passam a contribuir mais para o significado dos outros termos relacionados. Eis porque
saber que 2H2 + O2 → 2H2O é mais central para o entendimento do significado da
expressão ‘hidróxido de hidrogênio’ do que para saber o sentido da palavra
‘oxigênio’. Eis porque saber que 2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2 é mais central para
o entendimento do significado de 2Fe(OH)2, ou seja, da expressão ‘hidróxido de
ferro’ (ferrugem) do que para o entendimento da expressão ‘hidróxido de
hidrogênio’. Isso nos dá algum insight
sobre como as descrições que relacionam uma variedade de palavras conceituais
distribuem proporcionalmente as suas contribuições para o conteúdo de
significação dessas palavras sem que para tal os seus significados acabem por
se dissipar na vacuidade de um holismo semântico extremado.
Finalmente, gostaria de sugerir que, dentro de uma concepção
descritivista consequente, o sentido ou significado – o conteúdo informativo –
da palavra ‘água’, se entendido em sua
maior amplitude, que é abarcada quando a palavra é usada em contextos suficientemente genéricos, não-restritivos ou topicamente neutros, seja constituido hoje em dia pelo conjunto dos dois núcleos – o popular e
o científico – de significação da palavra. Assim, no proferimento “O livro A biografia da água fornece uma
exposição abrangente desse conceito”, a palavra ‘água’ aparece em seu contexto
de maior amplitude, querendo dizer tudo o que ela pode querer dizer. É isso a
meu ver o que os dicionários modernos buscam sumarizar e que se encontra sintéticamente
exposto em enciclopédias.
Uma regra geral de caracterização
Em conformidade com o que dissemos, é
possível definir o conceito genérico de água – que contém os elementos de
significação recém-considerados – como sendo constituido por uma regra de
caracterização ou de aplicação. Essa regra nos permite aplicar a palavra ‘água’
a tudo aquilo a que efetivamente somos capazes de aplicar sem que cheguemos a
ter a impressão de que a estamos usando de modo impróprio. Aqui vai uma
sugestão:
RC-água:
Podemos designar um volume líquido x com a palavra ‘água’
see
o núcleo popular de significação para a palavra ‘água’
e/ou o seu núcleo científico estiver(em) sendo suficientemente satisfeito(s)
pelo volume líquido x e mais do que
qualquer outro conceito que com ele(s) conflite.
Note-se que com essa regra conceitual introduzimos uma distinção sutil
entre o conceito e o significado, o sentido ou conteúdo cognitivo. O sentido é
constituído pelas regras-descrições do núcleo semântico científico e popular. O
conceito é algo mais: ele é a regra caracterizadora como um todo, que contém
esses sentidos. Sendo assim o conceito possui um sentido. Dessa maneira espero
poder fazer justiça à semelhança e diferença sutis que sentimos haver entre o
sentido e o conceito.
Por meio de RC-água também seríamos capazes de dar ao conceito de água a
sua mais genérica aplicação, que tanto serve a líquidos que satisfazem apenas
ao núcleo popular quanto a líquidos que satisfazem apenas ao núcleo científico.
Por meio dessa regra podemos distinguir a água de outros volumes líquidos que
satisfazem parte da condição de significação (o núcleo popular ou o núcleo
científico) para o conceito de água, como o de álcool, que muito pouco satisfaz
do núcleo popular e nada do núcleo científico do conceito de água, mas satisfaz
o núcleo popular (fenomenal) e científico (microestrutural) da regra de
caracterização constitutiva do conceito de álcool. O conceito de álcool
visivelmente conflita com o de água na satisfação de alguns critérios
semânticos, pois se a maior parte de um volume líquido for água e uma pequena
parte for álcool, nós diremos que se trata de água com álcool, mas não que a
água é feita de álcool, pelo fato de que os critérios de RC-água são mais
completamente aplicáveis, mas não que é água feita de álcool. O mesmo não
aconteceria se tivéssemos dois conceitos que satisfazem a regra, mas que não
entram em competição. Por exemplo: o conceito de neve e o conceito de água não
conflitam entre si: neve são flocos de cristais de gelo constituídos de hidróxido
de hidrogênio. Assim, parte de sua regra de caracterização é satisfeita pelo
núcleo científico do conceito de água, mesmo que as suas propriedades
fenomenais sejam em sua maioria diversas.
Divisão do trabalho cognitivo
Aqui poderia surgir a velha objeção
externalista de que em geral sabemos muito pouco das descrições constitutivas
do significado da palavra ‘água’. A maioria de nós muito pouco sabe, por
exemplo, de seu núcleo científico, exceto que se trata de H2O (mas o que é
exatamente H2O poucos sabem).
A resposta a essa objeção de ignorância do significado passa pela
observação prévia de que, com efeito, em muitos casos nosso conhecimento do
significado como sentido fregeano – como conteúdo informativo – é realmente muito
limitado. Todos nós conhecemos bastante bem o significado de palavras triviais
como ‘sapato’, ‘mesa’, ‘pedra’. Mas quando usamos termos com conotações
científicas ou técnicas cujos detalhes não precisam ser considerados no
discurso ordinário, nosso conhecimento do conteúdo de significação costuma se
tornar incompleto no sentido de se permanecer
superficial, aspectual, fragmentário. Contudo, na medida em que somos cientes
disso, na medida em que sabemos que não sabemos, não surgem problemas. O conhecimento
do significado que precisamos ter para inserir tais termos corretamente no
discurso é em geral muito pequeno, ao menos em contextos pouco exigentes, que
são os mais comuns. Sempre que fazemos uso de um termo com conhecimento
limitado ou insuficiente de seu significado, nós deferimos um conhecimento muito
mais completo do significado a outros membros da comunidade linguística;
àqueles que por uma ou outra razão poderiam ser chamadas de usuários privilegiados do termo. O resultado é que o sentido completo do
termo é geralmente constituído, senão por aquilo que cada usuário privilegiado
sabe, ao menos pelo conjunto das coisas que os diversos usuários privilegiados
do termo sabem no interior de uma comunidade linguística. (Considere, por
exemplo, a expressão ‘teoria das cordas’: quantos sabem o que isso em todos os
detalhes significa? Tanto quanto estou informado, nem mesmo os teóricos das
cordas). Com essas considerações quero fazer apelo ao que gostaria de chamar de
uma divisão cognitiva do trabalho da
linguagem. Trata-se de uma distribuição do conhecimento do significado entre os
falantes, a qual é entendida sob uma perspectiva internalista – uma idéia que já havia sido esboçada por um
descritivista clássico como John Locke[7]
e que foi redescoberta por Hilary Putnam sob um entendimento externalista.[8]
O mesmo se dá ao que parece com a palavra ‘água’: não obstante o fato de
essa palavra poder ter como conteúdo de significação os conjuntos nucleados das
descrições superficiais e profundas recém-mencionadas, não é preciso que cada
falante tenha em mente ambos os conjuntos, nem que os conheça em grandes
detalhes, para dar sentido à palavra em um proferimento, ou seja, para
inseri-la corretamente no discurso de maneira a fazer-se entender e provocar as
respostas adequadas. Ele pode simplesmente ter em mente apenas aquilo que todos
nós sabemos, como a descrição ‘líquido transparente, inodoro, insípido’ ou a
descrição ‘líquido constituído de H2O’, o que já basta para a comunicação. Em
outros casos a pessoa pode ter apenas uma vaga noção do significado da expressão
conceitual e ainda assim ser capaz de inseri-la corretamente em discursos com
propósitos suficientemente genéricos, confiando na existência de usuários
privilegiados capazes de completar o conteúdo de significação do termo. Com
efeito, é até mesmo possível que a pessoa associe um termo geral a uma
descrição incorreta, conquanto ela seja convergente, ou seja, conquanto ela
inclua a sua referência em uma classe (um genus
proximus) ao qual ela realmente pertence. Assim, se alguém pensa que
‘baleia’ é o nome de um peixe grande do mar, essa descrição é incorreta, mas
ainda assim convergente, pois já classifica a sua referência corretamente como
um animal marinho, permitindo ao falante se referir a baleias no sentido de ser
capaz de inserir corretamente a palavra no discurso usual. O que não é possível
é que a pessoa não saiba realmente nada sobre o sentido do termo, ou que
associe a ele descrições que não são apenas incorretas, mas que são divergentes com relação às que exprimem
o sentido original por nos fazerem classificar incorretamente aquilo a que se
referem, rejeitando as suas notas mais gerais. Esse é o caso da criança que
pensa que o termo de espécie natural ‘baleia’ designa uma montanha na serra das
Cajazeiras – uma descrição errônea e divergente.[9]
Nesse caso a criança não será capaz de inserir corretamente a palavra no
discurso nem de se referir a baleias. Finalmente, um pressuposto indispensável
é que a pessoa conheça os limites do que sabe: ela precisa ter pelo menos um
conhecimento tácito da estrutura geral das regras caracterizadoras de
conceitos, sua função sintática etc.
Contextos de interesse e sentidos de aplicação
O ponto crucial para o qual gostaria
de chamar atenção é que aquilo que as pessoas têm em mente ao usar a palavra
‘água’ pode sofrer oscilações contextuais. Ou seja: o que queremos dizer quando
usamos certas palavras pode variar com o contexto
de interesses envolvido, que defino como sendo o contexto das intenções e circunstâncias pragmáticas envolvidas na interação
comunicativa. Com a variação desse contexto varia o que queremos dizer com certas
palavras, o valor cognitivo que com elas pretendemos veicular, elevando-se o
valor dos aspectos do significado que para algum propósito nos interessam. Quanto
à palavra ‘água’, nós vemos isso acontecer claramente quando o contexto
enfatiza um dos dois núcleos semânticos há pouco mencionados.
Mais circunstanciadamente, podemos dizer que há primeiro contextos de
interesse genéricos, não restritivos ou topicamente neutros, nos quais somos
autorizados a ter em mente apenas a satisfação suficiente de:
(A) uma disjunção entre os dois núcleos de significado
da palavra 'água' – o popular e o científico.
Esse é o caso no qual aplicamos RC-‘água’. Esse é o uso mais genérico concebível
para a palavra ‘água’, aquele cujos critérios são os mais liberais. Nesse
sentido poderíamos dizer que um líquido transparente, insípido, inodoro, que
aplacasse a sede e apagasse o fogo... mas que possuisse estrutura química XYZ, seria
água, e do mesmo modo poderíamos dizer que um líquido com constituição química
H2O, mas que se apresentasse fenomenalmente como um óleo escuro, venenoso e
inflamável, também não deixaria de ser água.
Não obstante, o que importa é notar que há contextos de interesse que
chamo de “Bs”, nos quais é demandado que tenhamos em mente apenas um dos
núcleos ao neles usarmos a palavra.
Considere, para exemplificar, o contexto de uma comunidade de pescadores
onde tudo o que as pessoas almejam é cavar um poço de modo a obter água doce
para beber e lavar. Aqui o contexto de interesse é popular. Nesse caso, o que
importa se reduz a:
(B1) o núcleo popular de significação da palavra.
Aqui as pessoas chamarão de água o
líquido que tiver as propriedades de superfície da água, sem se preocupar se a
sua composição química é a de hidróxido de hidrogênio ou não, conquanto ele
sirva adequadamente às funções por elas esperadas da água, como as de aplacar a
sede e lavar. Se for descoberto que o líquido que os pescadores tiram do poço
tem uma estrutura química diferente de H2O (sob o suposto de que estar
assegurada nenhuma alteração nos efeitos, incluindo nenhum dano à saúde), eles
não encontrarão razão alguma para deixar de usar a palavra ‘água’ na
denominação do líquido por eles usado.
Agora imagine, por contraste, que algumas pessoas estejam fazendo
experimentos em um laboratório de química com o objetivo de decompor amostras
de água através de métodos como o da eletrólise. Nesse caso, o que elas têm em
mente é:
(B2) o núcleo de significação
científico da palavra.
Aqui o contexto de interessesse é o científico. Tudo o que for hidróxido
de hidrogênio será para essas pessoas água, independentemente das propriedades
de superfície que a amostra tiver. Afinal, elas querem usar a palavra ‘água’ no
sentido daquilo cuja estrutura química essencial é H2O. Se um líquido oleoso,
escuro, venenoso e inflamável se evidencia como possuindo – contra todas as
apostas – a estrutura química H2O, eles não hesitarão em chamá-lo de água,
mesmo querendo saber por que mágica ele não demonstra as propriedades
superficiais da água.
A fantasia da Terra Gêmea: respostas
conflitantes
Quero agora fazer uma primeira
aplicação da recém-exposta análise neodescritivista do conceito de água, usando-a
para explicar, sob uma perspectiva inteiramente internalista, o que acontece na
famosa fantasia da Terra Gêmea sugerida por Hilary Putnam.[10]
De acordo com essa fantasia existe uma Terra Gêmea que é idêntica à nossa em
tudo, exceto pelo fato de que nela o líquido transparente e inodoro que aplaca
a sede e apaga o fogo tem uma estrutura química XYZ e não H2O. Nesse caso, se
em 1750, pouco antes da descoberta da microestrutura da água, Oscar apontasse
para um copo D’água e dissesse “Isso é água”, ele estaria se referindo a um
líquido constituido por H2O. Contudo, o seu Doppelgänger
da Terra Gêmea, o Oscar-gêmeo, ao dizer “Isso é água” estaria se referindo a
XYZ e não a H2O. Com base nisso, Putnam faz o seguinte raciocínio. Como Oscar e
Oscar-gêmeo em 1750 tinham em suas cabeças apenas descrições de superfície, as
quais eram exatamente as mesmas, e como eles estavam realmente se referindo a
coisas de naturezas diferentes e com extensões diferentes, o significado da palavra ‘água’ (‘what
they meant with the word’) não poderia estar em suas cabeças, mas fora delas!
O significado possui, portanto, um componente extensional fundamental, que é
externo e determinado pela estrutura química essencial do volume líquido
apontado, o qual possui identidade-L (microestrutural) com os outros volumes
líquidos de aparência similar. É isso, escreve Putnam, o que sempre foi entendido pela palavra. A isso pode ser
acrescentado que a causa real e objetiva dos proferimentos de fato possui uma
natureza essencial diversa na Terra e na Terra-Gêmea: em um caso ela é H2O, no
outro XYZ.
Críticos de Putnam como A. J. Ayer, Eddy Zemach e D. H. Mellor, que
preferiram se manter fiéis a uma posição descritivista ou neo-fregeana
tradicional, sugeriram que a pretensa intuição semântica da fantasia putnamiana
é incorreta.[11]
Oscar e Oscar Gêmeo não estavam apontando para coisas diversas. Eles estavam
apontando para a mesma espécie de coisa
– o mesmo líquido transparente, insípido, inodoro etc. E a prova disso é que o
significado da palavra ‘água’ para eles já se mostra inteiramente expresso nas
descrições de superfície (as descrições que Putnam chamou de estereótipos).
Stroll, que compartilha dessa opinião, imagina uma situação em que desde
1750 tivesse havido comércio entre as pessoas da Terra e as da Terra Gêmea, e
que grandes quantidades de água fossem transportadas da Terra para a Terra
Gêmea e vice-versa, sem que as estruturas moleculares do líquido em questão
chegassem a ser descobertas. Ora, se um dia fossem, afinal, descobertas as
diferenças nas estruturas químicas, as pessoas não iriam concluir que a água da
Terra Gêmea não é água. Elas concluiriam apenas que é uma água de outro tipo!
Se seguirmos a intuição dos descritivistas neo-fregeanos, o problema de
Putnam não chega a se colocar. Oscar e Oscar-gêmeo estavam apontando para a
mesma espécie de referência porque tinham os mesmos sentidos determinadores da
referência em suas cabeças. E a extensão seria também a mesma, cobrindo tanto a
água da Terra como a da Terra Gêmea. Assim, não havendo desacordo algum entre o
significado e os estados psicológicos dos Oscares, os significados podem ser
considerados como estando sempre em suas cabeças.
Não obstante, é importante perceber que ambas as alternativas
explicativas – a de Putnam e a de seus críticos – são intuitivamente fortes, o
que gera um dilema incômodo, tanto para os defensores do externalismo semântico
quanto para os internalistas neo-fregeanos tradicionais. Nenhum dos dois grupos
encontra meios de acomodar as intuições contraditórias.
Como solucionar o conflito
É nesse ponto que entra o meu
argumento. Ele se vale da análise neo-descritivista aprimorada do conceito de
água proposta nesse capítulo, além do velho princípio fregeano de que o sentido
determina a referência. O argumento baseia-se na observação de que na verdade
existe uma dupla interpretação possível para a referência feita pelos Oscares:
a interpretação do ponto de vista deles
e a interpretação do ponto de vista nosso.
A primeira interpretação dá conta da intuição dos neo-fregeanos, enquanto a
segunda dá conta da intuição dos putnamianos. O resultado vantajoso de
semelhante análise é que conseguimos alcançar uma acomodação satisfatória entre
as duas intuições conflitantes.
Consideremos primeiro a interpretação do ponto de vista dos Oscares. Nesse caso, aquilo que queremos
levar em consideração é o significado da palavra ‘água’ tal como ele era
conhecido pelas pessoas em 1750. Nesse caso devemos dar razão aos fregeanos,
pois a descrição que exprimia o significado da palavra ‘água’ era por essa
época apenas a de um líquido transparente, sem gosto e inodoro, que aplacava a
sede e apagava o fogo e que enchia os rios, lagos e mares, sendo um bom
solvente que não se misturava com óleos etc.[12]
Ou seja: descrições fenomenais e disposicionais e nada mais. Nesse caso o
contexto de interesses envolvido era inevitavelmente popular. Nesse caso
interessamo-nos por considerar apenas o núcleo de sentido popular da palavra
‘água’, que é exatamente o mesmo tanto para Oscar quanto para o Oscar Gêmeo,
que mantinham as mesmas descrições, o mesmo significado em suas cabeças. Mas
como nesse caso tanto Oscar quanto Oscar Gêmeo estavam se referindo à mesma
espécie de coisa com uma única e mesma extensão, que envolve todo o líquido aquoso
de ambas as terras, a igualdade do que eles tinham em suas cabeças é
perfeitamente compatível com a idéia fregeana de que o significado determina a
referência e a extensão.
Quanto à possível objeção de que a causa objetiva última dos
proferimentos são as microestruturas H2O num caso e XYZ no outro, isso aqui
pouco importa, pois no contexto de interesses popular vigente em 1750 as
pessoas estavam perfeitamente e inteiramente autorizadas a dizer que aquilo que
realmente causou as diferentes impressões sensíveis foi o conjunto das
manifestações fenomenais constitutivas da superfície da água (líquido
transparente, inodoro, insípido...), as quais eram as mesmas tanto aqui quanto na
Terra Gêmea. Não há uma razão a priori
para se privilegiar o discurso causal em termos moleculares sobre o discurso
causal em termos das características macrofísicas, exceto quando nada se sabe
acerca das primeiras.
Há, todavia, uma segunda maneira descritivista de analisar o que Oscar e
Oscar Gêmeo estavam dizendo, que é a de interpretar a questão da referência
feita pelos Oscares sob nosso próprio
ponto de vista. Essa interpretação corresponde exatamente à intuição
seguida por Putnam, embora ele não a analisasse nesses termos. Ela vem a tona
quando nos interessamos em colocar em pauta o núcleo de significado científico
da palavra ‘água’, que só mais tarde veio a ser descoberto. Nesse caso,
obviamente, diremos que Oscar estava se referindo ao líquido com microestrutura
H2O, enquanto Oscar Gêmeo estava se referindo ao líquido com microestrutura
XYZ. E nesse caso diremos que ambos os líquidos possuiam extensões muito
diferentes, o primeiro se restringindo aos volumes de água da Terra e o segundo
aos volumes de água da Terra Gêmea. Mas há aqui um ponto crucial que tem
passado despercebido. É que no caso em questão estamos sem perceber considerando
o significado da palavra ‘água’ usada por Oscar e Oscar Gêmeo tal como ele é
conhecido por nós mesmos hoje, mas não
como ele era conhecido pelos Oscares em 1750, que não se encontravam em
condições de acessar a idéia de uma fórmula química, nem mesmo se eles fossem
químicos. Ora, mas se é assim, o que nós realmente estamos considerando não deve
ser o que os próprios Oscares tinham em suas cabeças, como pretende Putnam, mas
simplemente o que nós mesmos temos hoje em
nossas cabeças ao nos referirmos às referências dos Oscares! Mas o que nós temos
em nossas cabeças ao pensarmos no proferimento “Isso é um copo d’água” dito por
Oscar é claramente diferente do que nós temos em nossas cabeças ao pensarmos
“Isso é um copo d’água” dito pelo Oscar-Gêmeo. No primeiro caso incluímos o
conceito de H2O no conteúdo do proferimento, enquanto no segundo incluímos o
conceito de XYZ (a assim chamada água-gêmea), o que faz com que o correlacionamento
entre a variação do que é encontrado no mundo real e a variação do que acontece
nas cabeças dos intérpretes da frase seja preservado. Ora, isso permite que os
significados em questão sejam considerados como estando em nossas cabeças e
determinando, a partir delas, ao modo fregeano, as referências e extensões
correspondentes.
O que filósofos como Putnam deixaram
de perceber é que tudo o que fazemos é projetar
os nossos próprios sentidos descritivos da palavra ‘água’ nos proferimentos dos
Oscares, usando-os como instrumentos
indexicais para a nossa própria determinação de suas diferentes referências
e extensões, as quais são, em última instância, fregeanamente determinadas
pelos diferentes sentidos da palavra ‘água’ que temos em nossas próprias cabeças.
O que essa dupla aplicação de nossas intuições de senso comum sugere é o
inverso do famoso coloquialismo de Putnam. Ela é: “Divida-se o bolo como
quiser, o significado permanecerá na cabeça!” Com efeito, minha conclusão é que
a resposta neo-descritivista que sugiro para a questão do significado da
palavra ‘água’ tem maior poder explicativo do que a resposta de Putnam, pois
tanto explica a sua intuição de que os Oscares estavam se referindo a coisas
diferentes, como também explica a intuição dos neofregeanos tradicionais,
segundo os quais os Oscares estavam se referindo à mesma coisa com a mesma
extensão.
O que fiz até agora foi apenas desenvolver uma elucidação natural e a
meu ver bastante convincente de idéias neo-descritivistas e neo-fregeanas, para
então aplicá-las à fantasia da Terra Gêmea, considerando-a do ponto de vista de
quem realmente avalia a referência. Trata-se de uma explicação tão simples e razoável
que a ausência de sua consideração na literatura chega a ser curiosa. Uma vez,
porém, que ela é admitida, tudo se deixa explicar sem maiores comoções. Não é só
o conflito entre intuições que se explica pela escolha de diferentes sujeitos e
modos de avaliação dos proferimentos dos Oscares. Agora não precisamos mais nos
afastar da idéia demasiado plausível de que o significado diz respeito a regras
convencionalmente fundadas[13]
– um afastamento que seria inevitável se o significado fosse alguma coisa
externa, a pairar de algum modo fora das cabeças. Além disso, não precisamos
mais ser forçados a concluir contra-intuitivamente que talvez não saibamos
ainda ou talvez não venhamos nunca a conhecer o significado de muitos de nossos
termos gerais. E nem somos mais forçados a concluir que os Oscares em 1750 não
conheciam realmente o significado da palavra ‘água’ no sentido próprio da
palavra, mesmo que eles fossem estranhamente capazes de entender esse
significado, usá-lo referencialmente e comunicá-lo uns aos outros.[14]
O status epistêmico do enunciado
"Água é H2O"
Outra conseqüência interessante diz
respeito à nossa análise da frase de identidade “Água é H2O”. Segundo a análise
kripkiana essa frase possui um status epistêmico especial: ela exprime uma verdade necessária e a posteriori. É a
posteriori porque foi descoberta pela ciência; é necessária porque ‘água’ e
‘H2O’ são designadores rígidos, aplicáveis à mesma substância em qualquer mundo
possível.[15]
Nossa análise do que queremos dizer com a palavra 'água' demonstra que não é
assim.
Como parece ter ficado claro, o conceito de água pode adquirir ao menos três
sentidos (A), (B1) e (B2). A frase “Água é H2O” entendida como uma frase de
identidade é falsa nos sentidos (A) e (B1), pois no sentido (A) a disjunção dos
núcleos de significado popular e científico do termo ‘água’ não pode ser
identificada com o seu núcleo científico mais restrito (ou com o conceito de H2O),
enquanto no sentido (B1) o núcleo de significado popular do termo ‘água’ é
obviamente diferente do seu núcleo científico (ou H2O). Apenas no caso de o ‘é’
ser entendido mais naturalmente como um ‘é’ de constituição, e não mais de identidade, podemos dizer que no
sentido popular da palavra ‘água’ (B1) a frase “A água é (constituida de) H2O”
é verdadeira, algo já percebido por Stroll. Mas essa é uma verdade contingente a
posteriori, pois o líquido transparente, inodoro e insípido que chamamos de
água poderia ser constituido de outra coisa. Não obstante, a frase “Água é H2O”
pode ser interpretada como uma frase de identidade verdadeira no contexto de
interesse que envolve (B2), onde o ‘é’ pode ser substituído por ‘é o mesmo que’.
Contudo, nesse caso não teremos uma verdade necessária a posteriori. Pois aqui
a palavra ‘água’ é usada no sentido de ‘hidróxido de hidrogênio’ e o que
estamos realmente querendo dizer é:
Hidróxido de hidrogênio é (o mesmo que)
H2O.
Mas como ‘hidróxido de hidrogênio’ é
por definição H2O, o que estamos de fato afirmando é “H2O = H2O”, ou seja, uma
tautologia analítica e não uma identidade descoberta a posteriori. Concluimos,
pois, que em nenhum dos sentidos considerados a frase “Água é H2O” expressa uma
verdade necessária a posteriori.
Apêndice: Tyler Burge e o
externalismo do pensamento
Há uma experiência em pensamento
complementar a de Putnam, que foi imaginada por Tyler Burge com respeito ao
conceito de artrite e que vale a pena ser lembrada. O que Burge pretendeu foi, para
além de Putnam, mostrar que não só o significado deve ser entendido de maneira
extensional, mas que as crenças, ou seja, os próprios conteúdos de pensamento,
estão fora da cabeça. Quero aqui resumir o argumento de Burge e em seguida
mostrar que há uma explicação internalista muito mais plausível para o que
acontece.
Embora Burge exponha o seu argumento imaginando uma situação
contra-factual, podemos torná-lo mais claro imaginando que uma pessoa de nome
Oscar sinta dor na coxa e procure um médico dizendo
Acho que tenho artrite na coxa.
Como artrite é entendida como uma
inflamação dolorosa e deformante das juntas, o médico lhe explica que a sua
crença é falsa, que ele não pode ter artrite na coxa. Imagine agora que Oscar
viaje para uma região do país na qual seja costume usar a palavra ‘artrite’ de
um modo muito mais amplo, para se referir a toda e qualquer inflamação.
Chamemos a comunidade lingüística dessa última região de B e chamemos a
comunidade lingüística da primeira região de A. Suponha que, uma vez tendo
chegado à região da comunidade lingüística B, Oscar procure um médico com a
mesma queixa “Acho que tenho artrite na coxa”. Nesse lugar, como seria de se
esperar, o médico irá confirmar a suspeita, concordando com a verdade de sua
crença.
Com base nesse exemplo, o raciocínio de Burge é o seguinte. Sem dúvida,
os estados psicológicos de Oscar ao dizer que acredita ter artrite na coxa na
primeira e na segunda vez são exatamente os mesmos, assim como o seu
comportamento. Mas as crenças, os pensamentos expressos nos proferimentos,
precisam ser diferentes, posto que o pensamento expresso pelo primeiro proferimento
é falso, enquanto o pensamento expresso pelo segundo proferimento é verdadeiro,
e um mesmo pensamento não pode ser falso e verdadeiro. Podemos até marcar o
significado diverso da palavra ‘artrite’ no segundo proferimento com uma nova
palavra, ‘cotrite’ (thartritis). A
conclusão do argumento é que o conteúdo de pensamento não pode ser algo
meramente psicológico. Esse conteúdo deve pertencer também ao mundo externo, às
relações sociais da comunidade que envolve o falante.
Contra essa conclusão é possível encontrar uma explicação internalista e
descritivista para o que acontece. Para o internalismo a palavra ‘artrite’ deve
exprimir um conjunto de regras-descrições constitutivas de seu significado. Uma
delas, ‘uma inflamação que ocorre na coxa’, faz parte do sentido da palavra
para a comunidade lingüística da região B, mas não para a comunidade
lingüística da região A. Assim, embora o conteúdo de pensamento expresso na
frase “Acho que tenho artrite na coxa”, dito por Oscar nas regiões A e B possa
ser considerado exatamente o mesmo, há uma diferença que foi justamente
lembrada por John Searle em uma crítica que atinge o cerne da questão:
É uma pressuposição de pano-de-fundo por trás do nosso
uso social das palavras de que nós compartilhamos significados comuns com
outras pessoas em nossa comunidade.[16]
Ou seja: quando Oscar diz ao primeiro médico “Creio que tenho artrite na
coxa”, ele está pressupondo que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na
coxa’ pertence à linguagem que ele está usando, ou seja, que os outros falantes
competentes da linguagem a consideram convencionalmente aplicável. O que ele
tem em mente ao proferir a sua frase diante do primeiro médico poderia ser
reapresentado como
(a)
Tenho artrite na coxa e a regra de aplicação
do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da
comunidade lingüística A, a qual pertence o meu interlocutor.
Essa é uma frase falsa porque a segunda sentença da conjunção é falsa.
Vejamos agora como fica a explicitação daquilo que Oscar tem em mente quando
diz ao segundo médico que acha que está com artrite na coxa:
(b)
Tenho artrite na coxa e a regra de aplicação
do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da
comunidade lingüística B, a qual pertence o meu interlocutor.
A frase (b) é verdadeira porque exprime uma conjunção verdadeira. E a
diferenca de sentido entre (a) e (b) é evidente, pois enquanto uma está
indexicalmente associada à comunidade linguística A, a outra está indexicalmente
associada à comunidade linguística B. Pode ser verdade que se nos restringirmos
ao conteúdo expresso, os pensamentos de Oscar ao proferir a mesma frase nas
regiões A e B sejam idênticos. Mas o que eles têm em mente com os proferimentos – o conteúdo completo de seus
pensamentos – é mais do que isso, pois há uma assunção disposicional que
envolve a situação indexical do falante, cujo valor-verdade varia com a
comunidade linguística envolvida, sendo diferente para o mesmo proferimento nas
comunidades linguísticas das regiões A e B. Trata-se de uma assunção discursiva
indispensável de que as regras de verificação constitutivas do pensamento devam
estar em conformidade com as convenções da comunidade linguística na qual ele é
expresso. Essa assunção é transgredida por Oscar quando ele fala com o médico
da comunidade A, mas ela não é transgredida quando ele fala com o médico da
comunidade B. É isso o que explica porque o pensamento de Oscar em A é falso,
enquanto o pensamento de Oscar em B é verdadeiro. O pressuposto de que o
pensamento expresso deve estar em conformidade com as regras da linguagem não
é, porém, externo ao falante! Ele é um elemento psicológico de ordem
disposicional, que completa o conteúdo de pensamento e que pode ser explicitado
por Oscar sempre que isso for requerido.
Burge chamou-nos atenção para uma coisa importante: que a verdade ou a falsidade
do pensamento completo depende da comunidade lingüística que envolve o falante.
Mas diversamente do que ele pensa essa dependência não é externa no sentido de
o pensamento não ser psicológico, encontrando-se como que disperso no meio
social. A dependência social reside exclusivamente em a comunidade lingüística
satisfazer ou não uma condição de verdade interna ao pensamento no sentido
amplo, nomeadamente, a condição de que a regra de aplicação do termo ‘artrite’
usada pelo falante seja uma regra fundamentada nas convenções lingüísticas
compartilhadas pela comunidade lingüística com a qual ele se comunica.
Finalmente, a explicação dada nos permite parafrasear em termos
internalistas a distinção entre conteúdo
estreito (narrow content) e conteúdo
amplo (wide content), ao menos para o caso em questão. Para o
externalista, o conteúdo estreito é aquele que está na mente do falante,
enquanto o conteúdo amplo é aquele que está lá fora, no mundo ou na sociedade.
A análise internalista do exemplo de Burge nos permite sugerir que o conteúdo
estreito de pensamento é a própria ocorrência cognitivo-linguística do
pensamento (expresso pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”), enquanto o
conteúdo amplo do pensamento nada mais é do que aquilo que está sendo presumido
no que é pensado, existindo na mente do falante como uma disposição que uma vez
expressa será aceita ou rejeitada pela comunidade linguística.
[1] O descritivista neo-fregeano provavelmente discordará
de Frege quanto à questão do status ontológico dos conteúdos informativos
constitutivos do significado descritivo de uma expressão. Para Frege os
sentidos e suas conjugações em pensamentos precisam ser entidades abstratas,
platônicas, de modo a ter a sua comunicabilidade, garantida. Contudo, para o
neo-fregeano contemporâneo esse é um preço ontológico alto demais. A reação
mais natural é a de localizar esses conteúdos de informação em nossas cabeças, na forma de instanciações
cognitivas de convenções ou de suas combinações, confiando em que o fundamento
convencional intersubjetivo dessas instanciações tornaria esse conteúdo
informativo instanciado intrinsecamente capaz de ser comunicado.
[2] Ver Avrum Stroll: Sketches and Landscapes: Philosophy by
Examples, cap. 2.
[3]
Desnecessário dizer que me refiro ao significado ou conceito de água e não,
naturalmente, à palavra que o exprime; o primeiro pouco se altera, mesmo sendo
expresso por uma grande variedade de palavras em diferentes línguas e épocas.
[4]
Se acharem esse apelo demasiado fantasioso sugiro pensarem no homem da idade do
bronze ou então em alguma tribo indígena não contactada.
[5]
A história da descoberta da composição química da água é complexa e
controversa, de modo que o que apresentarei aqui será um breve sumário. Ver, por exemplo, Philip Ball: A Biography of Water (California:
University of California Press 2001), cap. 5
[6]
Vale notar que se entendido em um sentido suficientemente amplo, o
descritivismo é capaz de incluir o que é indicado pelo rótulo genérico de inferencialismo semântico. Com efeito,
as descrições que associamos a um termo não deixam de expressar um conteúdo
inferencial específico. Sobre
o inferencialismo, ver Robert Brandom: Articulating
Reasons: An Introduction to Inferentialism, cap. 1.
[7] John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, 2.31.4-5, 2.32.12, 2.29.7,
3.10.22, 3.11.24.
[8] Hilary Putnam: “The Meaning of
‘Meaning’”, in Language and Reality,
Philosophical Papers, vol. 2, pp. 227-229.
[9] Esse exemplo é paralelo ao do nome próprio ‘Einstein’
usado como abreviação da descrição errônea ‘o inventor da bomba atômica’
(Kripke). Contudo, essa descrição errônea é ainda assim convergente, pois
guarda traços comuns com o portador do nome, que era um cientista e um ser
humano. Se o usuário do nome ‘Einstein’ o associasse a uma descrição divergente
como, por exemplo, o nome de um diamante conhecido como “a pedra única”
(ein-Stein), ele seria certamente considerado incapaz de usar a palavra
corretamente.
[10] Hilary Putnam: “The Meaning of
‘Meaning’”, in Language and Reality,
Philosophical Papers, vol. 2.
[11] A. J. Ayer: Philosophy in the Twentieth Century p. 270. Ver também D. H.
Mellor: “Natural Kinds” e Eddy Zemach: “Putnam’s Theory on the Reference of the
Substance Terms”.
[12] Putnam observou que em 1750 e mesmo muito
antes já se assumia a existência de uma substância ou essência pura, comum às
massas d’água, o que acabou sendo descoberto como sendo sua microestrutura
química H2O. Contudo, como essa substância comum não podia ser determinada,
para o que se queria dizer com a palavra ‘água’ tanto fazia que ela fosse H2O
ou XYZ. Além disso, a idéia de uma substância pura subjacente pode ter valido
para os químicos pouco antes das descobertas de Lavoisieur. Mas ela não valia
muito antes disso, quando seria igualmente razoável imaginar que os volumes de
água fossem como os volumes de ar ou urina, que não passam de misturas. Se
quisermos, aliás, podemos fazer regredir a fantasia aos Oscares das cavernas,
ou aos da Idade do Bronze, que certamente não teriam nem porque nem como
postular um substrato único comum ao que chamamos de água.
[13]
Uso a expressão ‘regra convencionalmente fundada’ para designar combinações de
regras que não são elas próprias convencionais, mas que se baseiam em regras
que foram ao menos implicitamente convencionadas.
[14] Como escreveu Putnam “Oscar1 and
Oscar2 understood the term ‘water’
differently in 1750” (Mind, Language and
Reality, p. 224, grifo meu). Ele foi bem mais cuidadoso em seu livro Representation
and Reality, onde tentou responder à objeção de que em 1750 o significado
era, afinal, o mesmo. Seu argumento é o de que embora em 1750 os Oscares não
pudessem ter critérios explícitos de identificação da substância água, eles
sabiam o significado do termo no sentido comum de saberem usá-lo corretamente no discurso (p. 32). Mas isso
não muda coisa alguma. Se fizermos uma experiência hoje com eletrólise usaremos
a palavra ‘água’ ao concluir que as porções de hidrogênio e oxigênio
resultantes são componentes da água. Mas o uso-significado feito pelos Oscares
não poderia ser o mesmo. Assim, é mais coerente dizer que aquilo que os Oscares
em 1750 tinham em mente ao usar a
palavra ‘água’ era o que Putnam chama de significado como estereótipo,
descrições de superfície, enquanto no uso atual dessa palavra nós somos capazes
de ir além, mas apenas porque hoje conhecemos as descrições microestruturais.
Minha conclusão é que se o externalismo for razoavelmente enfraquecido, ou ele
passa a não dizer mais coisa alguma, ou o que ele diz se torna algo completamente
trivial, como é o caso da afirmação de que os significados de nossos termos
referentes a coisas externas são geralmente originados da experiência de suas
referências...
[15] S. Kripke: Meaning and Necessity, pp. 128, 134, 150.
[16] J.R. Searle: Mind: A Brief Introduction, p. 184.
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