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REABILITANDO O VERIFICACIONISMO
O verificacionismo costuma ser visto hoje
como uma relíquia da filosofia da primeira metade do século XX. Afinal, embora
inicialmente defendido pelos filósofos do Círculo de Viena, parece que ele cedo
se mostrou incapaz de resistir ao acúmulo de argumentos contrários, tanto de
dentro quanto de fora do Círculo. Meu objetivo nesse capítulo é mostrar que o
princípio da verificabilidade não está tão morto quanto geralmente se pensa. Ele
encontra formas mais liberais e flexíveis do que as que os positivistas lógicos
tentaram desenvolver, como, por exemplo, a forma proposta por Charles Sanders
Peirce, que nunca foi refutada.[1]
E uma dessas formas mais liberais e flexíveis é a do próprio Wittgenstein – que
afinal foi quem primeiro teve a ideia que os membros do positivismo lógico
tentaram então elaborar de diversas maneiras. Aqui, retornando à metodologia e
assunções do próprio Wittgenstein, meu objetivo é apresentar alguns argumentos
em defesa do que pode ser chamado de verificacionismo
semântico, que consiste na sugestão
de que o conteúdo epistêmico (cognitivo, factual, descritivo, informativo...)
de frases declarativas deva ser constituido por suas regras de verificação.
A origem do verificacionismo
semântico
Um primeiro ponto a ser lembrado é
que, diversamente do que se costuma pensar a idéia de que o significado de um
enunciado é o seu modo de verificação não se deve aos filósofos do positivismo
lógico. O introdutor do princípio foi Wittgenstein, como os próprios membros do
círculo de Viena sempre reconheceram.[2]
Com efeito, se consultarmos a obra desse filósofo, veremos que ele já formulava
o princípio em suas conversações com Waismann em 1929, mantendo-o em seus
escritos na década seguinte. Além disso, não há sequer evidência explícita de
que ele tenha mais tarde abandonado o princípio em troca de uma concepção
puramente performativa do significado como função do uso, como pensam alguns. Afinal,
é perfeitamente admissível que o verificacionismo e a vaga tese posterior de
que o significado é função do uso sejam reconciliáveis. Afinal, Wittgenstein
intercala os conceitos de uso, verificação e significado como se indicassem a
mesma coisa em frases como:
Se você quer conhecer o significado de uma sentença,
pergunte por sua verificação. Eu saliento o ponto de que o significado de um
símbolo é seu lugar no cálculo, o modo como ele é usado.[3]
Nessa leitura o significado é o modo de uso, que são regras de uso, o que
inclui regras semântico-cognitivas, as quais, em se tratando de frases
enunciativas, seriam regras de verificação.
É
sempre bom consultarmos o que disse o verdadeiro autor de uma idéia. Se
compararmos o verificacionismo wittgensteiniano com o verificacionismo do
Círculo de Viena, perceberemos que há contrastes marcantes. Um primeiro deles é
que Wittgenstein não estava nem um pouco preocupado em utilizar esse princípio
como uma arma para o combate à metafísica, como queriam os membros do círculo.
O objetivo maior teria sido o de alcançar uma representação abrangente (übersichtliche Darstellung) pela
elucidação de um princípio central, constituidor da função semântica de nossa
linguagem representacional.
Outra diferença marcante é que Wittgenstein não se preocupou em precisar
seu princípio por meios formais, diversamente da maior parte dos membros do Círculo,
particularmente Ayer e Carnap. Não estou objetando contra isso. O que me
parece, contudo, é que um trabalho nessa direção precisaria ser antes
respaldado por uma consideração suficientemente detida de como nossa linguagem
natural realmente funciona, sendo facilmente concebível que a desconsideração desse
ponto tenha precipitado distorções que acabaram por tornar o princípio
aparentemente inviável.
Uma vez dito isso quero começar examinando algumas considerações de
Wittgenstein sobre o princípio da verificação. Depois irei examinar algumas
famosas objeções ao princípio, no intuito de demonstrar que elas são bem mais
frágeis do que parecem.
Verificacionismo wittgensteiniano
Eis algumas das declarações de
Wittgenstein apresentando o princípio da verificabilidade:
Uma frase (Satz)
que não se deixa verificar de modo algum não tem nenhum sentido (Sinn).[4]
São duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas
condições, então elas têm o mesmo sentido (mesmo que elas nos pareçam
diferentes).
Determino sob que condições uma frase pode ser
verdadeira ou falsa, então determino desse modo o sentido da frase. (Esse é o
fundamento de nossas funções de verdade.)[5]
Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um
procedimento muito bem definido para saber se a frase é verificada.[6]
O método de verificação não é um meio, um veículo, mas
o próprio sentido. Determino sob quais condições uma frase deve ser verdadeira
ou falsa, assim determino o sentido da frase.[7]
O sentido de uma frase é o método de sua verificação.[8]
O que chama atenção em declarações como essas é o seu caráter fortemente
intuitivo. Elas parecem expor lugares comuns acerca de nosso uso linguístico,
corroborando a sugestão wittgensteiniana de que teses filosóficas são triviais
por explicitarem aquilo que todos nós sempre soubemos. Tais enunciados do
princípio seriam, aliás, o que Wittgenstein chama de ‘frases gramaticais’, no
caso enunciados explicitadores de regras que estão no fundamento das práticas
linguísticas constitutivas de nossa linguagem factual. Parece aqui insurgir-se
o pensamento de que se o significado epistêmico de nossas asserções não puder
ser analisado em termos verificacionais, então não resta maneira alguma pela
qual ele possa ser explicado.
Há alguns pontos adicionais a serem notados. Um primeiro é que a regra ou
procedimento ou método (combinação de regras) verificacional deve constituir a
porção do conteúdo da sentença assertiva que tem sido chamada de sentido ou
conteúdo epistêmico ou cognitivo ou descritivo ou informativo ou factual.
Trata-se daquilo que Frege chamou de pensamento
(Gedanke), que seria o portador
primário do valor-verdade.
Um segundo ponto que devo notar é que se o pensamento, o conteúdo epistêmico
expresso pela frase assertiva, é o portador primário da verdade, e se o
pensamento é a regra de verificação da frase, então, obviamente, a regra de
verificação é o portador primário da verdade. Assim, dizer que uma frase
declarativa éd verdadeira é uma maneira indireta de se dizer que o pensamento
que ela veicula é verdadeiro, o que, por sua vez, é dizer que a sua regra de
verificação, que é o pensamento, é verdadeira. Mais além, dizer que a regra de
verificação é verdadeira nada mais é do que dizer que ela é efetivamente
aplicável. Por outro lado, dizer que o pensamento, o conteúdo epistêmico, é
falso, é dizer que a regra de verificação que o constitui não é efetivamente
aplicável. Isso tem ao menos uma consequência interessante, pois quer dizer que
a regra de verificação vem associada tanto à verdade quanto à falsidade do
pensamento que constitui ou da frase que exprime, não sendo necessário recorrer
a uma regra de falsificação, como alguns especularam.
Aquilo a que a regra de verificação se aplica é o fazedor da verdade,
que podemos chamar de fato.[9]
Considere a frase “Frege era barbudo”. Aqui a regra de verificação se aplica a
um fato no mundo, logo a frase é verdadeira. Considere agora o enunciado
“Russell era barbudo”: aqui a regra de verificação não se aplica a nenhum fato
no mundo, logo a frase é falsa. (Por ser assim torna-se claro que não existem propriamente
fatos negativos: a frase “Russell não era barbudo” não se aplica ao fato
negativo de ele não usar barba. Pois “Russell não era barbudo” quer dizer o mesmo que “É falso que Russell
era barbudo”, o que, por sua vez, deve querer dizer o mesmo que “A regra de
verificação para a asserção ‘Russell era barbudo’ não se aplica a nenhum fato
que a satisfaça”, ou seja, que o fato positivo de Russell ser barbudo não
existe.)
Outro ponto, acentuado por Wittgenstein, é que geralmente há uma
variedade de maneiras de se verificar (ou falsificar) um enunciado, cada
maneira constituindo um diferente aspecto do seu significado. Como ele notou:
A consideração do modo como o significado de uma
sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler
que Cambridge ganhou a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”,
obviamente não é o significado, mas é conectado com ele. “Cambridge venceu” não
é a disjunção ‘eu vi a corrida ou eu li o resultado ou...’ É mais complicado.
Mas se excluirmos qualquer um dos meios de verificar o enunciado, nós
alteraremos o seu significado. Seria uma infração de nossa gramática se nós
excluíssemos da verificação algo que sempre acompanhou o significado. E se
excluíssemos todos os meios de verificação, isso destruiria o significado. É
claro que nem toda espécie de verificação é realmente usada para verificar
“Cambridge venceu”, nem qualquer verificação proverá o significado. As
diferentes verificações do vencer a corrida de botes ocupam diferentes lugares
na gramática de “ter vencido a corrida de botes”.[10]
Usando o vocabulário wittgensteiniano podemos dizer que a regra
verificacional se aplica quando temos a cognição, a tomada de consciência de um
fato. Essa cognição pode ser direta, pela satisfação de constelações criteriais
de algum modo constitutivas do fato, ou indireta, pela satisfação de critérios
que nos permitam inferir esse mesmo fato. A regra de verificação de uma
asserção é complexa. Ela é como uma árvore cujas ramificações são sub-regras
capazes de verificar o enunciado sob perspectivas as mais diversas. A passagem
de Wittgenstein nos convida a fazer uma investigação pragmática precisa e
detalhada da estrutura das regras de verificação em diferentes espécies de
enunciados. Esse é um empreendimento importante que não foi pelo que me consta
tentado. No que se segue quero limitar-me, porém, a responder às principais
objeções ao princípio da verificabilidade assim entendido.
A objeção da inverificabilidade do
próprio princípio
A primeira e mais notória objeção ao
princípio da verificabilidade é que ele é auto-aniquilador. O argumento é o
seguinte. O princípio da verificabilidade deve ser tautológico ou sintético.
Tautológico, ou seja, analítico,[11]
ele não pode ser, pois nesse caso ele seria não-informativo. Mas ele nos parece
claramente informativo. Além disso, enunciados analíticos são auto-evidentes e
a sua negação é incoerente, o que não parece ser o caso do princípio da
verificabilidade. Por conseguinte, ele é sintético. Mas se é sintético, então
ele precisa ser destituído de sentido, posto que quando tentamos aplicar o
princípio da verificabilidade a ele mesmo, descobrimos que ele é inverificável.
Como conseqüência, o princípio é destituído de significado pelos seus próprios standards...
Positivistas lógicos tentaram contornar essa objeção respondendo que o
princípio da verificabilidade de fato não possui valor-verdade, pois ele não
passa de uma recomendação metodológica, de uma prescrição, de uma proposta.[12]
A. J. Ayer defendeu essa idéia desafiando os seus ouvintes a apresentarem uma
opção mais convincente... Todavia, um ouvinte teimoso de outra convicção
poderia responder que simplesmente não sente a necessidade de optar por coisa
alguma... Na verdade, a resposta de Ayer não parece apenas ad hoc. Ela vai contra a sugestão wittgensteiniana de que aquilo
que estamos fazendo é tão somente analisar as intuições subjacentes à nossa
linguagem natural em busca de princípios gerais nela embutidos. Por isso, impor
à nossa linguagem uma regra metodológica que lhe seja alheia seria arbitrário e
mesmo confusivo como meio de esclarecer o significado.
Diversamente disso, minha sugestão é manter o insight original de Wittgenstein de que tal princípio nada mais
deve fazer do que exprimir nosso entendimento do que é efetivamente caucionado
pela linguagem cotidiana, de modo a formar uma frase gramatical expressiva de uma condição que de diversos modos precisa
ser satisfeita pela totalidade de nossa linguagem factual. Ora, uma vez que
admitimos que o princípio faz explícitas intuições lingüísticas pré-existentes,
tornamo-nos autorizados a pensar que ele é analítico,
ou seja, que ele consiste na afirmação de uma sinonimidade entre as expressões
‘significado ou conteúdo epistêmico de uma sentença declarativa’ e ‘o modo (ou
os modos) como o o seu valor-verdade é estabelecido’. Assim, tomando p como uma sentença assertiva qualquer e
entendendo a palavra ‘regra’ em um sentido que inclui combinações de regras
(procedimentos, métodos), podemos definir o significado epistêmico de p através da seguinte proposição
analítico-conceitual:
(Df.)
Conteúdo epistêmico de p = a regra de
verificação para p.
Contra tal sugestão se poderia ainda ser objetado que, sendo analítico,
o princípio de verificabilidade deveria ser não-informativo, devendo a sua
negação ser incoerente, o que não é claramente o caso. Em busca de uma resposta
gostaria de começar remontando a uma sugestão que pode ser encontrada em John Locke.
Esse filósofo distinguiu entre conhecimento
sensitivo (sintético ou empírico) e relações de idéias (verdades
analíticas); as últimas, por sua vez, foram distinguidas como provendo
conhecimento intuitivo ou demonstrativo.[13]
As frases “Vermelho não é verde” e “Três é maior que dois” exprimem para ele
relações de idéias intuitivas, pois são auto-evidentes e a sua negação é
claramente contraditória. Mas nem todas as relações de ideias, as frases
analíticas, são intuitivas. A frase “A soma dos três ângulos de um triângulo é
igual a dois ângulos retos” exprime conhecimento demonstrativo, mas nem por
isso deixa de exprimir uma relação de idéias, sendo (pelo que parece) uma frase
analítica. O conhecimento demonstrativo é o que se baseia em demonstrações
cujas premissas são constituidas por conhecimento intuitivo, ou seja, por
verdades analíticas intuitivas. Por isso ele não pode ser realmente
informativo, ainda que aparente sê-lo. A questão é: por que o próprio princípio
da verificabilidade não poderia ser uma relação de ideias demonstrativa
expressa por uma frase analítica?
Contra essa sugestão, a objeção mais imediata é a de que o princípio da
verificabilidade não pode ser demonstrativo no mesmo sentido de um teorema da
geometria ou de uma demonstração em lógica. Afinal, em casos como os teoremas
da geometria, é fácil atualizar os caminhos já pré-determinados que conduzissem
à sua demonstração. Mas não há um caminho similar para se demonstrar o
princípio da verificabilidade.
A resposta surge quando comparamos o princípio da verificabilidade com
enunciados que tal como ele nunca foram demonstrados e que não parecem à
primeira vista demonstráveis, mas que através de análise acabam por se revelar
verdades demonstrativas encobertas.
Isso acontece, por exemplo, com enunciados complexos da linguagem ordinária,
cuja verdade necessária não se revela de imediato, mas que a uma análise acabam
por demonstrar-se tautologias analíticas. Eis um conhecido exemplo:
Uma mesma superfície não pode em toda a sua extensão ser
vermelha e verde (ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto).
Esse enunciado não é analiticamente
intuitivo. Na verdade ele já foi visto e até hoje é visto como um exemplo
standard do que poderia ser um juízo sintético a priori.[14]
Mas se considerarmos que é intuitivamente (analiticamente) verdadeiro que (i)
cores podem ocupar superfícies, que (ii) duas cores diferentes não podem ocupar
a mesma superfície e que (iii) vermelho e verde são cores diferentes, parece
daí resultar o caráter analítico do enunciado de que uma mesma superfície não
pode ser vermelha e verde. Eis como esse argumento pode ser melhor organizado:
1
Duas coisas
diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo.
2
Uma superfície
delimita um lugar.
3
(1,2) Duas coisas
diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.
4
Cores são coisas
que ocupam superfícies.
5
(3,4) Duas cores
diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.
6
Vermelho e verde
são cores diferentes.
7
(5,6) O vermelho
e o verde não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.
Parece-me claro que as premissas 1, 2, 4 e 6 são (se pensadas no
contexto adequado) intuitivamente analíticas. Por conseguinte, a conclusão
também deve ser analítica, mesmo que não pareça.
A sugestão que quero fazer é a de que também o princípio da
verificabilidade seja uma verdade analítica demonstrativa encoberta
não-trivial, podendo ter o seu caráter auto-evidente esclarecido através de uma
elucidação de seus pressupostos. Eis minha maneira de chegar a isso:
- Sentidos
(significados) são regras ou combinações de regras semânticas.
- Conteúdos epistêmicos
são espécies de sentidos.
- (1,2) Conteúdos epistêmicos
são regras ou combinações de regras semânticas.
- Enunciados expressam
conteúdos epistêmicos (sentidos cognitivos, descritivos, factuais...).
- (3,4) Os conteúdos epistêmicos
dos enunciados são regras ou combinações de regras semânticas.
- Regras semântico-cognitivas
são regras criteriais (baseadas em critérios de aplicação).
- (5,6) O conteúdo epistêmico
de um enunciado depende de regras cognitivas que são também criteriais, ou
seja: regras cognitivo-criteriais.
- O conteúdo epistêmico
de um enunciado depende dos modos de determinação de sua verdade.
- Os modos de
determinação da verdade do enunciado são constituidos por meio de regras
cognitivo-criteriais.
- (7,8,9) O conteúdo
cognitivo do enunciado depende de regras criteriais que são modos de
determinação de sua verdade.
- As regras
cognitivo-criteriais determinadoras da verdade do enunciado constituem
aquilo que chamamos de sua regra de verificabiliade.
- (10,11) O conteúdo
ou sentido epistêmico do enunciado é constituido por sua regra de verificabilidade.
Parece-me que as premissas 1, 2, 4, 6, 8, 9, 11 são claramente analíticas,
embora as conclusões 10 e 12 não sejam claramente analíticas. Com efeito, as
primeiras premissas se demonstram claramente analíticas se pensarmos que os
sentidos (fregeanos) devem ser obviamente regras ou combinações de regras, se
considerarmos que as asserções têm obviamente sentidos cognitivos dependentes
de critérios, sendo as suas regras de significação regras cognitivo-criteriais
que não podem ser outras que não as regras determinadoras do valor-verdade daquelas
asserções, as quais decidimos chamar de regras de verificabilidade... Como as
conclusões 10 e 12 decorrem de premissas analíticas elas também precisam ser
analíticas. Como a conclusão 12 enuncia o principio da verificabilidade, este é
um princípio analítico-conceitual quod
erat demonstrandum.
A objeção do holismo verificacional
Uma objeção sofisticada é a
proveniente da generalização da tese de Duheim feita por W. V-O. Quine. Segundo
Quine, “nossos enunciados sobre o mundo externo não fazem frente à experiência
sensível individualmente, mas em um corpo corporativo”.[15]
A implicação anti-verificacionista disso é clara: como o que é verificado é
todo um sistema de enunciados, e nunca um enunciado isoladamente considerado,
não faz sentido pensar que o enunciado tem uma regra de verificação distintiva,
intrínseca, que possa ser identificada com o significado que a ele atribuimos.
Em meu juízo, se tomada de maneira suficientemente abstrata, a idéia de
que nenhum enunciado se verifica independentemente de outros enunciados do sistema é perfeitamente correta (ficando em
aberto quais e quantos); ela constitui o que poderíamos chamar de um holismo formal ou estrutural. Mas
a conclusão insinuada por Quine de que a admissão deste holismo formal destrói
o verificacionismo nada tem de segura, pois ela demanda que a admissão de um
holismo formal implique em um holismo
verificacional, ou seja, relativo aos
procedimentos verificacionais concretos e às regras de verificação neles
envolvidas. Mas é precisamente isso o que nunca acontece.
Vejamos a questão mais de perto. A tese do holismo verificacional é inspirada
no fato bem conhecido dos filósofos da ciência, de que enunciados
observacionais sempre dependem da verdade de assunções ou hipóteses auxiliares para poderem ser verdadeiros.
Isso é correto in abstracto; afinal, há
uma maior ou menor interdependência entre nossos enunciados, que não podem adquirir
valor-verdade em isolamento, o mesmo valendo para os enunciados observacionais.
Contudo, se desse holismo formal ou abstrato se segue um holismo verificacional
é outra questão. Em meu juízo, a tese de Quine é equívoca porque embora um
sistema de enunciados no final das contas deva se confrontar como um todo com a
realidade, os seus enunciados não se confrontam nem conjuntivamente nem
simultaneamente com a realidade.
Um exemplo bem conhecido pode esclarecer o que quero dizer. Sabemos hoje
que Galileu descobriu a verdade do enunciado: (1) “Júpiter tem luas” pela
observação telescópica. Seus contemporâneos, porém, desconfiavam dos resultados
da observação telescópica. O aparelho poderia estar enfeitiçado etc. Mas
filósofos da ciência hoje tem consciência de que eles não estavam de todo
destituídos de razão. Pois uma assunção auxiliar para a aceitação da verdade do
enunciado “Júpiter tem luas” é que o telescópio seja um instrumento confiável.
Ao aperfeiçoar o telescópio Galileu certamente conhecia a lei da ampliação do
telescópio, segundo a qual o poder de ampliação desse aparelho resulta do seu
comprimento focal dividido pela distância focal da ocular. Mas para que essa
assunção auxiliar fosse garantida, faltava ainda no tempo em que Galileu
construiu o seu telescópio, a comprovação de outras assunções auxiliares, como
as que constituem as leis da óptica.[16]
Considere, por exemplo, a fundamental lei da refração, segundo a qual sen i /
sen r = n2/n1. Essa lei só foi estabelecida em 1626 por Snell, enquanto as
observações telescópicas de Galileu foram feitas em 1610. Ignorando as muitas
outras hipóteses auxiliares também assumidas, a verificação feita por Galileu
de que o planeta Júpiter tem luas pode ser apresentada como resultado do
seguinte argumento indutivo:
- Observação
telescópica de quatro astros orbitando Júpiter.
- (Lei da ampliação do
telescópio)
- ((sen i / sen r =
n2/n1)) .
- Conclusão: O planeta
Júpiter tem luas.
Embora a premissa 3 tenha faltado para Galileu, ela reforça
secundariamente o argumento. A falta da premissa 2 enfraqueceria ainda mais o
argumento. Da consideração da inclusão dessas e de outras premissas constitutivas
de hipóteses auxiliares comprovadas, o defensor do holismo verificacional
conclui que o enunciado 4 não possui uma regra de verificação independente,
constitutiva de seu conteúdo epistêmico.
Mas há problemas com esse raciocínio! Primeiro, precisamos notar que
esses enunciados não são conjuntivamente verificados: a inferência da conclusão
4 com base em 1 em boa medida pressupõe
uma anterior verificação da premissa 2, que por sua vez em alguma medida pressupõe a verificação da premissa 3 (o
que indiquei através dos parênteses). Depois, esses enunciados não foram
verificados simultaneamente: Galileu verificou o enunciado 4 como conseqüência
direta da verificação do enunciado perceptual 1, que se realizou pela
observação diária que ele fez das variações das posições dos quatro astros
alinhados ao redor de Júpiter... Contudo, isso não se deu simultaneamente à
verificação dos enunciados 2 e 3. Ele foi posterior à verificação do enunciado
2 e se fosse feito por nós seria também posterior à verificação do enunciado 3,
enunciados dos quais também depende a força indutiva da conclusão. Contudo, por
serem pressupostas e anteriores, torna-se claro que as verificações de 2 e 3
podem ser separadas da verificação de 4 por 1. O procedimento verificacional do
enunciado 4 se restringe ao requerimento da verdade do enunciado 1.
Generalizando: se chamamos o enunciado a ser verificado de P, o
enunciado observacional de O, e as hipóteses auxiliares de A, a estrutura de raciocíno própria do procedimento
verificacional não é
O
A1 + A2... + An
Logo P
Mas sim:
O
(assumindo a prévia verificação de A1 +
A2... + An)
Logo P
Essa pressuposição de uma verificação prévia (maior ou menor) das hipóteses auxiliares pressupostas é o
que faz toda a diferença, pois nos permite separar a regra de verificação de P,
que associa P diretamente à observação associada a O, das regras de verificação
das hipóteses auxiliares, que são assumidas como já tendo sido aplicadas.
Além disso, podemos claramente distinguir aquilo que verifica cada
hipótese auxiliar. Por exemplo: a lei da ampliação do telescópio pode ser
verificada através de simples medições empíricas; e a lei da refração de Snell foi
estabelecida com base em medições empíricas da relação entre variações do
ângulo de incidência da luz e a densidade dos meios. Assim, embora seja verdade
que em um nível formal e abstrato a verificação de um enunciado dependa da
verificação de outros enunciados, ao nível dos procedimentos cognitivos
concretos, a verificação dos enunciados auxiliares já vem pressuposta, o que
nos permite isolar o procedimento ou regra verificacional inerente ao próprio
enunciado em questão e identificá-lo com aquilo que fundamentalmente estamos
querendo dizer com ele. Ou seja: como os diferentes enunciados auxiliares devem
ser verificados em separado e anteriormente ao procedimento que verifica o
enunciado, somos capazes de distinguir e individuar o que conta no procedimento
em questão, a sua regra de verificação, o que torna o holismo formal inofensivo
quando considerado como crítica ao verificacionismo semântico. Por confundir a
estrutura formal envolvida com o procedimento verificacional concreto, instanciador
da regra verificacional naquilo que lhe torna semanticamente relevante, o
argumento de Quine produz a impressão equívoca de que a verificação enquanto
tal deva ser um procedimento holístico e que por isso o significado do
enunciado não possa ser identificado com uma regra de verificação.
Finalmente, como cada enunciado tem um sentido que lhe é próprio,
torna-se outra vez perfeitamente razoável identificar o sentido do enunciado
com o seu modo de verificação, posto que ambos
são individuados pelo próprio enunciado e não pelo sistema de enunciados. A
conclusão inescapável é que o holismo verificacional não se sustenta, pois a
simples admissão do holismo formal, isto é, do fato dos enunciados estarem
sempre em alguma medida inferencialmente enovelados uns nos outros, não é
suficiente para nos fazer concluir que as suas regras verificacionais não
possam ser distinguidas umas das outras de modo a serem identificadas com os
significados representacionais de seus respectivos enunciados.
O exame do que acontece concretamente quando um enunciado é verificado
nos mostra que mesmo assumindo um holismo formal, as regras ou procedimentos de
verificação são distinguiveis umas das outras na mesma medida dos significados
dos enunciados correspondentes – uma conclusão que apenas sugere a esperada
correlação entre o significado como conteúdo cognitivo do enunciado e o seu
modo de verificação.
O problema da assimetria
existencial-universal
Outra objeção é a de que o princípio
da verificabilidade só se aplica conclusivamente a frases existenciais, mas não
a frases universais. Para verificarmos uma frase existencial como “Algumas
peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, basta identificarmos uma peça
de cobre que se expande ao ser aquecida; mas para verificarmos conclusivamente
uma frase universal como “Todas as peças de cobre se expandem ao serem
aquecidas”, precisaríamos vasculhar o universo inteiro, inclusive em seu futuro
e em seu passado, o que é impossível. É verdade que a universalidade absoluta é
uma ficção e que, quando falamos em frases universais, estamos sempre tendo em vista
certo âmbito de aplicação. Mas ainda assim o problema permanece. Pois como o
próprio caso da expansão do cobre exemplifica, o âmbito de aplicação costuma
ser muito mais amplo do que tudo o que podemos efetivamente experienciar,
impossibilitando uma verificação conclusiva. Assim sendo e também pelo fato de
que as leis científicas costumam ter a forma de enunciados universais, ocorreu
a alguns se perguntar se não seria melhor admitirmos que o sentido cognitivo
das frases universais é constituido por regras de falsificação ao invés de
regras de verificação; seria essa a resposta correta?[17]
Penso que não. O problema é que, como já foi observado no início, não
parece existir uma regra de falsificação do enunciado, assim como certamente
não existe uma força desassertiva do pensamento, nem algo como uma regra de
desidentificação do nome ou uma regra de desaplicação do predicado. Podemos,
por exemplo, falsificar o enunciado “Todos os corvos são pretos” com a
verificação do enunciado “Esse corvo é albino”. A regra de verificação desse
último enunciado é tal que, se aplicada, falsifica o enunciado “Todos os corvos
são pretos”. Mas se o significado do enunciado universal fosse uma regra capaz
de falsificá-lo, e a regra de verificação do enunciado “Esse corvo é albino” é,
quando aplicada, aquilo que falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”,
então parece que devemos admitir que o enunciado “Todos os corvos são pretos” é
sinônimo de “Esse corvo é albino” (ou que o último seja ao menos parte do
sentido do primeiro, uma vez que sua verificação o falsifica). Mas isso seria
absurdo: a regra de verificação para corvos albinos não tem nada a ver com o
significado da afirmação de que todos os corvos são pretos.
Parece, pois, que devemos admitir que o significado do enunciado
universal seja realmente a sua regra de verificação. Mas nesse caso parece
inevitável o retorno do problema da inconclusividade da verificação desses
enunciados. Não é necessário, porém, que seja assim. Minha sugestão é a de que
a objeção da inconclusividade é falha, emergindo do fato de que há um sério
engano em nosso reconhecimento usual da forma lógica dos enunciados universais.
Basta um breve exame para mostrar que eles são simultaneamente probabilistas e
conclusivos. Considere outra vez a frase:
O cobre se expande ao ser aquecido.
A sua forma não é:
Afirmo que é absolutamente
certo que todas as peças de cobre se
expandem ao serem aquecidas,
onde o ‘absolutamente certo’
significa ‘sem possibilidade de erro’. Essa forma seria apropriada para
verdades formais como
Afirmo que é absolutamente certo que 2 + 3 = 5,
pois aqui não pode haver erro (exceto erro
procedimental, o que deixamos fora de consideração). Mas essa forma não é
apropriada a verdades empíricas sobre as quais não vige a certeza lógica resultante
das próprias convenções conceituais adotadas. A forma lógica da frase em
questão é outra. Ela é a da certeza prática expressa por
Afirmo que é praticamente
certo que toda peça de cobre se
expande ao ser aquecida,
onde ‘praticamente certo’ significa
‘com uma probabilidade suficientemente elevada para que a possibilidade de erro
possa ser negligenciada’. Se aceitarmos essa paráfrase, uma frase como “O cobre
se expande ao ser aquecido” se torna conclusivamente verificável, pois podemos
claramente encontrar evidências indutivas protegidas por razões teóricas que
tornem de modo conclusivo praticamente certo que todas as peças de cobre se
expandem ao serem aquecidas. Em suma: a forma lógica de um enunciado universal
não é “├ todo S é P” (usando o símbolo fregeano de asserção), mas:
├ é praticamente certo que todo S é P,
e enunciados dessa forma são
conclusivamente verificáveis. Essa é mais uma razão para concluirmos que não há
nada de errado em identificarmos o significado da frase universal com a sua
regra de verificação.
A objeção da indireticidade
Outra objeção comum é a de que a
regra de verificação de frases com conteúdo empírico exige tomarmos como ponto
de partida observações diretas e intersubjetivamente possíveis
dos fatos. Contudo, muitos enunciados não dependem da observação direta para
serem verdadeiros, como é o caso de “A massa do elétron é de 9,109 . 10 Kgs
elevados à trigésima primeira potência negativa”. Isso nos força a admitir que
muitas regras de verificação são indiretas.
Como escreveu W. G. Lycan[18],
se não admitirmos isso seremos conduzidos a um instrumentalismo grotesco, no
qual aquilo que é real será reduzido ao que é intersubjetivamente observado,
não existindo mais coisas como eléctrons e suas massas... Mas se, por outro
lado, admitirmos que há verificações indiretas, como decidir quais são as
observações diretas e quais as indiretas? Não se trata de uma dessas distinções
desesperadamente confusas?
Outra vez, os problemas só emergem se embarcarmos na estreita canoa
formalista do positivismo lógico e sairmos por aí atropelando a linguagem com
exigências inadequadas. Nossas frases assertivas são proferidas em práticas
lingüísticas, em jogos de linguagem. Por conseguinte, o critério para se distinguir
a observação direta da observação indireta deve
ser sempre relativo à prática lingüística que estamos tomando como modelo.
Podemos ser confundidos pelo fato de que (i) nas práticas linguísticas observacionais cotidianas a verificação
direta costuma ser considerada aquela resultante da observação virtualmente
interpessoal de objetos sólidos, opacos e de tamanho médio, suficientemente
próximos, sob iluminação adequada, por observadores em condições normais e com
os sentidos desarmados... É assim que a presença da tela de meu computador, da
mesa e da prateleira adiante são por mim verificadas. Por ser a forma mais
usual de observação, essas práticas tendem a ser vistas como um modelo
fundamental para a observação direta, a ser contrastado com, digamos, a
observação indireta através de sintomas perceptualmente acessíveis, através de
instrumentos óticos, através de espelhos etc. Mas seria um erro infeliz usar
esse contraste para avaliar o que acontece em outras práticas linguísticas.
Para contrastar quero considerar inicialmente (ii) a prática linguística do bacteriologista. Nessa prática o que
está em causa é a descrição de bactérias vistas ao microscópio. Nela ver
bactérias ao microscópio é o modelo da observação e verificação direta. Mas o
bacteriologista pode dizer que verificou indiretamente a presença de um vírus
devido a alterações que ele constatou nas células bacterianas que ele viu ao
microscópio, usando como modelo de observação direta a observação microscópica.
Ninguém dirá que as verificações do bacteriologista são todas indiretas, a não
ser que tenha em mente o modelo de observação das práticas observacionais
cotidianas, o que não seria nada usual. Mas até isso é possível dizer, contanto
que esteja claro o modelo de comparação que estamos usando.
Consideremos agora (iii) a prática
linguística do paleontólogo. Nela a descoberta de restos fósseis será uma
maneira direta de se verificar a existência desses seres em um passado remoto,
posto que a observação ao vivo é descartada. Por comparação e contraste com
esse modelo, o paleontólogo pode falar de verificações indiretas. Assim, se ele
sugere terem vivido hominídeos em certo local apenas por ter encontrados lesões
provocadas por instrumentos em ossadas fósseis de animais, essa constatação
poderá ser considerada resultante de uma verificação indireta na prática
paleontológica, em contraste com o encontro de restos fossilizados de
hominídeos. Claro que na prática
linguística do paleontólogo – tanto quanto na prática linguística do bacteriologista
– qualquer das verificações poderá ser dita indireta se comparada com as
verificações que cotidianamente fazemos de objetos opacos de tamanho médio
próximos a nós (modelo da prática (i)). Contudo, essa ambiguidade não costuma
ser problemática, a menos que o contexto deixe dúvidas sobre o modelo de
comparação que está sendo usado.
Se a prática lingüística for (iv) a de descrever sentimentos, a verificação de uma frase pelo próprio
falante será dita direta, ainda que subjetiva, enquanto que a determinação da
verdade por outros, com base no comportamento, será geralmente tida (por
não-behavioristas) como indireta. Não há aqui uma maneira fácil de comparar com
a prática de observação de objetos físicos de tamanho médio para considerar
qual delas é a mais direta, visto que elas pertencem a domínios verificacionais
muito distintos.
A conclusão é a de que quando consideramos o que realmente fazemos com
as palavras vemos que não há nenhuma dificuldade real em se distinguir entre
verificações diretas e indiretas, conquanto tenhamos clareza sobre a prática
lingüística no interior da qual essa verificação está sendo considerada, ou
seja, sobre o modelo de comparação escolhido. Basta que os falantes
compartilhem entre si os pressupostos da prática lingüística em relação a qual
o proferimento é avaliado e estejam cientes do modelo de comparação nela empregado
para se tornarem capazes de alcançar acordo sobre se a verificação/observação é
direta ou indireta.
Contra-exemplos empíricos
Outra espécie de objeção diz respeito
a enunciados que possuem sentido, mas que não parecem possuir regra de
verificação. Em meu juízo, esse tipo de objeção demanda consideração caso a
caso.
Considere, para começar, o enunciado “João era corajoso”, em uma
circunstância na qual João morreu sem ter tido nenhuma oportunidade de
demonstrar coragem, digamos, pouco após o nascimento. Se adicionarmos ao
exemplo o pressuposto de que o único meio de verificar se João era corajoso
seria pela observação de seu comportamento, esse enunciado se torna logicamente
inverificável. Sendo assim, segundo o princípio da verificação esse enunciado
não tem significado. Contudo, ele parece ser perfeitamente significativo!
A resposta é que o enunciado “João era corajoso” nas circunstâncias consideradas
apenas aparenta ter significado. Ele
pertence ao conjunto dos enunciados que aparentam ter sentido cognitivo, mas
não tem. No caso, trata-se de uma frase que possui um sentido gramatical, dado
pela combinação do nome próprio não vazio com um predicado. Mas não temos (por
suposto) critério para aplicarmos ou não o predicado. Assim, o enunciado não
tem função na linguagem e nada é capaz de dizer. Ele faz parte do conjunto de
enunciados tais como “O universo duplicou de tamanho essa noite” e “O mundo
inteiro surgiu cinco minutos atrás”. Esses enunciados apenas aparentam ter
algum sentido factual, pois possuem sentido gramatical e são capazes de sugerir
imagens e produzir ilações em nossas mentes. Mas a rigor nada dizem.
Wittgenstein considerou um caso paralelo em Sobre a Certeza. Considere a constatação “Você está diante de mim
agora” feita ao acaso, em circunstâncias normais, por uma pessoa que se
encontra diante de outra. Ele sugeriu que tal frase apenas aparenta ter
sentido, dado que somos capazes de imaginar situações nas quais ela teria algum
uso, alguma função na linguagem, por exemplo, uma situação em que estivesse tão
escuro que fosse difícil ao interlocutor identificar o falante.[19]
O mesmo se dá com a frase “João era corajoso”. Somos facilmente capazes de
imaginar situações contrafactuais na quais ele teria ou não teria demonstrado
coragem, preenchendo a frase de significado. Nas circunstâncias supostas,
porém, o enunciado não possui sentido.
O que dizer de enunciados sobre o passado ou sobre o futuro? Aqui também
é necessário um exame caso a caso. Digamos que alguém afirme: “O Homem de Java
viveu há cerca de 1,8 milhões de anos”. Esse enunciado sobre o passado foi
plenamente verificado pelo crânio encontrado e por um seguro procedimento de
datação. A verificação observacional direta de acontecimentos passados é
fisicamente e praticamente impossível, mas ela não é parte da regra de
verificação cuja aplicação nos garante a verdade do enunciado em questão. Podemos
imaginá-la, mas ela não pertence ao que queremos dizer com a frase.
Muito diferente é o caso de frases sobre o passado como “Sobre essa
pedra pousou uma águia há exatamente dez mil anos” ou “Napoleão espirrou mais
de 30 vezes enquanto esteve na Rússia”, ditas em situações nas quais não há
nenhum meio prático de se verificar. Nesses casos a verificabilidade é, como se
diz, apenas lógica; tal verificação não é praticamente realizável e pelo quanto
sabemos não é sequer fisicamente realizável (não podemos voltar ao passado).
Mas é difícil admitir que enunciados empíricos cuja verificabilidade é apenas
lógica sejam verificáveis no sentido próprio do termo, no sentido de possuirem
um significado epistêmico ou factual. Pode ser que a distinção entre
verificabilidade lógica e empírica seja uma distinção entre níveis
de verificabilidade que se pressupõem, correspondendo a níveis de significação.
Mas se a verificabilidade de um enunciado pretensamente empírico for apenas
lógica, ele será carente de conteúdo cognitivo. Não saberemos o que fazer com
ele. Ele não será capaz de cumprir com a função própria de um enunciado
empírico, que é a de representar um estado de coisas real ou possível.
Algo semelhante pode ser dito de enunciados sobre o futuro, com a
diferença de que a verificação direta é agora fisicamente possível. O
proferimento “Daqui a 7 dias irá chover” é indiretamente verificável pela
metereologia (que verifica conclusivamente o enunciado “Daqui a sete dias
(provavelmente) irá chover”), mas será diretamente verificável em uma semana. O
enunciado “Daqui a cerca de onze bilhões de anos (provavelmente) o sol irá se
expandir e engolirá Mercúrio” pode ser ao menos indiretamente verificado com
base no que sabemos do destino de estrelas como o sol. Já para uma frase como
“O primeiro bebê a nascer em Montes Claros em 2040 será do sexo feminino” temos
uma regra de verificação que só poderá ser aplicada no futuro e de forma
direta, o que nem por isso a invalida enquanto tal. Esses enunciados não são
apenas logicamente, mas também fisicamente e até mesmo praticamente
verificáveis; o primeiro indiretamente e o segundo diretamente, mas em um tempo
futuro. Vemos que não há uma fórmula geral e única para o procedimento
verificacional. Parece que a espécie de regra de verificação exigida varia com
o enunciado em sua inserção na prática linguística na qual ele é realizado,
sendo geralmente a confusão entre casos diversos, pertencentes a práticas
diversas aquilo que pode levar-nos a crer que existem enunciados que possuem
sentido ou conteúdo epistêmico, mas que apesar disso são inverificáveis.
Contra-exemplos formais
É possível estender a aplicação da
tese verificacionista aos enunciados formais da lógica, da matemática e da
geometria. Nesse caso a regra verificacional é constituido pelos procedimentos
(combinações de regras) formais que demonstram a sua verdade, acrescentando-lhe
sentido representacional dentro do sistema formal no qual é considerado. A
principal diferença com relação à verificação empírica é que no caso da
verificação formal, dispor da regra de verificação já é o mesmo que aplicá-la,
posto que os critérios a serem satisfeitos são os próprios axiomas já
estabelecidos pelo sistema.
Um muito falado contra-exemplo a essa sugestão é a conjectura de
Goldbach. Essa conjectura costuma ser enunciada como
g = Todo número inteiro par acima de dois resulta da
soma de dois números primos.
A objeção é a de que essa conjectura
possui significado mesmo que nunca se tenha conseguido prová-la, mesmo que o
procedimento verificacional formal para g
não tenha sido ainda encontrado. Logo, o significado de f não pode ser uma regra de verificação!
A resposta a esse argumento é fácil demais e advém da observação de que
a conjectura de Goldbach não passa de mera
conjectura. Ora, o que é uma conjectura?
Não é uma afirmação, um teorema provado, mas o reconhecimento da plausibilidade de uma proposição. Assim,
a verdadeira forma da conjectura de Goldbach é:
É plausível que g.
Mas “É plausível que g”, melhor dizendo, “[Afirmo que] é
plausível que g”, ou ainda (usando o
sinal fregeano da asserção) “├ é plausível que g”, é algo diferente de
Afirmo que g
ou “├ g”,
que é aquilo que poderíamos dizer se quisessemos enunciar o teorema de
Goldbach, ou seja, a conjectura provada. Ora, a regra de verificação do
reconhecimento do enunciado de plausibilidade é bem menos exigente do que a
regra de verificação capaz de demonstrar g.
Se nosso caso fosse o de “Afirmo que g”,
a saber, uma afirmação ou tese ou teorema Goldbach, a regra de verificação
exigida seria realmente o procedimento de prova do teorema. Mas nosso caso é
[Afirmo que] é plausível que g,
no qual a regra de verificação
consiste tão somente em um procedimento verificacional capaz de sugerir que g possa ser provada. Ora, esse procedimento verificacional, essa
regra, de fato existe. Ela consiste simplesmente em considerar exemplos de
números pares aleatoriamente dados, como 2, 4, 8 e verificar se eles podem
resultar na soma de dois números primos, como (respectivamente) 1 + 1, 5 + 3,
17 + 7. E essa regra verificacional não só existe como tem sido aplicada até
hoje, sem exceção, a todos os números inteiros pares considerados. Essa é a
razão que realmente temos para sustentar a conjectura de Goldbach. Se uma
exceção tivesse sido encontrada a conjectura ruiria; ela teria sido provada
falsa, pois “├ ~g” é incompatível com
[Afirmo que] é plausível que g.
Assim, a conjectura é verificável e tem sido verificada. É realmente
plausível que g seja o caso. O que
não é verificável nem foi verificado é a afirmação de g, o teorema. Essa afirmação não faz realmente sentido, não possui
conteúdo epistêmico, posto que ainda não dispomos de um procedimento matemático
que a verifique. O erro consiste na confusão de uma suposição com uma
afirmação, de uma conjectura com um teorema.
Em resumo: que a conjectura de Goldbach, como afirmação de
plausibilidade, tanto pode ser demonstrada verdadeira como também falsa. Ela é
considerada verdadeira porque tem obtido comprovação constante. Ela será falsa se
for encontrado um contra-exemplo: um número par acima de 2 que não resulte da
soma de dois primos. A conjectura será falseada se for encontrado um caso de
inaplicabilidade da regra verificacional que nos mande buscar sempre a soma de
dois números primos de modo a resultar no número par em questão.
Um caso contrastante é o do último teorema de Fermat. Eis como ele
costuma ser formulado:
f = não existem três números positivos x, y
e z que satisfazem a equação “xⁿ + yⁿ
= zⁿ” se n for superior a 2.
Esse teorema já havia sido parcialmente demonstrado até que em 1995
Andrew Wiles conseguiu encontrar uma demonstração completa. Alguém poderia aqui
objetar que mesmo antes de sua demonstração f
já era chamado de ‘o teorema de Fermat’ e que, portanto, fazia sentido como
teorema mesmo sem que tivéssemos uma demonstração...
Mas essa seria uma objeção ingênua. Pois com ela esquecemos que ‘o
teorema de Fermat’ é uma denominação fantasiosa. Chamamos f de teorema equivocamente, apenas devido ao fato de que antes de
sua morte Fermat escreveu que tinha uma prova para ele, mas que não podia
colocá-la no papel, já que a margem de seu caderno era muito estreita para
cabê-la. (Hoje sabemos, aliás, que Fermat não poderia ter escrito isso a sério,
visto que a matemática da época não lhe provia de meios para demonstrar a sua
conjectura.) Seja como for, a verdade é que f
não passava de uma conjectura da forma
[Afirmo que] é plausível que f,
até que Wiles a demonstrou, só depois
disso tornando-se realmente um teorema. Assim, antes de 1995 todo o sentido ou
conteúdo epistêmico que podia ser dado a f
era na verdade “[Afirmo que] é plausível que f”, uma conjectura que era demonstrada pelo fato de que nunca foram
encontrados os números x, y e z capazes de satisfazer a equação. Já o
sentido ou conteúdo epistêmico de f,
melhor dizendo, “Afirmo que f” ou “├ f” (que muito poucos realmente conhecem)
deve incluir a demostração encontrada por Wiles, que nada mais é do que a
aplicação de uma extraordinariamente complexa combinação verificacional de
regras. (Naturalmente, não podemos cair no erro de confundir o significado
gramatical de f com o seu sentido epistêmico.
Qualquer identidade absurda, mesmo “Cesar é um número primo”, tem um sentido
gramatical.)
Penso ter refutado os principais argumentos contra o verificacionismo. Os
críticos do princípio acertavam em alvos errados pensando ter atingido o
princípio da verificabilidade. O que eles atingiram foram as suas próprias
malversações do princípio. Quando seguimos a metodologia de Wittgenstein,
considerando como a linguagem natural é realmente usada de maneira a tornar
seus enunciados significativos, vemos que os modos de verificação são múltiplos
e variados. Mas a ideia fundamental de que o significado epistêmico de um
enunciado consiste em seus procedimentos verificacionais permanece.
[1] Ver o estudo de C. J. Misak, Verificationism: History and Prospects, cap. 3. Para Peirce o
verificacionismo era perfeitamente compatível com a metafísica, que ele via
como uma espécie de saber empírico de maior amplitude. Misak é simpática ao
verificacionimo de Peirce, que por sua ênfase pragmática se assemelha ao de
Wittgenstein.
[2] Como nota Hans-Johann Glock em seu Wittgenstein-Lexikon: “o princípio foi
primeiramente defendido pelo círculo de Viena, mas seus membros o atribuem a
Wittgenstein, que o expôs a Waismann em conversações”, p. 354.
[3]
A. Ambrose (ed.), Wittgenstein’s Lectures
1932-35 (Amherst: Prometheus Books, 2001), p. 29. Ou, como notou Moritz
Schlick, “Enunciar o significado de uma sentença equivale a enunciar as regras
de acordo com as quais a sentença é usada,
e isso é o mesmo que enunciar o modo como ela pode ser verificada.” In Gesammelte Aufsätze – 1926-1936 (Vienna: Gerold & Co., 1938), p. 340.
[4] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 245.
[5] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 244.
[6] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 47.
[7] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis p. 244.
[8] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, pp. 226, 227.
[9] Ver discussão sobre a natureza ontológica dos fatos
no capítulo anterior.
[10]
Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-5,
p. 29.
[11]
Entendo uma proposição analítica no sentido mais usual como sendo aquela cuja
verdade decorre da combinação dos sentidos de suas partes constitutivas. Quine
(em “Two Dogmas of Empiricism”) rejeitou esse conceito de analiticidade por
este se basear no conceito demasiado vago de significado. Contudo, a vaguidade
em si mesma não é um defeito, a menos que seja confundida com imprecisão. Vago
ou não, o conceito de analiticidade cumpre aqui com a sua função de produzir
uma definição perfeitamente inteligível e em enquanto tal irretocável (R. G.
Swinburne: “Analyticity, Necessity and Apriority”, p. 228; ver também H. P.
Grice e P. F. Strawson em “In Defense of a Dogma”).
Também parece falaciosa a rejeição de
Quine à sua própria tentativa de definir analiticidade através de sinonimidade
e necessidade, em razão da excessiva proximidade semântica entre os vários
conceitos envolvidos (significado, sinonimidade, necessidade...), o que produz,
segundo ele, uma quase-circularidade na definição. Afinal, em nossas definições
é natural e mesmo indispensável que os conceitos usados pertençam a um mesmo
campo semântico. Cadeira, por exemplo, se define como ‘banco com encosto feito para
uma só pessoa se sentar’, mas tanto o conceito de cadeira, como o de banco e o
de encosto pertencem ao domínio da carpintaria e nem por isso essa definição é
quase-circular.
[12]
Essa posição foi aceita ou defendida por Rudolf Carnap, Hans Reichembach e A.
J. Ayer (ver C. J. Misak: Verificationism:
Its History and Prospects, pp. 79-80).
[13]
John Locke: An Essay Concerning
Human Understanding, livro IV, cap. II, § 7.
[14]
Ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In
Defense of Pure Reason, p. 100 ss.
[15] W. V-O. Quine: “Two Dogmas of the
Empiricism”, p. 41. Mais tarde Quine restringiu o seu holism, o que não altera a
validade de meu contra-argumento.
[16]
Merrilee Salmon: Introduction to
Logic and Critical Thinking, p. 276.
[17] Ver C. G. Hempel: “Problems and
Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revenue Internationale de Philosophie 11, 1950, 41-63.
[18] W. G. Lycan: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction, pp. 121-122.
[19] Ver Wittgenstein: Über Gewissheit, sec. 10.
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