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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

#FATOS EMPÍRICOS



FATOS EMPÍRICOS



Com a questão “O que são fatos?”, podemos querer saber duas coisas: a) “Qual a estrutura daquilo que chamamos de fatos?”; b) “Que tipo de entidade eles são?” E com essa última questão que tem a ver o problema com o qual nos ocuparemos.
A discussão dessa questão tem girado em torno de duas posições básicas. A primeira é daqueles que crêem que fatos, em um sentido primário, são situações ou estados de coisas empiricamente dados no mundo externo. Chamarei a esse ponto de vista de concepção lexical de fato, dado que é essa a maneira como a palavra vem definida nos dicionários. Tal concepção foi aceita por Russell, pelo Wittgenstein do Tractatus, e, em tempos mais recentes, argumentativamente defendida por Austin.
A segunda posição é a dos que afirmam não poderem pertencer os fatos a uma realidade externa. De acordo com a versão ontologicamente realista de Frege, fatos são pensamentos (conteúdos proposicionais) verdadeiros. Segundo a versão mentalista de N. Rescher, fatos são estados de coisas mentais. E ainda, na versão convencionalista de P. F. Strawson, A. N. Prior e outros, fatos são entidades intra-lingüísticas. Construções lógicas para Prior; correlatos pseudomateriais para Strawson.
Há também posições intermediárias, que buscam conciliar o que parece virtualmente inconciliável. Foi assim que Günter Patzig alegou que os fatos possuem uma enigmática natureza dupla, mantendo um pé no mundo real, sem deixar de equilibrar o outro no mundo dos signos.1 Mas isso soa como um recurso ad hoc de coerência questionável. Também Alan White, em uma explicação suspeita de verbalismo, sugeriu que a noção de fato não se aplica nem a itens no mundo, nem ao que é dito sobre o mundo, mas ao que o mundo é, a como as coisas, necessária ou contingentemente, são.2 Respostas como essas são pouco sedutoras, mas servem para reforçar a suspeita de que o problema contém complexidades que descartam uma solução maniqueísta.
É comum, em filosofia, que uma questão de detalhe, quando problemática, venha a ser resolvida segundo as conveniências da perspectiva sistemática à luz da qual ela é tratada. A concepção lexical de fato, um truísmo jamais posto em questão por não-filósofos, mesmo que brilhantemente defendida em “Unfair to Facts”, o artigo-resposta de Austin a Strawson, tem ultimamente perdido terreno para a concepção concorrente. Sugiro, assim, que na origem deste insucesso esteja menos o equilibrado pesar dos fatos do que, em alguns casos, a intenção de defender uma concepção não-correspondencial da verdade, e, em outros, o receio de que a aceitação da definição lexical signifique o retorno acertas concepções pré-críticas de conhecimento. Assim é que Tugendhat em suas Vorlesungen, e Habermas em seu artigo sobre a verdade, acolhem quase sem discussão a tese da determinação linguística, o primeiro com base em argumentos fregeanòs, o segundo retomando argumentos de Strawson, mas ignorando as respostas de Austin.3 A suposição subjacente ao que aqui escrevo é a de que tais filósofos, embora com as melhores intenções, acumularam mal-entendidos que de tal forma perverteram nossa compreensão do uso cotidiano da palavrinha ‘fato’, que perdemos a capacidade de vê-la como uma entidade linguística responsável, capaz de cumprir com as suas mais elementares obrigações semânticas. Cabe, pois, recuperá-la para a linguagem.
No que se segue, pretendo adicionar algumas considerações a favor da ideia de que existem fatos essencialmente pertencentes ao mundo dito empírico: fatos que chamarei de empíricos. Não obstante, antes de passar a elas, é necessário chamar atenção para algumas importantes restrições no escopo da argumentação. Podemos com a palavra ‘fato’ querer dizer coisas diferentes: ela tem diversos sentidos referenciais4, aplicando-se a diversas classes categoriais. Assim, ‘fato’ é uma palavra normalmente aplicável àquilo que é exposto por enunciados comumente tidos como analíticos, como os da lógica e da matemática; podemos dizer que a lei do terceiro excluído e o teorema de Pitágoras são fatos - fatos formais. Também é freqüente dizermos que um certo fato não ocorreu, como a fato de a grama ter sido aparada, quando isso não se deu - um fato negativo. Também dizemos que um fato ocorreria ou teria ocorrido se certas condições fossem ou tivessem sido preenchidas, como o fato de que a grama teria uma aparência uniforme, se ela tivesse sido aparada – um fato condicional. Podemos perfeitamente dizer que é um fato que todos os cravos têm perfume - um fato universal – e outro que existem rosas brancas - um fato existencial. Em nenhum destes sentidos referenciais da palavra ‘fato’ pretendo defender que ela faça referência a alguma coisa diretamente especificável como existente no mundo real, a fatos empíricos, e considero uma questão em aberto, exceto para os fatos expressos por enunciados analíticos auto-evidentes, saber em que medida concepções como as de Rescher ou de Strawson lhes são adequadas. Meu ponto é o de que, ao menos para o caso dos enunciados afirmativos singulares (predicativos ou relacionais) de tipo observacional, a concepção lexical é correta, sendo a assimilação deste último caso aos casos acima a primeira e maior fonte de confusões. Se esse ponto me for consentido, isso deverá bastar para, ainda que com algumas baixas, conceder-se vitória à concepção lexical, uma vez que, por sua relação com aquilo que verifica, é justamente esse o caso decisivo.
I
É instrutivo começarmos considerando um velho argumento a favor da determinação linguística, a evidenciação de certo grau de sinonímia entre a palavra ‘fato’ e expressões como ‘pensamento verdadeiro’ ou ‘enunciado verdadeiro’ com base na intersubstitutibilidade de suas ocorrências. Podemos tomar como referência os dois exemplos seguintes: a frase “É um fato que o sol é vermelho” pode ser substituída pela frase “É verdade que o sol é vermelho” sem que o valor-de-verdade se altere, o mesmo acontecendo com a frase “O que ele afirma [diz, enuncia, pensa] é um fato", que pode ser substituída por “O que ele afirma [diz, enuncia, pensa] é verdade".
Já foram aplicados certos artifícios para mostrar que semelhante intersubstitutibilidade não evidencia sinonímia, mas, no máximo, uma já esperada relação de implicação. O mais instrutivo, proposto por Austin, é o seguinte. Se a frase (a) “O que ele afirma é verdadeiro”, por exemplo, tivesse o mesmo sentido que a frase (b) “O que ele afirma é um fato”, então a substituição de ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, que pode ser realizada na frase (a) sem alteração em seu sentido, poderia ser realizada na frase (b) com idêntico resultado. Mas tal não se dá. A frase (b’), resultante desta substituição é: “Sua afirmação [seu dizer, enunciar, pensar] é um fato”; – uma frase que, ou não faz sentido, ou, se insistirmos em lhe dar um significado, terá um que nada mais tem a ver com o original, pois referir-se-á ao fato de alguém ter tido um certo pensamento ou ao fato de um proferimento ter-se realizado.5
É curioso ver até que ponto a admissão de um outro truísmo lexical, a definição de verdade como correspondência com o fato, faz aparecerem novas dificuldades. Já se notou que um enunciado como “O que ele afirma é verdadeiro se é um fato” parece dizer mais do que a tautologia trivial “O que ele afirma é verdadeiro se é uma afirmação verdadeira”. Além disso, enquanto a frase “O que ele afirma é verdadeiro se corresponde a um fato” forma um enunciado significativo, “O que ele afirma é um fato se corresponde a um fato” é uma frase de inteligibilidade duvidosa. E a estranheza disso toma-se suficientemente paradoxal se considerarmos que a segunda ocorrência da palavra ‘fato’, ao identificar-se com uma afirmação verdadeira, permite a adição recursiva da afirmação de que este fato corresponde a um outro, que corresponde a um outro, e assim infinitamente. A possibilidade de semelhantes construções pode ser eliminada pela simples recusa da aceitação de uma sinonímia entre pensamento verdadeiro e fato, embora também pela alegação, dificilmente justificável, de que a definição lexical de verdade é mero idiomatismo, por misteriosa coincidência presente em idiomas os mais diversos...
Podemos também, o que é mais interessante, argumentar mostrando que o predicado ‘é verdadeiro’ se aplica a algo mais próximo às nossas formas lingüísticas do que o predicado ‘é um fato’. Suponhamos que o que queremos dizer com a frase asser- tiva (i) “O sol é vermelho”, seja expresso - de modo a acentuar o elemento lingüístico - no interior da frase metalinguística
(ii)  “A sentença [o enunciado] ‘O sol é vermelho’ é verdadeira [verdadeiro]”.
Essa última frase é significativa e preserva toda a força assertórica da primeira. Mas, se nela substituirmos o predicado ‘é verdadeira’ por ‘é um fato’, tendo como resultado a frase metalinguística
(iii)                    , “A sentença [o enunciado] ‘O sol é vermelho’ é um fato”,
nós não só eliminamos a força assertiva própria da frase (i), como fazemos com que o todo perca o sentido ou receba um sentido muito diferente do original. Ora, só a concepção lexical de fato explica isso, pois ela nos permite sugerir que enquanto
na frase (ii), sendo que a verdade é predicada de algo linguisticamente determinado (supostamente o que a frase diz, o enunciado, o pensamento), a acentuação do elemento linguístico não impede que a mesma predicação se mantenha, na frase (iii) tal acentuação exclui a possibilidade de referência do predicado ‘é um fato’ àquilo que não é lingüisticamente dependente ou determinado, i.e., o correlato extralingüístico, o fato de o sol ser vermelho, perdendo-se com isso a força assertiva própria do que diz a frase original.
Que a verdade é predicada de algo mais próximo de nossas formas linguísticas é também evidenciado por uma descrição como ‘a conquista da lua’, da qual podemos predicar factualidade (“A conquista da lua é um fato”), mas não verdade (A conquista da lua é verdadeira”). A razão disso seria que ‘a conquista da lua’ funciona como redução nominalizada da frase “A lua foi conquistada...”: sem a complexidade própria da frase enunciativa, a forma nominalizada deixa de expressar a espécie de articulação da qual se usa predicar a verdade.
Essas considerações nos fazem pensar na razão pela qual na frase:
(a)   “O que ele afirma é verdadeiro”,
 podemos substituir ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, tendo como resultado uma frase (a’) “Sua afirmação é verdadeira”, sem que a proximidade semântica entre ela e a frase
(b)   “O que ele afirma é um fato”,
se altere, enquanto que, se a mesma substituição for efetuada na frase (b), a frase resultante (b’) “Sua afirmação é um fato”, perderá sua proximidade semântica em relação à frase (a).
Não explicável de outro modo, sob o suposto das considerações anteriores a perda da proximidade semântica passa a receber uma explicação natural. Para tal, devemos primeiro notar que ‘o que ele afirma’ é uma expressão nominal ambígua: ela pode referir-se tanto a (i), o conteúdo descritivo que na frase da outra pessoa é asserido como verdadeiro, quanto a (ii), o correlato que torna tal conteúdo verdadeiro, o fato. Como o predicado ‘é verdadeiro’ se aplica a algo linguisticamente determinado, ele se aplica a (i) em (a), i.e., ao que geralmente se aceita como sendo o “portador” da verdade. Já em (b), o predicado ‘é um fato’ deve aplicar-se somente ao correlato factual, à referência (ii) da expressão nominal ambígua ‘O que ele afirma’. Acresce-se a isso que a proximidade semântica entre as frases (a) e (b) deixa-se explicar como sendo devida a uma implicação lógica vigente entre elas, a qual só existe sob a condição de que (b) seja interpretada no sentido que ela deve possuir se o predicado ‘é um fato’ for aplicado à referência (ii) da expressão nominal ‘o que ele afirma’, pois existindo tal correlato factual, fica implicada a predicação de verdade da referência (i) da ocorrência da mesma expressão na frase (a), a qual, se justificada, também implica na verdade de (b).
Consideremos agora a expressão nominal ‘sua afirmação’. Tal expressão refere-se apenas a (i), isto é, a um conteúdo descritivo asserido como verdadeiro, mas não a (ii), seu correlato factual. Ora, quando substituímos em (a) ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, o predicado ‘é verdadeiro’ na frase resultante (a’) continua a aplicar-se normalmente ao portador (i). Já ao substituirmos em (b) ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, como a essa última expressão falta a possibilidade usual de referência a (ii), o predicado ‘é um fato’ na frase resultante não tem mais como aplicar-se ao fato afirmado, como era requerido. Com isso a frase (b’) só pode ser tornada inteligível se o predicado ‘é um fato’ se aplicar à referência (i) da expressão nominal. Mas isso impossibilita que se mantenha a relação implicativa entre o conteúdo da frase (b’) e o das frases anteriores, promovendo a suspensão da esperada proximidade semântica.
Nada disso, é certo, chega a ser demonstrativo. No que se segue considerarei argumentos mais fortemente ligados aos contextos ordinários de aplicação da palavra, procurando fazer com que os fatos, por assim dizer, falem por si mesmos.
II
Que os fatos descritos por proferimentos observacionais são dados no mundo externo toma-se um ponto dificilmente questionável quando consideramos proferimentos em que fatos são tratados como causas de alguma coisa. Considere-se os seguintes:
(i)    O fato de o fósforo ser riscado causou chama.
(ii)  Ele morreu devido ao fato de ter esquecido de desligar o gás.
(iii)                    Pelo fato de ser feriado, hoje não haverá aula.
(iv) O fato de César ter atravessado o Rubicão teve consequências históricas relevantes.
Não parece nem um pouco compreensível como a chama do fósforo, a morte de alguém, a ausência de aula e as consequências históricas da travessia do Rubicão poderiam ser causadas por coisas do gênero de conteúdos proposicionais. Obviamente, a admissão da existência de fatos empíricos soluciona esse tipo de problema. O riscar do fósforo foi um fato-evento causador da chama; o fato situacional real gerado por uma pessoa ter esquecido o gás ligado provocou sua morte; o fato-circunstância de ser feriado fez com que não houvesse aula; com a travessia do Rubicão concretizou-se um estado de coisas determinante de alterações historicamente relevantes etc. Esse é um argumento modesto, mas que nem por isso deve parecer inconclusivo aos homens de boa vontade, razão pela qual me empenharei agora em mostrar onde creio que falham as outras objeções à empiricidade dos fatos de observação.
O argumento mais difundido é talvez o que apela para a conjunção ‘que’, a chamada frase ou “cláusula-que” (that-clause), que com certa frequência precede a enunciação do fato. A maneira mais eficaz de apresentá-lo é, como o fez Günter Patzig6, a que contrasta a palavra ‘fato’ com palavras como ‘ocorrência’ e ‘evento’, as quais não costumam admitir a “cláusula-que”. Segundo esse modo de ver, ‘o evento da travessia do Rubicão por César’ é datável e localizável, pois palavras como ‘ocorrência’ e ‘evento’ servem para designar episódios espaço-temporalmente localizados, mas ‘o fato de que César atravessou o Rubicão’ é atemporal e ilocalizado, donde se pode concluir que a “cláusula-que” serve para assinalar o caráter intralinguístico, e portanto não espaço-temporal do fato.
Há aqui uma variedade de questões a serem aclaradas. Uma questão preliminar é a de se saber se a palavra ‘fato’ ganha um novo sentido - supostamente intralingiiístico - quando vem acompanhada da “cláusula-que”. A resposta é negativa, na medida em que transformações anteriormente exemplificadas também podem ser evidenciadas em frases com a “cláusula-que”. O proferimento “O enunciado de que o sol é vermelho é verdadeiro”, por exemplo, perde a força assertiva original quando substituímos ‘é verdadeiro’ por ‘é um fato’. Com ou sem a “cláusula-que”, parece que o sentido referencial da palavra ‘fato’ permanece essencialmente o mesmo.
Outra questão é a da sustentabilidade da conclusão de que fatos não são espaço-temporais. Vale a pergunta: são os fatos ditos empíricos realmente não espaço-temporais - à diferença de eventos e ocorrências - ou trata-se de mais um mero efeito sugestivo, do efeito quase hipnótico que certos exemplos, argumentos e construções textuais em filosofia costumam exercer sobre nós?
A objeção pode ser em grande medida respondida pela simples apresentação de contra-exemplos: “o colapso dos germânicos”, escreve Austin, “é um evento e é um fato – foi um evento e foi um fato".7 Que a batalha de Waterloo se deu em 1815, diz-se, é um fato, assim como se diz que Leibniz é um metafísico, querendo-se dizer apenas que ele o foi, e que isso ainda importa. É perfeitamente adequado dizer que o fato de o muro de Berlim ter sido derrubado se deu na Alemanha e que tal fato só passou a existir depois da ocorrência de sua derrubada; que eu ontem fui ao barbeiro é um fato que me ocorreu ontem; que meu cabelo foi cortado é visivelmente um fato. Fatos podem ter duração, tanto quanto ocorrências: não há nada de errado em se dizer que a existência de conflitos religiosos na Irlanda do Norte é um fato que persiste ainda hoje.
Uma expressão como ‘o fato de César ter atravessado o Rubicão’ expõe um caso enganador. A frase parece descrever um fato – o da travessia de um rio – o qual tem a ver com um certo evento – o da travessia do mesmo rio – que é precisamente localizável na fronteira italiana e datável para uma certa noite do ano de 49 a. C, o que não parece ser o caso do próprio fato. Mas a expressão ‘a travessia do Rubicão por César’ possui geralmente um sentido metafórico, denotando, não a travessia do rio pelas hostes de César, mas uma situação histórica complexa, real e duradoura, decorrente da decisão de César de voltar-se contra Pompeu, um fato complexo, do qual podemos adquirir conhecimento mais e mais preciso pelo acréscimo de informação histórica. Mesmo que um tal fato não seja tão precisamente datável e localizável como o da travessia, parece perfeitamente correto dizer-se que ele se deu no império romano e no primeiro século antes de Cristo.
A afirmação de que fatos empíricos não são datáveis nem localizáveis não se funda, pois, em nossa efetiva intuição linguística, não podendo ser assimilada a espécies não propriamente empíricas, como o fato de que 2 + 2 é igual a 4, obviamente nem datável nem localizável. E que alguém possa dizer do fato, que ele, uma vez um fato, será sempre um fato, não é, pois, indício da eternidade dos fatos, mas um modo simplesmente retórico de nos reportarmos à inalterabilidade dos acontecimentos passados.
Se a nossa própria linguagem demonstra que, em oposição à superstição filosófica mais corrente, os fatos, quando empíricos, são também localizados no espaço e no tempo, o que resta da tão celebrada distinção categorial entre fatos, de um lado, e, de outro, eventos, ocorrências etc.? Minha sugestão é a de que tal distinção deva ser substituída pela distinção mais adequada que esboço a seguir.
A verdadeira diferença entre fatos e eventos pode, como penso, ser melhor esclarecida se começarmos por distinguir entre os dois seguintes grupos de palavras:
(A)      circunstância, estado de coisas, situação, condição, vicissitude...
(B)      evento, acontecimento, episódio, manifestação, ocorrência, processo, sucessão...
Qual a diferença entre eles? A resposta é que o grupo (A) é constituído de palavras cujos designata são concebidos como não envolvendo mudança, possuindo estruturas formadas de relações entre elementos, as quais são, como eles próprios, estáticas, inalteráveis. Assim são os casos dos estados de coisas de que a minha vassoura está no canto, de que a porta está aberta. Quanto ao grupo (B), ele constitui-se de palavras cujos designata são concebidos como envolvendo mudança, digamos, entidades cuja estrutura é formada de relações que se alteram no período de sua existência. São os casos do evento do raio que ilumina o horizonte, da ocorrência do cair da pedra. O grupo (B) pode ser dividido ainda, segundo a espécie de alteração que se tem em vista, em (B1) e (B2). O grupo (Bl) consiste em palavras como ‘evento’, ‘episódio’, ‘acontecimento’, ‘ocorrência’, que geralmente designam algo mais do ponto de vista de seu surgimento e desaparecimento no tempo, além de enfatizar limitações de duração (por exemplo, a ocorrência de um eclipse); o grupo (B2) consiste de palavras como ‘processo’, ‘ocorrência’, ‘sucessão’, que costumam designar algo mais do ponto de vista de suas modificações internas no tempo (exemplo: o processo de mudança de cor do camaleão, que antes era vermelho e agora é verde).
Podemos agora nos perguntar sobre a relação entre o âmbito de aplicação da palavra ‘fato’ e o das palavras acima. Consideremos, para tal, exemplos daquilo que é comumente designado pelas palavras de ambos os grupos. Quais são também fatos? No caso do grupo (A), é certo que em aplicações apropriadas tudo o que é designado são também fatos: a circunstância de a vassoura estar no canto, o estado de coisas de que o livro se encontra sobre a mesa, a situação do congestionamento do trânsito, são fatos. No caso do grupo (B) a resposta não parece ser outra: o evento da queda do império germânico, a ocorrência do repicar dos sinos, o processo de mudança de cor do camaleão, parecem não se distinguir enquanto tais dos fatos de que o império germânico caiu, de que os sinos repicam, de que a cor do camaleão mudou, e já vimos que não há boas razões para sustentar tal distinção. A palavra ‘fato’ se aplica, portanto, indiferenciadamente, às entidades às quais se aplicam as palavras de ambos os grupos, (A) e (B). A distinção entre fatos e eventos reduz-se, segundo esse raciocínio, a uma diferença entre gênero e espécie, podendo as relações ser ilustradas por meio do seguinte esquema:



                                             FATOS EMPÍRICOS

  Que não envolvem mudança:                                Que envolvem mudança:

(A)           estados de coisas                                    (B) eventos
       situações                                                       ocorrências
       circunstâncias...                                            processos...

A classe dos eventos, como a classe dos estados de coisas, são subclasses da classe dos fatos, diferindo dela intencionalmente ao menos pela adição de critérios que restringem suas extensões. E o ponto mais relevante é que, como as classes formadas pelos elementos costumeiramente designados pelas palavras dos grupos (A) e (B) são mutuamente exclusivas, só a classe dos fatos inclui a ambas. Isso é relevante porque, se estivermos em busca do correlato empírico verificador de enunciados, a palavra ‘fato’ evidencia-se como a única suficientemente abrangente, e, nessa medida, a mais adequada para o papel, pois as palavras dos grupos (A) ou (B), sendo eles exclusivos, não podem se aplicar a todos os verificadores: que o livro está sobre a mesa não pode ser verificado por uma ocorrência; que o camaleão muda de cor não pode ser verificado por uma situação. Finalmente, é porque eventos etc., revelam-se como exemplares de uma espécie de fato empírico, que falar de eventos etc., implica em falar de fatos.
Contra essa conclusão simples e esclarecedora pode ser inventariada uma multiplicidade de considerações visando mostrar que, diversamente de nossa tese, que é a de que eventos formam uma espécie do gênero dos fatos, fatos e eventos constituem gêneros diferentes de entidades. Argumenta-se que ao falarmos de eventos, de ocorrências, buscamos captar uma dinâmica que diz mais respeito que os fatos à intimidade da natureza empírica, o que bem pode ser verdade. Diz-se assim do fato, que ele ocorreu; mas não se diz da ocorrência, que ela se factualizou. Há ocorrências que se alastram e processos que mudam de lugar, mas isso não parece ser algo que se possa dizer de fatos. Podemos seguir um acontecimento, não um fato. O evento da queda de uma pedra pode ser obstado, mas não o fato de sua queda. Pense-se no fato de uma partida de futebol, que se deu ontem, e no processo do desenrolar desta partida, ao qual importam o começo, o meio e o fim, e ter-se-á uma ideia das diferenças envolvidas. E ainda há a distinção, sugerida em um texto de Wittgenstein, entre fato e complexo:8 um complexo é um objeto espacial constituído de objetos espaciais e capaz de mover-se de um lugar para outro; já dos fatos não se diz que eles se movem.
Nada disso, ao meu ver, exige modificação relevante nas explicações e distinções conceituais anteriormente sugeridas; mas há acréscimos em nível conotativo e há trabalho de faxina no interior trapiche filosófico.
Com efeito, fatos não são concebidos dinamicamente. Eles são concebidos como sendo estáticos, inalteráveis; como concatenações contingentes de elementos que formam totalidades cuja estrutura é então concebida como fixa, invariável, o que parece ser mesmo um requisito necessário à preservação da pretensão de invariância da verdade nos enunciados observacionais dos quais eles seriam os correlatos verificadores. Mas isso não nos obriga a concebermos os fatos sempre como espécimens de estados de coisas, como o de que o livro se encontra sobre a mesa. Não só podemos  dar conta de eventos, ocorrências, processos etc., concebendo-os, em um tratamento mais detalhado, como encadeamentos sequenciais de estados de coisas, de fatos; nós também podemos concebê-los como fatos unitários, na medida em nos reportarmos a eles fixando a alteração como um elemento dinâmico de sua estrutura, o que permite concebermos tal estrutura como inalterável. Assim, as ações de morder e de mudar de cor podem ser fixadas como elementos dinâmicos dos fatos de que o cão mordeu a perna do carteiro (aRb) e de que o camaleão mudou de cor (Ra). Assim, mesmo envolvendo mudanças, tais eventos podem ser concebidos como mantendo a estrutura fixa, invariável de fatos.
As outras objeções consideradas respondem-se diversamente. O fato que ocorreu (deu-se) ontem é o fato explicitado como evento (Bl), ou seja, do ponto de vista de sua duração, surgimento e desaparecimento no tempo. O fato da partida de futebol envolve muito mais do que a partida: ele envolve todo um dado contexto temporal e local; isso é algo mais amplo do que a consideração do processo da partida - mas esse processo também é um fato, que, concebido como um processo (B2) tem enfatizadas as suas modificações internas. Em contextos que requerem a consideração de modificações temporais de algo, falar de um fato no lugar de se falar de evento ou ocorrência toma-se uma inadequação, de modo que frases como “Segui o fato do cair da pedra” e “O fato do cair da pedra foi obstado” não são, a rigor, incorretas, mas impróprias, estranhas; é mais conveniente falarmos de eventos.
As questões relacionadas à localização espaço-temporal e à observação, feita por Wittgenstein, de que não se diz dos fatos que eles se movem, podem ser respondidas de maneira semelhante. Embora os fatos empíricos sejam espaço-temporalmente localizados, há alguns cuja localização torna-se apenas aproximadamente determinável, e isso pode ocorrer de diferentes maneiras. Um exemplo é o fato de que o filósofo Leibniz usava uma grande peruca. Aqui poderia emergir a objeção de que tratamos os fatos como se eles fossem complexos móveis: Leibniz, que usava uma grande peruca, mudava de lugar no espaço, e se esse fato é empírico, alguém podería considerá-lo uma espécie de “fato ambulante”, que por algum tempo foi visível em certas regiões da Europa. A resposta é que, não obstante as aparências, tal consideração não é incorreta. Ela apenas não precisa, não costuma, não merece ser feita: que certas construções linguísticas sejam raras, inabituais, e que então soem estranhas, não quer dizer que elas sejam rigorosamente incorretas - tais construções podem ser incomuns por serem desnecessárias, inconvenientes, deselegantes, inadequadas, enganosas... Alguém poderia também dizer que o fato de Leibniz usar uma vasta cabeleira foi um “fato intermitente”, pois ele não a usava o tempo inteiro, e isso também é correto. Mas que utilidade, que sentido possui, em condições normais, semelhante observação? Identicamente, a observação de que esse foi um fato móvel é geralmente inútil, creio que pela seguinte razão: se o que chamamos de fato tem a função básica de servir de correlato verificador de um enunciado constatativo, parece que em nenhuma situação deveríamos nos reportar à sua possível mobilidade (nem que lhe ocorra ser obstado, ser intermitente etc.), pois para isso teríamos de passar a concebê-lo como simples elemento do fato relatado na constatação mais ampla dessa mobilidade, deixando por isso de concebê-lo efetivamente como fato, como um conjunto de elementos concatenados, dado que abstraímos isso. Tendo o fato a função de correlato verificador de um enunciado, é inconveniente considerarmos sua mobilidade, pois aí já estaremos tratando do correlato verificador de um outro enunciado, de um outro fato, cuja possível mobilidade também é desconsiderada.
A mesma observação de que um fato é móvel pode ser também enganadora ao nos levar a confundir o fato contingente com o complexo (o objeto físico unitário) Leibniz, do qual podemos precisar dizer que se move. Além disso, o fato de que Leibniz usava uma peruca não precisa ser considerado móvel, se considerado com relação ao corpo de Leibniz, e é isso o que normalmente e naturalmente fazemos. Por razões semelhantes, não diríamos que o fato de o camaleão ter mudado de cor é móvel porque o aquário no qual ele se encontra está sobre a Terra, a qual se encontra em movimento. Mas diríamos, com muito mais propriedade, que, como um certo camaleão estava se movendo ao mudar de cor, o fato (ocorrência) dele mudar de cor era móvel. E isso é perfeitamente correto, mesmo que seja algo que (pela razão já aludida) é inútil e inconveniente de se dizer, e que por isso venha a parecer impróprio aos ouvidos do filósofo. Ainda, segundo Wittgenstein, embora um complexo móvel não seja um fato, que o complexo se move é um fato.9 Mas isso é assim porque, sendo o complexo uma coisa material, pensamos nele como uma unidade: se o complexo móvel for um carrinho cheio de pacotes, que ele se encontra cheio de pacotes é um fato, uma concatenação fortuita de elementos, sendo supérfluo, embora possível, reportarmo-nos aqui ao seu movimento. Em suma: quando uma concatenação móvel de elementos é tratada como fato, o fato de sua mobilidade costuma ser abstraído, eis a questão.
Voltemos à “cláusula-que”. Austin argumentou que a conexão considerada é contingente e relativamente recente em língua inglesa, servindo para evitar construções gerundiais.10 As considerações anteriores conduzem-nos à sugestão de que a “cláusula-que” possui realmente um papel linguístico, embora diverso daquele que os críticos da concepção lexical propõem. Enquanto construções que se seguem a palavras do grupo A, como ‘circunstâncias’, ‘situações’, ‘estados de coisas’, costumam vir precedidas da “cláusula-que”, construções que se seguem a palavras do grupo B, cujo designatum envolve mudança, como ‘ocorrências’, ‘eventos’, ‘processos’, ‘acontecimentos’, não se fazem preceder dela. Não seria então a “cláusula-que” um dispositivo gramatical usado justamente para enfatizar o caráter estático, próprio dos elementos e relações constitutivos do designatum de construções com o primeiro grupo de palavras, por oposição ao caráter dinâmico do que é concebido através de construções com o segundo grupo de palavras? Sendo assim, não seria a palavra ‘fato’ passível de associação com a “cláusula-que” pela simples razão de pertencer também ao primeiro grupo l. Compare-se as transformações:

(a)
O fato (circunstância, estado de coisas, situação...) de o livro estar sobre a mesa.
O fato (circunstância, estado de coisas, situação...) de que o livro está sobre a mesa.

(b)
O fato (evento, ocorrência, sucessão, processo...) do repicar dos sinos.
O fato (circunstância, estado de coisas, situação) de que os sinos repicam.

Fato é uma palavra que admite a introdução da “cláusula que” tanto no caso (a) quanto no caso (b), o mesmo não sendo possível com palavras como evento, ocorrência, processo etc. Parece, pois, que é por poder ser aplicada também nos casos de palavras do grupo (A), que a palavra ‘fato’, em sua inespecificidade, pode ser aplicada acompanhada da “cláusula que” também nos casos designáveis por palavras do grupo (B). Já por conotarem especificamente o elemento de mudança, as palavras do grupo (B) continuam sem admitir o acompanhamento da “cláusula que”.
Ainda restam outras objeções. Filósofos como Strawson objetaram que fatos, ao contrário de coisas materiais, não podem ser criados ou destruídos, testemunhados, apontados ou evitados, chutados, consertados, vistos e ouvidos".
Mas, tanto quanto ela se aplica, a objeção é falha. Se os fatos são, como a concepção tradicional sugere, concatenações contingentes de elementos quaisquer, eles devem obviamente distinguir-se de tais elementos, entre os quais encontrar-se-iam, supostamente, coisas materiais. Mesmo desconsiderando isso, querer que se possa dizer de fatos empíricos o que comumente se diz de coisas materiais (quebráveis, chutáveis, consertáveis, audíveis, fixáveis por nossas vistas, apontáveis etc.), é incorrer em um erro primitivo, que é o de assimilar a gramática da descrição dos fatos à gramática da referência a coisas concretas. Tanto quanto a objeção não se aplica, podemos encontrar contra-exemplos. Fatos não costumam ser visíveis ou apontáveis porque envolvem em geral contextos mais amplos. Mas há exceções: a frase “O fato de o rei estar nu foi visto por todos os que assistiam à procissão” não parece incorreta; há, pois, fatos dos quais dizemos serem visíveis. Embora não habitual, pois o verbo ‘apontar’ é geralmente aplicável àquilo que se pode mostrar com o dedo, geralmente objetos concretos, com limites definidos, não parece ilegítimo dizer que alguém apontou para o fato da lua estar nascendo, e isso não apenas em um sentido figurado. Um fato pode ser evitado: “O ato heróico de Catarina evitou que a invasão da cidade se transformasse em um fato.” Um fato pode, ocorrer: “Ontem ocorreu comigo um fato desagradável”; e é possível que se produzam e que se criem novos fatos.
Uma última objeção, respondida por Austin de modo bastante elíptico,12 pode ser resumida na alegação de que fatos são sujeitos de atitudes proposicionais, de uma multiplicidade de operações discursivas, cognitivas etc., podendo ser (da mesma forma que enunciados) asseridos, descritos, disputados, comentados, comunicados, provados, revisados, sumarizados, além de poderem ser aprendidos, experienciados, esquecidos, assumidos (...), enquanto que coisas, eventos e ocorrências, por não pertencerem nem à linguagem nem ao entendimento, mas ao mundo – esse o moto intrínseco da objeção - não são passíveis de semelhante tratamento.
A objeção, ou se aplica, mas falha, por desconsiderar as peculiaridades relativas à gramática própria de cada conceito, ou não é geralmente aplicável. Ela considera que asserimos fatos, mas não eventos, ocorrências e coisas. Contudo, uma coisa é o conteúdo asserido, outra é o objeto de asserção, e a ambiguidade da linguagem ordinária nos permite aplicar a palavra ‘fato’ também ao primeiro caso, como acontece com fatos formais, gerais etc. Entretanto, se digo “O que ele afirmou é um fato já conhecido de todos nós”, posso frequentemente substituir a palavra fato pelas palavras ‘evento’ e ‘ocorrência’ (não obviamente por ‘coisa’, pois coisas concretas não são vistas como concatenações estáticas e fortuitas de elementos, tal como acontece com os fatos). Também se não dizemos que aprendemos um evento, uma coisa concreta, é pelo mesmo motivo pelo qual raramente dizemos que aprendemos um fato empírico, isto é, porque o verbo ‘aprender’ costuma expressar a aquisição de esquemas conceituais relevantes e reaplicáveis, como podem sê-lo certos fatos abstratos. Podemos, além do mais, esquecer eventos, assim como descrevê-los, comunicá-los, comentá-los. Podemos – por que não? – revisar uma conjunção de eventos aprendida, provar uma ocorrência, descrever um evento um processo etc.
Com respeito ao chamado moto intrínseco, essa objeção parece repousar no provisório esquecimento de que não possuímos meios de comunicarmos nosso acesso cognitivo ao que chamamos de mundo, exceto através da linguagem: o que sabemos aeerea do mundo é sabido por intermédio de esquemas linguístico-conceptuais, e aquilo que experienciamos como a ele pertencente é para ser, portanto, conceptualmente, lingüisticamente manejado, o que também inclui o discurso acerca de eventos, ocorrências, coisas etc., geralmente considerados como pertencentes ao mundo. Se coerente com a sua razão intrínseca, a objeção deveria ser adaptada à suposição de que nem estados de coisas reais, nem eventos, nem ocorrências, nem coisa alguma pertencente ao mundo real é passível de acesso linguístico. Mas isso eqüivale a defender que o mundo real tem o caráter hipotético de uma “coisa em si”, cuja natureza não é linguisticamente acessível, o que contradiz a própria gramática do que todos nós entendemos com palavras como ‘realidade’, ‘objetividade’, ‘empiricidade’, ‘mundo’etc.
Por outro lado, se aceitamos que temos acesso lingüístico a coisas, eventos, ocorrências, por quê então, como diria Austin, o preconceito contra os fatos? Por quê pensar que, por serem eles comunicados através de sentenças assertivas, isso os torna intralinguísticos, como se a função de tais sentenças fosse a de afirmar o que elas próprias dizem, e não, como seria mais natural, a de representar descritivamente a realidade? Essa maneira de ver natural é reforçada pela convicção que temos da existência de fatos empíricos acerca dos quais não temos conhecimento algum: é perfeitamente correta e trivial a afirmação de que inúmeros desses fatos nos são completamente desconhecidos. Se tais fatos fossem meras construções lingüísticas, eles teriam de ser conhecidos. Poder-se-ia aventar que tal conclusão não é necessária, pois tratar-se-iam de construções potenciais, linguisticamente e cognitivamente irrealizadas. Mas isso não basta, pois se assim fosse poderiamos vir a conhecer tais fatos sem recurso à experiência, através da mera articulação de novas frases declarativas.
Claro, a palavra ‘fato’ lembra em sua função palavras como ‘existência’, o que não passou despercebido a Austin. Fatos não parecem ser tão imediatamente empíricos como seriam a dureza desta mesa, sua asperidade, sua cor; se supusermos que sua estrutura seja a de concatenações estáticas e contingentes de elementos categorialmente diversificáveis, eles podem ser considerados como constituídos em um sentido fraco da palavra, qual seja, no sentido de que eles dependem, mais do que seus elementos, da maneira como seres cognoscentes escolhem (ou são compelidos a) dividir o mundo: aquilo que escolhemos (ou precisamos) tomar como elementos do que se dá em uma certa região espaço-temporal depende de nós, tanto quanto a escolha de uma dada concatenação de elementos de preferência a outra. Mas, como o homem só põe o que o mundo dispõe, não é aceitável uma afirmativa tão forte como a do caráter não empírico daquilo que dividimos.
Finalmente, a questão da empiricidade dos fatos se confunde com a questão mesma da empiricidade. Parece que ao considerarmos as diferentes espécies de fatos empíricos, devemos admitir que eles possuem diferentes níveis de empiricidade, embora seja difícil explicar o que se possa querer dizer com isso. Elementos mais basicamente empíricos parecem ser, nos exemplos dados, propriedades sensíveis como as da capa do livro de ser azul, a ocorrência de uma alta temperatura criada pelo riscar do fósforo, a propriedade disposicional de certos gases de, quando inalados, bloquearem a cadeia respiratória etc. Também são usualmente chamados de empíricos objetos materiais como o livro, o prédio da escola, a perna do carteiro. Mas de que espécie é o fato institucionalmente determinado de que em um certo dia do ano ocorreu um feriado escolar, ou o fato histórico criado pela travessia da fronteira italiana pelo exército de César? O conhecimento de tais fatos envolve mais do que elementos mais basicamente empíricos, como certos edifícios ou pessoas físicas. Deveríamos considerar tais fatos como sendo apenas parcialmente empíricos, ou essencialmente não-empíricos? A resposta deve ser não, na medida em que seria um erro usarmos um conceito reduzido de empiricidade para defendermos que tais fatos não se encontram no mundo. Que o feriado escolar ocorreu, que César atravessou o Rubicão, são fatos empíricos, pois o nosso conceito usual de empiricidade é suficientemente amplo para abranger fatos de tal natureza.13








Notas
1            G. Patzig: "Satz und Tatsache", in: Tatsachen, Normen, Satze, Stuttgart 1980, pp. 15-16.
2            White: Truth, London 1970, p. 85.
3            E. Tugendhat, Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, Frankfurt 1976, p. 62., J. Habermas, “Wahrheitstheorien”, in: Fahrenbach (ed.): Wirklichkeit und Reflexion, Pfullingen 1973, p. 215-216.
4            Pelo sentido no qual uma palavra é referencialmente aplicada entendo algo que costuma sofrer mais variações que os simples sentidos lexicais. Um tal sentido referencial pode ser caracterizado como aquele dado pela maneira como a palavra é intencionalmente relacionada, nas circunstâncias de seu emprego, a um certo objeto ou classe de objetos. Assim, embora uma palavra como ‘roupa’ possa ter um único sentido lexical, ela poderá adquirir diferentes sentidos referenciais, conforme os objetos designados nas circunstâncias de seu emprego. Se peço a alguém: “Traga-me a peça de roupa que está sobre a poltrona”, é necessário que se saiba identificar a peça do vestuário que repousa sobre a poltrona, se uma camisa, uma calça, uma blusa etc., como sendo “roupa”, mesmo que seu nome mais específico não seja por mim sabido ou que ele não exista; com isso varia a classe de objetos à qual a palavra é intencionalmente aplicada, i. e., varia a constelação criterial que permite a identificação, o sentido no qual ela é referencialmente aplicada. (Ver cap. II). Sobre as diferentes espécies de fato ver A. J. Ayer: "Truth", in: The Concept ofa Person, London 1963, pp. 172 ss.
5            Cf. J. L. Austin: “Unfair to Facts”, in: Philosophical Papers, Oxford 1979, pp. 170-171.
6            G. Patzig, “Das Problem der Objektivität und der Tatsachenbegriff”, ibid., p. 91. Cf. também P. F. Strawson: "Truth", in: Logico-linguistic Papers, London 1971, pp. 197-8.
7            J. L. Austin: ibid., p. 156.
8            L. Wittgenstein: Philosophische Betrachtungen, Frankfurt 1984, Anhang 1.
9            E. Tugendhat: ibid., p. 163.
10         J. L. Austin: ibid., p. 163.
11         P.F. Strawson, ibid., p. 196.
12         J. L. Austin, ibid., pp. 166-8.
13         Há várias objeções que deixamos de considerar. Uma delas é a de que fatos são o que (what) enunciados (quando verdadeiros) enunciam, e não aquilo sobre o que eles são (what they are about). Essa distinção apontada por Strawson (e repetida por Habermas) parece ser de um tipo tão intangivelmente sutil, que não seria de qualquer prejuízo para a linguagem se a invertêssemos, afirmando que fatos não são o que enunciados enunciam, mas, obviamente, aquilo sobre o que eles são.
Outra objeção formulada por Strawson pode ser apresentada como se segue. Uma autêntica relação correspondencial seria como, digamos, a relação existente entre uma fotografia do Cristo Redentor e a própria estátua do Cristo: nós identificamos a fotografia e a estátua na independência uma da outra, e então concluímos que a foto está em uma relação de correspondência com a estátua. Mas o fato não é como a estátua, que pode ser identificada separadamente de sua fotografia: para identificar o fato precisamos já reconhecer seu enunciado como sendo verdadeiro. A relação entre fato e enunciado é, pois, interna à linguagem.
Nossa resposta é que a constatação acima não nos força a aceitar as consequências pretendidas. Mal comparando, a relação correspondencial entre enunciado e fato é mais como a relação de projeção entre um objeto e a sua sombra. Como o fato, com o enunciado, a sombra, uma vez percebida, nos força a reconhecer a existência de um objeto que a projeta. Mas não só são ambos radicalmente diversos, como também o ato de identificar a sombra independe do ato de concluir algo sobre o objeto que a projeta. Através da teoria correspondencial sugerida no último ensaio deste livro serão apre- sentados argumentos para demonstrar que a identificação de um fato é inicialmente feita de uma forma pré-cognitiva, sem que saibamos que o enunciado correspondente é verdadeiro. Para outras considerações e para uma resposta a outros argumentos, como o exposto por D. Davidson (segundo o qual um enunciado verdadeiro pode corresponder a qualquer fato), remetemos o leitor ao capítulo 9 do livro de J. Searle, The Construction ofthe Social
World, London 1995.






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