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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO


Esse artigo foi publicado em A linguagem factual. Deverá ser republicado com correções.

WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO

Ao escrever este resumo argumentado de minha tese doutoral,1 defrontei-me com a seguinte dificuldade: como condensar o conteúdo de um trabalho sistemático, no qual os argumentos particulares só adquirem poder de convicção quando compreendidos em sua relação com o todo, sem simplificar em demasia e aparentar inconsciência das dificuldades envolvidas? Para que esse inconveniente fosse amenizado, segui a estratégia de me restringir a algumas ideias centrais envolvendo a noção de regra semântica, desenvolvidas nos capítulos I, VI e VII, abstraindo de muitas outras questões interpretativas a elas relacionadas.
Começo enunciando a tese mesma. O objetivo proposto foi, através de um trabalho de reconstrução racional,2 que procedesse pelo esclarecimento de supostas relações entre os diferentes princípios semânticos sugeridos nos escritos de Wittgenstein, o de esboçar os traços gerais de uma teoria do significado filosoficamente relevante, concebida como uma elucidação genérica da gramática desse conceito - o que redundaria em um esquema conceitual esclarecedor do que precisa ser sabido para a compreensão de expressões quaisquer.
Há, na literatura secundária, pelo menos duas tentativas de se extrair semelhante teoria dos escritos de Wittgenstein: o livro de J. T. E. Richardson3 e um artigo de Paul Feyerabend.4 0 resultado não especialmente elucidativo desses trabalhos deve-se, ao meu ver, em parte, ao modo demasiado interpretativo de aproximação das questões.
O pressuposto orientador de minha reconstrução pode ser visto como um “principle of charity”, maximizador do corpus de frases verdadeiras. Esse pressuposto é o de que as diferentes sugestões feitas por Wittgenstein sobre a natureza do significado, as quais relacionam-no com o uso, com a sua explicação, com o método de verificação, com critérios, com regras da gramática, com um cálculo, e até mesmo com a correspondência de sentenças com fatos possíveis, devem ser preferencialmente vistas como diferentes meios de aproximação do mesmo problema ou de aspectos dele – diferentes metáforas elucidativas – e não como incompatíveis tentativas de explicação, por vezes inconsistentemente agrupadas, ou que teriam sido abandonadas sempre que o filósofo se apercebia de sua inadequação, como se ele estivesse progredindo por um método cego de tentativa e erro.
Uma maneira de ilustrar esse ponto de vista é evocando a parábola dos cegos e do elefante. Cada cego apalpa uma parte do elefante, descrevendo-o de maneira diferente: um diz que é uma corda, porque toca a sua cauda; outro abraça a sua perna afirmando tratar-se do tronco de uma árvore; outros, apalpando outras partes, dizem que se trata de um grande pára-vento, de um sifão, de um muro... Wittgenstein, ao contrário, estava suficientemente consciente de estar se aproximando de um mesmo problema por diferentes meios, sob diferentes ângulos, considerando a diversidade de seus aspectos, abandonando a perspectiva escolhida quando o poder de esclarecimento de suas analogias parecia esgotar-se, o que frequentemente acontecia pelo encontro de dificuldades incontornáveis. Essa é uma razão da alusividade de seus escritos; ele tomava o cuidado de não generalizar suas sugestões ao modo dos cegos da parábola e de alguns de seus intérpretes, o que ocorre mesmo em suas sempre matizadas alusões aos “erros” do Tractatus.
I
Uma dificuldade metodológica que se apresenta sempre que tentamos uma reconstrução sistematizadora do que Wittgenstein escreve, diz respeito a sua concepção de filosofia. Trata-se da objeção, que hoje sabemos ser interpretativamente simplificadora, segundo a qual ele a teria concebido como desempenhando uma função meramente terapêutica, qual seja: a de uma atividade puramente crítica, constituída de simples descrições de casos de aplicação da linguagem. Tais descrições seriam capazes de promover, pela mera apresentação de contra-exemplos, uma espécie de reductio ad absurdum de pretensas teses filosóficas, originadas de confusões conceituais locais, engendradas pela mente metafísica - o que excluiria qualquer atividade teorética ou explicativa. Tal concepção não é a minha, nem julgo sua pressuposição necessária.
Apesar das aparências, veiculadas pelo fato de a filosofia do último Wittgenstein ser crítica no conteúdo e fragmentária na apresentação, a dificuldade metodológica que assinalamos pode ser refutada; – primeiro externamente, por considerações acerca do conteúdo de seus escritos, depois internamente, em alguma medida, por uma interpretação mais circunstanciada de suas considerações sobre a natureza da filosofia.
Quanto aos escritos de Wittgenstein, é correto afirmar que a sua filosofia terapêutica não se faz sem pressupostos teoréticos, explícitos ou não. Como observou Cari Hempel: “Mesmo que a filosofia se limitasse, casuisticamente, a ajudar moscas individuais a escaparem de suas particulares garrafas papa-moscas, semelhante atividade filosófica ou terapia estaria ainda assim enformada em princípios gerais. Uma mosca presa numa garrafa, um homem preso num labirinto precisa ser conduzido para fora com seus olhos envoltos em uma bandagem: ele seguirá seu condutor cegamente e irá finalmente encontrar-se a si mesmo lá fora, mas ele não irá compreender como foi preso nem como foi trazido para fora. Mas não há nenhum análogo a esse modo de libertação física no caso da pessoa filosoficamente confundida em um labirinto. O único meio de trazê-la para fora é com seus olhos abertos, como que mostrando o caminho da saída, para usar uma expressão de Wittgenstein; quer dizer, ela deve vir a entender qual a parte da armadilha foi deixada em primeiro lugar e como evitar que o mesmo aconteça em outras situações semelhantes. E isso sempre requer ‘insights’ de um tipo geral, concernentes, por exemplo, a contextos linguísticos de um determinado tipo, cujas regras gerais são então projetadas no caso particular em questão.”5 A eficácia da terapia provém do fato de o paciente se dar conta de que a sua dificuldade é ocasionada por pressupostos que contradizem princípios cujo nível de generalidade e abstração deve equivaler ao das próprias ideias filosóficas criticadas, e isso se dá à revelia das supostas pretensões antiteoréticas de Wittgenstein.
Isso é tomado evidente quando consideramos o conteúdo sugerido pelas anotações de Wittgenstein, como, por exemplo, o argumento contra a possibilidade de uma linguagem originariamente privada. Como observou A. J. Ayer sobre a afirmação wittgensteiniana de que a filosofia não deve explicar, mas somente descrever: “sua repetida preferência por descrições e não pela explicação, e sua abstenção de teorias cuja prática ele assevera realizar e reivindica para os seus leitores, não são características de seu procedimento atual em qualquer estágio de seu desenvolvimento, inclusive nas Investigações Filosóficas. Que suas explicações sejam rúnicas, isso não as reduz a descrições; suas teorias não deixam de sê-lo por serem encobertamente assentadas”.6
Embora pertinente, essa objeção não chega a ser inteiramente justa. A noção de descrição não precisa ser assimilada a algo equivalente à descrição não-explicativa de uma paisagem.
Também Strawson e Searle chamam as suas atividades de “descritivas”, embora elas sejam obviamente explicativas e teoréticas. Mas o que se pretende com esse modo de dizer é assinalar a natureza metalinguística de uma investigação teorética que procede a uma exposição daquele nosso conhecimento tornado a priori como regras de funcionamento da linguagem; é apontar o caráter não-revisionário dessa investigação; é aconselhar que ela seja feita em um “modo formal” de discurso, que considere essas regras na abstração de sua aplicação concreta e praticamente motivada. A ênfase na descrição resume-se então a pouco mais que um playdoier por esse modo formal, no qual os referidos princípios são descritivamente expostos. Ora, não seria esse também em Wittgenstein um intuito implícito?
Parece que sim, pois é possível evidenciar que o sentido por ele dado à palavra ‘teoria’, e com ele o de todo um grupo de palavras semanticamente interdependentes, como ‘explicação’, ‘descrição’, ‘hipótese’, ‘tese’... afasta-se do sentido usual, o que, como em outros casos de termos por ele usados em sentido peculiar, pode confundir o intérprete.
Com a palavra ‘teoria’, hoje o sabemos, Wittgenstein geralmente tinha em mente a espécie científica de teoria. Intérpretes como S.S. Hilmy e a dupla Backer & Haker mostraram que ele queria criticar a assimilação do trabalho do filósofo à concepção e ao método da ciência, tendo em mente uma crítica às concepções de filosofia de Russell e James. Como consideram Backer e Haker: “A objeção de Wittgenstein ao ‘teorizar’ em filosofia é uma objeção à assimilação da filosofia, em método e em produto, a uma ciência teorética hiperfísica. A filosofia não é hipotético-dedutiva. Mas, se esmeradas refutações ao idealismo, solipsismo ou behaviorismo, envolvem um esforço teorético, Wittgenstein se engaja nele [...]”.7
Essa interpretação é corroborada pelo uso positivo do conceito de teoria que Wittgenstein às vezes faz. Em Zettel, § 144, ele escreve: “nós temos agora uma teoria, uma teoria ‘dinâmica’ da frase, da linguagem, mas ela não nos parece uma teoria”. Com isso ele quer se opor a algo como a “filosofia científica” de Russell, que propõe teorias hipotéticas à semelhança da ciência, bem como suas “explicações” e “teses”. Em escritos inéditos, observa Hilmy, Wittgenstein chega a empregar uma expressão extravagante para o que ele faz, chamando-o de “teoria da relatividade da linguagem”. Trata-se, em tais casos, da teoria entendida como uma descrição de traços fundamentais da gramática de certos termos muito gerais e de aplicação sobremodo complexa, uma teoria que não vem estruturada como um sistema arquitetônico no sentido kantiano, mas antes no sentido schopenhaueriano - referido, aliás, pelo próprio Wittgenstein - de um sistema que se desenvolve como um organismo, em uma discussão aporética, indefinida.
O conceito mais característico dessa dimensão construtiva da filosofia terapêutica é o de apresentação panorâmica, que é como tento traduzir a expressão “übersichtliche Darstellung”. A apresentação panorâmica , escreve Wittgenstein, “designa a forma de nossa representação, a maneira como vemos as coisas” (PU 122). Para ele a falta dessa visão geral é importante fonte de erros, razão pela qual torna-se filosoficamente relevante a tarefa de encontrar (finden) os elos existentes entre os conceitos, e mesmo de inventá-los (erfinden), estabelecendo-se assim uma ordem possível (PU 122, 132). A representação panorâmica é como uma fotografia aérea da gramática; do mesmo modo que a fotografia, ela ressalta os traços mais fundamentais, perdendo em nitidez quanto aos detalhes mais específicos. A elucidação filosófica pode conseqüentemente assumir uma forma semelhante ao que Strawson quis entender com a expressão metafísica descritiva, cuja função é a de oferecer-nos elucidação das relações vigentes entre nossas estruturas conceituais mais fundamentais, um esclarecimento capaz de nos prover de maior transparência semântico-conceitual, de uma compreensão mais clara de nossas frases (WWK p. 223, PU 90). Tal representação panorâmica não pode ser outra senão teorética. Transcrevendo-se mais uma vez as palavras de Backer e Haker: “Se a filosofia é uma questão de representação panorâmica, então deve haver sistema. Pois uma sinopse não pode se constituir de uma casual coleção de aperçus. Se ela não é abarcante, ela é ao menos sistemática.”8 O máximo que se pode afirmar é que Wittgenstein consideraria o trabalho sistemático inadequado como estratégia heurística em filosofia.
Não é então forçoso concluir, como o fez A. Kenny,9 que Wittgenstein defende simultaneamente duas concepções incompatíveis de filosofia, uma terapêutica e outra mais construtiva e ortodoxa, posto que uma análise mais aproximada tende a desfazer a suposta tensão existente entre elas. Com sua insistência no aspecto terapêutico, o que Wittgenstein pretendia não era tanto excluir a teorização autenticamente filosófica, quanto censurar a pressa dos filósofos em fabricar fabulações especulativas que um mapeamento suficientemente cuidadoso dos fatos linguísticos teria tornado dispensáveis. (BB p. 19)
Parece assim claro que a crítica à metafísica pressupõe ela própria, implicitamente, uma outra metafísica, ainda que “descritiva”, a qual baseia seu maior poder de convicção nos pressupostos comuns da linguagem. E isso é assim porque terapia e representação panorâmica, atividade crítica e atividade teorética, são como duas faces inseparáveis da mesma moeda filosófica, cabendo a fatores extrínsecos às questões mesmas que o filósofo se concentre mais em um ou outro lado desta.
Admitida essa duplicidade, pode-se ainda argumentar que a importância de uma teoria do significado, entendida simplesmente como uma representação panorâmica da gramática constitutiva desse conceito, também resida em funções terapêuticas, as quais se realizariam em dois níveis. Em um nível mais geral, a terapia se aplicaria criticamente a certos modelos de “teoria do significado”, como o objetualista, o causal, o representacional... Em um outro nível, mais específico, a função terapêutica de tal representação panorâmica poderia ser assim definida: desde que para a compreensão do significado de qualquer frase, já precisamos ter de antemão uma compreensão implícita do que o significado seja, a elucidação do conceito geral de significado explicitaria pressupostos que de outro modo poderiam ser equivocamente alterados em considerações sobre o significado de outros termos filosoficamente relevantes - pressupostos que funcionariam então como instrumentos heurísticos no correto esclarecimento dos significados desses termos.
II
Feitas essas considerações preliminares, passo ao tema do primeiro capítulo, que é um exame da identificação feita por Wittgenstein entre o significado de uma expressão linguística e o seu uso ou aplicação. O papel central da identificação e a relativa simplicidade do conceito de uso tornam esse um ponto de partida adequado.
Na fórmula “o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (PU 43; PG 23; BB p. 69), a noção de significado é suficientemente clara: trata-se de significados de expressões linguísticas, não só de palavras, mas também de frases, pois essas são também “instrumentos para aplicações específicas” (PU § 291). Não se trata, ademais, simplesmente daquilo que costumamos chamar de significado lexical ou literal das expressões, concebido como aquele normalmente considerado na abstração dos contextos - tanto materiais quanto representacionais e linguísticos - em que elas são aplicadas. Em Wittgenstein, o significado de uma expressão é sempre intencional e contextuai. Ele está intrinsecamente ligado ao que se “intenciona dizer”, ao que se “quer dizer”, ao que se “tem em mente” com a expressão em um sentido que, veremos, não é meramente psicológico, mas função de regras ou convenções. Esse elemento intencional, por sua vez, é contextualmente dependente, pois é o contexto, em sentido amplo, que esclarece a intenção, permitindo a diversificação do que se “quer dizer”. Considere-se, por exemplo, uma frase como “Antônio visitou Calpúmia”. Ela tem um significado lexical, mesmo que não saibamos quem são Antônio e Calpúmia, nem quando e por que Antônio a visitou. Tal não é possível com o sentido mais determinado da palavra ‘significado’ que Wittgenstein quer considerar. Para ele, quando não se tem “algo a dizer” com uma frase, quando ainda não se tem aberto o caminho de sua vinculação ao contexto, ela deixa de servir ao seu fim, deixando de ser verdadeiramente, relevantemente significativa. Daí fica mais fácil entender a razão pela qual ele diz que “é no uso que as palavras vivem”; que o uso é “seu sopro vital”; que elas só ganham sentido “no fluxo da vida” (Z 135; PU 432). É por seu necessário prolongamento intencional, pelo fato de este “querer dizer” ter uma relação necessária com contextos particulares que definem o pleno significado da expressão, que o significado tem propriamente a ver com o uso.
Uma investigação da natureza deste significado-intenção, deste sentido de utilização contextualmente determinado, justifica-se muito particularmente em filosofia, dado que as perplexidades semântico-conceituais que permeiam qualquer reflexão filosófica não dizem respeito simplesmente aos significados lexicais ou literais, mas às confusões e aos equívocos que as semelhanças entre os múltiplos significados intencionais permitem que sejam produzidos nos contextos linguístico-representacionais de argumentações metafísicas.
Passemos agora a uma análise da noção de uso na equivalência entre significado e uso. Como essa equivalência parece intuitivamente fazer sentido, e tendo o primeiro termo da relação, a palavra ‘significado’, o sentido exposto anteriormente, a estratégia argumentativa seguida consistiu em analisar os diversos sentidos da palavra ‘uso’ em busca daquele sentido “privilegiado”, em que ela satisfizesse a identificação sugerida.
‘Uso’ não significa, evidentemente, o que poderíamos denominar uso singular de uma expressão: o uso entendido como ocorrência, a realização espaço-temporalmente localizada de um proferimento. Se assim fosse, uma mesma expressão teria um significado diferente a cada vez que fosse proferida, o que é absurdo. Não se trata, também, do uso arbitrário, não-convencional, como o de Humpty-Dumpty, cuja presunção era a de achar que suas palavras significavam simplesmente o que ele quisesse que significassem. Afinal, se as palavras significassem tudo o que quiséssemos, elas não seriam capazes de significar mais coisa alguma. Se não se trata do uso arbitrário, trata-se então do uso correto? Do uso em conformidade com regras? Parece que sim, mas há um sentido em que essa sugestão deve ser recusada; é quando o uso em conformidade com regras é entendido como um determinado uso singular. Nesse caso, correto ou não, ele continuará sendo um outro a cada nova aplicação da mesma expressão, devendo pois alterar-se, tornar-se outro o seu sentido a cada aplicação, o que obviamente não se dá.
Felizmente, a palavra ‘uso’ não funciona somente na designação de uma simples ocorrência espaço-temporal de algo. Na linguagem ordinária, ‘uso’ (Gebrauch) é uma palavra que geralmente funciona como abreviação de ‘modo de uso’ (Gebrauchsweise). É possível dizer: “Eu fiz uso da [usei a] palavra x de acordo com seu uso'. Nessa frase a palavra ‘uso’ ocorre duas vezes. Em sua primeira ocorrência ela designa somente um uso singular da palavra x, a realização espaço-temporal, não sendo aqui possível substituir ‘uso’ por ‘modo de uso’. Mas na segunda ocorrência sim. E possível que se diga: “Eu fiz uso da palavra de acordo com o seu modo de uso". Importante é notar que algo paralelo ocorre quando procuramos substituir a palavra ‘uso’ pela palavra ‘significado’ na frase acima. Na primeira ocorrência a substituição não faz sentido. Não faz sentido dizer: "Eu fiz significado da [signifiquei a] palavra x de acordo com seu uso”. Na segunda ocorrência da palavra ‘uso’, entretanto, a substituição é perfeitamente legítima. Pode-se dizer: “Eu fiz uso da palavra x em concordância com seu significado [modo de uso]”. Com efeito, só faz sentido identificar significado e uso quando este último é entendido como uma forma abreviada de se falar do modo, da maneira pela qual a expressão é aplicada. É Wittgenstein quem por vezes toma o cuidado de dizê-lo. Em várias passagens de seus escritos ele identifica significado com o modo ou a forma como a palavra é usada. “Um significado de uma palavra”, diz ele em Sobre a Certeza, “é um modo de sua aplicação (eine Art seiner Verwendung)” (ÜG 61).
Mas o que é o modo de uso? o modo de aplicação? Há na linguagem uma paráfrase adequada para o que essas expressões querem dizer? Consideremos o seguinte exemplo. Alguém recebe em casa um aparelho eletrônico. Na embalagem encontra-se um folheto explicativo intitulado:
MODO DE USO
Esse título vem, como de costume, seguido de uma série de instruções sobre a maneira como o aparelho deve ser utilizado. Aqui o sentido da expressão se toma transparente: ‘modo de uso’ é o nome que se dá a uma prescrição, a uma regra ou conjunto de regras, comumente interligadas, de cuja explicitação as instruções dão conta. Esse também é o caso quando se fala dos modos de aplicação de uma ferramenta, que se diferenciam pela diversidade das regras de manuseio. O que se tem em mente são sempre prescrições: regras especificadoras dos usos singulares.
A aplicação do mesmo raciocínio à identificação wittgensteiniana nos leva a perguntar se todo o sentido que tal identificação possa ter não se reduz a uma identificação entre o significado, o modo de uso, e certas regras, que seriam regras de uso. Há para tal sugestão prós e contras a serem discutidos. A favor dela está o fato de que o significado não se reduz a um simples acontecimento espaço-temporal, à diferença do uso singular. O mesmo podemos dizer das regras. Somente a aplicação da regra é um acontecimento espaço-temporal singular, mas não a regra mesma, designada pela expressão de regra (Ausdruck der Regei), e que se deixa conceber ao modo de uma função que se instancia em suas aplicações singulares. Também fala a favor da identificação o fato de que percebemos que pertence à natureza das regras serem, digamos assim, doadoras de significado. A regra-signo (Zeichenregel) “=>” orienta-nos forçosamente para a direita, o que dá sentido ao traço no papel. A doação de significado é uma propriedade constitutiva das regras: onde há regra há sentido.
Vejamos agora as objeções. Embora Wittgenstein chegue a dizer, ao menos em uma passagem das Lectures de 1930-32, que o significado de uma palavra consiste nas regras gramaticais que a ela se aplicam,10 ele costuma evitar uma identificação direta. Assim, em Sobre a Certeza ele diz que o significado, sendo o modo de aplicação, corresponde a regras (Cf. ÜG 62). E segundo o relato de Moore em suas anotações das Lectures de 1930-33, ao lhe perguntarem se o significado de uma expressão não seria uma lista de regras, Wittgenstein teria respondido com a insinuação de que uma tal concepção poderia estar associada a uma reificação, através da qual o significado estaria sendo tratado como se fosse algo visível. Essa observação deixa-se interpretar como uma crítica a uma suposta perda da plasticidade inerente ao significado intencional, que teria de ser admitida no caso de ele ser identificado a uma regra ou lista de regras.
Nas mesmas anotações feitas por Moore na passagem que antecede a anteriormente considerada e cuja importância foi aliás apontada por E. K. Specht, Wittgenstein aproxima significado e regra de uma maneira mais informativa: “o significado de qualquer palavra singular em uma linguagem é ‘definido’ (defined), ‘constituído’ (constituted), ‘determinado’ (determined) ou ‘fixado’ (fixed) pelas regras da gramática, com as quais ela é usada naquela linguagem.”11 A questão cuja resposta pode ser esclarecedora toma-se, por conseguinte: o que se pode entender por determinação (definição, constituição, fixação) do significado ou modo de uso pelas regras da gramática? E essa questão pressupõe a resposta a uma outra: o que são as regras da gramática?
Sendo assim, abandonarei provisoriamente a questão da determinação do significado por regras para considerar a noção wittgensteiniana de regra gramatical. Com a expressão ‘regra da gramática’ ele quer se referir, como observa E. K. Specht, ao que é expresso por frases a priori: frases que se diferenciam das frases empíricas costumeiras devido à sua necessidade e direta evidência.12 Como escreve Wittgenstein: “reconhecer uma frase como absolutamente certa significa usá-la como regra gramatical. Com isso se a priva de incerteza.” (BGM p. 88) Não se trata, porém, de regras altamente genéricas, como as da lógica formal, mas de regras mais ou menos específicas, como as expressas pelas frases seguintes, recolhidas dos textos de Wittgenstein:
(i)           O vermelho é uma cor.
(ii)         Duas cores não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo.
(iii)       Branco é mais claro do que preto.
(iv)       5 é um número.
(v)         A soma dos ângulos de um triângulo é de 180°.
(vi)       2.2 = 4.
(vii)     A ordem ordena seu cumprimento.
(viii)    A água ferve a 100° C.
(ix)       Eu não posso sentir as dores dos outros.
(x)         Eu sei que sou um homem.
(xi)       Eu tenho duas mãos.
(xii)     Todo bastão tem um comprimento.
(xiii)    Isso é uma cadeira.
(xiv)    Paciência se joga só.

Típico dessas frases é que elas expressam convenções que se tornam hábito, e que no funcionamento dos sistemas lingüísticos que as pressupõem não se fazem mais passíveis de dúvida, uma vez que elas costumam fundamentar o que neles ocorre. “Toda frase de experiência”, escreve Wittgenstein, “pode funcionar como regra, se ela é - como a parte de uma máquina, tornada imóvel, de modo que toda representação gira em torno dela e ela torna-se parte de um sistema de coordenadas e independente dos fatos.” (BGM p. 437) Com isso, na praxis desses sistemas elas se fazem tautológicas, não-informativas, e portanto, no dizer de Wittgenstein, “destituídas de sentido.”13
Frases gramaticais diferem de expressões de regras como as da lógica formal, pois, diferentemente dessas, elas dizem respeito a domínios ou regiões mais ou menos específicas da linguagem, podendo ser, para fins filosóficos, tematizadas em uma espécie de “lógica informal” (Ryle). As frases (i), (ii) e (iii), por exemplo, expressam regras pertencentes ao que Wittgenstein chama de linguagem das cores; as frases (iv), (v) e (vi) expressam regras pertencentes à linguagem da matemática; a regra expressa em (vii) fundamenta os jogos de comando; as outras, por sua vez, são constitutivas dos sistemas de linguagem da física (viii), das sensações (ix), da identificação pessoal, como (x) e (xi), da mensuração e identificação de objetos materiais, como (xii) e (xiii) etc. A frase (xiii), “Isso é uma cadeira”, é uma frase gramatical quando concebida como ocorrendo no contexto de uma definição ostensiva de um certo tipo de objeto; ela torna-se no caso a expressão que exemplifica uma regra da gramática, da qual o próprio objeto participa como elemento constitutivo da expressão. Nesse caso ela pode ser também substituída por uma definição mais completa, que prescinda do contexto, a definição verbal: “Uma cadeira é um objeto com tais-e-tais características”.
As regras da gramática constituem sistemas de regras, que formam regiões mais ou menos especificas da linguagem, as quais são geralmente denominadas, quando mais específicas, jogos de linguagem (cap. III). Podemos chamar de Jogos de linguagem (entre outras coisas) quaisquer fragmentos identificáveis da linguagem, que se deixam analisar como sistemas localizados de regras ou convenções geralmente implícitas, as quais são tidas como simples ou básicas no âmbito do próprio jogo. Eles são basicamente constituídos de quatro elementos: signos, participantes, contexto e regras ou convenções, as quais associam signos, participantes e contexto em conexões significativas. Podemos atomizar de muitas maneiras o todo da linguagem em jogos de linguagem cada vez mais simples, e depois construí-la outra vez pela combinação e ampliação dos últimos. Ainda que imperfeita, é aqui oportuna a comparação feita por Wittgenstein entre a linguagem e uma nebulosa: “O quadro que temos da linguagem do infante é aquele de uma nebulosa massa de linguagem, sua língua materna, circundada por discretos e mais ou menos distintos jogos de linguagem, as linguagens técnicas.” (BB p. 81)
Vemos também que a maior especificidade das regras da gramática é a razão de sua relevância semântica: o significado precisa ser algo característico de um signo ou combinação de signos. Por isso, regras muito gerais, como as da lógica formal, não costumam possuir o grau de especificidade requerido para individuar o significado, especialmente quando o que queremos levar em conta é a multiplicidade de suas extensões intencionais contextualmente determinadas. Esse ponto pode ser ilustrado se compararmos o processo de compreensão do significado de uma expressão com o trabalho de um carteiro na procura de um certo endereço. ítens como o país e a cidade são excessivamente genéricos; eles são de muito pouca valia, quando já não vêm pressupostos. Também nossas frases de conteúdo seguem regras como as investigadas na lógica formal, que por sua generalidade são insuficientes para individuar seus significados. O que permite ao carteiro chegar efetivamente onde deve são os itens mais específicos do endereço, como os nomes da rua e o número da residência onde mora o destinatário. O mesmo se dá com o que poderíamos chamar de “individuação semântica” de uma expressão; para que ela seja possível é necessário recorrer a regras ou articulações de regras cuja aplicação se circunscreve à expressão da qual queremos determinar o significado ou a sinônimos dela.
Como Wittgenstein escreveu: “o lugar da palavra na gramática é seu significado”. (PG 23) Com efeito, se algo o localiza, são as regras mais específicas da gramática. São elas as responsáveis pelas- finas modulações semânticas que importam à atividade filosófica.
Voltemos agora à questão que estávamos há pouco considerando, ou seja, à questão da determinação do significado pelas regras da gramática, ou ainda, à questão de uma possível identificação entre significado e algo “do tipo de uma regra” (etwas Regelartiges).
Na raiz da crítica wittgensteiniana a um enrijecimento do significado por listas de regras, parece estar um raciocínio como o seguinte: o número ilimitado de proferimentos com significados diversos que podem ser gerados em nossa linguagem, e mesmo a pluralidade daquilo que podemos “ter em mente” ao empregarmos uma expressão, exige que a noção de regra, se identificada com o significado, seja mais abrangente que a de algo como uma simples convenção ou hábito. Mesmo que se trate de uma lista fixa de convenções, ela é, não obstante, uma convenção, e que dominássemos listas ilimitadas de convenções seria, por razões não somente medicinais, inconcebível.
Consideremos então, novamente, a ideia de que o significado seja determinado pelas regras da gramática, as quais resultam, decerto, de convenções ou hábitos. O que significa em tal caso dizer que elas determinam (constituem, fixam, definem) o significado em proferimentos concretos?
Naturalmente, não se trata aqui da determinação do uso singular da expressão, de sua ocorrência, pois isso não é, como já vimos, o significado. Não: as regras determinam ou fixam o modo, a maneira como a expressão foi usada numa ou noutra ocorrência específica.
Em uma tentativa de esclarecer o que significa aqui ‘deter- minar’, podemos recorrer mais uma vez à analogia do aparelho eletrônico acompanhado de uma série de instruções intituladas “Modo de uso”. Podemos obviamente dizer que as prescrições ou regras da série determinam, fixam, constituem o modo de uso. Elas não costumam fazê-lo, porém, na independência umas das outras: mais frequente é que elas devam ser inter-relacionadas, por exemplo, que elas formem uma sequência interligada, na qual o seguimento de uma regra dependa do seguimento de outra. Característico disso é que as regras se concatenam, se combinam; que o modo de uso costuma consistir, não em uma regra só, mas em uma combinação de regras, e que essa combinação, embora possa já vir preestabelecida, pode ser também, em princípio, ilimitadamente variável (pense-se, por exemplo, nos programas de computação).
Com isso parece que encontramos a chave para a resposta à questão do sentido da palavra ‘determinação’, quando dizemos que as regras da gramática determinam o significado: o significado de uma expressão, seu modo de uso, é uma combinação de regras individuadoras do significado, regras que constituem a gramática específica de um jogo de linguagem ou de uma apropriada região da linguagem. Semelhante combinação não é vista como uma ocorrência singular, não se reduzindo a um acontecimento espaço-temporal, como o próprio significado. E como uma tal combinação pode ser ilimitadamente variada, a plasticidade e ilimitação do que queremos entender por significado segue preservada. Esclarece-se assim em que sentido o significado pode ser considerado algo “do tipo de uma regra”.
Uma outra analogia corrobora essa sugestão. Um lance feito no decorrer de uma partida de xadrez não é um ato destituído de sentido. Há nele uma espécie qualquer de significado. Em que consiste o sentido do lance? Certamente, não na regra simples, na regra básica pela qual ele é movido, pois nesse caso todos os lances com a mesma peça, em quaisquer circunstâncias, teriam o mesmo significado (o que sob uma perspectiva mais restrita é verdade). Mas o significado de um lance feito em uma partida de xadrez para aquele que o realiza, o seu significado “intencional”, constitui-se antes na estratégia que é por ele pensada, ou seja, no cálculo estratégico que ele faz: esse cálculo nada mais é do que uma combinação de possíveis regras simples, que poderiam ser aplicadas nos movimentos seguintes - no caso de um jogador profissional, não só complexas combinações eventuais de regras básicas, mas também estratégias (combinações conhecidas de regras básicas) das quais ele já tem domínio prévio. Se fosse perguntado pelo sentido de um lance realizado, o jogador responderia com uma descrição da combinação ou estratégia que ele tem em mente. Ora, também um lance (um proferimento) em um jogo de linguagem poderia ter seu significado identificado com algo como uma combinação de regras. – Com isso parece esclarecer-se mais um princípio semântico de Wittgenstein, o de que “o significado da expressão é aquilo que a explicação do significado explica” (PU 560). A explicação do significado nada mais é do que uma explicitação, mesmo que vaga e incompleta, das regras ou combinações de regras para a aplicação da expressão em jogos de linguagem.
Tais considerações devem se afigurar de algum modo familiares aos leitores da fase intermediária de Wittgenstein. Afinal, uma combinação de regras nada mais é do que um cálculo. Quando fazemos uma complexa operação aritmética, o cálculo não é mais do que uma combinação de regras mais elementares, as quais sabemos de cór. A isso objetar-se-á talvez que a ideia de que a linguagem funciona como um cálculo, ou, nas palavras de Wittgenstein, de que “o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo”, foi por ele abandonada e substituída pelo conceito mais flexível de jogo de linguagem, o que foi uma pedra de toque das interpretações, desde o livro de Pitcher até o comentário de Backer e Haker de 1980.
Essa interpretação, hoje se sabe, é incorreta. Sempre fora motivo de embaraço o fato de que Wittgenstein continuasse a fazer um uso positivo do conceito de cálculo, mesmo nos escritos posteriores à introdução da noção de jogo de linguagem, como se evidencia (em contradição com a conhecida crítica do § 81) nos §§ 26 e 559 das Investigações Filosóficas, e em certas passagens dos escritos sobre os fundamentos da psicologia. A razão disso ficou esclarecida na cuidadosa investigação do Nachlass publicada por S. S. Hilmy em 1987. Nela é mostrado como Wittgenstein usou nesses escritos as palavras ‘cálculo’ e ‘jogo de linguagem’ intersubstitutivamente. Como observa Hilmy: “No começo dos anos 30 ele tinha já claramente em um sentido abandonado o que pode ser chamado ‘o modelo do cálculo do Tractatus'. No entanto, ele continuou a usar o termo ‘cálculo’ em um sentido positivo para caracterizar a linguagem, e fez isso também na década de 40, longo tempo depois do  chamado ‘período transicional’ do começo dos anos 30.”14
O fato é que, quando Wittgenstein critica a noção de linguagem como cálculo nas Investigações, e mesmo bem antes, como na página 25 do Blue Book, ele não está atacando a ideia implícita de uma combinação de regras, mas uma série de associações indesejáveis que a palavra ‘cálculo’ traz à tona, principalmente as ligadas à noção de cálculo lógico, constituído por regras exatas, rígidas, explicitamente definidas. Mas tal não costuma ser o caso das regras implícitas, inexatas e facilmente alteráveis de nossos jogos de linguagem cotidianos. Como diz Hilmy: “Quando Wittgenstein critica a concepção da linguagem como cálculo, é com referência a um cálculo de uma espécie ideal, exata, e, mais especificamente, a espécie de papel que este cálculo ideal desempenhou no Tractatus.”15
Quando examinamos os exemplos de cálculo com a linguagem apresentados no período intermediário de sua filosofia, vemos que Wittgenstein usa a palavra em um sentido derivado, como quando se fala do cálculo estratégico feito em um jogo de xadrez, em um jogo de cartas, do cálculo que um jogador de futebol faz ao passar a bola. Também em tais acepções a palavra ‘cálculo’ preserva o sentido de uma combinação de regras. Assim, não há a menor evidência de que Wittgenstein tivesse rejeitado a idéia de que os lances dos jogos de linguagem envolvessem cálculos nesse sentido fraco de combinação de regras, que admitem ser alteradas e inventadas, que podem ser imprecisas, que não exigem que seus usuários estejam em condições de explicitá-las verbalmente. Pelo contrário: só essa suposição justifica que, no § 558 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein reafirme que a função de um símbolo deva se mostrar no decorrer do cálculo.
Com isso torna-se justificada uma reconsideração das passagens em que Wittgenstein dá exemplos de cálculo, em busca de uma melhor compreensão de como regras gramaticais podem determinar o significado, o modo de uso, caso essa determinação consista na combinação de tais regras. Afinal, ele parece em certos momentos dizer exatamente isso, como ao afirmar que “O sistema de regras, o qual determina um cálculo, determina deste modo também o ‘significado’ do signo.” (PB 152)
Antes de considerar alguns exemplos de cálculo neste sentido fraco sugerido pelo próprio Wittgenstein, gostaria de introduzir um esclarecimento geral, não acerca do tão polemicamente problematizado conceito de seguir uma regra (cap. V), mas acerca do conceito mesmo de regra, entendido como aquilo que as diferentes expressões de regra expressam em comum. Sem dúvida, se é possível estabelecer uma expressão de regra para uma regra particular, a qual é ela própria geral, embora de âmbito mais restrito, não há razão para se rejeitar que possa haver uma expressão do que seja a regra em geral, conquanto essa expressão seja uma manifestação linguística de nossa intuição comum, deixando a linguagem “como ela está”.
Contrariamente ao que se possa pensar, a reconstrução da noção de regra sob esta chave não se opõe às críticas wittgensteinianas ao essencialismo. Primeiro, porque a existência de expressões conceituais cujos casos de aplicação detêm semelhanças de família entre si (cap. VIII) não implica que todos os nossos conceitos gerais devam se fragmentar em casos de aplicação aparentados, nem que tais casos não possam ser eles próprios conceitos gerais unitários com expressões conceituais próprias. O próprio Wittgenstein considera essa última possibi- lidade ao contrastar o conceito de número, cujos casos de aplicação são múltiplos e aparentados, com o conceito precisamente definível (“streng umschriebenen") de número cardinal (PG 70).  Segundo, porque certas críticas ao realismo ontológico, como, por exemplo, ao tratamento que nele é dado a entidades abstratas como se elas fossem impalpáveis sombras (empíricas) de coisas empíricas (BB p. 17, BGM p. 63), não precisam ser interpreta- das como anti-essencialistas. Elas não impedem que uma concepção wittgensteiniana de essência possa ser resgatada como dizendo respeito à simples convenção, ao universal visto como uma espécie de “essência nominal” (BGM p. 64-5) (um conjunto modelar de condições de similaridade replicáveis de que guardamos memória), ou ainda, com relação a uma “essência real”, como algo que só as regras da gramática manifestam (pois “Das Wesen ist in der Grammatik ausgesprochen” (PU 371)), logo, como algo cuja inteligibilidade requer pleno resgate através de nossas convenções (PU 92, 97, BGM pp. 64-5).16
Consideremos então o que deve ser normalmente a expressão da regra em geral. Ela se baseia na idéia de que uma regra pode geralmente ser analisada como uma relação entre uma condição (ou grupo de condições) Cea ação A, que é a ação de segui-la, de tal modo que, dada a condição C, segue-se a ação A, não importando, para as considerações que pretendemos fazer, proceder a uma determinação precisa das espécies de relações que possam estar envolvidas - como C pode ser chamado de uma prescrição, podemos cognominar tal relação simplesmente de “relação prescritiva”. Desse modo, qualquer regra pode ser concebida como um caso da formula ou expressão geral de regra:
C => A
Nessa formula, C deve ser visto como o type de uma condição (ou conjunto de condições) qualquer, e A como o type e uma ação, entendendo por ação-type, não uma entidade abstrata, mas a classe aberta das ações-token similares entre si sob certo aspecto. Embora uma expressão de regra da gramática não tome necessariamente essa forma, ela pode em geral ser assim para- fraseada. A frase gramatical “A ordem ordena seu seguimento”, pode ser parafraseada como “Dada uma ordem, age-se segundo o que ela ordena”; a frase gramatical “A água ferve (sob condições normais de pressão etc.) a 100° C” pode ser parafraseada como “Se a temperatura da água chegar a 100° C, podemos concluir que ela ferverá”.
Também importa notar que os termos C e A não são para ser considerados em separado. A é sempre o modo de ação que se segue da condição C, pois nem toda ação que exemplifica A é a de seguir a regra em questão. Assim, um acontecimento empírico que exemplifique Al, mas que não siga as condições determinadas por Cl, não será considerado seguimento da regra Cl => Al, o que vale, mutatis mutandis para Cl, caso a sua presença não seja considerada prescrição para Al. Uma maneira de se tornar essa interdependência explícita é escrever:
'
C(A) => Â(C)
Essa observação torna evidente que falar do type A(C) da ação de seguir uma regra já é falar da própria regra, mesmo que de uma perspectiva determinada, que faz perceptível só um dos termos. Isso nos permite concluir que não podemos, quando identificamos o significado com o modo de uso, ao invés de identificar tal modo de uso com a regra de uso, objetar pela suposição de que o modo de uso seja simplesmente o type de usos singulares corretos, das ações-token de seguir a regra, e não a regra mesma; pois trata-se aqui da mesma coisa: o type de uma ação de seguir uma regra deve continuar a ser concebido como toda a regra, ainda que sob a perspectiva explicitadora da ação-type de segui-la.
A fórmula geral acima considerada pode ser um instrumento valioso em uma reconstrução do que Wittgenstein sugere. Com relação ao modo de ação de seguir a regra, ela nos permite distinguir dois tipos gerais de regra conversíveis entre si:
Tipo I: é o daquelas ações nas quais a ação-type A é o esquema de uma ocorrência empírica, que embora podendo ser de ordem psicológica, é freqüentemente também algo que se processa externamente, no mundo real. Exemplo do tipo I é a ação reflexa de pisar no freio diante de um sinal vermelho.
Tipo II: é o daquelas ações nas quais a ação-type A esquematiza um processo cognitivo, qual seja, o da tomada de consciência, da cognição, da constatação da existência de um determinado estado de coisas, o que resulta de certas condições C, aqui chamadas de critérios. Exemplo disso é o caso de um motorista que, vendo o sinal mudar para o vermelho, toma consciência de que não é mais permitido prosseguir. Nesses casos não costumamos dizer que a regra é seguida, mas aplicada.
Sobre essa distinção devemos notar primeiro que as regras de um tipo são conversíveis em regras equivalentes do outro tipo: regras do tipo I, realizadoras da ação – digamos, “Se o sinal está vermelho, pise no freio” – podem ser facilmente convertidas em regras do tipo II - por exemplo: “Se o sinal está vermelho, toma-se consciência de que se deve pisar no freio” - que são representadoras da ação, e vice-versa. Segundo: é muito claro que as ações humanas normalmente envolvem os dois tipos. Se nossas regras fossem apenas do tipo I, todos os nossos comportamentos teriam a forma de reflexos, de automatismos, de habituações não acompanhadas de atividade consciente. Se todas as regras fossem apenas do tipo II, nós seríamos seres puramente contemplativos, incapazes de passar da consciência à ação. Como a maioria de nossas ações é também consciente, segue-se que se trata de ações que combinam os dois tipos de regra precedentemente mencionados.
A aplicação dessa distinção ao que Wittgenstein diz é esclarecedora. Ele considera exemplos dos dois tipos de regra. Exemplos do primeiro tipo são ações que constituem mero resultado de adestramento, como pode acontecer quando a linguagem é aprendida. Trata-se de regras puramente performativas. Seguir essas regras não é um ato cognitivo, mas um ato cego, involuntário. No segundo caso, que é o que mais nos importa, os exemplos relevantes têm a ver com o que Wittgenstein chamou de modos, métodos de verificação: regras verificacionais, que para ele, mesmo nas Investigações Filosóficas, permanecem essencialmente ligadas ao que “queremos dizer” com os nossos enunciados (Cf. PU 353). A relação entre a regra de verificação e o significado como uso (aplicação) explicar-se-ia pelo fato de ela poder ser identificada com o modo de aplicação, entendido como a maneira pela qual genericamente se justifica o emprego do proferimento assertivo. Tais regras são essencialmente cognitivas, pois o resultado último da aplicação da regra ou método de verificação é a cognição da existência de um estado de coisas.
A isso liga-se uma outra noção importante, a de critério. Basicamente, critérios nada mais são do que condições (não importando o tipo) que, uma vez dadas, permitem a aplicação de uma regra verificacional, ou seja, a realização de uma verifica- ção, a cognição de um estado de coisas como efetivamente dado, a formação de um juízo; critérios são, pois, critérios de verdade de juízos ou asserções. Aliás, eles são também regras, pois, pelo que foi visto, um critério C só se concebe como C(A), que é um modo, uma perspectiva pela qual a regra total é concebida.
Em um importante exemplo presente na página 28 das Wittgenstein’s Lectures, 1932-1935, Wittgenstein relaciona explicitamente critério e regra de verificação, o que corrobora a nossa interpretação: “Os diferentes modos de se verificar ‘choveu ontem’ nos ajudam a determinar o significado. Ora, uma distinção poderia ser feita entre ‘ser o significado de’ e ‘determinar o significado de’. Que eu me lembre que choveu ontem me ajuda a determinar o significado de ‘Choveu ontem’, mas não é verdade que ‘Choveu ontem’ significa ‘Eu me lembro que  Nós podemos distinguir entre critérios primários e secundários de que está chovendo. Se alguém pergunta ‘O que é chuva?’, você pode apontar para a chuva caindo, ou derramar alguma água de uma caneca. Esses constituem critérios primários. Pavimentos molhados constituem um critério secundário e determinam o significado de ‘chuva’ de um modo menos importante.”
Note-se que o apontar para a chuva caindo tem aqui uma função semelhante ao apontar para uma cadeira e dizer: “Isso é uma cadeira”. Essa pode, como já vimos, ser uma frase gramatical expressa em uma definição ostensiva, o que é também exprimível sob a forma verbal: “A presença de tais e tais critérios (Cl) nos mostra que estamos diante de uma cadeira (Al)”. Também esclarecedora é, no caso acima, a distinção entre critérios primários (definitórios) e secundários ou sintomas, os quais parecem se constituir de modo adventício, probabilizando, mas não trazendo a certeza da existência do estado de coisas em questão (BB pp. 24-25). Os diferentes critérios são os modos de se “ter em mente” o sentido da frase. Isso não precisa conduzir, segun- do Wittgenstein, a uma dissolução da unidade de sentido da frase. O modo de verificação – e com ele o significado da frase – pode ser concebido como um único, já que os critérios secundários são sintomas de algo mais central, que é o critério primário, dado na observação que se tem como sendo direta (Cf. WWKpp. 158-9).
A conhecida identificação feita por Wittgenstein, em sua fase intermediária, entre o significado de uma frase e o seu modo de verificação é, pois, complementar a mais um princípio semântico seu, segundo o qual os critérios “dão a nossas palavras seus sentidos comuns.” (BB p. 57) De fato, se os critérios são condições antecedentes de regras cognitivas, e se essas regras (chamadas pelos intérpretes de regras criteriais) são regras de verificação, então toma-se natural que eles sejam determinadores do significado.
Com tais considerações em mente, analisarei primeiramente exemplos de cálculo, de combinações de regras, trazidos pelo próprio Wittgenstein. Uma série desses exemplos encontra-se no Brown Book, como é o caso do jogo de comando do § 33, em que, como resposta a articulações simbólicas como “aacaddd”, o ouvinte faz uma sucessão de movimentos diversamente direcio- nados em correspondência a cada letra diferente, e de compri- mentos diferentes como conseqüência da possibilidade de repetição de uma mesma letra. O exemplo de Wittgenstein que me proponho a analisar é, contudo, o da multiplicação “F” presente nas Lectures de 1930-32:
F 123
    753
    369 x
  615 y
861 z
92.619
Vale reproduzir o comentário de Wittgenstein:
“F é uma regra da gramática, ou um cálculo feito no papel; mas partes individuais do trabalho podem ser feitas de acordo com um dos cálculos mencionados. Assim, o passo x é para mim uma definição; o passo y é uma hipótese, mas o primeiro estágio deste, 5 x 3 = 15, é de novo uma definição. O resultado é uma hipótese. Uma outra pessoa poderá fazer o cálculo e chegar a um resultado diferentemente. Os passos individuais são regras da gramática e o processo como um todo é uma regra da gramática.”17
Wittgenstein considera aqui não só as regras típicas da gramá- tica, que ele chama de definições, e que são regras de hábito em cuja aplicação o erro, se houvesse, seria imediatamente corrigível, a exemplo das regras da tabuada. Ele chama de regra da gramática também a completa combinação dessas regras, o cálculo, que, sendo passível de erro, é por ele chamado de hipótese.
Digna de nota é também a possibilidade de se reduzir, não só os passos do cálculo, como o cálculo como um todo, à fórmula geral da regra, pois as condições intermediárias podem, no caso, por serem derivadas, ser abstraídas. Uma combinação de regras, embora não seja um hábito ou uma convenção, pode nesse sentido ser considerada, como o próprio Wittgenstein o faz, como uma regra; também ela é, em todo caso, do tipo de uma regra. Também é fundamental notarmos que a fronteira entre regras de hábito, que se condicionam como tais, e suas combinações, é gradual e variável: uma combinação de regras pode, por exercício, passar a ser concebida como uma regra simples - compare-se, por exemplo, a habilidade aritmética de uma criança à de um adulto.
Podemos agora procurar em Wittgenstein casos de combinações de regras, de cálculos que se aproximem do que realmente se passa na linguagem cotidiana, tanto de combinações performativas quanto de combinações que constituam regras cognitivas. Um caso de cálculo com regras performativas é apresentado por ele em um diálogo com F. Waismann. O exemplo trata do que poderia ser uma combinação de regras realizada para a compreensão da ordem: “Traga-me a gasolina”; convém transcrever a passagem: “O modo como nós usamos os signos, constitui o cálculo [...] Há entre o modo de aplicação de nossas palavras na linguagem e um cálculo, não algo como uma mera analogia; eu posso de fato conceber o conceito de cálculo de tal maneira que a aplicação da palavra cai sob ele. Eu quero logo explicar como entendo isso. Tenho aqui uma garrafinha de gasolina. Para que serve? Para lavar. Ora, nela está colado um rótulo com a inscrição ‘gasolina’ [...] Ora, essa inscrição é um ponto-de-assalto (Angriffspunkt) para um calculo, quer dizer, para a aplicação. Eu posso lhe dizer: ‘Traga a gasolina!’ E através dessa inscrição é dada uma regra, segundo a qual o senhor pode proceder. Se o senhor traz a gasolina, então está lá de novo um passo naquele cálculo que é determinado por regras.” (WWK p. 168)
Em primeiro lugar, não custa notar que no início desta passagem o modo de uso ou aplicação é identificado com o cálculo. Em seguida, há o que Wittgenstein chama de ponto-de- assalto do cálculo. Chegar a perceber a inscrição é o resultado de seguir uma regra de comando, mas a inscrição mesma é um novo ponto-de-assalto, que serve de condição para uma nova ação de seguir outra regra (a de trazer a garrafinha de gasolina), o que produz no todo, tal como no exemplo aritmético, uma combinação de regras. As regras aí em questão poderiam pressupor a regra gramatical listada anteriormente: “Uma ordem ordena a sua execução”, não se distinguindo categorialmente dela. Elas devem ser, todavia, ainda mais específicas, i. e., regras que são tidas como “simples”, de hábito, em qm jogo de linguagem muito localizado, por exemplo: “Uma garrafa costuma conter o que o seu rótulo descreve”.
Procuremos agora exemplos de regras cognitivas, de regras verificacionais. No parágrafo 25 das Lectures de 1930-32 há inicialmente uma observação, na qual Wittgenstein faz um uso equivalente das palavras ‘significado’, ‘verificação’, ‘lugar do símbolo em um cálculo’ e mesmo ‘modo de uso’, que cito com o fito único de dar confirmação textual à minha tese da existência de uma certa unidade intrínseca no pensar wittgensteiniano, por oposição à tendência escolasticista de interpretá-lo segmentando-o em compartimentos estanques: “Se você quer saber o significado de uma sentença, pergunte pelo modo de verificação. Eu sublinho o ponto de que o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo, o modo como ele é usado!' (grifos meus)
No exemplo que se segue a essa observação, Wittgenstein relaciona a diversidade das verificações particulares de uma sentença declarativa com a unidade de seu significado: “Atender para o modo como o significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge venceu a corrida de botes, o que verifica ‘Cambridge ganhou’, não é uma disjunção ‘Eu vi a corrida ou eu li o resultado ou [...]’ É mais complicado. De fato, se nós retirarmos qualquer dos modos de verificação do enunciado, nós alteramos seu significado. E, se nós retirarmos todos os modos de verificação, nós destruímos o significado.” 18
A regra que preside uma verificação particular efetivamente realizada constitui uma nuance intencional da asserção – ao que alguém mais exatamente havia tido em mente com essa última. Mesmo que esse elemento intencional sofra variações em diferentes asserções de mesmo conteúdo, é possível que as regras contingentes que o constituem se derivem de uma regra de verificação fundamental e única, que tenha por base critérios primários e observação direta, podendo ser efetivamente identificada com o que geralmente se entende como significado cognitivo ou conteúdo proposicional da asserção. (Cf. WWK pp. 158-9).
O mesmo exemplo também sugere que as regras criteriais determinadoras do cálculo sejam regras da gramática, exprimíveis em frases gramaticais. Embora Wittgenstein não se preocupe com um esclarecimento sistematizador, é razoável pensar que, na gramática constitutiva do sistema de regras que é este jogo de linguagem específico, hajam regras simples como: “A equipe cujo barco chega primeiro vence a corrida”, a qual, traduzida na forma de uma regra criterial, toma-se algo como: “Ver o barco de uma equipe chegar em primeiro lugar é (em circunstâncias normais) critério primário para a cognição do fato de ela ter vencido a corrida”. Essa regra pode ser então combinada com a regra para a identificação da equipe de Cambridge, formando uma regra composta, a qual verifica o enunciado “Cambridge ganhou”. Semelhante era o caso de um exemplo anterior, a multiplicação “F”. “5x3= 15” (do mesmo modo que “2 x 2 = 4”) é uma regra gramatical na qual “5 x 3 =>” é critério para a cognição do resultado “15”; “F” ou “753 x 123 =>” pode ser analisada de modo a derivar uma composição de critérios, dentre os quais costuma tomar parte “5 x 3 => 15”, para que se chegue ao resultado 92619. O procedimento, o cálculo, verifica a frase “753 x 123 = 92619”.
Também procurei demonstrar essa possibilidade em jogos de linguagem cognitivos simples, como o report-game concebido em um artigo de Stenius19. Nesse jogo, um ajudante de jardineiro deve informar sobre a situação de um local de um canteiro, aplicando uma regra de identificação a uma planta que se encontra nesse local, regra essa que deve ser conjugada a uma regra de predicação, somente aplicável quando a planta está florida. Combinações de critérios de identificação e de predicação constituiriam aqui a condição antecedente, uma composição criterial justificadora da aplicarão de uma combinação de regras, qual seja, da regra verificacional para o fato de a planta estar florida. As condições de aplicação da regra não seriam, nesses casos, sequencialmente, mas simultaneamente dadas.
O que se deixa concluir das considerações precedentemente esboçadas é a plausibilidade da ideia de que a identificação entre o significado e o uso possa ser concebida como uma identificação entre o significado e algo do tipo de uma regra: regras, combinações de regras mais ou menos específicas da gramática de jogos de linguagem, as quais também podem possuir o caráter cognitivo próprio das regras criteriais ou verificacionais. O significado cognitivo de um enunciado assertivo, seu conteúdo proposicional, pode ser em princípio entendido como o modo fundamental de sua aplicação, o qual é redutível a uma regra ou complexo de regras verificacionais, cuja existência e aplicação efetiva é uma condição justificadora de seu proferimento atual em asserções, de seu uso singular20. O apelo ao uso perde com isso o indesejável tom de misticismo semântico que os aforismos wittgensteinianos frequentemente não deixam de insinuar. O que mais justifica tal apelo, porém, é a sua função heurística, de situar a questão logo de início na praxis efetiva da linguagem, que preside a conexão necessária entre o significado e o contexto, entre o significado literal e as suas múltiplas e variadas ramificações intencionais.
A sugerida unificação de princípios semânticos comprova a posteriori, a sua própria possibilidade. À objeção: “Por que Wittgenstein nunca tentou uma tal exposição argumentada e sintética da gramática do conceito de significado?”, talvez devamos responder: por motivos vários (incertezas, contradições, lacunas argumentativas...), mas talvez também por motivos não muito diversos daqueles pelos quais Platão sempre se recusou a fazer o mesmo com a sua doutrina das ideias, cerne de sua filosofia e patrimônio inafiançável de seu pensamento.
Espero que esse resumo tenha tornado plausível a ideia de que os escritos de Wittgenstein ocultam, ou pelo menos estranhamente sugerem, estruturas racionais extraordinariamente complexas, que são as fontes reais de seu permanente interesse e influência, mas que subsistem nos textos como intuições fragmentariamente explicitadas, sem que seu autor conseguido articulá-las sistematicamente.
Uma adequada explicitação, organização e desenvolvimento de semelhantes estruturas deverá pôr a descoberto um outro corpo de ideias, nem sempre inevitavelmente coerente com as suposições do autor, mas mais poderoso, em virtude de sua capacidade de impor-se à razão, do que aquilo que alguns intérpretes de uma certa época e de determinadas correntes de pensamento nos haviam feito imaginar.







Notas
1            C. F. Costa. Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphilosophischen Semantik, Konstanz, 1990. As obras de Wittgenstein abreviadamente referidas são as do Werkausgabe de 1984 da editora Suhrkamp, com exceção dos The Blue and Brown Books, quando se usou a, edição inglesa de R. Rhees (1975).
2            Uma interpretação é uma seleção do que se julga ser demonstravelmente relevante num texto. Uma reconstrução consiste, basicamente, numa interpretação que acrescenta novas premissas, que não constavam no texto original e o tornam mais instrutivo. Um trabalho inspirado ou influenciado por um certo texto é geralmente aquele que não só lhe adiciona premissas, mas também desconsidera tudo aquilo que tiver sido tornado incompatível com tal adição. No caso de um texto tão ambíguo como o de Wittgenstein, pode ser difícil separar a segunda da terceira possibilidade. Ainda assim penso que o texto que se vai ler é essencialmente reconstrutivo.
3            Em The Grammar of Justification (New York, 1976), Richardson defende que “toda uma teoria do significado pode ser retirada da ideia de que o significado é o uso” (p. 45) e, em concordância com o que irei expor, conclui que a teoria criterial exemplifica a teoria do significado, pois critérios são convenções semânticas constitutivas de jogos de linguagem e justificadoras da aplicação da palavra nestes (p. 126).
4            P. Feyerabend. "Philosophical Investigations", in: G. Pitcher (ed.): Wittgenstein: The Philosophical Investigations. London, 1968, pp.104-150.
5            Carl Hempel. "Rudolf Carnap, Logical Empiricist", in: Synthese, Vol. 25, 1972-3, p. 264.
6            A. J. Ayer. Ludwig Wittgenstein, p. 137, New York 1985. Ver também S. S. Hilmy, The Later Wittgenstein: the Emergence of a new Philosophical Method, Oxford 1987, pp. 208-9.
7            Backer & Haker: Wittgenstein, Understanding and Meaning, Oxford 1980, p.489.
8            Ibid., p. 489.
9            Para esse autor coexistem na obra do segundo Wittgenstein duas concepções de filosofia, uma terapêutica, enquanto a outra “parece bem mais com algumas das tradicionais, mais imperialistas, visões da filosofia” (p. 43), buscando “abrangência de entendimento, uma visão clara do mundo” (p. 39) (“Wittgenstein on the Nature of Philosophy”, in: A. Kenny, The Legacy of Wittgenstein, Oxford 1984).
10         D. Lee (ed.): Wittgenstein’s Lectures, 1930-1932, Oxford, 1980, p. 85.
11         G. E. Moore, “Wittgenstein’s Lectures in 1930-33”, in: Philosophical Papers, London, 1963, p. 257. Cf. também E. K. Specht: Die Sprachphilosophischen und ontologischen Grundlagen im Spätwerk Ludwig Wittgensteins, (Kantstudien Erganzungsheft 84), Köln 1963, cap. V.
12         E. K. Specht: “Wittgenstein und das Problem des ‘a priori’”, in: Revue Internationale de Philosophie, 88/89, (1969), pp. 167 ss.
13         Se essa última afirmação, literalmente tomada, for correta – o que não creio - a acusação de ser sem sentido aplica-se também à nossa própria tentativa de propiciar uma representação panorâmica, “teorética”, dos princípios gramaticais constitutivos do conceito geral de significado. Mas isso não vale como objeção interna: se somos contraditórios, Wittgenstein também o é.
14         S. S. Hilmy, Ibid., p. 98.
15         S. S. Hilmy, Ibid., p. 106.
16         A atitude de Wittgenstein, que, pendendo para o nominalismo, só aborda muito tangencialmente a questão dos universais, evidenciase na evasiva colocação de F. Waismann: “Não é como se quiséssemos negar a existência do zero e reconhecer apenas a do signo. (Pense no que pode significar a frase ‘O zero não existe’!). Nós passamos apenas a um outro domínio da gramática, onde somos sujeitos a menos perigos. Nós não fugimos do abstrato para o concreto; nós queremos somente considerar as coisas, uma única vez, sem preconceitos.” (Logik, Sprache, Philosophie. Stuttgart 1977, p. 131).
17         A. Ambrose (ed.). Wittgenstein’s Lectures, 1932-1935, Oxford 1979, pp. 96-97.
18         A. Ambrose, Ibid., § 25.
19         E. Stenius. “Mood and language-game”, in: Synthèse 17 (1967), p. 263 ss. Ver também E. Tugendhat e U. Wolf: Logisch-semantische Propüdeutik, Frankfurt 1983, pp. 235-6.
Exceções a essa forma genérica de verificacionismo podem ser reinterpretadas e evidenciadas como sendo aparentes. Exemplo: Sepodemos considerar João como tendo sido corajoso, embora ele tenha morrido sem ter podido demonstrar a sua coragem (não havendo qualquer outra razão para que creiamos nisso), parece então que temos um enunciado significativo, mesmo que inverificável - o que conduz à sugestão de que não é necessária uma regra de verificação para que tenhamos um enunciado significativo, bastando que sejamos capazes de reconhecê-la, caso ela nos for dada (Dummett).
Tal sugestão parece-me desnecessária, pois o conteúdo preposicional acima considerado não é significativamente enunciável ou asserível, tendo apenas um significado lexical. Temos apenas a impressão de que asseri-lo é possível, dado que podemos isolar tal conteúdo preposicional e inseri-lo, por exemplo, em asserções modais como “É possível que João fosse corajoso”, que se assemelham à pseudo-asserção “João era corajoso”, que é absurda. Uma tal asserção modal é perfeitamente significativa, dado que para ela temos procedimentos verificacionais (basta, para tal, ter verifica- do que João era um ser humano, pois se era humano, pode ter sido corajoso.)
20         Maneira de ver semelhante encontro em A. J. Ayer, para quem especificar o uso, entendido como o significado de uma sentença declarativa, é descrever os estados de coisas que a verificam (The Concept ofPerson, London 1963, pp. 22-23).








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