Esse artigo foi publicado
em A linguagem factual. Deverá ser
republicado com correções.
WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO
Ao
escrever este resumo argumentado de minha tese doutoral,1
defrontei-me com a seguinte dificuldade: como condensar o conteúdo de um
trabalho sistemático, no qual os argumentos particulares só adquirem poder de
convicção quando compreendidos em sua relação com o todo, sem simplificar em
demasia e aparentar inconsciência das dificuldades envolvidas? Para que esse
inconveniente fosse amenizado, segui a estratégia de me restringir a algumas ideias
centrais envolvendo a noção de regra semântica, desenvolvidas nos capítulos I,
VI e VII, abstraindo de muitas outras questões interpretativas a elas
relacionadas.
Começo
enunciando a tese mesma. O objetivo proposto foi, através de um trabalho de
reconstrução racional,2 que procedesse pelo esclarecimento de
supostas relações entre os diferentes princípios semânticos sugeridos nos
escritos de Wittgenstein, o de esboçar os traços gerais de uma teoria do
significado filosoficamente relevante, concebida como uma elucidação genérica
da gramática desse conceito - o que redundaria em um esquema conceitual
esclarecedor do que precisa ser sabido para a compreensão de expressões
quaisquer.
Há,
na literatura secundária, pelo menos duas tentativas de se extrair semelhante
teoria dos escritos de Wittgenstein: o livro de J. T. E. Richardson3
e um artigo de Paul Feyerabend.4 0 resultado não especialmente elucidativo
desses trabalhos deve-se, ao meu ver, em parte, ao modo demasiado
interpretativo de aproximação das questões.
O
pressuposto orientador de minha reconstrução pode ser visto como um “principle
of charity”, maximizador do corpus de frases verdadeiras. Esse pressuposto é o
de que as diferentes sugestões feitas por Wittgenstein sobre a natureza do
significado, as quais relacionam-no com o uso, com a sua explicação, com o
método de verificação, com critérios, com regras da gramática, com um cálculo, e
até mesmo com a correspondência de sentenças com fatos possíveis, devem ser
preferencialmente vistas como diferentes meios de aproximação do mesmo problema
ou de aspectos dele – diferentes metáforas elucidativas – e não como
incompatíveis tentativas de explicação, por vezes inconsistentemente agrupadas,
ou que teriam sido abandonadas sempre que o filósofo se apercebia de sua inadequação,
como se ele estivesse progredindo por um método cego de tentativa e erro.
Uma
maneira de ilustrar esse ponto de vista é evocando a parábola dos cegos e do
elefante. Cada cego apalpa uma parte do elefante, descrevendo-o de maneira
diferente: um diz que é uma corda, porque toca a sua cauda; outro abraça a sua
perna afirmando tratar-se do tronco de uma árvore; outros, apalpando outras
partes, dizem que se trata de um grande pára-vento, de um sifão, de um muro...
Wittgenstein, ao contrário, estava suficientemente consciente de estar se
aproximando de um mesmo problema por diferentes meios, sob diferentes ângulos,
considerando a diversidade de seus aspectos, abandonando a perspectiva escolhida
quando o poder de esclarecimento de suas analogias parecia esgotar-se, o que frequentemente
acontecia pelo encontro de dificuldades incontornáveis. Essa é uma razão da
alusividade de seus escritos; ele tomava o cuidado de não generalizar suas
sugestões ao modo dos cegos da parábola e de alguns de seus intérpretes, o que
ocorre mesmo em suas sempre matizadas alusões aos “erros” do Tractatus.
I
Uma
dificuldade metodológica que se apresenta sempre que tentamos uma reconstrução
sistematizadora do que Wittgenstein escreve, diz respeito a sua concepção de
filosofia. Trata-se da objeção, que hoje sabemos ser interpretativamente simplificadora,
segundo a qual ele a teria concebido como desempenhando uma função meramente terapêutica,
qual seja: a de uma atividade puramente crítica, constituída de simples
descrições de casos de aplicação da linguagem. Tais descrições seriam capazes de
promover, pela mera apresentação de contra-exemplos, uma espécie de reductio ad absurdum de pretensas
teses filosóficas, originadas de confusões conceituais locais, engendradas pela
mente metafísica - o que excluiria qualquer atividade teorética ou explicativa.
Tal concepção não é a minha, nem julgo sua pressuposição necessária.
Apesar
das aparências, veiculadas pelo fato de a filosofia do último Wittgenstein ser
crítica no conteúdo e fragmentária na apresentação, a dificuldade metodológica
que assinalamos pode ser refutada; – primeiro externamente, por considerações
acerca do conteúdo de seus escritos, depois internamente, em alguma medida, por
uma interpretação mais circunstanciada de suas considerações sobre a natureza
da filosofia.
Quanto
aos escritos de Wittgenstein, é correto afirmar que a sua filosofia terapêutica
não se faz sem pressupostos teoréticos, explícitos ou não. Como observou Cari
Hempel: “Mesmo que a filosofia se limitasse, casuisticamente, a ajudar moscas individuais
a escaparem de suas particulares garrafas papa-moscas, semelhante atividade
filosófica ou terapia estaria ainda assim enformada em princípios gerais. Uma
mosca presa numa garrafa, um homem preso num labirinto precisa ser conduzido para
fora com seus olhos envoltos em uma bandagem: ele seguirá seu condutor
cegamente e irá finalmente encontrar-se a si mesmo lá fora, mas ele não irá
compreender como foi preso nem como foi trazido para fora. Mas não há nenhum
análogo a esse modo de libertação física no caso da pessoa filosoficamente confundida
em um labirinto. O único meio de trazê-la para fora é com seus olhos abertos, como
que mostrando o caminho da saída, para usar uma expressão de Wittgenstein; quer
dizer, ela deve vir a entender qual a parte da armadilha foi deixada em primeiro
lugar e como evitar que o mesmo aconteça em outras situações semelhantes. E
isso sempre requer ‘insights’ de um tipo geral, concernentes, por exemplo, a
contextos linguísticos de um determinado tipo, cujas regras gerais são então
projetadas no caso particular em questão.”5 A eficácia da terapia
provém do fato de o paciente se dar conta de que a sua dificuldade é ocasionada
por pressupostos que contradizem princípios cujo nível de generalidade e
abstração deve equivaler ao das próprias ideias filosóficas criticadas, e isso
se dá à revelia das supostas pretensões antiteoréticas de Wittgenstein.
Isso
é tomado evidente quando consideramos o conteúdo sugerido pelas anotações de
Wittgenstein, como, por exemplo, o argumento contra a possibilidade de uma
linguagem originariamente privada. Como observou A. J. Ayer sobre a afirmação
wittgensteiniana de que a filosofia não deve explicar, mas somente descrever: “sua
repetida preferência por descrições e não pela explicação, e sua abstenção de
teorias cuja prática ele assevera realizar e reivindica para os seus leitores,
não são características de seu procedimento atual em qualquer estágio de seu
desenvolvimento, inclusive nas Investigações Filosóficas. Que suas explicações
sejam rúnicas, isso não as reduz a descrições; suas teorias não deixam de sê-lo
por serem encobertamente assentadas”.6
Embora
pertinente, essa objeção não chega a ser inteiramente justa. A noção de
descrição não precisa ser assimilada a algo equivalente à descrição
não-explicativa de uma paisagem.
Também
Strawson e Searle chamam as suas atividades de “descritivas”, embora elas sejam
obviamente explicativas e teoréticas. Mas o que se pretende com esse modo de
dizer é assinalar a natureza metalinguística
de uma investigação teorética que procede a uma exposição daquele nosso
conhecimento tornado a priori como regras de funcionamento da linguagem; é
apontar o caráter não-revisionário dessa investigação; é aconselhar que ela seja
feita em um “modo formal” de discurso, que considere essas regras na abstração
de sua aplicação concreta e praticamente motivada. A ênfase na descrição resume-se
então a pouco mais que um playdoier
por esse modo formal, no qual os referidos princípios são descritivamente expostos. Ora, não seria esse também em
Wittgenstein um intuito implícito?
Parece
que sim, pois é possível evidenciar que o sentido por ele dado à palavra
‘teoria’, e com ele o de todo um grupo de palavras semanticamente interdependentes,
como ‘explicação’, ‘descrição’, ‘hipótese’, ‘tese’... afasta-se do sentido
usual, o que, como em outros casos de termos por ele usados em sentido peculiar,
pode confundir o intérprete.
Com
a palavra ‘teoria’, hoje o sabemos, Wittgenstein geralmente tinha em mente a
espécie científica de teoria. Intérpretes como S.S. Hilmy e a dupla Backer
& Haker mostraram que ele queria criticar a assimilação do trabalho do
filósofo à concepção e ao método da ciência, tendo em mente uma crítica às
concepções de filosofia de Russell e James. Como consideram Backer e Haker: “A
objeção de Wittgenstein ao ‘teorizar’ em filosofia é uma objeção à assimilação
da filosofia, em método e em produto, a uma ciência teorética hiperfísica. A
filosofia não é hipotético-dedutiva. Mas, se esmeradas refutações ao idealismo,
solipsismo ou behaviorismo, envolvem um esforço teorético, Wittgenstein se
engaja nele [...]”.7
Essa
interpretação é corroborada pelo uso positivo do conceito de teoria que
Wittgenstein às vezes faz. Em Zettel, § 144, ele escreve: “nós temos agora uma
teoria, uma teoria ‘dinâmica’ da frase, da linguagem, mas ela não nos parece
uma teoria”. Com isso ele quer se opor a algo como a “filosofia científica” de Russell,
que propõe teorias hipotéticas à semelhança da ciência, bem como suas
“explicações” e “teses”. Em escritos inéditos, observa Hilmy, Wittgenstein chega
a empregar uma expressão extravagante para o que ele faz, chamando-o de “teoria
da relatividade da linguagem”. Trata-se, em tais casos, da teoria entendida
como uma descrição de traços fundamentais da gramática de certos termos muito
gerais e de aplicação sobremodo complexa, uma teoria que não vem estruturada
como um sistema arquitetônico no sentido kantiano, mas antes no sentido
schopenhaueriano - referido, aliás, pelo próprio Wittgenstein - de um sistema que
se desenvolve como um organismo, em uma discussão aporética, indefinida.
O
conceito mais característico dessa dimensão construtiva da filosofia
terapêutica é o de apresentação
panorâmica, que é como tento traduzir a expressão “übersichtliche Darstellung”. A apresentação panorâmica , escreve Wittgenstein,
“designa a forma de nossa representação, a maneira como vemos as coisas” (PU
122). Para ele a falta dessa visão geral é importante fonte de erros, razão
pela qual torna-se filosoficamente relevante a tarefa de encontrar (finden) os elos existentes entre os
conceitos, e mesmo de inventá-los (erfinden),
estabelecendo-se assim uma ordem possível (PU 122, 132). A representação
panorâmica é como uma fotografia aérea da gramática; do mesmo modo que a fotografia,
ela ressalta os traços mais fundamentais, perdendo em nitidez quanto aos
detalhes mais específicos. A elucidação filosófica pode conseqüentemente
assumir uma forma semelhante ao que Strawson quis entender com a expressão
metafísica descritiva, cuja função é a de oferecer-nos elucidação das relações
vigentes entre nossas estruturas conceituais mais fundamentais, um
esclarecimento capaz de nos prover de maior transparência semântico-conceitual,
de uma compreensão mais clara de nossas frases (WWK p. 223, PU 90). Tal
representação panorâmica não pode ser outra senão teorética. Transcrevendo-se mais
uma vez as palavras de Backer e Haker: “Se a filosofia é uma questão de
representação panorâmica, então deve haver sistema. Pois uma sinopse não pode se
constituir de uma casual coleção de aperçus.
Se ela não é abarcante, ela é ao menos sistemática.”8 O máximo que se pode
afirmar é que Wittgenstein consideraria o trabalho sistemático inadequado como
estratégia heurística em filosofia.
Não
é então forçoso concluir, como o fez A. Kenny,9 que Wittgenstein defende
simultaneamente duas concepções incompatíveis de filosofia, uma terapêutica e
outra mais construtiva e ortodoxa, posto que uma análise mais aproximada tende
a desfazer a suposta tensão existente entre elas. Com sua insistência no aspecto
terapêutico, o que Wittgenstein pretendia não era tanto excluir a teorização
autenticamente filosófica, quanto censurar a pressa dos filósofos em fabricar
fabulações especulativas que um mapeamento suficientemente cuidadoso dos fatos linguísticos
teria tornado dispensáveis. (BB p. 19)
Parece
assim claro que a crítica à metafísica pressupõe ela própria, implicitamente,
uma outra metafísica, ainda que “descritiva”, a qual baseia seu maior poder de
convicção nos pressupostos comuns da linguagem. E isso é assim porque terapia e
representação panorâmica, atividade crítica e atividade teorética, são como
duas faces inseparáveis da mesma moeda filosófica, cabendo a fatores
extrínsecos às questões mesmas que o filósofo se concentre mais em um ou outro
lado desta.
Admitida
essa duplicidade, pode-se ainda argumentar que a importância de uma teoria do significado,
entendida simplesmente como uma representação panorâmica da gramática constitutiva
desse conceito, também resida em funções terapêuticas, as quais se realizariam
em dois níveis. Em um nível mais geral, a terapia se aplicaria criticamente a
certos modelos de “teoria do significado”, como o objetualista, o causal, o
representacional... Em um outro nível, mais específico, a função terapêutica de
tal representação panorâmica poderia ser assim definida: desde que para a
compreensão do significado de qualquer frase, já precisamos ter de antemão uma
compreensão implícita do que o significado seja, a elucidação do conceito geral
de significado explicitaria pressupostos que de outro modo poderiam ser
equivocamente alterados em considerações sobre o significado de outros termos
filosoficamente relevantes - pressupostos que funcionariam então como
instrumentos heurísticos no correto esclarecimento dos significados desses
termos.
II
Feitas
essas considerações preliminares, passo ao tema do primeiro capítulo, que é um
exame da identificação feita por Wittgenstein entre o significado de uma
expressão linguística e o seu uso ou aplicação. O papel central da identificação
e a relativa simplicidade do conceito de uso tornam esse um ponto de partida
adequado.
Na
fórmula “o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (PU 43; PG 23; BB
p. 69), a noção de significado é suficientemente
clara: trata-se de significados de expressões linguísticas, não só de palavras,
mas também de frases, pois essas são também “instrumentos para aplicações
específicas” (PU § 291). Não se trata, ademais, simplesmente daquilo que costumamos
chamar de significado lexical ou literal das expressões, concebido como aquele
normalmente considerado na abstração dos contextos
- tanto materiais quanto representacionais e linguísticos - em
que elas são aplicadas. Em Wittgenstein, o significado de uma expressão é
sempre intencional e contextuai. Ele está intrinsecamente ligado ao que se “intenciona
dizer”, ao que se “quer dizer”, ao que se “tem em mente” com a expressão em um
sentido que, veremos, não é meramente psicológico, mas função de regras ou
convenções. Esse elemento intencional, por sua vez, é contextualmente
dependente, pois é o contexto, em sentido amplo, que esclarece a intenção,
permitindo a diversificação do que se “quer dizer”. Considere-se, por exemplo,
uma frase como “Antônio visitou Calpúmia”. Ela tem um significado lexical,
mesmo que não saibamos quem são Antônio e Calpúmia, nem quando e por que Antônio
a visitou. Tal não é possível com o sentido mais determinado da palavra
‘significado’ que Wittgenstein quer considerar. Para ele, quando não se tem
“algo a dizer” com uma frase, quando ainda não se tem aberto o caminho de sua
vinculação ao contexto, ela deixa de servir ao seu fim, deixando de ser
verdadeiramente, relevantemente significativa. Daí fica mais fácil entender a
razão pela qual ele diz que “é no uso que as palavras vivem”; que o uso é “seu sopro
vital”; que elas só ganham sentido “no fluxo da vida” (Z 135; PU 432). É por
seu necessário prolongamento intencional, pelo fato de este “querer dizer” ter
uma relação necessária com contextos particulares que definem o pleno significado
da expressão, que o significado tem propriamente a ver com o uso.
Uma
investigação da natureza deste significado-intenção, deste sentido de
utilização contextualmente determinado, justifica-se muito particularmente em filosofia,
dado que as perplexidades semântico-conceituais que permeiam qualquer reflexão filosófica
não dizem respeito simplesmente aos significados lexicais ou literais, mas às confusões
e aos equívocos que as semelhanças entre os múltiplos significados intencionais
permitem que sejam produzidos nos contextos linguístico-representacionais de
argumentações metafísicas.
Passemos
agora a uma análise da noção de uso na equivalência entre significado e uso.
Como essa equivalência parece intuitivamente fazer sentido, e tendo o primeiro
termo da relação, a palavra ‘significado’, o sentido exposto anteriormente, a estratégia
argumentativa seguida consistiu em analisar os diversos sentidos da palavra
‘uso’ em busca daquele sentido “privilegiado”, em que ela satisfizesse a identificação
sugerida.
‘Uso’
não significa, evidentemente, o que poderíamos denominar uso singular de uma expressão:
o uso entendido como ocorrência, a realização espaço-temporalmente localizada
de um proferimento. Se assim fosse, uma mesma expressão teria um significado
diferente a cada vez que fosse proferida, o que é absurdo. Não se trata,
também, do uso arbitrário, não-convencional, como o de Humpty-Dumpty, cuja
presunção era a de achar que suas palavras significavam simplesmente o que ele quisesse
que significassem. Afinal, se as palavras significassem tudo o que quiséssemos,
elas não seriam capazes de significar mais coisa alguma. Se não se trata do uso
arbitrário, trata-se então do uso correto?
Do uso em conformidade com regras? Parece que sim, mas há um sentido em que
essa sugestão deve ser recusada; é quando o uso em conformidade com regras é entendido
como um determinado uso singular.
Nesse caso, correto ou não, ele continuará sendo um outro a cada nova aplicação
da mesma expressão, devendo pois alterar-se, tornar-se outro o seu sentido a
cada aplicação, o que obviamente não se dá.
Felizmente,
a palavra ‘uso’ não funciona somente na designação de uma simples ocorrência
espaço-temporal de algo. Na linguagem ordinária, ‘uso’ (Gebrauch) é uma palavra que geralmente funciona como abreviação de
‘modo de uso’ (Gebrauchsweise). É
possível dizer: “Eu fiz uso da [usei a] palavra x de acordo com seu uso'. Nessa
frase a palavra ‘uso’ ocorre duas vezes. Em sua primeira ocorrência ela designa
somente um uso singular da palavra x, a realização espaço-temporal, não sendo aqui
possível substituir ‘uso’ por ‘modo de uso’. Mas na segunda ocorrência sim. E
possível que se diga: “Eu fiz uso da palavra de acordo com o seu modo de uso". Importante é notar
que algo paralelo ocorre quando procuramos substituir a palavra ‘uso’ pela
palavra ‘significado’ na frase acima. Na primeira ocorrência a substituição não
faz sentido. Não faz sentido dizer: "Eu fiz significado da [signifiquei a] palavra x de acordo com
seu uso”. Na segunda ocorrência da palavra ‘uso’, entretanto, a substituição é
perfeitamente legítima. Pode-se dizer: “Eu fiz uso da palavra x em concordância
com seu significado [modo de uso]”. Com
efeito, só faz sentido identificar significado e uso quando este último é entendido
como uma forma abreviada de se falar do modo, da maneira pela qual a expressão
é aplicada. É Wittgenstein quem por vezes toma o cuidado de dizê-lo. Em várias passagens
de seus escritos ele identifica significado com o modo ou a forma como a
palavra é usada. “Um significado de uma palavra”, diz ele em Sobre a Certeza,
“é um modo de sua aplicação (eine Art seiner Verwendung)” (ÜG 61).
Mas
o que é o modo de uso? o modo de aplicação? Há na linguagem uma paráfrase adequada
para o que essas expressões querem dizer? Consideremos o seguinte exemplo.
Alguém recebe em casa um aparelho eletrônico. Na embalagem encontra-se um
folheto explicativo intitulado:
MODO DE USO
Esse
título vem, como de costume, seguido de uma série de instruções sobre a maneira
como o aparelho deve ser utilizado. Aqui o sentido da expressão se toma transparente:
‘modo de uso’ é o nome que se dá a uma prescrição, a uma regra ou conjunto de regras,
comumente interligadas, de cuja explicitação as instruções dão conta. Esse
também é o caso quando se fala dos modos de aplicação de uma ferramenta, que se
diferenciam pela diversidade das regras de manuseio. O que se tem em mente são
sempre prescrições: regras especificadoras dos usos singulares.
A
aplicação do mesmo raciocínio à identificação wittgensteiniana nos leva a
perguntar se todo o sentido que tal identificação possa ter não se reduz a uma
identificação entre o significado, o modo de uso, e certas regras, que seriam regras de uso. Há para tal sugestão prós
e contras a serem discutidos. A favor dela está o fato de que o significado não
se reduz a um simples acontecimento espaço-temporal, à diferença do uso
singular. O mesmo podemos dizer das regras. Somente a aplicação da regra é um acontecimento espaço-temporal singular,
mas não a regra mesma, designada pela expressão de regra (Ausdruck der Regei), e que se deixa conceber ao modo de uma função
que se instancia em suas aplicações singulares. Também fala a favor da identificação
o fato de que percebemos que pertence à natureza das regras serem, digamos assim,
doadoras de significado. A regra-signo (Zeichenregel) “=>” orienta-nos
forçosamente para a direita, o que dá sentido ao traço no papel. A doação de
significado é uma propriedade constitutiva das regras: onde há regra há
sentido.
Vejamos
agora as objeções. Embora Wittgenstein chegue a dizer, ao menos em uma passagem
das Lectures de 1930-32, que o significado de uma palavra consiste nas regras
gramaticais que a ela se aplicam,10 ele costuma evitar uma identificação direta.
Assim, em Sobre a Certeza ele diz que o significado, sendo o modo de aplicação,
corresponde a regras (Cf. ÜG 62). E segundo o relato de Moore em suas anotações
das Lectures de 1930-33, ao lhe perguntarem se o significado de uma expressão não
seria uma lista de regras, Wittgenstein teria respondido com a insinuação de
que uma tal concepção poderia estar associada a uma reificação, através da qual
o significado estaria sendo tratado como se fosse algo visível. Essa observação
deixa-se interpretar como uma crítica a uma suposta perda da plasticidade inerente
ao significado intencional, que teria de ser admitida no caso de ele ser
identificado a uma regra ou lista de regras.
Nas
mesmas anotações feitas por Moore na passagem que antecede a anteriormente
considerada e cuja importância foi aliás apontada por E. K. Specht,
Wittgenstein aproxima significado e regra de uma maneira mais informativa: “o
significado de qualquer palavra singular em uma linguagem é ‘definido’ (defined), ‘constituído’ (constituted),
‘determinado’ (determined) ou ‘fixado’ (fixed) pelas regras da gramática, com
as quais ela é usada naquela linguagem.”11 A questão cuja resposta pode ser
esclarecedora toma-se, por conseguinte: o que se pode entender por determinação
(definição, constituição, fixação) do significado ou modo de uso pelas regras
da gramática? E essa questão pressupõe a resposta a uma outra: o que são as
regras da gramática?
Sendo
assim, abandonarei provisoriamente a questão da determinação do significado por
regras para considerar a noção wittgensteiniana de regra gramatical. Com a
expressão ‘regra da gramática’ ele quer se referir, como observa E. K. Specht,
ao que é expresso por frases a priori: frases que se diferenciam das frases empíricas
costumeiras devido à sua necessidade e direta evidência.12 Como escreve
Wittgenstein: “reconhecer uma frase como absolutamente certa significa usá-la
como regra gramatical. Com isso se a priva de incerteza.” (BGM p. 88) Não se
trata, porém, de regras altamente genéricas, como as da lógica formal, mas de
regras mais ou menos específicas, como as expressas pelas frases seguintes,
recolhidas dos textos de Wittgenstein:
(i)
O
vermelho é uma cor.
(ii)
Duas
cores não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo.
(iii)
Branco
é mais claro do que preto.
(iv)
5
é um número.
(v)
A
soma dos ângulos de um triângulo é de 180°.
(vi)
2.2
= 4.
(vii)
A
ordem ordena seu cumprimento.
(viii)
A
água ferve a 100° C.
(ix)
Eu
não posso sentir as dores dos outros.
(x)
Eu
sei que sou um homem.
(xi)
Eu
tenho duas mãos.
(xii)
Todo
bastão tem um comprimento.
(xiii)
Isso
é uma cadeira.
(xiv)
Paciência
se joga só.
Típico
dessas frases é que elas expressam convenções que se tornam hábito, e que no
funcionamento dos sistemas lingüísticos que as pressupõem não se fazem mais
passíveis de dúvida, uma vez que elas costumam fundamentar o que neles ocorre. “Toda
frase de experiência”, escreve Wittgenstein, “pode funcionar como regra, se ela
é - como a parte de uma máquina, tornada imóvel, de modo que toda representação
gira em torno dela e ela torna-se parte de um sistema de coordenadas e
independente dos fatos.” (BGM p. 437) Com isso, na praxis desses sistemas elas se
fazem tautológicas, não-informativas, e portanto, no dizer de Wittgenstein,
“destituídas de sentido.”13
Frases
gramaticais diferem de expressões de regras como as da lógica formal, pois,
diferentemente dessas, elas dizem respeito a domínios ou regiões mais ou menos
específicas da linguagem, podendo ser, para fins filosóficos, tematizadas em
uma espécie de “lógica informal” (Ryle). As frases (i), (ii) e (iii), por exemplo,
expressam regras pertencentes ao que Wittgenstein chama de linguagem das cores;
as frases (iv), (v) e (vi) expressam regras pertencentes à linguagem da
matemática; a regra expressa em (vii) fundamenta os jogos de comando; as outras,
por sua vez, são constitutivas dos sistemas de linguagem da física (viii), das
sensações (ix), da identificação pessoal, como (x) e (xi), da mensuração e
identificação de objetos materiais, como (xii) e (xiii) etc. A frase (xiii),
“Isso é uma cadeira”, é uma frase gramatical quando concebida como ocorrendo no
contexto de uma definição ostensiva de um certo tipo de objeto; ela torna-se no
caso a expressão que exemplifica uma regra da gramática, da qual o próprio
objeto participa como elemento constitutivo da expressão. Nesse caso ela pode
ser também substituída por uma definição mais completa, que prescinda do contexto,
a definição verbal: “Uma cadeira é um objeto com tais-e-tais características”.
As
regras da gramática constituem sistemas de regras, que formam regiões mais ou
menos especificas da linguagem, as quais são geralmente denominadas, quando
mais específicas, jogos de linguagem (cap. III). Podemos chamar de Jogos de linguagem
(entre outras coisas) quaisquer fragmentos identificáveis da linguagem, que se
deixam analisar como sistemas localizados de regras ou convenções geralmente
implícitas, as quais são tidas como simples ou básicas no âmbito do próprio
jogo. Eles são basicamente constituídos de quatro elementos: signos, participantes,
contexto e regras ou convenções, as quais associam signos, participantes e contexto
em conexões significativas. Podemos atomizar de muitas maneiras o todo da
linguagem em jogos de linguagem cada vez mais simples, e depois construí-la
outra vez pela combinação e ampliação dos últimos. Ainda que imperfeita, é aqui
oportuna a comparação feita por Wittgenstein entre a linguagem e uma nebulosa:
“O quadro que temos da linguagem do infante é aquele de uma nebulosa massa de
linguagem, sua língua materna, circundada por discretos e mais ou menos
distintos jogos de linguagem, as linguagens técnicas.” (BB p. 81)
Vemos
também que a maior especificidade das
regras da gramática é a razão de sua relevância semântica: o significado precisa
ser algo característico de um signo ou combinação de signos. Por isso, regras
muito gerais, como as da lógica formal, não costumam possuir o grau de
especificidade requerido para individuar o significado, especialmente quando o
que queremos levar em conta é a multiplicidade de suas extensões intencionais contextualmente
determinadas. Esse ponto pode ser ilustrado se compararmos o processo de
compreensão do significado de uma expressão com o trabalho de um carteiro na
procura de um certo endereço. ítens como o país e a cidade são excessivamente genéricos;
eles são de muito pouca valia, quando já não vêm pressupostos. Também nossas
frases de conteúdo seguem regras como as investigadas na lógica formal, que por
sua generalidade são insuficientes para individuar seus significados. O que
permite ao carteiro chegar efetivamente onde deve são os itens mais específicos
do endereço, como os nomes da rua e o número da residência onde mora o
destinatário. O mesmo se dá com o que poderíamos chamar de “individuação
semântica” de uma expressão; para que ela seja possível é necessário recorrer a
regras ou articulações de regras cuja aplicação se circunscreve à expressão da
qual queremos determinar o significado ou a sinônimos dela.
Como
Wittgenstein escreveu: “o lugar da palavra na gramática é seu significado”. (PG
23) Com efeito, se algo o localiza, são as regras mais específicas da gramática. São elas as responsáveis pelas-
finas modulações semânticas que importam à atividade filosófica.
Voltemos
agora à questão que estávamos há pouco considerando, ou seja, à questão da
determinação do significado pelas regras da gramática, ou ainda, à questão de
uma possível identificação entre significado e algo “do tipo de uma regra” (etwas Regelartiges).
Na
raiz da crítica wittgensteiniana a um enrijecimento do significado por listas
de regras, parece estar um raciocínio como o seguinte: o número ilimitado de
proferimentos com significados diversos que podem ser gerados em nossa
linguagem, e mesmo a pluralidade daquilo que podemos “ter em mente” ao empregarmos
uma expressão, exige que a noção de regra, se identificada com o significado,
seja mais abrangente que a de algo como uma simples convenção ou hábito. Mesmo
que se trate de uma lista fixa de convenções, ela é, não obstante, uma convenção,
e que dominássemos listas ilimitadas de convenções seria, por razões não
somente medicinais, inconcebível.
Consideremos
então, novamente, a ideia de que o significado seja determinado pelas regras da
gramática, as quais resultam, decerto, de convenções ou hábitos. O que significa
em tal caso dizer que elas determinam (constituem, fixam, definem) o significado
em proferimentos concretos?
Naturalmente,
não se trata aqui da determinação do uso singular da expressão, de sua
ocorrência, pois isso não é, como já vimos, o significado. Não: as regras
determinam ou fixam o modo, a maneira como a expressão foi usada numa ou noutra
ocorrência específica.
Em
uma tentativa de esclarecer o que significa aqui ‘deter- minar’, podemos
recorrer mais uma vez à analogia do aparelho eletrônico acompanhado de uma
série de instruções intituladas “Modo de uso”. Podemos obviamente dizer que as prescrições
ou regras da série determinam, fixam, constituem o modo de uso. Elas não
costumam fazê-lo, porém, na independência umas das outras: mais frequente é que
elas devam ser inter-relacionadas, por exemplo, que elas formem uma sequência
interligada, na qual o seguimento de uma regra dependa do seguimento de outra.
Característico disso é que as regras se concatenam, se combinam; que o modo de
uso costuma consistir, não em uma regra só, mas em uma combinação de regras, e
que essa combinação, embora possa já vir preestabelecida, pode ser também, em
princípio, ilimitadamente variável (pense-se, por exemplo, nos programas de
computação).
Com
isso parece que encontramos a chave para a resposta à questão do sentido da
palavra ‘determinação’, quando dizemos que as regras da gramática determinam o
significado: o significado de uma expressão, seu modo de uso, é uma combinação
de regras individuadoras do significado, regras que constituem a gramática
específica de um jogo de linguagem ou de uma apropriada região da linguagem.
Semelhante combinação não é vista como uma ocorrência singular, não se
reduzindo a um acontecimento espaço-temporal, como o próprio significado. E
como uma tal combinação pode ser ilimitadamente variada, a plasticidade e
ilimitação do que queremos entender por significado segue preservada.
Esclarece-se assim em que sentido o significado pode ser considerado algo “do
tipo de uma regra”.
Uma
outra analogia corrobora essa sugestão. Um lance feito no decorrer de uma
partida de xadrez não é um ato destituído de sentido. Há nele uma espécie
qualquer de significado. Em que consiste o sentido do lance? Certamente, não na
regra simples, na regra básica pela qual ele é movido, pois nesse caso todos os
lances com a mesma peça, em quaisquer circunstâncias, teriam o mesmo
significado (o que sob uma perspectiva mais restrita é verdade). Mas o
significado de um lance feito em uma partida de xadrez para aquele que o
realiza, o seu significado “intencional”, constitui-se antes na estratégia que
é por ele pensada, ou seja, no cálculo estratégico que ele faz: esse cálculo nada
mais é do que uma combinação de possíveis regras simples, que poderiam ser aplicadas
nos movimentos seguintes - no caso de um jogador profissional, não só complexas
combinações eventuais de regras básicas, mas também estratégias (combinações
conhecidas de regras básicas) das quais ele já tem domínio prévio. Se fosse
perguntado pelo sentido de um lance realizado, o jogador responderia com uma
descrição da combinação ou estratégia que ele tem em mente. Ora, também um
lance (um proferimento) em um jogo de linguagem poderia ter seu significado
identificado com algo como uma combinação de regras. – Com isso parece
esclarecer-se mais um princípio semântico de Wittgenstein, o de que “o
significado da expressão é aquilo que a explicação do significado explica” (PU
560). A explicação do significado nada mais é do que uma explicitação, mesmo
que vaga e incompleta, das regras ou combinações de regras para a aplicação da
expressão em jogos de linguagem.
Tais
considerações devem se afigurar de algum modo familiares aos leitores da fase
intermediária de Wittgenstein. Afinal, uma combinação de regras nada mais é do
que um cálculo. Quando fazemos uma complexa operação aritmética, o cálculo não
é mais do que uma combinação de regras mais elementares, as quais sabemos de
cór. A isso objetar-se-á talvez que a ideia de que a linguagem funciona como um
cálculo, ou, nas palavras de Wittgenstein, de que “o significado de um símbolo
é o seu lugar no cálculo”, foi por ele abandonada e substituída pelo conceito mais
flexível de jogo de linguagem, o que foi uma pedra de toque das interpretações,
desde o livro de Pitcher até o comentário de Backer e Haker de 1980.
Essa
interpretação, hoje se sabe, é incorreta. Sempre fora motivo de embaraço o fato
de que Wittgenstein continuasse a fazer um uso positivo do conceito de cálculo,
mesmo nos escritos posteriores à introdução da noção de jogo de linguagem, como
se evidencia (em contradição com a conhecida crítica do § 81) nos §§ 26 e 559
das Investigações Filosóficas, e em certas passagens dos escritos sobre os
fundamentos da psicologia. A razão disso ficou esclarecida na cuidadosa
investigação do Nachlass publicada por S. S. Hilmy em 1987. Nela é mostrado como
Wittgenstein usou nesses escritos as palavras ‘cálculo’ e ‘jogo de linguagem’
intersubstitutivamente. Como observa Hilmy: “No começo dos anos 30 ele tinha já
claramente em um sentido abandonado o que pode ser chamado ‘o modelo do cálculo
do Tractatus'. No entanto, ele continuou a usar o termo ‘cálculo’ em um sentido
positivo para caracterizar a linguagem, e fez isso também na década de 40,
longo tempo depois do chamado ‘período
transicional’ do começo dos anos 30.”14
O
fato é que, quando Wittgenstein critica a noção de linguagem como cálculo nas
Investigações, e mesmo bem antes, como na página 25 do Blue Book, ele não está
atacando a ideia implícita de uma combinação de regras, mas uma série de
associações indesejáveis que a palavra ‘cálculo’ traz à tona, principalmente as
ligadas à noção de cálculo lógico, constituído por regras exatas, rígidas,
explicitamente definidas. Mas tal não costuma ser o caso das regras implícitas,
inexatas e facilmente alteráveis de nossos jogos de linguagem cotidianos. Como
diz Hilmy: “Quando Wittgenstein critica a concepção da linguagem como cálculo,
é com referência a um cálculo de uma espécie ideal, exata, e, mais
especificamente, a espécie de papel que este cálculo ideal desempenhou no
Tractatus.”15
Quando
examinamos os exemplos de cálculo com a linguagem apresentados no período
intermediário de sua filosofia, vemos que Wittgenstein usa a palavra em um
sentido derivado, como quando se fala do cálculo estratégico feito em um jogo
de xadrez, em um jogo de cartas, do cálculo que um jogador de futebol faz ao
passar a bola. Também em tais acepções a palavra ‘cálculo’ preserva o sentido de
uma combinação de regras. Assim, não há a menor evidência de que Wittgenstein
tivesse rejeitado a idéia de que os lances dos jogos de linguagem envolvessem
cálculos nesse sentido fraco de combinação de regras, que admitem ser alteradas
e inventadas, que podem ser imprecisas, que não exigem que seus usuários
estejam em condições de explicitá-las verbalmente. Pelo contrário: só essa suposição
justifica que, no § 558 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein reafirme
que a função de um símbolo deva se mostrar no decorrer do cálculo.
Com
isso torna-se justificada uma reconsideração das passagens em que Wittgenstein
dá exemplos de cálculo, em busca de uma melhor compreensão de como regras
gramaticais podem determinar o significado, o modo de uso, caso essa
determinação consista na combinação de tais regras. Afinal, ele parece em certos
momentos dizer exatamente isso, como ao afirmar que “O sistema de regras, o
qual determina um cálculo, determina deste modo também o ‘significado’ do
signo.” (PB 152)
Antes
de considerar alguns exemplos de cálculo neste sentido fraco sugerido pelo
próprio Wittgenstein, gostaria de introduzir um esclarecimento geral, não
acerca do tão polemicamente problematizado conceito de seguir uma regra (cap.
V), mas acerca do conceito mesmo de regra, entendido como aquilo que as diferentes
expressões de regra expressam em comum. Sem dúvida, se é possível estabelecer
uma expressão de regra para uma regra particular, a qual é ela própria geral,
embora de âmbito mais restrito, não há razão para se rejeitar que possa haver
uma expressão do que seja a regra em geral, conquanto essa expressão seja uma
manifestação linguística de nossa intuição comum, deixando a linguagem “como
ela está”.
Contrariamente
ao que se possa pensar, a reconstrução da noção de regra sob esta chave não se
opõe às críticas wittgensteinianas ao essencialismo.
Primeiro, porque a existência de expressões conceituais cujos casos de
aplicação detêm semelhanças de família
entre si (cap. VIII) não implica que todos
os nossos conceitos gerais devam se fragmentar em casos de aplicação
aparentados, nem que tais casos não possam ser eles próprios conceitos gerais
unitários com expressões conceituais próprias. O próprio Wittgenstein considera
essa última possibi- lidade ao contrastar o conceito de número, cujos casos de
aplicação são múltiplos e aparentados, com o conceito precisamente definível (“streng umschriebenen") de número
cardinal (PG 70). Segundo, porque certas
críticas ao realismo ontológico, como, por exemplo, ao tratamento que nele é
dado a entidades abstratas como se elas fossem impalpáveis sombras (empíricas)
de coisas empíricas (BB p. 17, BGM p. 63), não precisam ser interpreta- das
como anti-essencialistas. Elas não impedem que uma concepção wittgensteiniana
de essência possa ser resgatada como dizendo respeito à simples convenção, ao
universal visto como uma espécie de “essência nominal” (BGM p. 64-5) (um
conjunto modelar de condições de similaridade replicáveis de que guardamos
memória), ou ainda, com relação a uma “essência real”, como algo que só as
regras da gramática manifestam (pois “Das Wesen ist in der Grammatik
ausgesprochen” (PU 371)), logo, como algo cuja inteligibilidade requer pleno
resgate através de nossas convenções (PU 92, 97, BGM pp. 64-5).16
Consideremos
então o que deve ser normalmente a expressão da regra em geral. Ela se baseia
na idéia de que uma regra pode geralmente ser analisada como uma relação entre
uma condição (ou grupo de condições) Cea ação A, que é a ação de segui-la, de
tal modo que, dada a condição C, segue-se a ação A, não importando, para as
considerações que pretendemos fazer, proceder a uma determinação precisa das
espécies de relações que possam estar envolvidas - como C pode ser chamado de
uma prescrição, podemos cognominar tal relação simplesmente de “relação
prescritiva”. Desse modo, qualquer regra pode ser concebida como um caso da formula
ou expressão geral de regra:
C => A
Nessa
formula, C deve ser visto como o type de uma condição (ou conjunto de
condições) qualquer, e A como o type e uma ação, entendendo por ação-type, não
uma entidade abstrata, mas a classe aberta das ações-token similares entre si
sob certo aspecto. Embora uma expressão de regra da gramática não tome necessariamente
essa forma, ela pode em geral ser assim para- fraseada. A frase gramatical “A
ordem ordena seu seguimento”, pode ser parafraseada como “Dada uma ordem,
age-se segundo o que ela ordena”; a frase gramatical “A água ferve (sob condições
normais de pressão etc.) a 100° C” pode ser parafraseada como “Se a temperatura
da água chegar a 100° C, podemos concluir que ela ferverá”.
Também
importa notar que os termos C e A não são para ser considerados em separado. A
é sempre o modo de ação que se segue da condição C, pois nem toda ação que
exemplifica A é a de seguir a regra em questão. Assim, um acontecimento
empírico que exemplifique Al, mas que não siga as condições determinadas por
Cl, não será considerado seguimento da regra Cl => Al, o que vale, mutatis mutandis para Cl, caso a sua
presença não seja considerada prescrição para Al. Uma maneira de se tornar essa
interdependência explícita é escrever:
'
C(A) => Â(C)
Essa
observação torna evidente que falar do type A(C) da ação de seguir uma regra já
é falar da própria regra, mesmo que de uma perspectiva determinada, que faz
perceptível só um dos termos. Isso nos permite concluir que não podemos, quando
identificamos o significado com o modo de uso, ao invés de identificar tal modo
de uso com a regra de uso, objetar pela suposição de que o modo de uso seja
simplesmente o type de usos singulares corretos, das ações-token de seguir a
regra, e não a regra mesma; pois trata-se aqui da mesma coisa: o type de uma ação
de seguir uma regra deve continuar a ser concebido como toda a regra, ainda que
sob a perspectiva explicitadora da ação-type
de segui-la.
A
fórmula geral acima considerada pode ser um instrumento valioso em uma
reconstrução do que Wittgenstein sugere. Com relação ao modo de ação de seguir
a regra, ela nos permite distinguir dois tipos gerais de regra conversíveis
entre si:
Tipo
I: é o daquelas ações nas quais a ação-type A é o esquema de uma ocorrência empírica,
que embora podendo ser de ordem psicológica, é freqüentemente também algo que
se processa externamente, no mundo real. Exemplo do tipo I é a ação reflexa de
pisar no freio diante de um sinal vermelho.
Tipo
II: é o daquelas ações nas quais a ação-type A esquematiza um processo
cognitivo, qual seja, o da tomada de consciência, da cognição, da constatação
da existência de um determinado estado de coisas, o que resulta de certas
condições C, aqui chamadas de critérios. Exemplo disso é o caso de um motorista
que, vendo o sinal mudar para o vermelho, toma consciência de que não é mais permitido
prosseguir. Nesses casos não costumamos dizer que a regra é seguida, mas
aplicada.
Sobre
essa distinção devemos notar primeiro que as regras de um tipo são conversíveis
em regras equivalentes do outro tipo: regras do tipo I, realizadoras da ação –
digamos, “Se o sinal está vermelho, pise no freio” – podem ser facilmente
convertidas em regras do tipo II - por exemplo: “Se o sinal está vermelho, toma-se
consciência de que se deve pisar no freio” - que são representadoras da ação, e
vice-versa. Segundo: é muito claro que as ações humanas normalmente envolvem os
dois tipos. Se nossas regras fossem apenas do tipo I, todos os nossos comportamentos
teriam a forma de reflexos, de automatismos, de habituações não acompanhadas de
atividade consciente. Se todas as regras fossem apenas do tipo II, nós seríamos
seres puramente contemplativos, incapazes de passar da consciência à ação. Como
a maioria de nossas ações é também consciente, segue-se que se trata de ações
que combinam os dois tipos de regra precedentemente mencionados.
A
aplicação dessa distinção ao que Wittgenstein diz é esclarecedora. Ele
considera exemplos dos dois tipos de regra. Exemplos do primeiro tipo são ações
que constituem mero resultado de adestramento, como pode acontecer quando a linguagem
é aprendida. Trata-se de regras puramente performativas. Seguir essas regras
não é um ato cognitivo, mas um ato cego, involuntário. No segundo caso, que é o
que mais nos importa, os exemplos relevantes têm a ver com o que Wittgenstein
chamou de modos, métodos de verificação: regras verificacionais, que para ele,
mesmo nas Investigações Filosóficas, permanecem essencialmente ligadas ao que
“queremos dizer” com os nossos enunciados (Cf. PU 353). A relação entre a regra
de verificação e o significado como uso (aplicação) explicar-se-ia pelo fato de
ela poder ser identificada com o modo de aplicação, entendido como a maneira
pela qual genericamente se justifica o emprego do proferimento assertivo. Tais
regras são essencialmente cognitivas, pois o resultado último da aplicação da
regra ou método de verificação é a cognição da existência de um estado de
coisas.
A
isso liga-se uma outra noção importante, a de critério. Basicamente, critérios
nada mais são do que condições (não importando o tipo) que, uma vez dadas,
permitem a aplicação de uma regra verificacional, ou seja, a realização de uma
verifica- ção, a cognição de um estado de coisas como efetivamente dado, a
formação de um juízo; critérios são, pois, critérios de verdade de juízos ou
asserções. Aliás, eles são também regras, pois, pelo que foi visto, um critério
C só se concebe como C(A), que é um modo, uma perspectiva pela qual a regra
total é concebida.
Em
um importante exemplo presente na página 28 das Wittgenstein’s Lectures, 1932-1935, Wittgenstein relaciona explicitamente
critério e regra de verificação, o que corrobora a nossa interpretação: “Os diferentes
modos de se verificar ‘choveu ontem’ nos ajudam a determinar o significado.
Ora, uma distinção poderia ser feita entre ‘ser o significado de’ e ‘determinar
o significado de’. Que eu me lembre que choveu ontem me ajuda a determinar o
significado de ‘Choveu ontem’, mas não é verdade que ‘Choveu ontem’ significa
‘Eu me lembro que Nós podemos distinguir
entre critérios primários e secundários de que está chovendo. Se alguém
pergunta ‘O que é chuva?’, você pode apontar para a chuva caindo, ou derramar alguma
água de uma caneca. Esses constituem critérios primários. Pavimentos molhados
constituem um critério secundário e determinam o significado de ‘chuva’ de um
modo menos importante.”
Note-se
que o apontar para a chuva caindo tem aqui uma função semelhante ao apontar para
uma cadeira e dizer: “Isso é uma cadeira”. Essa pode, como já vimos, ser uma
frase gramatical expressa em uma definição ostensiva, o que é também exprimível
sob a forma verbal: “A presença de tais e tais critérios (Cl) nos mostra que estamos
diante de uma cadeira (Al)”. Também esclarecedora é, no caso acima, a distinção
entre critérios primários (definitórios)
e secundários ou sintomas, os quais parecem se constituir de modo adventício,
probabilizando, mas não trazendo a certeza da existência do estado de coisas em
questão (BB pp. 24-25). Os diferentes critérios são os modos de se “ter em
mente” o sentido da frase. Isso não precisa conduzir, segun- do Wittgenstein, a
uma dissolução da unidade de sentido da frase. O modo de verificação – e com
ele o significado da frase – pode ser concebido como um único, já que os
critérios secundários são sintomas de algo mais central, que é o critério primário,
dado na observação que se tem como sendo direta (Cf. WWKpp. 158-9).
A
conhecida identificação feita por Wittgenstein, em sua fase intermediária,
entre o significado de uma frase e o seu modo de verificação é, pois,
complementar a mais um princípio semântico seu, segundo o qual os critérios
“dão a nossas palavras seus sentidos comuns.” (BB p. 57) De fato, se os critérios
são condições antecedentes de regras cognitivas, e se essas regras (chamadas
pelos intérpretes de regras criteriais) são regras de verificação, então toma-se
natural que eles sejam determinadores do significado.
Com
tais considerações em mente, analisarei primeiramente exemplos de cálculo, de
combinações de regras, trazidos pelo próprio Wittgenstein. Uma série desses
exemplos encontra-se no Brown Book, como é o caso do jogo de comando do § 33,
em que, como resposta a articulações simbólicas como “aacaddd”, o ouvinte faz
uma sucessão de movimentos diversamente direcio- nados em correspondência a
cada letra diferente, e de compri- mentos diferentes como conseqüência da
possibilidade de repetição de uma mesma letra. O exemplo de Wittgenstein que me
proponho a analisar é, contudo, o da multiplicação “F” presente nas Lectures de
1930-32:
F
123
753
369 x
615 y
861
z
92.619
Vale
reproduzir o comentário de Wittgenstein:
“F
é uma regra da gramática, ou um cálculo feito no papel; mas partes individuais
do trabalho podem ser feitas de acordo com um dos cálculos mencionados. Assim,
o passo x é para mim uma definição; o passo y é uma hipótese, mas o primeiro
estágio deste, 5 x 3 = 15, é de novo uma definição. O resultado é uma hipótese.
Uma outra pessoa poderá fazer o cálculo e chegar a um resultado diferentemente.
Os passos individuais são regras da gramática e o processo como um todo é uma
regra da gramática.”17
Wittgenstein
considera aqui não só as regras típicas da gramá- tica, que ele chama de
definições, e que são regras de hábito em cuja aplicação o erro, se houvesse,
seria imediatamente corrigível, a exemplo das regras da tabuada. Ele chama de
regra da gramática também a completa combinação dessas regras, o cálculo, que, sendo
passível de erro, é por ele chamado de hipótese.
Digna
de nota é também a possibilidade de se reduzir, não só os passos do cálculo,
como o cálculo como um todo, à fórmula geral da regra, pois as condições intermediárias
podem, no caso, por serem derivadas, ser abstraídas. Uma combinação de regras,
embora não seja um hábito ou uma convenção, pode nesse sentido ser considerada,
como o próprio Wittgenstein o faz, como uma regra; também ela é, em todo caso,
do tipo de uma regra. Também é fundamental notarmos que a fronteira entre
regras de hábito, que se condicionam como tais, e suas combinações, é gradual e
variável: uma combinação de regras pode, por exercício, passar a ser concebida
como uma regra simples - compare-se, por exemplo, a habilidade aritmética de
uma criança à de um adulto.
Podemos
agora procurar em Wittgenstein casos de combinações de regras, de cálculos que
se aproximem do que realmente se passa na linguagem cotidiana, tanto de combinações
performativas quanto de combinações que constituam regras cognitivas. Um caso de
cálculo com regras performativas é apresentado por ele em um diálogo com F.
Waismann. O exemplo trata do que poderia ser uma combinação de regras realizada
para a compreensão da ordem: “Traga-me a gasolina”; convém transcrever a
passagem: “O modo como nós usamos os signos, constitui o cálculo [...] Há entre
o modo de aplicação de nossas palavras na linguagem e um cálculo, não algo como
uma mera analogia; eu posso de fato conceber o conceito de cálculo de tal
maneira que a aplicação da palavra cai sob ele. Eu quero logo explicar como
entendo isso. Tenho aqui uma garrafinha de gasolina. Para que serve? Para
lavar. Ora, nela está colado um rótulo com a inscrição ‘gasolina’ [...] Ora,
essa inscrição é um ponto-de-assalto (Angriffspunkt)
para um calculo, quer dizer, para a aplicação. Eu posso lhe dizer: ‘Traga a
gasolina!’ E através dessa inscrição é dada uma regra, segundo a qual o senhor
pode proceder. Se o senhor traz a gasolina, então está lá de novo um passo naquele
cálculo que é determinado por regras.” (WWK p. 168)
Em
primeiro lugar, não custa notar que no início desta passagem o modo de uso ou
aplicação é identificado com o cálculo. Em seguida, há o que Wittgenstein chama
de ponto-de- assalto do cálculo. Chegar a perceber a inscrição é o resultado de
seguir uma regra de comando, mas a inscrição mesma é um novo ponto-de-assalto,
que serve de condição para uma nova ação de seguir outra regra (a de trazer a
garrafinha de gasolina), o que produz no todo, tal como no exemplo aritmético,
uma combinação de regras. As regras aí em questão poderiam pressupor a regra
gramatical listada anteriormente: “Uma ordem ordena a sua execução”, não se
distinguindo categorialmente dela. Elas devem ser, todavia, ainda mais
específicas, i. e., regras que são tidas como “simples”, de hábito, em qm jogo
de linguagem muito localizado, por exemplo: “Uma garrafa costuma conter o que o
seu rótulo descreve”.
Procuremos
agora exemplos de regras cognitivas, de regras verificacionais. No parágrafo 25
das Lectures de 1930-32 há inicialmente uma observação, na qual Wittgenstein
faz um uso equivalente das palavras ‘significado’, ‘verificação’, ‘lugar do símbolo
em um cálculo’ e mesmo ‘modo de uso’, que cito com o fito único de dar
confirmação textual à minha tese da existência de uma certa unidade intrínseca
no pensar wittgensteiniano, por oposição à tendência escolasticista de
interpretá-lo segmentando-o em compartimentos estanques: “Se você quer saber o significado
de uma sentença, pergunte pelo modo de verificação. Eu sublinho o ponto de que
o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo, o modo como ele é usado!'
(grifos meus)
No
exemplo que se segue a essa observação, Wittgenstein relaciona a diversidade
das verificações particulares de uma sentença declarativa com a unidade de seu
significado: “Atender para o modo como o significado de uma sentença é
explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que
Cambridge venceu a corrida de botes, o que verifica ‘Cambridge ganhou’, não é
uma disjunção ‘Eu vi a corrida ou eu li o resultado ou [...]’ É mais complicado.
De fato, se nós retirarmos qualquer dos modos de verificação do enunciado, nós
alteramos seu significado. E, se nós retirarmos todos os modos de verificação,
nós destruímos o significado.” 18
A
regra que preside uma verificação particular efetivamente realizada constitui
uma nuance intencional da asserção – ao que alguém mais exatamente havia tido
em mente com essa última. Mesmo que esse elemento intencional sofra variações
em diferentes asserções de mesmo conteúdo, é possível que as regras
contingentes que o constituem se derivem de uma regra de verificação fundamental
e única, que tenha por base critérios primários e observação direta, podendo
ser efetivamente identificada com o que geralmente se entende como significado
cognitivo ou conteúdo proposicional da asserção. (Cf. WWK pp. 158-9).
O
mesmo exemplo também sugere que as regras criteriais determinadoras do cálculo sejam
regras da gramática, exprimíveis em frases gramaticais. Embora Wittgenstein não
se preocupe com um esclarecimento sistematizador, é razoável pensar que, na
gramática constitutiva do sistema de regras que é este jogo de linguagem específico,
hajam regras simples como: “A equipe cujo barco chega primeiro vence a
corrida”, a qual, traduzida na forma de uma regra criterial, toma-se algo como:
“Ver o barco de uma equipe chegar em primeiro lugar é (em circunstâncias normais)
critério primário para a cognição do fato de ela ter vencido a corrida”. Essa
regra pode ser então combinada com a regra para a identificação da equipe de Cambridge,
formando uma regra composta, a qual verifica o enunciado “Cambridge ganhou”.
Semelhante era o caso de um exemplo anterior, a multiplicação “F”. “5x3= 15”
(do mesmo modo que “2 x 2 = 4”) é uma regra gramatical na qual “5 x 3 =>” é
critério para a cognição do resultado “15”; “F” ou “753 x 123 =>” pode ser
analisada de modo a derivar uma composição de critérios, dentre os quais costuma
tomar parte “5 x 3 => 15”, para que se chegue ao resultado 92619. O
procedimento, o cálculo, verifica a frase “753 x 123 = 92619”.
Também
procurei demonstrar essa possibilidade em jogos de linguagem cognitivos
simples, como o report-game concebido
em um artigo de Stenius19. Nesse jogo, um ajudante de jardineiro deve informar
sobre a situação de um local de um canteiro, aplicando uma regra de identificação a uma planta que se encontra nesse local,
regra essa que deve ser conjugada a uma regra de predicação, somente aplicável
quando a planta está florida. Combinações de critérios de identificação e de
predicação constituiriam aqui a condição antecedente, uma composição criterial
justificadora da aplicarão de uma combinação de regras, qual seja, da regra verificacional para o fato de a
planta estar florida. As condições de aplicação da regra não seriam, nesses
casos, sequencialmente, mas simultaneamente dadas.
O
que se deixa concluir das considerações precedentemente esboçadas é a
plausibilidade da ideia de que a identificação entre o significado e o uso
possa ser concebida como uma identificação entre o significado e algo do tipo
de uma regra: regras, combinações de regras mais ou menos específicas da
gramática de jogos de linguagem, as quais também podem possuir o caráter
cognitivo próprio das regras criteriais ou verificacionais. O significado cognitivo
de um enunciado assertivo, seu conteúdo proposicional, pode ser em princípio entendido
como o modo fundamental de sua aplicação, o qual é redutível a uma regra ou
complexo de regras verificacionais, cuja existência e aplicação efetiva é uma condição
justificadora de seu proferimento atual em asserções, de seu uso singular20.
O apelo ao uso perde com isso o indesejável tom de misticismo semântico que os
aforismos wittgensteinianos frequentemente não deixam de insinuar. O que mais
justifica tal apelo, porém, é a sua função heurística, de situar a questão logo
de início na praxis efetiva da
linguagem, que preside a conexão necessária entre o significado e o contexto, entre
o significado literal e as suas múltiplas e variadas ramificações intencionais.
A
sugerida unificação de princípios semânticos comprova a posteriori, a sua própria possibilidade. À objeção: “Por que Wittgenstein
nunca tentou uma tal exposição argumentada e sintética da gramática do conceito
de significado?”, talvez devamos responder: por motivos vários (incertezas,
contradições, lacunas argumentativas...), mas talvez também por motivos não muito
diversos daqueles pelos quais Platão sempre se recusou a fazer o mesmo com a
sua doutrina das ideias, cerne de sua filosofia e patrimônio inafiançável de
seu pensamento.
Espero
que esse resumo tenha tornado plausível a ideia de que os escritos de
Wittgenstein ocultam, ou pelo menos estranhamente sugerem, estruturas racionais
extraordinariamente complexas, que são as fontes reais de seu permanente
interesse e influência, mas que subsistem nos textos como intuições fragmentariamente
explicitadas, sem que seu autor conseguido articulá-las sistematicamente.
Uma
adequada explicitação, organização e desenvolvimento de semelhantes estruturas
deverá pôr a descoberto um outro corpo de ideias, nem sempre inevitavelmente coerente
com as suposições do autor, mas mais poderoso, em virtude de sua capacidade de impor-se
à razão, do que aquilo que alguns intérpretes de uma certa época e de determinadas
correntes de pensamento nos haviam feito imaginar.
Notas
1
C. F. Costa. Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphilosophischen
Semantik, Konstanz, 1990. As obras de Wittgenstein abreviadamente referidas são
as do Werkausgabe de 1984 da editora
Suhrkamp, com exceção dos The Blue and
Brown Books, quando se usou a, edição inglesa de R. Rhees (1975).
2
Uma interpretação é uma seleção do que se julga ser
demonstravelmente relevante num texto. Uma reconstrução consiste, basicamente,
numa interpretação que acrescenta novas premissas, que não constavam no texto
original e o tornam mais instrutivo. Um trabalho inspirado ou influenciado por
um certo texto é geralmente aquele que não só lhe adiciona premissas, mas
também desconsidera tudo aquilo que tiver sido tornado incompatível com tal
adição. No caso de um texto tão ambíguo como o de Wittgenstein, pode ser difícil
separar a segunda da terceira possibilidade. Ainda assim penso que o texto que
se vai ler é essencialmente reconstrutivo.
3
Em The Grammar
of Justification (New York, 1976), Richardson defende que “toda uma teoria
do significado pode ser retirada da ideia de que o significado é o uso” (p. 45)
e, em concordância com o que irei expor, conclui que a teoria criterial
exemplifica a teoria do significado, pois critérios são convenções semânticas
constitutivas de jogos de linguagem e justificadoras da aplicação da palavra
nestes (p. 126).
4
P. Feyerabend.
"Philosophical Investigations", in: G. Pitcher (ed.): Wittgenstein:
The Philosophical Investigations. London, 1968, pp.104-150.
5
Carl Hempel.
"Rudolf Carnap, Logical Empiricist", in: Synthese, Vol. 25, 1972-3,
p. 264.
6
A. J. Ayer. Ludwig
Wittgenstein, p. 137, New York 1985. Ver também S. S. Hilmy, The Later
Wittgenstein: the Emergence of a new Philosophical Method, Oxford 1987, pp.
208-9.
7
Backer &
Haker: Wittgenstein, Understanding and Meaning, Oxford 1980, p.489.
8
Ibid., p. 489.
9
Para esse autor coexistem na obra do segundo
Wittgenstein duas concepções de filosofia, uma terapêutica, enquanto a outra
“parece bem mais com algumas das tradicionais, mais imperialistas, visões da filosofia”
(p. 43), buscando “abrangência de entendimento, uma visão clara do mundo” (p.
39) (“Wittgenstein on the Nature of Philosophy”, in: A. Kenny, The Legacy of
Wittgenstein, Oxford 1984).
10
D. Lee (ed.):
Wittgenstein’s Lectures, 1930-1932, Oxford, 1980, p. 85.
11
G. E. Moore,
“Wittgenstein’s Lectures in 1930-33”, in: Philosophical Papers, London, 1963,
p. 257. Cf. também E. K. Specht: Die Sprachphilosophischen und ontologischen
Grundlagen im Spätwerk Ludwig Wittgensteins, (Kantstudien Erganzungsheft 84),
Köln 1963, cap. V.
12
E. K. Specht:
“Wittgenstein und das Problem des ‘a priori’”, in: Revue Internationale de
Philosophie, 88/89, (1969), pp. 167 ss.
13
Se essa última afirmação, literalmente tomada, for
correta – o que não creio - a acusação de ser sem sentido aplica-se também à
nossa própria tentativa de propiciar uma representação panorâmica, “teorética”,
dos princípios gramaticais constitutivos do conceito geral de significado. Mas
isso não vale como objeção interna: se somos contraditórios, Wittgenstein
também o é.
14
S. S. Hilmy,
Ibid., p. 98.
15
S. S. Hilmy,
Ibid., p. 106.
16
A atitude de Wittgenstein, que, pendendo para o
nominalismo, só aborda muito tangencialmente a questão dos universais,
evidenciase na evasiva colocação de F. Waismann: “Não é como se quiséssemos
negar a existência do zero e reconhecer apenas a do signo. (Pense no que pode significar
a frase ‘O zero não existe’!). Nós passamos apenas a um outro domínio da
gramática, onde somos sujeitos a menos perigos. Nós não fugimos do abstrato
para o concreto; nós queremos somente considerar as coisas, uma única vez, sem
preconceitos.” (Logik, Sprache, Philosophie. Stuttgart 1977, p. 131).
17
A. Ambrose (ed.).
Wittgenstein’s Lectures, 1932-1935, Oxford 1979, pp. 96-97.
18
A. Ambrose, Ibid.,
§ 25.
19
E. Stenius. “Mood
and language-game”, in: Synthèse 17 (1967), p. 263 ss. Ver também E.
Tugendhat e U. Wolf: Logisch-semantische Propüdeutik, Frankfurt 1983, pp.
235-6.
Exceções a essa
forma genérica de verificacionismo podem ser reinterpretadas e evidenciadas
como sendo aparentes. Exemplo: Sepodemos considerar João como tendo sido
corajoso, embora ele tenha morrido sem ter podido demonstrar a sua coragem (não
havendo qualquer outra razão para que creiamos nisso), parece então que temos
um enunciado significativo, mesmo que inverificável - o que conduz à sugestão
de que não é necessária uma regra de verificação para que tenhamos um enunciado
significativo, bastando que sejamos capazes de reconhecê-la, caso ela nos for
dada (Dummett).
Tal sugestão
parece-me desnecessária, pois o conteúdo preposicional acima considerado não é
significativamente enunciável ou asserível, tendo apenas um significado
lexical. Temos apenas a impressão de que asseri-lo é possível, dado que podemos
isolar tal conteúdo preposicional e inseri-lo, por exemplo, em asserções modais
como “É possível que João fosse corajoso”, que se assemelham à pseudo-asserção
“João era corajoso”, que é absurda. Uma tal asserção modal é perfeitamente
significativa, dado que para ela temos procedimentos verificacionais (basta,
para tal, ter verifica- do que João era um ser humano, pois se era humano, pode
ter sido corajoso.)
20
Maneira de ver semelhante encontro em A. J. Ayer, para
quem especificar o uso, entendido como o significado de uma sentença declarativa,
é descrever os estados de coisas que a verificam (The Concept ofPerson, London 1963, pp. 22-23).
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