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terça-feira, 21 de maio de 2024

LOCKE: CONSTRUTIVISMO EMPIRISTA

  Draft para o livro "Introdução histórica à filosofia"


 

 

 

 

IX

LOCKE: CONSTRUTIVISMO EMPIRISTA

Novas opiniões são sempre suspeitas e geralmente opostas, por nenhum outro motivo além do fato de ainda não serem comuns.

Locke

 

 

John Locke (1632-1704) nasceu de uma família de poucos meios, mas graças aos bons relacionamentos de seus pais estudou nas melhores escolas. Ele passou quinze anos em Oxford, primeiro como estudante e depois como pesquisador e docente. Ele era protestante e tinha profunda fé religiosa, o que repercutiu em seus escritos, levando-o a postular ideias de coisas como substâncias espirituais. Essas postulações se encontravam em tensão com seus próprios princípios empiristas.

   Como Hobbes, ele também viveu em tempos turbulentos. Quando seu protetor, conde Shaftesbury, foi acusado de traição, Locke teve de se esconder na Holanda por quatro anos, onde adotou o nome falso de Dr. van der Linde para não correr o risco de ser deportado para a Inglaterra. Só após a revolução gloriosa (1688) ele pôde retornar. Seus escritos políticos foram aclamados como defesas filosóficas do pensamento mais liberal e tolerante que começava a se formar.

   Em Oxford Locke aprendeu uma forma degradada de escolasticismo que ele abominou, mas que não iria deixar de influenciá-lo mais tarde. A experiência fez com que ele se decidisse por estudar ciências e medicina, tendo mesmo se formado médico, profissão que ocasionalmente praticou. Foi só aos 28 anos, quando leu Descartes (um filósofo solenemente ignorado em Oxford), que ele passou a se interessar seriamente por filosofia. Locke conheceu bem os melhores cientistas da época, tendo sido amigo de Isaac Newton. Ele foi descrito como uma pessoa modesta e cautelosa, que gostava de crianças, que era calorosa com os amigos e abominava o autoritarismo. Como era comum entre os filósofos de sua época, Locke não se casou.

 

1

 

Ideias. No que se segue faço uma breve exposição crítica do livro de Locke intitulado Ensaio acerca do entendimento humano, o mais significativo clássico da filosofia inglesa. Como ele conta no prefácio, a ideia de escrever o livro nasceu de uma discussão improfícua com amigos sobre os princípios da moralidade e da religião revelada. Ele concluiu que para não se perder tempo com especulações inúteis seria preciso antes investigar o que podemos alcançar e não alcançar através de nosso entendimento. Com isso ele queria desenvolver um projeto de crítica epistêmica a nossas faculdades. Como ele escreveu, o propósito do livro é:

 

…investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano, juntamente com as bases e graus de crença, opinião e assentimento...[1]

 

É com tais intenções que foi produzido o que pode ser considerado, entre outras coisas, o primeiro grande tratado de epistemologia, um domínio da filosofia teórica hoje definido como a investigação das origens, natureza e limites do conhecimento humano.

   Locke acreditava que todo nosso conhecimento depende de nossas representações da realidade. Essas representações são feitas pelo que ele chamou de ideias em um sentido psicológico da palavra. Daí ser o conceito de ideia o mais fundamental de toda a sua pesquisa. O insight primordial do livro é que nosso conhecimento depende de certas ideias simples dadas à experiência, as quais são associadas umas às outras de maneira a construir tudo o que somos capazes de pensar.

   É preciso lembrar que o conceito de ideia usado por Locke não tem mais nada a ver com o conceito grego de ideia (idéa), entendido como algo transcendente, que vigorou no mundo antigo e medieval sob a influência maior de Platão. O conceito de ideia por ele usado foi tomado de Descartes, que o entendia como se referindo a qualquer conteúdo mental. Locke definiu o termo de modo igualmente abrangente. Como ele escreveu:

 

[O termo ideia] eu usei para expressar qualquer coisa que seja objeto do entendimento quando um homem pensa, eu o usei para expressar tudo aquilo que pode ser entendido por imagem, noção, espécie, ou tudo aquilo que a mente possa usar ao pensar. [2]

 

A palavra ‘ideia’ é, portanto, o nome de qualquer conteúdo mental, seja ele sensação, emoção, imagem ou mesmo conceito. Embora justificada por sua finalidade, essa polissemia dificulta a interpretação, pois muitas vezes não sabemos ao certo em que sentido ele está usando a palavra.

 

2

 

Inatismo. O Ensaio é dividido em quatro livros. O livro I é consagrado a uma crítica ao inatismo, a doutrina segundo a qual existem ideias e princípios inatos imprimidos por Deus em nossas mentes. A doutrina do inatismo, comum na época, era de que os fundamentos do conhecimento empírico, da religião e da moral, seriam princípios e ideias inatas, dispostas por Deus em nossas mentes desde o nascimento. Essa doutrina servia para justificar a defesa de doutrinas religiosas e políticas de cunho dogmático, forçando à obediência cega a regras morais impostas e a argumentos de autoridade. Uma razão da crítica que Locke fez a essa forma rudimentar do inatismo encontra-se em uma motivação profunda de seu empirismo, que era sua rejeição a qualquer espécie de dogmatismo.[3] Para além disso, essa mesma visão rudimentar do inatismo limitava a flexibilidade da mente em sua capacidade de chegar por si mesma onde quer que a razão a conduzisse. O objetivo do livro I é, pois, o de abrir caminho para os livros seguintes, nos quais Locke se esforçou para mostrar como todo o nosso conhecimento do mundo pode ser construído a partir de ideias simples provenientes dos sentidos.

   A consequência da negação das ideias inatas é que para Locke quando nascemos a mente é como uma folha de papel em branco (uma tabula rasa), não possuindo nenhuma ideia ou princípio inato. Essa mente inicialmente vazia é aos poucos preenchida pelo material advindo da experiência sensível, que é constituído de ideias. Isso não quer dizer que com seu empirismo ele quisesse negar a existência de capacidades e predisposições inatas, responsáveis pelo aprendizado, organização e manipulação do material ideativo, como logo veremos.

   Em seu esforço para mostrar que não existem ideias inatas Locke se valeu de argumentos observacionais. Ele começou considerando que não há assentimento universal quanto aos princípios fundamentais da lógica. Crianças e deficientes mentais não têm ideias do princípio da identidade, segundo o qual tudo o que é, é, ou do princípio da não-contradição, segundo o qual é impossível para uma mesma coisa ser e não ser. Ele não achava correto dizer que crianças e deficientes têm esses princípios sem ter consciência deles, pois acreditava (seguindo Descartes) na questionável suposição de que ter um pensamento já implica em ter a consciência desse pensamento. Como já foi notado (cap. VII sec. 5), para ele nós só somos capazes de aprender esses princípios após realizarmos juízos através da experiência, ao percebermos, por exemplo, que uma coisa branca não é preta, que o quadrado não é um círculo, que o amarelo não é doce... Daí concluímos que uma coisa é o que é, assim como que ela não pode ser e não ser o que ela é ao mesmo tempo.[4]

   Uma objeção fácil de ser hoje levantada contra esse argumento é que o conhecimento de princípios lógicos como os da identidade e da não-contradição pode ser evidenciado não só por eles serem pensados e expressos em palavras, mas também pelo comportamento, antes mesmo que a criança tenha aprendido a falar, o que mostra o quão originariamente fundamentais eles são. Se uma criança não for capaz de distinguir, por suas reações sensório-motoras, o que é branco do que não é branco, o que é quadrado do que não é, o que é doce do que não é, ela não será capaz de ter reações comportamentais compreensíveis, razoáveis, minimamente previsíveis. Ao ver um leão a zebra sabe que deve fugir, mas se ela não for capaz de identificar o leão como seu arqui-inimigo (princípio da identidade), ou que, identificando-o como sendo um leão, não for capaz de decidir que ele não é outra coisa qualquer (princípio da não-contradição), ela não sobreviverá por muito tempo. E isso se aplica até mesmo a uma ameba antes de ela envolver seu alimento. O não-seguimento de tais princípios é incompatível com a vida. Como pressupostos pré-evolucionários, os princípios da identidade e da não-contradição se apresentam como capacidades inatas tão primordiais que se encontram presentes em qualquer ser vivo desde seu nascimento. Além disso é claro que ninguém precisa conhecê-los de maneira explícita para segui-los, pois se fosse assim então o princípio da não-contradição não poderia ter sido seguido antes de Aristóteles tê-lo detalhadamente investigado em sua Metafísica. Parece óbvio, porém, que para formular esse princípio ele teve antes de pensar em casos empíricos de suas aplicações, do mesmo modo como pelo encontro de exemplos concretos de uma regra seguida na língua culta os estudiosos da língua a adotam, formulando uma norma gramatical explícita.

   Afora isso, os princípios lógicos equivalentes da identidade, da não-contradição e do meio excluído (cap. III, sec. 8) são ubíquos:  eles imperam tanto em nossas mentes quanto no próprio mundo externo enquanto ele for para nós cognoscível, parecendo um claro contrassenso a ideia de um mundo externo (ou qualquer coisa) incognoscível. A espécie de universalidade inerente a esses princípios não pode ser alcançada pela experiência porque resultados da experiência são sempre indutivos e, portanto, prováveis, o que não permite que se alcance a universalidade e a consequente necessidade a eles inerente. O máximo que podemos esperar da experiência é que, por meio de exemplos, aprendamos a explicitar esses princípios de modo mais claro.

   Um outro argumento de Locke diz respeito aos princípios morais. Eles não podem ser inatos, pois há povos com os mais variados princípios morais. Para ele se tais princípios existirem, eles serão de pouco uso, como, digamos, “A virtude é a maior reverência a Deus.”[5]

   Com efeito, regras morais variam muito com a cultura. E a ideia que muitos possuem de que “no fundo todos são capazes de distinguir o certo do errado” é um preconceito ingênuo. Por exemplo: Perguntaram a um homem de certa religião o que ele sentia após ter matado sua filha por ter desonrado a família. Ele respondeu que se sentia orgulhoso e triste ao mesmo tempo: orgulhoso por ter cumprido a lei e triste por sua filha ter desonrado a família. Não lhe ocorreu que deveria sentir pena, vergonha ou culpa, como é usual na cultura cristã.

   Faço aqui um aparte para notar que antropólogos contemporâneos acreditam ser possível encontrar princípios universais reguladores do comportamento moral. Uma concepção comum entre eles é que a função da moralidade é a de promover a cooperação, facilitando assim a coordenação das ações humanas em sociedade. Com base nessa ideia os antropólogos Oliver Scott Curry e seus colegas promoveram uma pesquisa em 60 culturas diferentes no mundo inteiro, evidenciando que as seguintes regras morais são comuns em todas elas:[6]

 

Ajudar a família

Ajudar o grupo

Retornar favores

Ser corajoso

Obedecer aos superiores

Dividir recursos de forma justa

Respeitar o que é dos outros.

 

É mais bastante provável que tenhamos disposições inatas para seguirmos essas regras. E elas não são de pouco uso, como Locke pensava que deveriam ser as supostas regras morais inatas.

   Um filósofo poderia objetar que essas são regras de polegar, que não valem para todas as situações. Ela serão sempre todas derrotadas quando houver justificação para tal. A situação pode ser tal que qualquer dessas regras concorra com a regra do utilitarismo de ação de produzir maior bem e menor mal para todos, como foi lembrado quando consideramos o utilitarismo de duas camadas. Mas é perfeitamente legítimo defender que essas regras valem de uma maneira geral, mesmo que não tenhamos um sistema ético que nos permita derivar suas condições de aplicação em casos concretos. Além disso, é perfeitamente possível supor que temos disposições inatas para segui-las.

   Ainda um argumento contra o inatismo é o de que o intelecto não pode criar ideias simples: um cego de nascença não pode ter a ideia de cor, nem um surdo pode ter a ideia de som. Essa consideração será importante para a teoria das ideias de Locke e não há razão para discordarmos dela.[7]

   Locke reconhecia que se interpretarmos ideias inatas em um sentido mais fraco, como meras capacidades que nos facultam a termos ideias, podemos dizer que as possuímos. Esse é o caso da capacidade que temos para aprender aritmética e geometria. Mesmo assim, o fato de Locke ter considerado isso irrelevante demonstra que ele tendia a minimizar o papel de nossas disposições inatas na construção do conhecimento. É aqui que as objeções de Leibniz contra Locke acabaram por se demonstrar melhor justificadas (ver cap. VII sec. 6). Afinal, a descoberta de um número cada vez maior de disposições inatas pela psicologia contemporânea não torna a questão irrelevante. Ela é a maneira atual de defendermos aquilo que filósofos racionalistas exageravam falando de ideias inatas. Por exemplo: psicólogos mostram que um recém-nascido chora quando lhe é apresentada uma máscara assustadora. Ele sente medo. Isso significa que ele possui uma disposição inata para reagir a estímulos visuais complexos, o que deve lhe habilitar a mais tarde formar juízos sobre aquilo que lhe causa medo ou aversão. Isso significa que existem capacidades e disposições inatas aos seres humanos que, sob condições adequadas, os levam a produzir ideias mais ou menos específicas.

   Você poderá agora se perguntar se a admissão da existência de disposições inatas afeta o projeto de Locke de fazer derivar todos os nossos conteúdos mentais da experiência. A resposta é que não. Vimos que a razão da rejeição do inatismo rudimentar da parte de Locke era a sua rejeição ao dogmatismo e à inflexibilidade a ele associadas. Mas também vimos no capítulo VII (sec. 6) a grande diferença encontrada por Popper entre o nosso inatismo e o dos animais, tomando como exemplo o fenômeno da imprintação. Diversamente dos animais, nós somos capazes de revisar nossas “teorias” inatas enquanto eles não. Só isso basta para garantir a flexibilidade e frustrar o dogmatismo receados por Locke.

 

3

 

Ideias simples. O objetivo maior da crítica ao inatismo foi para Locke o de preparar o terreno para a sua tese principal, lançada no livro II do Ensaio.  De acordo com ela, todo o material do pensamento é resultado das mais variadas manipulações de ideias derivadas da experiência. Por isso ele precisou defender que a mente de quem nasce é inicialmente como uma folha de papel em branco, vazia de qualquer ideia.[8] Só a experiência, externa e interna, será capaz de mobiliar a mente com ideias.

   Pelo uso do método empirista de observação Locke descobriu que existem ideias simples, uniformes, passivamente recebidas e não analisáveis, ainda que costumem aparecer associadas a outras ideias. Essas ideias são provenientes de duas fontes: a sensopercepção e a reflexão das operações da mente sobre si mesma.[9] As ideias simples de sensação e de reflexão eram importantes para ele porque ele queria mostrar como todas as outras ideias resultam de operações da mente na combinação dessas ideias simples. E isso é assim ainda que não sejamos mais capazes de perceber a relação entre o produto final e a sua distante origem.

   Quais são as ideias simples da sensação? Para Locke elas são as recebidas pelos nossos cinco sentidos. Assim, pelo sentido da visão tenho a ideia da cor branca do lírio, pelo do tato a ideia do frio e da dureza de um pedaço de gelo, pela audição a ideia do som agudo de um apito, pelo paladar a ideia do gosto doce do açúcar, e pelo olfato a ideia do perfume de uma rosa... Essas ideias nos aparecem como sendo simples e uniformes, e a mente as recebe passivamente na percepção sensível, não sendo capaz nem de criá-las nem de destrui-las. Locke observa que não somos capazes de imaginar um gosto realmente novo ou uma cor realmente nova. Nem somos capazes de fazer desaparecer essas ideias de nossa mente depois de às termos experienciado.

   As ideias simples da reflexão, por sua vez, são aquelas que resultam de uma reflexão (introspecção) da mente sobre suas próprias operações. Exemplos são as ideias de perceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer e querer.[10]

   As ideias simples da sensação podem vir de um só sentido, como as de cor ou de sabor, ou de mais de um sentido, como as de extensão, forma, repouso e movimento. Podemos ver um corpo em movimento e podemos sentir pelo tato que ele se move.

   Há também as ideias simples mistas, provenientes tanto da sensação quanto da reflexão, como as de prazer (ou deleite) e dor (ou insatisfação), assim como as de poder, existência e unidade.[11] As ideias de dor e prazer são particularmente importantes, devendo ser entendidas em um sentido amplo, como doadoras de tons hedônicos à nossa experiência.[12] Sua importância consiste em que elas nos impelem à ação e ao pensamento, induzindo-nos a buscar o prazer e fugir da dor. Nossas ideias se encontram quase sempre vinculadas a tonalidades e intensidades afetivas.[13] Se não tivéssemos ideias de afetos, nós seríamos condenados à inércia física e cognitiva. Como ele notou, sem tais associações o ser humano seria “uma criatura bastante inativa, passando seu tempo em um sonho indolente e letárgico”.[14]

   Importante são aqui ainda as ideias simples mistas de existência, unidade e poder, que se caracterizam por acompanhar todas as nossas percepções. Essas ideias “são sugeridas por todos os objetos externos e por todas as ideias internas”.[15] Por exemplo, é pelo operar dos objetos sobre nós e pelo nosso agir sobre as ideias que alcançamos a ideia mista de poder.

   Nesse ponto, uma objeção poderia ser feita contra a própria sugestão de que existem ideias simples. Afinal, mesmo uma ideia tão simples quanto a do perfume de uma flor pode variar em qualidade e intensidade. A ideia de uma cor como o vermelho pode aparecer em tons diferentes como, por exemplo, o vermelho da china, o de cereja, o de Borgonha... E elas também podem se apresentar combinadas de maneira a formar inúmeras tonalidades para as quais sequer temos nomes para dar. Pesquisas mostraram que o olho humano é capaz de diferenciar entre 200.000 a 20 milhões de tonalidades de cor. Além disso, as cores possuem diferentes sombreamentos, diferentes saturações.

   A resposta é que essa objeção não se aplica verdadeiramente a Locke. Wittgenstein fez uma bem conhecida crítica ao conceito de simplicidade entendido em termos absolutos. Ele percebeu que o conceito de simplicidade é relativo, pois depende da maneira pela qual escolhemos dividir o mundo.[16] Em defesa de Locke podemos responder que ele escolheu dividir o mundo de suas ideias em ideias simples intuitivamente, mas que essa intuição tem na verdade um fundamento biológico. Ele é dado pela própria natureza de nossas células receptoras de sensação, tal como ela foi evolucionariamente estabelecida. Comecemos com as cores. Elas são captadas na retina por células especializadas que são os cones, o que fundamenta a unidade do conceito de cor. Do ponto de vista fenomenal existe o círculo cromático muito bem conhecido dos pintores. Ele possui três cores básicas, que são o amarelo, o vermelho e o azul, três cores secundárias, que são misturas de duas cores primárias e de seis cores terciárias, que são misturas de cores primárias com cores secundárias. É essencial frisar que esses dados fenomenais são bem fundamentados fisiologicamente. Nós temos três tipos básicos de cones, os cones L (de “long”), especializados em captar a cor vermelha (comprimentos de onda mais longos do espectro visível), os cones L (de “medium”), especializados na captura da cor amarela (comprimentos de onda médios), e os cones S (de “short”) especializados na captura dos tons de azul, a cor mais curta do espectro. São as combinações das ondas captadas por esses três tipos de células que formam todas as cores que somos capazes de enxergar. Isso significa que nós temos hoje como fundamentar em termos histológico-funcionais a escolha intuitiva das cores vermelho, amarelo e azul como as verdadeiramente simples e suficientemente uniformes, em conformidade com as intenções de Locke de encontrar ideias simples, ainda que ele mesmo não tivesse condições em sua época de desenvolver esse argumento. Trata-se, pois, de simplicidade com relação às capacidades fenomenais/fisiológicas que possuímos para perceber cores, que combinadas produzem todas as outras na independência de outros fatores adicionais, como a luminosidade ou brilho (quantidade de fótons), a saturação (grau de pureza) e o sombreamento (mistura com o preto).

   A mesma espécie de consideração pode ser feita com relação a outros sentidos. O estudo das terminações nervosas na pele nos mostra que distinguimos estímulos táteis com base em uma variedade de diferentes receptores. Por exemplo: os que determinam toques grosseiros e distinguem o áspero do mole (corpúsculos de Pacini), os responsáveis pela sensação de pressão e toques leves e contínuos (corpúsculos de Merkel), os responsáveis pela sensação de dor (terminações nervosas livres), pela sensação de movimentos suaves (corpúsculos de Meissner), pelas sensações de frio e calor (nociceptores térmicos), etc. Tanto visualmente quanto pelo tato somos capazes de perceber bordas, linhas retas e curvas e diferentes formas geométricas. Temos assim critérios fenomenais ancorados em critérios histológico-funcionais a nos permitir distinguir ideias simples, passivamente recebidas, com papel primordial na gênese de nosso conhecimento do mundo externo.

   Quanto ao sentido da audição, as células ciliares do ouvido interno reagem à intensidade e frequência do som. O tom (frequência), a intensidade (altura) e o timbre (a qualidade) são traços evidentes pelos quais distinguimos os sons. Somos capazes de distinguir uma oitava acima ou abaixo de uma nota musical emitida como sendo “iguais” por resultarem do dobro ou da metade do comprimento da onda de som emitida. Parece então razoável admitir que os sete diferentes tons da oitava possam ser considerados simples (mesmo que possam ser subdivididos em semitons, também eles divisíveis...), uma vez que somos capazes de distingui-los claramente.

   Finalmente, também somos naturalmente aptos a distinguir gostos básicos como o salgado, o doce, o amargo, o azedo e o ácido por meio dos diversos tipos de papilas gustativas até agora identificadas... Encontramos, pois, fundamentos biológicos e até mesmo físicos para intuições originariamente filosóficas.

  É preciso lembrar que Locke não estava fazendo nenhum estudo psicológico ou fisiológico que demandasse a precisão buscada por essas ciências, mas uma investigação filosófica de como o nosso conhecimento empírico se origina de uma variedade bem definida de dados sensíveis. Assim, longe de refutar o projeto de Locke, a ciência hoje o confirma, mostrando que a simplicidade das ideias, se bem entendida, não é uma noção arbitrária. Ela mostra que o construcionismo de Locke, que começa com ideias de cores simples, de unidades simples de som, de sensações táteis simples, de gostos simples, é perfeitamente razoável.

   A ciência contemporânea também pode trazer revelações. Por exemplo, Locke não considerou que também podemos formar ideias complexas de maneira passiva como resultado de disposições naturais. Voltando ao exemplo do bebê que chora diante de uma máscara assustadora, notamos que ele a identifica de modo passivo. Mas o que a máscara produz é uma ideia já bastante complexa, mesmo que quando analisada em termos das ideias simples que a compõem, ela seja constituída de cores e formas simples.

 

4

 

Ideias complexas. Passemos agora às ideias complexas que, diversamente das simples, resultam da atividade da mente. Locke as classificou como ideias de substâncias, modos e relações, ao que podem ser adicionadas as ideias gerais e abstratas. Ele também fez uma classificação geral das operações da mente, das quais resultam essas ideias complexas, que são as de combinação, comparação e abstração das ideias. Vejamos então como é possível aplicar essas operações da mente na formação de ideias complexas de substâncias, modos e relações.

   A ideia de substância, em um primeiro e não-problemático sentido do termo, resulta de combinações de ideias simples que servem para representar coisas particulares que são independentes ou auto-subsistentes.[17]. Por exemplo: um certo homem. Ela vale também para objetos dispersos, como uma certa cidade ou um certo exército.

   Ele chama de modos às ideias complexas que, por mais compostas que sejam, são feitas para designar existências de coisas dependentes ou não auto-subsistentes. Ou seja: suas referências são afecções que só existem na dependência das substâncias. Esse é o caso das ideias de triângulo, gratidão, assassinato.[18] Também os modos devem advir de combinações de ideias simples.

   As ideias de relação resultam da operação mental de comparação entre nossas ideias, sem que com isso elas sejam unidas.[19] Esse é o caso das ideias de poder, identidade e, principalmente, causalidade.

   Há, por fim, o caso das ideias complexas que são gerais ou abstratas.[20] Um exemplo é o da ideia de ser humano, que pode ser extraída das ideias que nos são apresentadas pelas mais diversas pessoas com as quais nos é dado interagir. Ideias abstratas resultam de uma operação de abstração segundo a qual separamos alguma ideia complexa que repete sempre como parte de certos grupos de ideias mais complexas nem sempre presentes, de modo que as primeiras possam nos parecem essenciais, diversamente das outras que as acompanham de modo acidental. Por esse meio produzimos uma ideia geral ou abstrata.

 

5

 

Modos. Examinemos primeiro as ideias de modo. Para Locke existem modos simples e mistos.

   Os modos simples são variações de uma mesma ideia. Por exemplo, variações de uma mesma escala. Um capricho para violino solo é um modo simples. Para Locke espaço, tempo, número e infinitude são modos simples. Já os modos mistos são compostos de ideias simples de diversos tipos. Exemplos: a ideia de algo belo, que é a de um composto de cor e figura, causando deleite a quem o vê; a ideia de roubo é a de uma secreta mudança de posse de algo sem o consentimento de seu proprietário. Beleza e roubo são modos complexos, pois combinam ideias diferentes sem que essas combinações sejam auto-subsistentes.

   Para Locke, os modos simples de espaço, tempo, número e infinitude são obtidos através de ampliação. Considere os primeiros dois. Obtemos ideias simples de espaço pela percepção visual e tátil. A distância é a consideração da extensão medida entre dois objetos sem considerar o que se encontra entre eles. Cada medida de distância é um modo simples do espaço. E repetindo, adicionando e expandindo a ideia simples do espaço chegamos à ideia do espaço comum, que Locke se propõe chamar de expansão. A expansão é o “espaço em si mesmo”.

   De maneira semelhante adquirimos a ideia de tempo. A origem da ideia de tempo está na observação de sequências de ideias se sucedendo em nossas mentes. Isso nos dá a ideia de sucessão temporal. A distância entre as sucessões é a duração. Quando observamos os fenômenos se repetindo de maneira regular em períodos equidistantes obtemos a ideia de medida da duração. Começamos contando dias e anos... depois passamos a usar relógios com os quais aprendemos a medir o tempo em horas, minutos e segundos... Como somos capazes de repetir essas durações, percebendo que nunca chegamos mais próximos de um fim, alcançamos a ideia de eternidade. Finalmente, juntando as durações chegamos à ideia do tempo em geral.

   Consideremos agora a ideia de unidade. Ela é uma ideia simples sugerida pela sensação e pela reflexão, quando consideramos um objeto presente. Ora, ao repetirmos essa ideia de unidade chegamos ao modo complexo dos outros numerais. Por exemplo, ao juntar duas unidades formamos a ideia complexa de uma dupla. Juntando três formamos a ideia complexa de um trio. Juntando doze formamos a ideia de complexa de uma dúzia. E como sabemos que podemos juntar sempre mais um, formamos a ideia de uma quantidade ilimitada de números naturais.

    Particularmente importante para Locke era a ideia de Deus. O Deus anglicano era definido como um espírito infinito em sabedoria, bondade, amor e poder. Locke acreditava que essa ideia poderia ser produzida pelo mesmo processo de ampliação. Podemos, pensava ele, ter uma ideia confusa de Deus ampliando ideias como as de sabedoria, bondade, poder, justiça... chegando assim à ideia de um ser incompreensível e infinito. Embora Deus seja em si mesmo simples, sua ideia é complexa.

   As ideias do finito e do infinito são obtidas a partir da ideia de quantidade. O finito e o infinito são para Locke modos de quantidade, que podem ser obtidos por meio de adição e subtração de quantidades em um processo indefinidamente contínuo: a série dos números naturais é infinita, assim como o espaço e o tempo como um todo. Mas a infinitude desses últimos é derivada. Primeiro pensamos a ideia de número e com ela mensuramos extensões de espaço e durações de tempo, ampliando-as e percebendo que não nos aproximamos nunca de um limite, chegando assim à ideia de infinitude. Trata-se, é claro, de uma noção de infinito potencial, o único admitido por Locke. Para ele, como para Aristóteles, o infinito potencial difere do infinito atual pelo fato de que o último envolve a aceitação da existência de entidades infinitas como atualmente dadas, o que é inconcebível. Finalmente, vale notar que esse aumento ou ampliação que nos conduz à ideia de uma infinitude numérica potencial não pode ser aplicado a conceitos qualitativos como o de cor, pois não podemos ampliá-los indefinidamente em nossa imaginação.

   Vejamos agora as ideias de modos mistos. Eles são constituídos por combinações de ideias de tipos diferentes, ideias que precisam ser apenas compatíveis entre si. Eles se distinguem das ideias de substância pelo fato de serem dependentes da última, não representando um ser real com existência contínua. Locke exemplifica com ideias como as de obrigação, mentira, hipocrisia, embriaguez e assassinato. Considere o caso do assassinato: ele é um modo misto que inclui ideias de desejo, intenção, ódio, movimentos corporais, morte, etc.

 

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Relações. Passemos agora às ideias de relações.[21] Para Locke as ideias de relações[22] são ideias complexas relacionando ideias simples ou complexas. Elas são o resultado de uma operação da mente chamada por Locke de comparação, pois quando temos um objeto em mente tendemos naturalmente a buscar suas relações com outros. Há uma multiplicidade indefinida de relações. Uma relação como ‘...é maior do que...’ resulta da comparação entre duas ideias. Existem relações naturais como a de consanguinidade: “João é pai de Maria”; relações institucionais como a de ser o general da armada; relações morais, como a de uma ação humana com a regra moral a ser seguida. As principais relações analisadas por Locke são as de causalidade e identidade.

 

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Realismo indireto. Locke trata as ideias como signos que representam coisas do mundo externo. Em filosofia da percepção isso é chamado de realismo indireto ou representacionalismo, pois assume a inevitável existência de um meio intermediário entre o sujeito e o objeto, através do qual temos acesso ao mundo externo. Esse meio, por alguns chamado de véu das sensações, são as representações, por Locke chamadas de ideias da sensação ou, na terminologia contemporânea, de sense data.

   O realismo indireto era aceito pelos cientistas da época, de Galileu a Robert Boyle. Ele havia sido assumido por Descartes, teve defensores medievais e originou-se já dos atomistas gregos. Os argumentos da ilusão e da ciência foram em sua época desenvolvidos em defesa do realismo indireto. O assim chamado argumento da ilusão nos mostra que vemos os trilhos da estrada de ferro como se eles fossem se encontrar no final, quando bem sabemos que esse não é o caso. Olhamos para o sol, mas sabemos que não estamos vendo como ele é agora, mas como ele era uns 8 minutos atrás, já que a luz do sol leva cerca de 8 minutos para chegar à terra. Se apertarmos o canto de um olho tendo o outro olho fechado, temos a impressão de que os objetos vistos se movem. Se sairmos lá fora sem luvas, onde a temperatura é de 20 graus abaixo de zero, voltarmos sem sentir as mãos, e a água corrente com a qual as lavamos parece estar quente, quando sabemos que não está. E ainda podemos ser vítimas de alucinações perfeitamente realistas se estivermos sofrendo de alucinose alcoólica. Há, também, o assim chamado argumento da ciência. Sabemos que aquilo que vemos é uma projeção feita no córtex visual primário situado na região occipital do cérebro, a qual é interpretada em regiões mais profundas.

   Em meu juízo a prova definitiva de que temos acesso visual ao mundo externo através de ideias hoje chamadas de sense data foi dada pelas experiências com fMIR em laboratórios da Universidade de Berkeley há poucos anos.[23] Como os vasos capilares se dilatam levemente onde há maior atividade neuronal, foi possível através de fMIR reconstruir computacionalmente as sequências de imagens mentais tidas por voluntários que estavam assistindo filmes, ainda que as imagens em movimento saíssem bastante borradas. As imagens em movimento são dos sense data visuais que se dão na região occipital do cérebro. Se é assim com a visão, deve ser assim também com os outros sentidos.

 

8

 

Qualidades. Ainda no livro II Locke faz uma importante distinção entre ideias e qualidades:

 

Qualquer coisa que a mente percebe em si mesma, ou que é imediato objeto de percepção, pensamento ou entendimento, é o que chamo ideia; e o poder de produzir qualquer ideia em nossa mente eu chamo de qualidade do objeto no qual está esse poder. Assim, uma bola de neve tem o poder de produzir as ideias de branco, frio e redondo. Os poderes de produzir tais ideias em nós, estando na bola de neve, eu chamo de qualidades; e suas sensações ou percepções em nosso entendimento eu chamo de ideias...[24]

 

Em seguida ele expõe a sua versão mais elaborada da famosa distinção entre qualidades primárias e secundárias. Eis como ela pode ser exposta:

 

(i)             As qualidades primárias são aquelas completamente inseparáveis dos corpos em qualquer estado em que eles se encontrem. Locke exemplifica as principais: solidez, extensão, forma, movimento, repouso e número. Mesmo que se deforme um corpo ou que ele seja dividido, o resultado continua possuindo essas propriedades. O exemplo de Locke é de um grão de trigo, que ao ser dividido pode perder a cor e o aroma, mas continuará possuindo propriedades primárias como as de solidez, extensão, forma, movimento... (Descartes tinha o exemplo da pedra, que mesmo dividida continuava a possuir extensão). No escuro os objetos perdem as cores, mas não as formas... Disso ele concluiu que nossas ideias das qualidades primárias desses corpos se assemelham às suas qualidades primárias.

 

(ii)           As qualidades secundárias, por sua vez, produzem ideias em nós que em nada se assemelham a elas. Exemplos são cores, sons, odores, sensações térmicas... É assim porque elas na verdade são poderes presentes nos corpos de produzir em nós ideias de qualidades secundárias por meio de qualidades primárias dependentes de “partículas insensíveis atuando sobre nossos sentidos.” Trata-se daquilo que hoje chamamos ondas de luz de certos comprimentos refletidas pelos corpos, de ondas de som no ar, de moléculas de odores e gostos, que quando consideradas em detalhes se revelam como sendo constituídas de qualidades primárias.

 

Importante é que para Locke as ideias das qualidades primárias são semelhantes às qualidades secundárias. já as ideias das qualidades secundárias não podem ser semelhantes às qualidades secundárias, pois são ideias produzidas em nós por condições que em um nível microestrutural se reduzem a qualidades primárias.

   Embora mais tarde fortemente criticada por Berkeley, a sugestão de Locke de que as ideias das qualidades primárias são semelhantes às qualidades primárias, enquanto as ideias das qualidades secundárias não são semelhantes às qualidades secundárias, parece intuitivamente correta. Posso aqui apresentar um argumento em seu suporte, sugerido pela comparação entre nossa percepção e a percepção de outros animais. Eles podem perceber diversamente de nós as qualidades secundárias, mas sua percepção das qualidades primárias deve ser inevitavelmente similar à nossa. Exemplos empíricos demonstram esse ponto. Qualidades secundárias são perceptualmente filtradas de modo diverso em diferentes animais. Sabemos que outros seres vivos percebem cores e odores diversamente. As águias veem cinco cores básicas ao invés das três que nós vemos. Morcegos ouvem frequências de som muito superiores às que o ouvido humano é capaz de captar. O odor de carniça, que é para nós repelente, deve ser delicioso para uma ave de rapina... Considere agora o caso das qualidades primárias. Esses diferentes animais percebem qualidades primárias de modo inevitavelmente similar ao nosso. Um quadrado precisa possuir quatro lados, tanto para nós quanto para qualquer outro animal. O mesmo se deve dar com a percepção de outras qualidades primárias como a solidez, o movimento e o número. A evidência disso é comportamental. Corvos contam o mesmo número de objetos dados que nós. Não importa o quão diverso seja o equipamento sensório dos seres capazes de percepção, assumindo que o objeto da percepção seja o mesmo, não somos capazes de imaginá-los como vendo um círculo no lugar de um quadrado ou que percebam um sólido como se fosse líquido, um movimento como se fosse repouso e uma coisa só como se fossem muitas, o que é demonstrado pelos seus comportamentos.

   Essas considerações servem como objeção à ideia mais tarde defendida por Kant de que não podemos conhecer as coisas como elas realmente são em si mesmas. Essa variabilidade na percepção do mesmo pode facilmente induzir-nos a pensar que se diferentes sujeitos epistêmicos percebem diferentemente o mesmo objeto isso acontece porque o verdadeiro candidato a objeto da percepção – a coisa em si mesma – encontra-se além de tudo o que possa se dar a qualquer forma de percepção sensível. Mas isso é uma falácia. Tudo o que tais considerações demonstram é que conhecemos as coisas como elas mesmas são de diferentes maneiras, através de diferentes filtros perceptuais. Se os filtros forem diferentes perceberemos de modo diferente; e sabemos que há filtros que desconhecemos. Mas a prova de que percebemos as coisas como elas realmente são, embora de diferentes maneiras, é que esses filtros podem ser sempre demonstrados como sendo equivalentes ou complementares.

 

9

 

Objetividade. Aqui poderia emergir a objeção de que as ideias as qualidades secundárias não possuem referente objetivo, uma vez que elas se referem a algo que em um nível microestrutural é completamente diferente delas mesmas.

   Contudo, uma tal objeção seria equívoca. A ideia do calor da chapa de um fogão a lenha é de uma qualidade secundária constituída pela vibração de suas moléculas. Mas isso não faz com que pensemos que o calor é incapaz de causar queimaduras ou de ser medido por termômetros. A distinção entre qualidades primárias e secundárias não serve para tornar as ideias das últimas subjetivas, diversamente das primeiras. O filósofo Gottlob Frege sugeriu plausivelmente que o maior critério de objetividade a possibilidade de concordância interpessoal e como maior critérios de realidade a localização espaço-temporal.[25] As ideias das qualidades secundárias, não menos do que as primárias, satisfazem esses dois critérios... Assim, elas podem ser consideradas, tanto quanto as primárias, ideias de qualidades objetivamente reais, na independência das maneiras como as percebemos.

   Podemos confirmar a objetividade dos referentes das ideias das qualidades secundárias recordando-nos do equívoco de Sir Arthur Eddington em seu conhecido argumento das duas mesas. Segundo ele, quando estamos diante de uma mesa podemos falar na verdade de duas mesas. A primeira mesa é a do senso comum, que é dita substancial e sólida, enquanto a segunda mesa é a da microfísica, que não é nem substancial nem sólida, pois essencialmente constituída de espaço vazio e de partículas insubstanciais.[26] A mesa real era para Eddington a que foi descoberta pelos físicos. Como seus átomos se encontram demasiado distantes uns dos outros para que se lhe possa reivindicar solidez, a mesa real não é sólida. O argumento pode ser organizado assim:

 

1.    A mesa macroscópica é sólida.

2.    A mesa da microfísica não é nem substancial nem sólida (pois é quase inteiramente constituída de espaço vazio).

3.    Só a (micro)física explica as coisas como elas realmente são.

4.    Logo: a mesa macroscópica não é realmente sólida.

 

Wittgenstein percebeu que existe aqui uma confusão linguística, embora não a tenha explicado.[27] Podemos esclarecer o equívoco notando que Eddington confundiu a gramática conceitual de duas linguagens: a linguagem do quotidiano e a linguagem da microfísica. Por isso a premissa (3) é falsa. A linguagem da microfísica explica como as coisas realmente são se consideradas do ponto de vista do microcosmo, enquanto a linguagem do cotidiano explica como as coisas realmente são no mundo dos objetos que nos cercam. No sentido da primeira linguagem a mesa não pode ser realmente dita nem substancial nem sólida, pois essa linguagem não nos oferece critérios para dizer essas coisas.[28] No sentido da segunda linguagem a mesa é realmente substancial e sólida, pois satisfaz critérios para dizermos isso: ela é substancial porque existe por si mesma, é sólida porque é dura, resistindo à pressão e a forças exercidas sobre ela. Como consequência, as considerações feitas por Eddington sobre a mesa da microfísica não nos permitem passar para a conclusão de que a mesa do cotidiano não é sólida.

   Algo análogo podemos dizer sobre a objeção de que, por serem as ideias das qualidades secundárias, em nível microfísico redutíveis a qualidades primárias, elas não são ideias de coisas que possuem realidade objetiva. O fato de que em um nível microfísico as qualidades secundárias são constituídas por qualidades primárias não torna as qualidades secundárias referidas por suas ideias menos reais ou objetivas. Afinal, nada há de mais natural do que se admitir que as cores, os sons e os odores que sentimos são fenômenos que os objetos realmente possuem, emitem ou produzem, ainda que permitam traduções perceptuais as mais diversas. Por exemplo, é errado dizer que o vermelho desse sofá que estou vendo não se encontra nesse sofá; encontra-se sim, embora filtrado fenomenalmente pelos nossos órgãos sensórios de uma maneira peculiar (fisicamente é a disposição para refletir certo comprimento de onda). Estou certo de que mesmo no escuro, quando não posso ver o vermelho do sofá, ele permanece vermelho, pois a sua cor vermelha é uma propriedade independente da maneira pela qual eu a percebo. Mais tarde será considerada a sugestão de que tanto as qualidades primárias quanto as secundárias podem ser vistas como propriedades objetivas espaço-temporalmente localizáveis chamadas de tropos (ver cap. XIX).

 

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Substâncias. Uma ideia particularmente importante em Locke é a de substância. Ele definiu aristotelicamente a substância individual como aquilo que possui propriedades, mas que não é propriedade de coisa alguma. Ele distinguiu três tipos de ideias de substância: (i) a ideia de objetos particulares, como esse cavalo; (ii) a ideia de espécies como substâncias, por exemplo, do ouro ou do ferro; (iii) a ideia mais abstrata de substância em geral.

   Locke dedicou maior atenção a (iii), ou seja, à ideia da substância em geral. Ele pensou que se grupos de ideias ocorrem sempre juntas é porque deve haver algum substrato para as qualidades por elas referidas, que é algo que está sob, a substância (de sub-stare), que para nós não é mais do que a suposição de um “não sei o que” que suporta as qualidades. Como ele observou:

 

Nossa situação aqui não é melhor do que a do indiano que, dizendo que o mundo era suportado por um elefante, foi perguntado onde o elefante está pisando. Ao que ele responde: sobre uma grande tartaruga. Mas outra vez pressionado pela pergunta sobre o que suporta a grande tartaruga ele replica: sobre algo que eu não sei o que é.[29]

 

A admissão de um substrato incognoscível se encontra em contradição com o próprio empirismo sustentado por Locke. Ela reflete um conceito de substância comum em sua época e ainda hoje presente, marcando um esquecimento da discussão aristotélica do conceito de substância como o indivíduo dado (Categorias), como uma combinação particular de matéria e forma (o hilomorfismo da Física), ou ainda como a forma substancial que se instancia em um algo material (Metafísica).

   Berkeley e Hume, os empiristas que se seguiram a Locke, rejeitaram a noção geral de substância como uma suposição metafísica sem qualquer justificação perceptual e por isso mesmo destituída de força explicativa.

 

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Causalidade e identidade pessoal. Locke também analisou algumas ideias de relação mais importantes, como as de causalidade, identidade e identidade pessoal. Ele considerou a ideia de causalidade como a mais abrangente ideia de relação. A causa é qualquer coisa que faz uma outra começar a ser.[30] Como as outras, ela é derivada da experiência, não só da sensação, mas também da reflexão. Para ele não só as qualidades são poderes que causam ideias em nós (daí que sua teoria da percepção é causal), mas as coisas do mundo externo causam outras e nossas ideias causam outras ideias, além de causarem eventos exteriores, como a minha decisão de levantar meu braço. Ele chegou a suspeitar que temos uma experiência originária direta (reflexiva) do vínculo de necessidade entre causa e efeito por meio da consciência do ato volitivo pelo qual produzimos uma ação como a de levantar o braço. Afora isso, Locke acreditava que o princípio “Tudo o que começa tem uma causa” é indubitável. E para ele a mente tem a capacidade intuitiva de apreender conexões necessárias entre causas e efeitos. Tais sugestões foram mais tarde criticamente exploradas por Hume.

   Identificamos um corpo físico por sua posição no espaço, uma vez que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar. A relação de identidade de uma mesma coisa em momentos temporais diferentes foi analisada por Locke como uma identidade de suas partes componentes, mesmo que seu arranjo interno possa mudar.  No caso de criaturas vivas, o critério de identidade no tempo é diferente: é preciso que tenham a mesma vida. Assim, uma árvore crescida é muito diferente de sua semente, mas ambas possuem a mesma vida.

   Quanto a nós mesmos, ele distinguiu a identidade no tempo de homens (men) da identidade no tempo concernente a pessoas (persons). Por homem ele entende o animal humano, que nada mais é do que um ser vivo, identificável no tempo pelo critério de posse de uma mesma vida. Diferente é o caso da pessoa, que para Locke é “um ser pensante inteligente, que possui razão e capacidade de autoconsciência”.[31] A identidade da pessoa no tempo é diferente da identidade do homem. Para prová-lo ele imaginou que um príncipe pudesse ser transformado em um mendigo com um corpo físico muito diferente. O homem seria um outro. Mas se o mendigo continuasse a possuir a mesma consciência do príncipe, preservando as mesmas lembranças, a pessoa seria a mesma. Para ele o que faz com que uma pessoa seja idêntica a si mesma no tempo é a identidade de sua consciência: a pessoa é a mesma até o momento do passado em que a sua consciência mnêmica conseguir alcançar. Assim, eu sou a mesma pessoa que fui quando tinha quatro anos de idade, uma vez que ainda sou capaz de ter a consciência de acontecimentos por mim vividos em minha infância. Essa visão algo estreita da identidade pessoal suscitou objeções fáceis, como a estória do jovem militar que é capaz de se recordar de ter roubado uvas quando criança, mas que quando se tornou um idoso general já havia se esquecido disso, continuando apenas a gabar-se de seus grandes feitos nas batalhas... Teria ele deixado de ser a mesma pessoa que foi quando criança?

   A análise do conceito de identidade pessoal feita por Locke é relevante, mas insuficiente. Para percebermos isso basta nos lembrarmos de seu exemplo do príncipe mendigo. Não é só a memória dos acontecimentos passados que faz dele o mesmo príncipe. Afinal, as memórias do príncipe poderiam ser em princípio implantadas na mente do mendigo. À identidade pessoal pertencem também habilidades, personalidade, conhecimento e até mesmo alguma forma de continuísmo (e não continuidade) corpóreo.

   O problema da identidade pessoal abordado por Locke continua conosco até hoje. O filósofo Derek Parfit, imaginou uma variedade de experiências em pensamento que nos ajudam a entender os critérios de identificação pessoal e sua importância.[32] Por exemplo: ele demonstrou que uma pessoa poderia manter a sua identidade pessoal mesmo que seu corpo fosse destruído. Para tal ele imaginou uma pessoa sendo teletransportada para Marte enquanto seu corpo é destruído pela máquina de escaneamento na terra. Essa pessoa acorda em Marte com as mesmas habilidades, personalidade e memórias, sendo a última delas a de ter apertado o botão responsável pelo teletransporte. Ela é certamente a mesma pessoa. Parfit também imaginou casos como o de multiplicação e mesmo o de uma posterior união: se uma pessoa for multiplicada de modo que a pessoa originária desapareça e em seu lugar apareçam trinta pessoas idênticas, com a mesma consciência e memória, não teríamos mais critério para dizer quem é a pessoa que era antes (na lógica criterial 1 + 1 = 0). Se essas trinta pessoas puderem ser unificadas de modo a restar uma única, será ela a mesma que a pessoa inicial?

   Para mostrar que a continuidade do mesmo corpo não é necessária, o inventivo filósofo Sydney Shoemaker imaginou uma máquina de substituição do corpo.[33] Em um ambiente futuro no qual os níveis de radioatividade são muito grandes, as pessoas entram de tempos em tempos em máquinas de substituição do corpo de modo a evitar o surgimento de tumores. Essas máquinas substituem cada molécula de seus corpos por outras idênticas em apenas algumas poucas horas. Se, ao sair da máquina, alguém perguntar a uma delas se ela ainda é a mesma pessoa, ela responderá: “Claro que sou a mesma pessoa; estou apenas om um novo corpo.”

   A experiência em pensamento de Shoemaker mostra que a continuidade requerida é essencialmente psicológica e que não precisa haver continuidade material do corpo. Contudo, mesmo que a máquina tenha substituído as moléculas, é preciso notar que ela preservou as suas combinações e a estrutura geral do corpo, razão pela qual ainda podemos postular a necessidade de um continuísmo causal entre o que existia antes e o que passou a existir depois.

   Uma outra dificuldade com o conceito de identidade pessoal é que seus critérios não podem ser precisamente fixados. Podemos dizer em um sentido forte da palavra que Pedro é a mesma pessoa desde sua mais tenra infância até sua morte, como gostaria Locke. Mas também podemos dizer que o mesmo Pedro sofreu mudanças tão drásticas de comportamento após sofrer um acidente vascular cerebral que deixou de ser a mesma pessoa. E ainda podemos dizer, em um sentido “frouxo” do termo, que desde que ganhou na loteria Maria deixou de ser a mesma pessoa...

   No sentido forte de identidade pessoal que Locke tinha em mente, há outros fatores além da memória pessoal por ele explicitamente considerada. Afinal, podemos reconhecer uma pessoa que perdeu a memória como sendo a mesma se (i) ela ainda possuir a sua mesma memória de habilidades e proposicional (principalmente seus conhecimentos); se (ii) as suas capacidades intelectuais, como entendimento, raciocínio, reflexão e habilidades linguísticas permanecerem; e se (iii) as mesmas estruturas afetivo-volicionais, como traços de personalidade, temperamento, caráter... não se alterarem significativamente. Afora isso, permanece a questão física da permanência do mesmo corpo. Embora essa permanência não seja essencial (toda a matéria de um corpo humano é substituída em um período entre sete a dez anos...), é certo que podemos adicionar a condição física (iv) de que alguma forma de continuísmo causal concernente a estruturas dos constituintes do corpo deva existir, supondo-se que as alterações sejam suficientemente lentas (as células se reproduzem quase sem alteração, etc.).

   Com base nos elementos recém listados é possível propor um critério múltiplo suficientemente vago de identidade pessoal, por exemplo, estabelecendo parâmetros como uma satisfação suficiente de condições como (i), (ii), (iii) e (iv). Tal critério poderia cobrir aproximadamente o que nos sentimos capazes de identificar como sendo a mesma pessoa e não o mesmo corpo humano, de sua infância até sua velhice. Mas ele exclui casos como o de um bebê recém-nascido...

   A conclusão é que o conceito de identidade pessoal é de tal maneira contextualmente aberto que não faz sentido buscar uma muito precisa determinação de seus critérios de aplicação.[34]

 

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Teoria do significado. No livro III do Ensaio Locke passa a investigar a linguagem. Em concordância com seu realismo indireto, para ele as palavras são signos de ideias e não das coisas. A linguagem funciona como o meio que possibilita a comunicação das ideias, uma vez que sem a linguagem elas seriam incomunicáveis. E o falante consegue comunicar as ideias para o ouvinte pelo fato de que ambos se encontram longamente familiarizados com a conexão convencional implícita entre as palavras e as ideias que lhe correspondem. Para Locke aquilo que chamamos de significados de nossas palavras são as ideias por elas veiculadas e o significado das sentenças são as combinações de ideias geralmente chamadas de pensamentos. O entendimento ocorre quando as palavras evocam no ouvinte as mesmas ideias que no falante.

   Essa concepção de senso comum pode ser objetada como ingênua com base em uma generalização do argumento da linguagem privada uma vez proposto por Wittgenstein. Segundo esse argumento, não há como se estabelecer um vínculo convencional entre uma palavra referente a um estado mental interno qualquer, digamos, ‘dor’, e o próprio estado mental, pois não existe possibilidade de correção interpessoal do uso da palavra. Assim, pode ser que da próxima vez que eu use a palavra ‘dor’ eu esteja aplicando a palavra a um outro estado mental (ou mesmo a nenhum), não sendo possível que alguém me corrija, uma vez que um estado mental interno não é passível de correção interpessoal.[35] Esse argumento levou Wittgenstein a fazer uma sugestão bizarra acerca de nosso aprendizado de termos designando estados mentais, que poderíamos denominar “teoria da expressão”: nós temos a disposição para chorar quando sentimos dor, o que é a expressão natural da sensação. Aprendemos então a substituir o choro por exclamações como “Ai!” Mais tarde, enfim, aprendemos a dizer algo mais articulado como “Sinto dores”, como uma expressão convencional mais sofisticada da dor. Desse modo aprendemos a falar de dor contornando a referência a um estado mental subjetivo. O argumento da linguagem privada pode ser estendido para ideias expressas por palavras referentes a coisas externas. Assim, se considerarmos que a ideia de cavalo é algo privado, também aqui nada garante que da próxima vez que usarmos a mesma palavra estaremos nos referindo à mesma ideia, pois ninguém poderá penetrar em nossas mentes para controlar interpessoalmente se com a palavra estamos designando a mesma ideia.

   Uma resposta plausível seria a de que o critério para a identidade de uma ideia se encontra simplesmente em sua função interpessoalmente corrigível. Se em circunstâncias interpessoais aprendo a vincular convencionalmente a palavra ‘cavalo’ à ideia de cavalo, o critério para a associação com a ideia correta é a identificação correta do animal, que pode ser testada interpessoalmente. Se eu e a pessoa que se encontra comigo nos encontramos no campo e identificamos um certo animal usando ambos a palavra ‘cavalo’, essa é a razão justificadora de termos a mesma ideia do que seja um cavalo. O argumento estendido da linguagem privada inverte essa relação, pois pressupõe que é porque temos a mesma ideia do que seja um cavalo que somos capazes de identificar o animal como sendo um cavalo. Essa convicção se torna mais forte quando tentamos analisar a ideia complexa de cavalo e percebemos que há uma concordância entre as ideias mais simples que se combinam na formação dessa ideia mais complexa. Assim, ambos concordamos quanto ao fato de que a ideia de cavalo compreende as ideias de um animal quadrúpede que serve de montaria, que se alimenta de capim, etc. Se desenharmos a imagem de um cavalo evocada por nossa ideia de cavalo, perceberemos que nossos desenhos são similares. Isso nos mostra que as imagens que formamos ao pensarmos em cavalos é similar. E também concordamos que essas imagens são representações interiores que se dão em nossas mentes. Dizer que temos uma mesma ideia de cavalo não é nada mais do que possuir tais habilidades similares relacionadas a aplicação da mesma palavra na identificação de algo.

   Com relação a identificação de estados internos também não é difícil encontrar uma resposta mais plausível do que a teoria da expressão. Considere o caso do aprendizado da palavra dor. Aprendemos a identificar esse estado interno através de indução por exclusão. Quando uma criança se machuca ela chora. Os adultos se perguntam se ela sente dor. Mas logo a criança aprende que a dor não é o choro, nem a ferida, nem o sangue que escorre, nem qualquer outra coisa visível. O que resta é a apenas uma coisa: a sensação de dor. Desse modo ela aprende a associar a palavra ‘dor’ à sensação de dor, que é uma ideia simples de alguma coisa interna, que pode ser atualizada de forma branda através da memória. Aqui também há uma inversão. Não é porque sentimos dores que usamos a palavra ‘dor’ corretamente, mas porque usamos a palavra dor corretamente que sabemos identificar a dor que realmente sentimos.

   Um outro ponto diz respeito à noção de essência. Segundo a doutrina escolástica que Locke aprendeu quando jovem, as coisas possuem essências que somos capazes de apreender a priori, sem o auxílio indutivo da experiência. Desprezando essas doutrinas, ele rejeitou que pudéssemos conhecer as essências das coisas dessa maneira. Aqui ele introduziu uma importante distinção entre a essência nominal e a essência real. A essência real diz respeito à constituição interna das coisas. Já a essência nominal é uma ideia complexa abstrata, com a qual identificamos espécies de coisas. Considere, seguindo um exemplo de Locke, a ideia de ouro.[36] A essência nominal do ouro é a de ser entendido como uma substância amarela, maleável, com certa massa específica e solúvel em acqua regia. Mas não podemos estar certos do quanto a definição da essência nominal do ouro corresponde a sua essência real e do quanto dessa definição não é simples resultado de convenção. Podemos apenas ter a expectativa de que nossa ideia da essência nominal seja guiada pela essência real. Diferente é apenas o caso das ideias simples e modos, pois nesses casos as essências reais são as mesmas que as essências reais. No caso do triângulo, por exemplo, sua essência nominal é a mesma que a real.

    Como hoje sabemos que o ouro é um metal de transição com o número atômico 79, é bem possível que Locke concordasse que, tendo chegado ao conhecimento da constituição interna dessa substância, descobrimos enfim a sua essência real.[37] Seguindo os passos de Saul Kripke, Hilary Putnam defendeu que o significado de um termo de espécie natural como ‘ouro’ se encontra basicamente no domínio de sua referência externa, ou seja, das porções de metal com peso atômico 79, e não em uma ideia: o significado, escreve ele, “está fora de nossas cabeças!”[38] Ao especificar a essência nominal do ouro, um filósofo como Locke estaria tendo em mente apenas as parcelas convencionais do significado que Putnam decidiu chamar de marcador sintático (nome de massa), marcador semântico (substância sólida) e estereótipo (cor amarelada, maleável, solúvel em acqua regia).

   Não obstante, em consonância com seu representacionalismo semântico Locke certamente rejeitaria o externalismo semântico de Putnam. É bem possível que ele viesse a considerar a ideia da essência real do ouro como o metal de transição de número atômico 79, sendo esse o significado definitivo da palavra ‘ouro’, mesmo que a palavra possa ser usada de modo parasitário por falantes que não saibam disso, mas que pelo menos saibam classificar o ouro através de algum marcador ou estereótipo que lhes permita introduzir a palavra de maneira secundária no discurso. Concordo com Locke, mas não é aqui o lugar para objetar contra o externalismo do significado em Putnam.[39]

 

13

 

Conhecimento. O livro IV é o último do Ensaio. É só nesse livro que Locke abordou a questão do conhecimento. Para ele o conhecimento implica em certeza, no sentido de certeza absoluta adicionada à crença e justificação. Com isso ele admitia a existência do conhecimento matemático. Mas como não alcançamos tão alto grau de certeza em nosso conhecimento do mundo externo, Locke rejeitava que a experiência empírica nos trouxesse conhecimento. O que ela nos traz é apenas uma crença provável. Contudo, ainda que do mundo externo só possamos alcançar uma crença provável, isso já é suficiente para a vida.

   Essa aparente rejeição do conhecimento empírico já fez alguns perguntarem se Locke não seria um racionalista. Mas isso seria um grande mal-entendido. Ele apenas usa a palavra ‘conhecimento’ em um sentido desviante, bem mais estrito do que aquele em que usamos a palavra na linguagem ordinária, pois nela nunca exigimos certeza absoluta para o conhecimento empiricamente fundado.

   Em adição às assunções acima, Locke define o conhecimento como o acordo e o desacordo entre ideias. Esses acordos e desacordos podem ser de quatro tipos:

 

1.    Identidade e diversidade: é o caso de proposições insignificantes (triffling propositions), como “O branco é branco” e “O branco não é preto”. (IV, 8)

2.    Relações lógicas: é o caso de “A soma dos ângulos do triângulo é 1800” (IV 3, 18)

3.    Coexistência: certas ideias apresentam-se sempre juntas, como o amarelo do ouro e seu peso.

4.    Existência real: quando a existência real da coisa está em acordo com a ideia (IV 1, 7). Aqui é assumida a concepção da verdade como correspondência.

 

Locke distinguiu também entre três graus de conhecimento, do mais ao menos certo: o conhecimento intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo. O conhecimento intuitivo é o da evidência imediata, como o de que 2 + 2 = 4, ou mesmo de nossa própria existência e de alguns princípios como o de que todo evento tem uma causa. O conhecimento demonstrativo demanda raciocínio a partir do conhecimento intuitivo, como acontece quando fazemos um cálculo matemático complexo passível de erro. Dependendo do alcance de nossas capacidades, o conhecimento demonstrativo pode dar lugar a um conhecimento intuitivo. Um ser com capacidades infinitas não precisaria do conhecimento demonstrativo, pois seria capaz de intuir todas as implicações de um relance. Finalmente, há o conhecimento sensitivo, que é o dos objetos externos quando eles estão sendo presentemente percebidos.[40] Esse conhecimento é o menos certo.

   Apesar de tudo e de forma algo inconsistente Locke acreditava em argumentos empíricos para demonstrar a existência de Deus. Para ele a contingência de nosso mundo depende da existência de uma causa necessária, que é Deus. Não obstante, esse argumento tem a limitação de assumir gratuitamente que o todo constituído pelo que é contingente precise ser também contingente (Hume).

   No domínio do pensamento inglês Locke representa o final de uma fase construtiva que se iniciou com Ockham, tendo continuado com Bacon e Hobbes. Com os filósofos que se seguiram, Berkeley e Hume, o empirismo entrará em uma fase de metafísica revisionária, empenhada em derrubar o frágil edifício de bom senso construído por Locke.

 

 

 

 

 



[1] John Locke, Essay Concerning Human Understanding (1690). Trad. port. Ensaio sobre o entendimento humano (São Paulo: Martins Fontes 2019) I, I, 2.

[2] Ensaio I, 1, 8.

[3]  E. J. Lowe: Locke (New York: Routledge 2005), pp. 17-18.

[4] Ensaio I, 2, 18-19.

[5] Ensaio I, 2, 18.

[6] Oliver Scott Curry, Daniel Austin Mullins, Harvey Whitehouse, “Is it Good to Cooperate? Testing the Theory of Morality as Cooperation in 60 Societies”, Current Anthropology, Vol. 60, n. 1, 2019, pp. 47-69.

[7] Hume objetou que uma pessoa que conheça bem as cores, mas que nunca tenha visto certa tonalidade de marrom, talvez seja capaz de imaginá-la. Mas o próprio Hume reconheceu esse contraexemplo como irrelevante. Ver David Hume, Enquiry Concerning Human Understanding, I, seção II.

[8] Ensaio II, 1, 2.

[9] Ensaio II, 1, 1.

[10] Ensaio II, 1, 4.

[11] Ensaio II, 7, 1.

[12] D. J. O’Connor, John Locke (New York: Dover 1967) p. 51.

[13] Uma premissa da metapsicanálise freudiana é que as representações (ideias) são sempre ligadas a cargas (Besetzungen) afetivas ou emocionais. Ver Sigmund Freud: Artigos sobre Metapsicologia (Rio de Janeiro: Imago 1999)

[14] Ensaio II, 7, 5.

[15] Ensaio II, 7, 7.

[16] Wittgenstein: Investigações Filosóficas (Vozes 2014) sec. 46-48.

[17]  Ensaio II, 2, 6.

[18] Ensaio II, 12, 40.

[19] Ensaio II, 12, 7.

[20] Ensaio II, 12, 1.

[21] Na lógica contemporânea a relação é designada por predicados de mais de um lugar. Predicados de um só lugar, como ‘...é sábio’ formam enunciados como “Sócrates é sábio”, cujo lugar é preenchido por um único termo singular (o nome Sócrates). Predicados de dois lugares designam relações como ‘...é o marido de...’, que comparece em enunciados como “Sócrates é o marido de Xantipa”. Também predicados de três ou mais lugares designam relações, por exemplo, “...localiza-se entre... e...”, como no exemplo “Natal fica entre Fortaleza e João Pessoa”.

[22] Ensaio II, 25-28.

[23] Uma divulgação da pesquisa encontra-se no artigo de Yasmin Anwar, “Scientists use brain imaging to reveal the movies in our mind,” in Berkeley News, 9. 22. 2011.

[24] Ensaio II 8, 8.

[25] Gottlob Frege, „Der Gedanke“ (“O pensamento“) 1918. Beiträge zur Philosophie des Deutschen Idealismus, 2, 58-77.

[26] Essa é a versão usual, mesmo que algo caricata, daquilo que Eddington realmente disse. Ver o prefácio de suas Gifford Lectures de 1927.

[27] Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Book (Oxford: Basil Blackwell 1958), pp. 45-46.

[28] A frase entre parênteses em (2) é incorreta, pois a linguagem da microfísica não possui critérios nem para afirmar nem para negar a substancialidade e solidez da mesa.

[29] Ensaio II 13, 2.

[30] Ensaio II 26, 2.

[31] Ensaio II 27, 9.

[32] Derek Parfit: Reasons and Persons. Oxford: Clarendon Press, 1984, cap. 3.

[33] Sydney Shoemaker & Richard Swinburne, Personal Identity (Oxford: Basil Blackwell 1984).

[34] Claudio Costa “Definindo identidade pessoal”, in Arquiteturas Conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2022), pp. 283-402

[35] Ludwig Wittgenstein: Investigações filosóficas, parte I, sec. 258.

[36] Ensaio III 6, 50.

[37]  J. L. Mackie. Problems from Locke (Oxford: Clarendon Press 1976), p. 93 ss.

[38] Hilary Putnam: The Meaning of ‘Meaning’. In Philosophical Papers vol. 2, Mind, Language, and Reality (Cambridge: Cambridge University Press 1975), pp. 131-193.

[39] Ver capítulo VI de meu livro How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023).

[40] Ensaio IV 3, 1.