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terça-feira, 21 de maio de 2024

LOCKE: CONSTRUTIVISMO EMPIRISTA

  Draft para o livro "Introdução histórica à filosofia"

IX

LOCKE: CONSTRUTIVISMO EMPIRISTA

 

John Locke (1632-1704) nasceu de uma família de poucos meios, mas graças aos bons relacionamentos de seus pais estudou nas melhores escolas. Ele passou quinze anos em Oxford, primeiro como estudante e depois como pesquisador e docente. Ele era protestante e tinha profunda fé religiosa, o que repercutiu em seus escritos, levando-o a postular ideias de coisas como substâncias espirituais. Essas postulações se encontravam em tensão com seus próprios princípios empiristas.

   Como Hobbes, ele também viveu em tempos turbulentos. Quando seu protetor, conde Shaftesbury, foi acusado de traição, Locke teve de se esconder na Holanda por quatro anos, onde adotou o nome falso de Dr. van der Linde para não correr o risco de ser deportado para a Inglaterra. Só após a revolução gloriosa (1688) ele pôde voltar para a Inglaterra. Seus escritos políticos foram aclamados como defesas filosóficas do pensamento mais liberal e tolerante que começava a se formar.

   Em Oxford Locke aprendeu uma forma degradada de escolasticismo que ele abominou, mas que não iria deixar de influenciá-lo mais tarde. A experiência fez com que ele se decidisse por estudar ciências e medicina, tendo mesmo se formado médico, profissão que ocasionalmente praticou. Foi só aos 28 anos, quando leu Descartes (um filósofo ignorado em Oxford), que ele passou a se interessar seriamente por filosofia. Locke conheceu bem os melhores cientistas da época, tendo sido amigo de Isaac Newton. Ele foi descrito como uma pessoa modesta e cautelosa, que gostava de crianças, que era calorosa com os amigos e abominava o autoritarismo. Como era comum entre os filósofos de sua época, Locke não se casou.

 

1

 

No que se segue faço uma breve exposição crítica do livro de Locke intitulado Ensaio acerca do entendimento humano, o mais importante clássico da filosofia inglesa. Como Locke conta no prefácio, a ideia de escrever o livro nasceu de uma discussão improfícua com amigos sobre os princípios da moralidade e da religião revelada. Ele concluiu que para não se perdesse tempo em especulações inúteis seria preciso antes investigar o que podemos alcançar e não alcançar através de nosso entendimento. Com isso ele queria desenvolver um projeto de crítica epistêmica de nossas faculdades. Como Locke escreveu, o propósito de seu livro é:

 

…investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano, junto aos seus fundamentos e graus de crença, opinião e assentimento.[1]

 

É com tais intenções que foi produzido o que pode ser considerado, entre outras coisas, um primeiro grande tratado de epistemologia, um domínio da filosofia teórica hoje definido como a investigação das origens, natureza e limites do conhecimento humano.

   Locke acreditava no representacionalismo: todo nosso conhecimento depende de nossas representações da realidade. Essa representação é feita pelo que ele chamou de ideias em um sentido psicológico. Daí ser o conceito de ideia o mais fundamental de seu livro. O insight primordial do livro é o de que nosso conhecimento do mundo externo e interno começa com certas ideias dadas à experiência, as quais são relacionadas umas com as outras de maneira a construir simplesmente tudo o que somos capazes de pensar. Ele queria mostrar que as ideias simples são as pedrinhas de construção de todo o conhecimento humano.

   O conceito de ideia, tal como usado por Locke, não tem mais nada a ver com o conceito grego de ideia (eidos), entendido como algo transcendente, que vigorou no mundo antigo desde Platão e durante toda a Idade Média. O conceito de ideia por ele usado foi tomado de Descartes, que o entendia como qualquer conteúdo mental. Locke definiu o termo de modo igualmente abrangente. Como ele escreveu:

 

[O termo ideia] eu usei para expressar qualquer coisa que seja objeto do entendimento quando um homem pensa, eu o usei para expressar tudo aquilo que pode ser entendido por imagem, noção, espécie, ou tudo aquilo que a mente possa usar ao pensar. [2]

 

Ideia é, portanto, o nome de qualquer conteúdo mental, seja ele sensação, imagem ou mesmo conceito. Embora justificada por sua finalidade, essa polissemia dificulta a interpretação, pois muitas vezes não sabemos ao certo em que sentido ele está usando o termo ‘ideia.’

 

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O Ensaio é dividido em quatro livros. O livro I é consagrado a uma crítica ao inatismo, a doutrina segundo a qual existem ideias e princípios inatos imprimidos por Deus em nossas mentes. A doutrina do inatismo, comum na época, era de que os fundamentos do conhecimento empírico, da religião e da moral, seriam princípios e ideias inatas, postas por Deus em nossas mentes desde o nascimento. Essa doutrina servia para justificar a defesa de doutrinas religiosas e políticas de cunho dogmático, forçando à obediência cega a regras morais impostas e a argumentos de autoridade, como o do direito divino dos reis. A razão da crítica que Locke fez a essa visão rudimentar do inatismo, e mesmo a motivação profunda de seu empirismo, residia em sua rejeição a qualquer espécie de dogmatismo.[3] O objetivo do livro I é o de aclarar o caminho para o que se segue, que é um esforço para mostrar como podemos construir nosso entendimento do mundo tendo como blocos de construção apenas o que ele definiu como sendo ideias simples dos sentidos externo e interno.

   Para Locke, quando nascemos a mente é como uma folha de papel em branco (uma tabula rasa), que será aos poucos preenchida pelo material advindo da experiência sensível, que é constituído de ideias. Ainda assim, o empirismo de Locke não nega a existência de capacidades inatas, responsáveis pelo aprendizado, organização e manipulação do material ideativo, como ainda veremos.

   Em seu esforço para mostrar que não existem ideias inatas Locke se valeu de argumentos observacionais. Ele começou tentando mostrar que não há assentimento universal quanto aos princípios fundamentais da lógica. Crianças e deficientes mentais não têm ideias do princípio da identidade, segundo o qual tudo o que é, é, ou do princípio da não-contradição, segundo o qual é impossível para uma mesma coisa ser e não ser. Locke não achava correto dizer que crianças e deficientes têm esses princípios sem ter consciência deles, pois para ele ter um pensamento implica em se ter a consciência desse pensamento. Para ele nós só aprendemos esses princípios após ganharmos ideias através da experiência, ao percebermos, por exemplo, que uma coisa branca não é preta, que o quadrado não é um círculo, que o amarelo não é doce... Daí concluímos que uma coisa é o que é e também que ela não pode ser e não ser ao mesmo tempo.[4]

   Uma objeção que poderia ser levantada hoje contra esse argumento é que o conhecimento de princípios lógicos como os da identidade e da não-contradição pode ser evidenciado não só por eles serem pensados e expressos em palavras, mas também pelo comportamento, antes mesmo que a criança tenha aprendido a falar, o que mostra quão fundamentais eles são. Se uma criança não for capaz de distinguir, por suas reações sensório-motoras, o que é branco do que não é branco, o que é quadrado do que não é, o que é doce do que não é, ela não será capaz de ter reações comportamentais compreensíveis, razoáveis e previsíveis. Ao ver um leão a zebra sabe que deve fugir, mas se ela não for capaz de identificar o leão como um leão (princípio da identidade), ou que, identificando-o como sendo um leão, não for capaz de decidir que ele não é outra coisa que não um leão (princípio da não-contradição), ela não sobreviverá por muito tempo. E isso se aplica até mesmo a uma ameba antes de ela envolver seu alimento. O não-seguimento de tais princípios é incompatível com a vida. Como pressupostos evolucionários, os princípios da identidade e da não-contradição se apresentam como capacidades inatas tão primordiais que se encontram presentes em qualquer ser vivo desde seu nascimento. Opostamente à sugestão de Locke, é claro que ninguém precisa conhecê-los de maneira explícita para segui-los, pois se fosse assim então o princípio da não-contradição não poderia ter sido seguido antes de Aristóteles tê-lo detalhadamente investigado em sua Metafísica. Parece certo, porém, que para formular esse princípio ele teve antes de pensar em casos empíricos de suas aplicações, do mesmo modo como testamos uma regra gramatical tornada explícita através da busca de exemplos concretos em que ela é seguida na língua culta.

   Afora isso, princípios lógicos como o da identidade, da não-contradição e do meio excluído, são ubíquos:  eles imperam tanto em nossas mentes quanto no próprio mundo externo enquanto ele é para nós cognoscível.[5] Essa espécie de universalidade não pode ser alcançada pela experiência porque resultados da experiência são sempre indutivos e, portanto, prováveis, o que não permite que se alcance a universalidade e a consequente necessidade a eles inerente. O máximo que podemos esperar da experiência é certificar-nos desses princípios por meio de exemplos.

   Um outro argumento de Locke diz respeito aos princípios morais. Eles não podem ser inatos, pois há povos com os mais variados princípios morais. Para ele se tais princípios existirem, eles serão de pouco uso, como “A virtude é a maior reverência a Deus”.[6]

   Com efeito, regras morais variam muito com a cultura. E a ideia que muitos possuem de que “no fundo todos são capazes de distinguir o certo do errado” é ingênua. Por exemplo: Perguntaram a um homem de certa religião o que ele sentia após ter matado sua filha por ter desonrado a família. Ele respondeu que se sentia orgulhoso e triste ao mesmo tempo: orgulhoso por ter cumprido a lei e triste por sua filha ter desonrado a família. Não lhe ocorreu que deveria sentir pena, vergonha ou culpa.

   Apesar da variação cultural, antropólogos contemporâneos acreditam ser possível encontrar princípios universais reguladores do comportamento moral. Uma concepção comum entre eles é a de que a função da moralidade é a de promover cooperação, facilitando assim a coordenação das ações humanas em sociedade. Com base nessa ideia os antropólogos Oliver Scott Curry e seus colegas promoveram uma pesquisa em 60 culturas diferentes em todo o mundo evidenciando que as seguintes regras morais são comuns em todas elas:[7]

 

Ajudar a família

Ajudar o grupo

Retornar favores

Ser corajoso

Obedecer aos superiores

Dividir recursos de forma justa

Respeitar o que é dos outros.

 

Ora, parece bastante plausível a admissão de que possuímos disposições inatas para seguirmos essas regras. E elas não são de pouco uso como Locke pensava que deveriam ser as supostas regras morais inatas.

   Um filósofo poderia objetar que essas são regras de polegar, que não valem para todas as situações. Elas todas podem todas ser derrotadas se houver justificação para tal, como seria o caso da concorrência com outra regra mais benéfica. Além disso a situação pode ser tal que a regra concorra com a regra do utilitarismo de ação de produzir maior bem e menor mal para todos os envolvidos, como foi sugerido quando consideramos o utilitarismo de duas camadas. Mas é perfeitamente possível defender que essas regras valem de uma maneira geral, mesmo que não se tenha um sistema ético que nos permita derivar as suas condições de aplicação em casos concretos. Mais além, é perfeitamente possível supor que nós temos disposições inatas para segui-las e que disposições inatas para as seguir se manifestem quando formos instados a isso.

    Um último argumento é o de que o intelecto não pode criar ideias simples: um cego de nascença não pode ter a ideia de cor, nem um surdo pode ter a ideia de som. Essa consideração será importante para a teoria das ideias de Locke e não há razão para discordarmos dela.[8]

   Locke reconhece que se interpretarmos ideias inatas em um sentido mais fraco, como meras capacidades que possuímos para termos ideias, podemos dizer que as possuímos. Um exemplo é nossa capacidade de aprender aritmética e geometria. Mesmo assim, o fato de ele considerar isso irrelevante demonstra que ele tende a minimizar o papel de nossas disposições inatas na construção do conhecimento. Aqui as objeções de Leibniz contra Locke acabaram por se demonstrar  melhor justificadas. Afinal, a descoberta de um número cada vez maior de disposições inatas pela psicologia contemporânea não torna essa questão irrelevante. Ela é a maneira atual de defendermos aquilo que filósofos racionalistas exageravam falando de ideias inatas. Por exemplo: psicólogos mostram que um recém-nascido chora quando lhe é apresentada uma máscara assustadora. Ele sente medo. Isso significa que ele possui uma disposição inata para reagir a certos estímulos visuais complexos para mais tarde formar juízos sobre aquilo que lhe causa medo ou aversão. Isso significa que existem capacidades e disposições inatas aos seres humanos que, sob condições adequadas, os levam a produzir ideias mais ou menos específicas. Ainda assim, a admissão da existência de disposições inatas em nada afeta o cerne do projeto de Locke, que foi o de fazer derivar todos os nossos conteúdos mentais da experiência.

 

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Passemos agora ao livro II, o principal livro do Ensaio. O objetivo maior de Locke no capítulo I de seu Ensaio foi o de preparar o terreno para sua tese principal. De acordo com ela, todo o material do pensamento é resultado das mais variadas manipulações de ideias derivadas da experiência. Por isso ele precisou defender que a mente de quem nasce é destituída de qualquer ideia inata, o que tomado em seu sentido literal é francamente aceitável. Para ele a mente é inicialmente como uma folha de papel em branco, vazia de qualquer ideia.[9] Só a experiência, externa e interna, será capaz de mobiliar a mente com ideias.

   Pelo uso do método empirista de observação Locke descobriu que existem ideias simples, uniformes, passivamente recebidas e não analisáveis, ainda que costumem aparecer associadas a outras ideias. Essas ideias são provenientes de duas fontes: a senso-percepção e a reflexão das operações da mente sobre si mesma.[10] As existêncis de ideias simples de sensação e de reflexão são importantes porque sua ambição é a de mostrar como todas as outras ideias resultam de operações da mente na combinação dessas ideias simples. E o produto final pode ser tão distante delas a ponto de não percebermos que relação ele possa ter com elas. Valendo-nos de uma metáfora: não há nada no fruto de uma árvore que lembre o material inicialmente usado para o seu crescimento e sua composição; mas sabemos que ele se deriva de transformações de átomos de carbono, oxigênio, nitrogênio e alguns outros microelementos. O mesmo deve se dar com as ideias originariamente derivadas de uma variedade de ideias simples, por mais distantes que elas estejam das últimas.

   Quais são as ideias simples da sensação? Para Locke elas são as recebidas pelos nossos cinco sentidos. Assim, pelo sentido da visão tenho a ideia da cor branca do lírio, pelo sentido do tato tenho a ideia do frio e da dureza de um pedaço de gelo, pelo sentido da audição tenho a ideia do som agudo de um apito, pelo sentido do paladar tenho a ideia do gosto doce do açúcar, e pelo sentido do olfato a ideia do perfume de uma rosa... Essas ideias nos aparecem como sendo simples e uniformes, e a mente as recebe passivamente na percepção sensível, não sendo capaz nem de criá-las nem de destrui-las. Locke observa que não somos capazes de imaginar um gosto realmente novo ou uma cor realmente nova. Nem somos capazes de fazer desaparecer essas ideias de nossa mente depois de que as tivermos experienciado.

   As ideias simples da reflexão, por sua vez, são aquelas que resultam de uma reflexão (introspecção) da mente sobre suas próprias operações. Exemplos são as ideias do perceber, do pensar, do duvidar, do crer, do raciocinar, do conhecer e do querer.[11]

   As ideias simples da sensação podem vir de um só sentido, como as ideias de cor ou de sabor, ou de mais de um sentido, como as ideias de extensão, forma, repouso e movimento. Podemos ver um corpo em movimento e podemos sentir pelo tato que ele se move.

   Há, por fim, as ideias mistas, provenientes tanto da sensação quanto da reflexão, como as de prazer ou deleite e dor ou insatisfação, assim como as de poder, existência e unidade.[12] As ideias de dor e prazer são particularmente importantes, devendo ser entendidas em um sentido amplo, como doadoras dos tons hedônicos de nossa experiência.[13] Sua importância consiste em que elas nos impelem à ação e ao pensamento, induzindo-nos a buscar o prazer e fugir da dor. Nossas ideias se encontram quase sempre vinculadas a tonalidades e intensidades afetivas.[14] Se não tivéssemos ideias de afetos, nós seríamos condenados à letargia física e cognitiva. Como ele escreveu, sem tais associações o ser humano seria “uma criatura bastante inativa, passando seu tempo em um sonho indolente e letárgico”.[15]

   Para Locke as ideias de existência, unidade e poder, acompanham todas as nossas percepções. Elas “são sugeridas por todos os objetos externos e por todas as ideias internas”.[16] É pelo operar dos objetos sobre nós e pelo nosso agir sobre as ideias que alcançamos a ideia mista de poder.

   Locke pensa ainda que os objetos externos mobilham a mente com ideias das qualidades sensíveis, que são todas as diferentes percepções que eles produzem em nós. E a mente mobilha o entendimento com os produtos de sua própria operação.

   Uma objeção que pode surgir diz respeito à noção de simplicidade. Mesmo uma ideia tão simples quanto a do perfume de uma flor pode variar em qualidade e intensidade. A ideia de uma cor como o vermelho pode aparecer em tons diferentes como, por exemplo, o vermelho da china, o de cereja, o de Borgonha... E elas também podem se apresentar combinadas de maneira a formar inúmeras tonalidades para as quais sequer temos nomes para dar. Pesquisas mostraram que o olho humano é capaz de diferenciar entre 200.000 a 20 milhões de tonalidades de cor. Além disso, as cores possuem diferentes sombreamentos, diferentes saturações.

   Uma resposta é que essa objeção não se aplica verdadeiramente a Locke. Wittgenstein fez uma bem conhecida crítica ao conceito de simplicidade, quando entendido em termos absolutos: para ele esse conceito é relativo, pois depende sempre da maneira pela qual escolhemos dividir o mundo.[17] Em defesa de Locke podemos responder que escolhemos dividir o mundo em ideias simples por relação com nossa própria natureza, tal como ela foi estabelecida pela evolução natural. Quanto às cores, do ponto de vista fenomenal existe o círculo cromático bem conhecido dos pintores, que possui três cores básicas, que são o amarelo, o vermelho e o azul, três cores secundárias, que são misturas de duas cores primárias e de seis cores terciárias, que são misturas de cores primárias com cores secundárias. Esses dados fenomenais são fundamentados fisiologicamente. Nós temos três tipos básicos de cones, os cones L (de “long”), especializados em captar a cor vermelha (comprimentos de onda mais longos do espectro visível), os cones L (de “medium”), especializados na captura da cor amarela (comprimentos de onda médios), e os cones S (de “short”) especializados na captura dos tons de azul, a cor mais curta do espectro. São as combinações das ondas captadas por esses três tipos de células que formam todas as cores que somos capazes de enxergar. Isso significa que nós temos hoje como fundamentar neurofisiologicamente a escolha das cores vermelho, amarelo e azul como as cores verdadeiramente simples e uniformes, em suficiente conformidade com as intenções de Locke, ainda que ele mesmo não tenha feito essas distinções. Trata-se de simplicidade com relação às capacidades fenomenais/fisiológicas que possuímos para perceber cores, que combinadas produzem todas as outras na independência de outros fatores adicionais da cor, como a luminosidade ou brilho (quantidade de fótons), a saturação (grau de pureza) e o sombreamento (mistura com o preto).

   Consideremos agora da mesma maneira os outros sentidos. O estudo das terminações nervosas na pele nos mostra que distinguimos estímulos táteis com base em uma variedade de diferentes receptores. Por exemplo: os que determinam toques grosseiros e distinguem o áspero do mole (corpúsculos pacinianos), os responsáveis pela sensação de pressão e toques leves e contínuos (corpúsculos de Merkel), os responsáveis pela sensação de dor (terminações nervosas livres), pela sensação de movimentos suaves (corpúsculos de Meissner), pelas sensações de frio e o calor (nociceptores térmicos), etc. Tanto visualmente quanto pelo tato somos capazes de perceber bordas, linhas retas e curvas e diferentes formas geométricas. Temos assim critérios fenomenais ancorados em critérios neurofisiológicos a nos permitir distinguir ideias simples, passivamente recebidas, com papel primordial na gênese de nosso conhecimento do mundo externo.

   Quanto ao sentido da audição as células ciliares do ouvido interno reagem à intensidade e frequência do som. O tom (frequência), a intensidade (altura) e o timbre (a qualidade) são traços evidentes pelos quais distinguimos os sons. Parece razoável admitir que os diferentes tons de uma oitava possam ser considerados simples (mesmo que possam ser subdivididos em semitons, também eles divisíveis), uma vez que somos capazes de distingui-los mais claramente.

   Finalmente, também somos naturalmente aptos a distinguir os gostos básicos como o salgado, o doce, o amargo, o azedo e o ácido por meio de diversos tipos de papilas gustativas encontradas...

  É preciso lembrar que Locke não estava fazendo nenhum estudo psicológico ou fisiológico que demandasse a precisão buscada por essas ciências, mas uma investigação filosófica de como o nosso conhecimento empírico se origina. Assim, longe de refutar o projeto de Locke, a neurofisiologia o confirma. Mais do que isso, ela nos mostra quais devem ser as cores simples, as unidades de som, as sensações simples, os gostos simples.

   A ciência contemporânea também pode trazer revelações. Por exemplo, Locke não considerou que também podemos formar ideias complexas de maneira passiva como resultado de disposições naturais. Voltando ao exemplo do bebê que chora diante de uma máscara assustadora, notamos que ele a identifica de modo passivo. Mas o que a máscara produz é uma ideia já bastante complexa, mesmo que constituída de formas e cores quando analisada em termos de ideias simples que a compõem.

 

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Passemos agora às ideias complexas que, diversamente das simples, resultam da atividade da mente. Locke as classificou como substâncias, modos e relações, ao que poderíamos adicionar as ideias gerais e abstratas. Locke também fez uma classificação geral das operações da mente, das quais resultam as ideias complexas, que são as de combinação, comparação e abstração das ideias. Vejamos então como é possível associar as espécies de ideias complexas às operações da mente:

    A ideia de substância, em um primeiro e não-problemático sentido do termo, resulta de combinações de ideias simples que servem para representar coisas particulares que são independentes ou autosubsistentes.[18]. Por exemplo: um certo homem.

   Ele chama de modos às ideias complexas que, por mais compostas que sejam, são feitas para designar existências de coisas dependentes ou não autosubsistentes. Ou seja: suas referências são afecções que só existem na dependência das substâncias. Esse é o caso das ideias de triângulo, gratidão, assassinato.[19] Também os modos devem advir de combinações de ideias simples.

   As ideias de relação resultam da operação mental de comparação entre nossas ideias, sem que com isso elas sejam unidas.[20] Esse é o caso das ideias de poder, identidade e, principalmente, causalidade.

   Há, por fim, o caso das ideias complexas que são gerais ou abstratas.[21] Elas resultam de uma operação de abstração segundo a qual separamos alguma ideia complexa que repete sempre como partes de grupos de ideias mais complexas, e que por isso nos parecem essenciais, diversamente de todas as outras que a acompanham de modo casual na existência real. Por esse meio produzimos uma ideia geral ou abstrata. No que se segue veremos cada uma dessas espécies de ideias em maior detalhe.

 

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Vejamos primeiro as ideias de modo. Para Locke existem modos simples e complexos.

   Os modos simples são variações de uma mesma ideia. Por exemplo, variações de uma mesma escala. Um capricho para violino solo é um modo simples. Para Locke espaço, tempo, número e infinidade são modos simples. Já os modos complexos são compostos de ideias simples de diversos tipos. Por exemplo, um composto de cor e figura, causando deleite a quem o vê, ou um roubo, que é a secreta mudança de posse de algo sem o consentimento de seu proprietário. Essas coisas são modos complexos, pois combinam ideias diferentes sem que essas combinações sejam auto subsistentes.

   Para Locke, os modos simples de espaço, tempo, número e infinidade são obtidos através de ampliação. Considere os primeiros dois. Pela sensação e reflexão nós nos tornamos conscientes de pequenas medidas de espaço e tempo como ideias. Não há definição para essas ideias de espaço e tempo, posto que podem ser consideradas simples. Mas sabemos que podemos aumentá-los indefinidamente, ou então adicionar sempre novas extensões de espaço e novos períodos de tempo, expandindo assim um espaço e um tempo indefinidamente além daquilo que podemos experienciar aqui e agora. Assim, pela adição de novas ideias formamos a ideia complexa de espaço e tempo indefinidamente grandes, que são as do espaço e tempo como um todo. Afora isso, há a ideia de pequenas extensões de espaço e tempo com as quais estamos acostumados (um passo, um metro; um dia, 24 horas...), com o que formamos ideias como a de uma distância ou de uma duração.

   Consideremos agora a ideia de unidade. Ela é uma ideia simples sugerida pela sensação e pela reflexão, quando consideramos um objeto presente. Ora, ao repetirmos essa ideia de unidade chegamos ao modo complexo dos outros numerais. Por exemplo, ao juntar duas unidades formamos a ideia complexa de uma dupla. Juntando três formamos a ideia complexa de um trio. Juntando doze formamos a ideia de complexa de uma dúzia. E como sabemos que podemos juntar sempre mais um, formamos a ideia de uma quantidade ilimitada de números naturais.

    Uma ideia particularmente importante para Locke era a ideia de Deus. O Deus anglicano era definido como um espírito infinito em sabedoria, bondade, amor e poder. Locke acreditava que essa ideia poderia ser produzida pelo mesmo processo de ampliação. Deus costuma ser definido como um ser sumamente justo, sábio, bom, verdadeiro. Podemos, pensava ele, ter uma ideia confusa de Deus ampliando ideias como as recém mencionadas, chegando assim à ideia de um ser incompreensível e infinito.

   A ideia de infinitude é obtida da mesma maneira, a partir da ideia de quantidade. O finito e o infinito são para ele modos de quantidade, que podem ser obtidos por meio de adição e subtração de quantidades em um processo indefinidamente contínuo: a série dos números naturais é infinita, assim como o espaço e o tempo como um todo. Mas a infinitude desses últimos é derivada. Primeiro pensamos a ideia de número e com ela mensuramos extensões de espaço e durações de tempo, ampliando-as de modo a chegar à ideia de infinitude.

   Esse aumento ou ampliação que nos conduz a ideia de infinitude numérica não pode ser aplicado a conceitos qualitativos como o de cor, pois não podemos ampliá-los indefinidamente em nossa imaginação.

   Vejamos agora as ideias de modos mistos. Eles são constituídos por mais de uma ideia que não é do mesmo tipo. Eles se distinguem das ideias de substância pelo fato de serem dependentes da última. Os modos mistos são combinações de ideias simples que não representam um ser real com existência contínua, mas que a mente põe juntas de forma artificial ou arbitrária, dando-lhes nomes. Locke exemplifica com ideias como as de obrigação, mentira, embriaguez e assassinato.

 

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Passemos agora às ideias de relações. Na lógica contemporânea uma relação é um predicado de mais de um lugar. Predicados de um só lugar, como ‘...é sábio’ formam enunciados como “Sócrates é sábio”, cujo lugar é preenchido por um único termo singular (o nome Sócrates). Predicados de dois lugares são relações como ‘...é o marido de...’, que comparece em enunciados como “Sócrates é marido de Xantipa”. Também predicados de três ou mais lugares são relações, por exemplo, “...localiza-se entre... e...”, como no exemplo “Natal fica entre Fortaleza e João Pessoa”.

   Para Locke as ideias de relações[22] são ideias complexas relacionando ideias simples ou relacionando ideias complexas que terminam, após análise, em ideias simples. As relações são o resultado de uma operação da mente chamada por Locke de comparação, pois quando temos um objeto em mente tendemos naturalmente a buscar suas relações com outros. Há uma multiplicidade indefinida de relações. Uma relação como ‘...é maior do que...’ resulta da comparação entre dois objetos. Existem relações naturais como a de consanguinidade: “João é pai de Maria”; relações institucionais como a de ser o general da armada; relações morais, como a de uma ação humana com a regra moral a ser seguida. As principais relações analisadas por Locke são a de causalidade e identidade.

 

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Locke trata as ideias como signos que representam coisas do mundo externo. Em filosofia da percepção isso é chamado de realismo indireto ou representacionalismo, pois assume a existência de um meio intermediário entre o sujeito e o objeto, através do qual temos acesso ao mundo externo. Esse meio, por alguns chamado de véu das sensações, são as representações, por Locke chamadas de ideias da sensação ou, na terminologia contemporânea, de sense data.

   O realismo indireto era aceito pelos cientistas da época, desde Galileu. Ele havia sido assumido por Descartes, teve defensores medievais e teve sua origem nos atomistas gregos. Os argumentos da ilusão e da ciência foram em sua época desenvolvidos em defesa do realismo indireto. O assim chamado argumento da ilusão nos mostra que vemos os trilhos da estrada de ferro como se eles fossem se encontrar no final, quando sabemos que isso não é o caso. Olhamos para o sol, mas sabemos que não estamos vendo como ele é agora, mas como ele era há 8 minutos atrás, já que a luz do sol leva cerca de 8 minutos para chegar à terra. Se apertarmos o canto de um olho tendo o outro olho fechado, temos a impressão de que os objetos vistos se movem. Se sairmos lá fora sem luvas, onde a temperatura é de 20 graus abaixo de zero e voltarmos sem sentir as mãos, a água corrente com a qual as lavamos parece estar quente, quando sabemos que não está. E podemos ser vítimas de alucinações perfeitamente realistas se estivermos sofrendo de alucinose alcoólica. Há, também, os assim chamados argumentos da ciência. Sabemos que aquilo que vemos é projetado no córtex visual primário situado na região occipital do cérebro e que essa projeção é interpretada em regiões mais profundas.

   A prova definitiva de que temos acesso visual ao mundo externo através dos sense data foi dada pelas experiências com fMIR em laboratórios da Universidade de Berkeley há alguns anos.[23] Como os vasos capilares se dilatam levemente onde há maior atividade neuronal, foi possível através de fMIR reconstruir computacionalmente as sequências de imagens mentais tidas por voluntários que estavam assistindo filmes, ainda que as imagens em movimento saíssem bastante borradas. Se é assim com a visão, deve ser assim também com os outros sentidos.

 

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Ainda no livro II Locke faz uma importante distinção entre ideias e qualidades:

 

Qualquer coisa que a Mente percebe em si mesma, ou que é imediato objeto de Percepção, Pensamento ou Entendimento, é o que chamo Ideia; e o Poder de produzir qualquer Ideia em nossa mente, eu chamo de Qualidade do objeto no qual está esse Poder. Assim, uma Bola de Neve tem o poder de produzir as Ideias de Branco, Frio e Redondo, os poderes de produzir tais Ideias em nós, como elas estão na bola de neve, eu chamo de Qualidades; e como elas são Sensações ou Percepções em nosso Entendimento, eu as chamo ideias...[24]

 

Em seguida ele expõe a sua versão mais elaborada da famosa distinção entre qualidades primárias e secundárias:

 

(i)             As qualidades primárias são aquelas completamente inseparáveis dos corpos em qualquer estado em que eles se encontrem. Locke exemplifica as principais: solidez, extensão, forma, movimento, repouso e número. Mesmo que se deforme um corpo ou que ele seja dividido, o resultado continua possuindo essas propriedades. O exemplo de Locke é de um grão de trigo, que ao ser dividido pode perder a cor e o aroma, mas continuará possuindo forma e outras propriedades primárias (Descartes tinha o exemplo da pedra, que mesmo dividida continuava a possuir extensão). Podemos dividir um corpo o quanto quisermos e as partes resultantes continuarão possuindo solidez, extensão, forma, movimento... Mais além, ele defende que nossas ideias desses corpos se assemelham às suas qualidades primárias.

 

(ii)           As qualidades secundárias, por sua vez, produzem ideias em nós que em nada se assemelham a elas. Exemplos são cores, sons, odores, sensações térmicas... É assim porque elas na verdade são poderes (i.é, disposições) presentes nos corpos de produzir em nós ideias de qualidades secundárias por meio de qualidades primárias dependentes de “partículas insensíveis sobre nossos sentidos” – aquilo que hoje chamaríamos ondas de luz de certos comprimentos refletidas pelos corpos, de ondas de som no ar, ou moléculas de odores e gostos.

 

Em suma: as ideias das qualidades primárias são semelhantes às qualidades secundárias. Já as ideias das qualidades secundárias não podem ser semelhantes às qualidades secundárias, pois são ideias de disposições (poderes) de serem produzidas em nós por condições que em um nível micro se reduzem a qualidades primárias.

 

9

 

Um problema colocado por intérpretes é que o fato de as qualidades secundárias serem produtos de qualidades primárias capazes de descrição em termos físicos não justifica a conclusão de que elas não possuem existência objetiva.[25] Considere um pedaço de gelo. Ele possui solidez e forma, que são qualidades primárias, além de ser frio, uma qualidade secundária. Mas se ele for aquecido pode se transformar em líquido e depois em vapor d’água, quando deixa de possuir todas essas qualidades e mesmo de ser um corpo físico. O calor da chapa de um fogão a lenha é uma qualidade secundária constituída pela vibração de suas moléculas. Mas isso não o torna incapaz de causar queimaduras. Um veneno não deixa de possuir a qualidade objetiva secundária de causar a morte no caso de ser ingerido. Frege tinha como maior critério de objetividade a possibilidade de concordância interpessoal e como maior critérios de realidade a localização espaço-temporal.[26] As qualidades secundárias, não menos do que as primárias, satisfazem esses dois critérios... Parece claro que elas podem ser consideradas, tanto quanto as primárias, qualidades objetivamente reais.

   Podemos ir além, apresentando um argumento para demonstrar que as ideias das qualidades secundárias também são semelhantes a elas, comparando seu caso com o conhecido argumento das duas mesas proposto por Sir Arthur Eddington. Segundo esse autor, existe uma primeira mesa, que é dita substancial e sólida, a do senso comum, e uma segunda mesa, a da microfísica, que não é nem substancial nem sólida, pois essencialmente constituída de espaço vazio e de partículas insubstanciais.[27] A mesa real é para ele a que foi descoberta pelo físico. Mas seus átomos se encontram demasiado distantes uns dos outros para que se lhe possa reivindicar solidez. Logo, a mesa real não é sólida.

   De acordo com Wittgenstein, Eddington recaiu em uma confusão linguística.[28] Podemos esclarecer esse ponto dizendo que Eddington confundiu a gramática conceitual de duas linguagens: a linguagem do quotidiano e a linguagem da microfísica. Cada uma dessas linguagens possui regras conceituais próprias que não devem ser confundidas. A palavra-conceito ‘substância’ aplica-se de fato a ambas se, ao invés de ser usada no sentido vulgar, for usada no sentido filosófico de um indivíduo particular, posto que isso inclui elétrons. A palavra ‘mesa’ aplica-se apenas na linguagem do quotidiano. É impossível alcançar o conceito de mesa se ficarmos restritos aos objetos próprios da linguagem da microfísica. Logo, a primeira mesa nessa linguagem não existe. Finalmente, a palavra ‘solidez’, que nos interessa aqui e que diz respeito a uma qualidade primária pertence à linguagem do quotidiano, tem a ver com a resistência do corpo a forças agindo sobre sua superfície em um espaço macrofísico, mas não às propriedades microfísicas responsáveis por essa resistência. Por isso não podemos concluir que a primeira mesa não possui solidez. A linguagem da microfísica não nos oferece critérios para tal. E como o espaço vazio na linguagem do quotidiano é constituído daquilo que não possui solidez, não podemos dizer nessa linguagem que a primeira mesa é constituída principalmente de espaço vazio.

  Algo semelhante podemos dizer da afirmação feita por Locke de semelhança entre ideias e qualidades primárias e dessemelhança entre ideias e as qualidades secundárias, assumindo que as ideias de qualidades primárias são de fato semelhantes às ideias das qualidades secundárias. Sem saber, ele estava confundindo o que mais tarde foi descoberto como pertencendo à linguagem da microfísica com a linguagem quotidiana. Para ser coerente consigo mesmo, Locke precisaria também concluir, como Eddington, que os corpos físicos não possuem sequer a propriedade de solidez, pois a sensação de solidez é resultado de forças de coesão intermoleculares atuando em um espaço essencialmente vazio, forças essas que não são sólidas.

   Se Locke estivesse a par do que sabemos hoje de física ele teria de concluir que não só as ideias das qualidades secundárias, mas também as ideias das qualidades primárias, são causadas por eventos e estados de coisas que em termos microfísicos podem ser descritos como qualidades primárias de outro nível, que incluem forças. Assim, a solidez, como resistência à pressão, é o resultado de forças de coesão intermoleculares, mesmo que atuando em um espaço essencialmente vazio. Como existem explicações microfísicas para as propriedades macrofísicas que valem tanto para as qualidades secundárias quanto para as primárias, ambas se encontram no mesmo nível, não existindo mais razão científica para questionar a objetividade das qualidades secundárias do que das qualidades primárias.

     Devido à distinção entre a linguagem do quotidiano e a da microfísica, Locke está errado em sugerir que devido à reflexão da luz dependente de certos constituintes microfísicos de um corpo sólido eles não possuem a qualidade da cor. Mesmo que a cor de um grão de milho desapareça com a sua divisão em partes microscópicas, podemos igualmente dizer que a água quando aquecida a ponto de se tornar vapor d’água perde a sua solidez. Tal como Eddington, ele confunde a linguagem do cotidiano com a da microfísica. Dentro da primeira dizemos que as cores pertencem aos objetos, simplesmente pelo critério de que outros seres vivos com sentidos visuais similares aos nossos veem cores idênticas em circunstâncias semelhantes, o que torna as cores entidades objetivas (intersubjetivamente acessíveis) e reais, as quais são por isso chamadas de entidades objetivas externas. Só dentro da linguagem da microfísica diremos que não faz sentido dizer que as eletromagnéticas do espectro luminoso são coloridas ou mesmo que elas não são coloridas, como se pudessem sê-lo. Mas quando falamos de solidez também acontece o mesmo. Na linguagem da microfísica não faz mais sentido dizer que a mesa é sólida ou mesmo negar que seja sólida, como se pudesse sê-lo imaginando, por exemplo, que seus componentes atômicos e subatômicos estivessem aglutinados uns aos outros.

   Em resumo: mesmo mantendo uma distinção entre qualidades primárias e secundárias, é plausível pensar que tanto as ideias das qualidades primárias quanto as das qualidades secundárias são semelhantes às próprias qualidades objetivas, conquanto elas sejam pensadas dentro dos limites da linguagem do cotidiano.

 

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Uma ideia particularmente importante em Locke é a de substância. Ele define aristotelicamente a substância individual como aquilo que tem propriedades, mas que não é propriedade de coisa alguma. Ele distingue três tipos de ideias de substância: (i) a ideia de objetos particulares, como esse cavalo; (ii) a ideia de diferentes espécies de substâncias, por exemplo, ouro e ferro; (iii) a ideia mais abstrata de substância em geral.

   É à ideia de substância em geral que ele dedica maior atenção. Ele considera que se grupos de ideias ocorrem sempre juntas é porque deve haver algum substrato para as qualidades por elas referidas, que é algo que está sob (de sub-stare) – a substância – que para nós não é mais do que a suposição de um “não sei o que” que suporta as qualidades. Como ele observa:

 

Nossa situação aqui não é melhor do que a do indiano que, dizendo que o mundo era suportado por um elefante, foi perguntado onde o elefante está pisando. Ao que ele responde: sobre uma grande tartaruga. Mas outra vez pressionado pela pergunta sobre o que suporta a grande tartaruga ele replica: sobre algo que eu não sei o que é.[29]

 

A admissão de um substrato incognoscível se encontra em contradição com o próprio empirismo sustentado por Locke. Ela reflete um conceito de substância comum em sua época e ainda hoje presente, marcando um esquecimento da discussão aristotélica do conceito de substância como o indivíduo dado (Categorias), como uma combinação particular de matéria e forma (o hilomorfismo da Física), ou ainda como a forma substancial que se instancia em uma coisa (Metafísica).

   Berkeley e Hume, os empiristas que se seguiram a Locke, rejeitaram a noção geral de substância como uma suposição metafísica sem qualquer justificação perceptual e, portanto, sem força explicativa. Mas aceitaram a concepção de substância no sentido (i), ou seja, como feixes de ideias que se encontram sempre juntas. Mesmo na discussão contemporânea, o conceito estrutural de substância encontra-se dividido entre os que defendem alguma forma pura de teoria do feixe de propriedades e os que defendem que as propriedades constitutivas do feixe repousam em alguma espécie de substrato substancial.

 

11

 

Locke também analisou algumas ideias de relação mais importantes, como as de causalidade, identidade e identidade pessoal. Ele considerou a ideia de causalidade como a mais abrangente ideia de relação. A causa é qualquer coisa que faz uma outra começar a ser.[30] Como as outras, ela é derivada da experiência, não só da sensação, mas também da reflexão. Para ele as qualidades são poderes causais que causam ideias em nós (daí que sua teoria da percepção é causal), as coisas do mundo externo causam outras, nossas ideias causam outras ideias e também causam eventos exteriores, como a minha decisão de levantar meu braço. Ele chegou a suspeitar que temos uma experiência direta (reflexiva) do vínculo de necessidade entre causa e efeito quando nossa vontade produz uma ação voluntária, como o levantar do braço, uma questão que seria mais tarde criticamente explorada por Hume.

   Identificamos um corpo físico por sua posição no espaço, uma vez que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar. A relação de identidade de uma mesma coisa em momentos temporais diferentes foi analisada por Locke como uma identidade de suas partes componentes, mesmo que seu arranjo interno possa mudar.  No caso de criaturas vivas, o critério de identidade no tempo é diferente: é preciso que tenha a mesma vida. Assim, uma árvore crescida é diferente de sua semente, mas ambas possuem a mesma vida.

   Quanto a nós mesmos, ele distingue a identidade no tempo de homens (men) da identidade no tempo concernente a pessoas. Por homem ele entende o animal humano, que nada mais é do que um ser vivo, para cuja identificação no tempo ele aceita o critério de ter a mesma vida. Diferente é o caso da pessoa, que para Locke é “um ser pensante inteligente, que possui razão e capacidade de autoconsciência”.[31] A identidade da pessoa no tempo é diferente da identidade do homem. Para prová-lo ele imagina que um príncipe pudesse ser transformado em um mendigo com um físico muito diverso. O homem seria um outro. Mas se o mendigo continuasse a possuir a mesma consciência do príncipe, com as mesmas lembranças, a pessoa seria a mesma. Para ele o que faz com que uma pessoa seja idêntica a si mesma no tempo é a identidade de sua consciência: a pessoa é a mesma até o momento do passado em que a sua consciência mnêmica conseguir alcançar. Assim, eu sou a mesma pessoa que fui quando tinha quatro anos de idade, na medida em que sou capaz de ter a consciência de acontecimentos por mim vividos em minha infância. Essa visão algo estreita da identidade pessoal suscitou objeções como a do jovem militar que é capaz de se recordar de ter roubado uvas quando criança, mas que quando se tornou um idoso general já se esqueceu disso, continuando apenas a gabar-se de seus grandes feitos nas batalhas... Deixou a criança de ser ele?

   Não obstante, a análise do conceito de identidade pessoal feita por Locke é limitada. Para percebermos isso basta nos lembrarmos de seu exemplo do príncipe mendigo. Não é só a memória dos acontecimentos passados que faz dele o mesmo príncipe. Afinal, as memórias do príncipe poderiam ser em princípio implantadas na mente do mendigo. À identidade pessoal pertencem também habilidades, personalidade, conhecimento, e até mesmo alguma forma de continuísmo (e não continuidade) corpóreo.

   O problema abordado por Locke continua conosco até hoje. Derek Parfit, por exemplo, imaginou uma variedade de experiências em pensamento que nos ajudam a entender os critérios de identificação pessoal e sua importância.[32] Por exemplo: ele mostra que uma pessoa poderia manter a sua identidade pessoal mesmo que seu corpo fosse destruído. Para tal ele imagina que uma pessoa seja teletransportada para Marte enquanto seu corpo é destruído pela máquina de escaneamento na terra. Essa pessoa acordaria em Marte com as mesmas habilidades, personalidade e memórias, sendo que a última delas seria a de ter apertado o botão responsável pelo teletransporte. Parfit também imagina casos de multiplicação e mesmo de posterior união: se uma pessoa for multiplicada de modo que a pessoa originária desapareça e em seu lugar apareçam trinta pessoas idênticas, com a mesma consciência e memória, não teríamos mais critério para dizer quem é a pessoa que era antes (na lógica criterial 1 + 1 = 0). Se essas trinta pessoas puderem ser unificadas de modo a restar uma única, será essa a mesma que a pessoa inicial?

   Para mostrar que a continuidade do mesmo corpo não é necessária, o inventivo filósofo Sydney Shoemaker imaginou uma máquina de substituição do corpo. Em um ambiente futuro no qual os níveis de radioatividade são muito grandes as pessoas entram de tempos em tempos por máquinas de substituição do corpo de modo a evitar o aparecimento de tumores. Essas máquinas substituem cada molécula de seus corpos por outras idênticas em apenas algumas poucas horas. Se, ao sair da máquina, alguém perguntar a uma delas se ela ainda é a mesma pessoa, ela responderá: “Claro que sou a mesma pessoa, estou apenas com novo corpo”. O experimento mostra que a continuidade requerida é essencialmente psicológica. Contudo, mesmo que a máquina tenha substituído as moléculas, ela preservou as suas combinações e a estrutura geral do corpo, razão pela qual podemos dizer que aqui houve um continuísmo causal entre o que existia antes e o que passou a existir depois.

   Uma outra dificuldade com o conceito de identidade pessoal é que seus critérios não podem ser precisamente fixados. Podemos dizer que uma pessoa é a mesma desde sua mais tenra infância até sua morte, como gostaria Locke. Mas podemos dizer de uma pessoa que sofreu mudanças drásticas de comportamento após uma concussão cerebral, que ela deixou de ser a mesma. E ainda podemos dizer, em um sentido “frouxo” do termo, que após o seu casamento Enrique deixou de ser a mesma pessoa...

   No sentido forte de identidade pessoal que Locke tem em mente há outros fatores além da memória pessoal por ele explicitamente considerada. Afinal, podemos reconhecer uma pessoa que perdeu a memória como sendo a mesma, se ela ainda possuir (i) a sua mesma memória pessoal, de habilidades e proposicional (principalmente seus conhecimentos); (ii) as suas capacidades intelectuais, como entendimento, raciocínio, reflexão, habilidades linguísticas; e (iii) as mesmas estruturas afetivo-volicionais, como traços de personalidade, temperamento, caráter... Afora isso há a questão física da permanência do mesmo corpo. Embora essa permanência não seja essencial (toda a matéria de um corpo humano é substituída em um período entre sete a dez anos...), é certo que podemos adicionar a condição física (iv) de que alguma forma de continuísmo causal concernente a estruturas dos constituintes do corpo deve existir, supondo-se que as alterações sejam suficientemente lentas (uma dançarina não pode transformar-se de repente em uma pantera e depois de alguns segundos voltar a ser ela mesma, a não ser em um espetáculo de ilusionismo). Com base em elementos como esses é possível estabelecer um critério múltiplo suficientemente vago de identidade pessoal, por exemplo, estabelecendo parâmetros mínimos de exigência para a satisfação das condições (i), (ii), (iii) e (iv). Tal critério seria capaz de cobrir aproximadamente o que nos sentimos capazes de dizer que é a mesma pessoa, e não o mesmo corpo humano, de sua infância até sua velhice. Mais do que isso não parece possível devido a vaguidade mesma do conceito.[33]

 

12

 

No livro III do Ensaio Locke passa a investigar o papel da linguagem. Em concordância com seu realismo indireto, para Locke as palavras são signos de ideias e não das coisas. A linguagem funciona como o meio de comunicar as ideias, uma vez que em si mesmas elas são incomunicáveis. E o falante consegue comunicar as ideias para o ouvinte pelo fato de que ambos se encontram longamente familiarizados com a conexão implícita entre as palavras e as ideias que lhe correspondem.[34] Aquilo que chamamos de significados das expressões são ideias e o significado das sentenças são combinações de ideias comumente chamadas de pensamentos. O entendimento ocorre quando as palavras evocam no ouvinte as mesmas ideias que no falante.

   Essas concepções de senso comum tem sido criticadas por filósofos da linguagem como tornando o significado privado e as ideias incomunicáveis. De minha parte, considero isso um preconceito contra a o que John Searle chamaria de objetividade epistêmica de elementos que são apenas ontologicamente subjetivos.[35] Crianças parecem aprender a associar a palavra a uma ideia (no sentido amplo, que envolve sensação, imagem, conceito...) por meio de indução por exclusão. Por exemplo: se uma criança sente dor e as pessoas negam que a palavra ‘dor’ se refere ao ferimento sofrido ou ao seu choro ou a quaisquer eventos externos, ela acaba por entender que a palavra está designando aquilo que ela está sentindo, a dor que ela deveras sente. A capacidade de realizar esse tipo de indução é inata. Considere, para dar mais um exemplo, o ruborizar. Essa é uma maneira que a evolução encontrou para que as pessoas demonstrem ao grupo social que se sentem envergonhadas, mesmo que queiram esconder o sentimento e sua razão. Sabemos disso por indução. Vemos outras pessoas falarem que a pessoa ruborizou por tal e tal razão, que nos leva a concluir que a pessoa sente vergonha. E percebemos em nós mesmos o rubor como reação à vergonha que sentimos. Falta aos mecanismos de indução por analogia uma análise apropriada e suficiente, tanto para o caso das emoções pessoais quanto alheias.[36]

   O que acabei de propor é um vago esboço, em meu juízo bem mais plausível do que a sugestão a ser encontrada em Wittgenstein, segundo a qual a mente é uma caixa preta inacessível a uma linguagem referencial e que aprendemos o significado de uma palavra como ‘dor’ substituindo uma expressão natural, digamos, ‘Ou!’ pelo ‘ai! e depois pelo ‘dói!’ e mais tarde pelo mais educado ‘sinto dor’.[37]

   O principal problema com o qual Locke se defronta é aqui o de explicar por meios empiristas o uso de palavras gerais, como ‘branco’, ‘redondo’, ‘triângulo’... Para Platão tais palavras, assim como as palavras ‘bem, ‘justiça’ e ‘conhecimento’, deveriam se referir a entidades pertencentes a seu reino transcendente de essências abstratas, imutáveis e não-espaço temporais. A resposta de Locke é, como seria de se esperar, nominalista ou particularista. Essas palavras se referem a ideias particulares que são separadas de coisas mais complexas através de um mecanismo de abstração. Usando um exemplo que poderia ser aceito por Aristóteles: nós observamos seres humanos com diferentes alturas, compleições, pesos, cores e vestimentas. Mas há algo em comum a todos eles: são seres vivos pertencentes ao gênero animal. Mais além, descobrimos aquilo que existe de exclusivo aos seres humanos, que os diferencia dos outros animais: eles são racionais de uma forma altamente qualificada, digamos, reflexiva. Além disso só eles possuem uma linguagem gramaticalmente complexa. Disso abstraímos a definição do ser humano como um animal reflexivamente racional em capaz de aprender uma linguagem gramaticalmente complexa.

   Segundo a doutrina escolástica que Locke aprendeu quando jovem, as coisas possuem essências que somos capazes de apreender a priori, sem o auxílio indutivo da experiência. Rejeitando essas doutrinas, ele rejeitou que pudéssemos conhecer as essências das coisas dessa maneira. Aqui ele fez uma importante distinção entre a essência nominal e a essência real. A essência real diz respeito à constituição interna das coisas. Já a essência nominal é uma ideia complexa abstrata, com a qual identificamos espécies de coisas. Considere, seguindo um exemplo de Locke, a ideia do ouro.[38] A essência nominal do ouro é a de ser entendido como uma substância amarela, maleável, com certa massa específica e solúvel em acqua regia. Mas não podemos estar certos do quanto a definição da essência nominal do ouro corresponde a sua essência real e do quanto dessa definição não é simples resultado de convenção. Podemos apenas ter a expectativa de que nossa ideia da essência nominal seja guiada pela essência real.

    Como hoje sabemos que o ouro é um metal de transição com o número atômico 79, é bem possível que Locke concordasse que, tendo chegado ao conhecimento da constituição interna dessa substância, descobrimos enfim a sua essência real. Seguindo os passos de Saul Kripke, Hilary Putnam defendeu que o significado de um termo de espécie natural como ‘ouro’ se encontra fundamentalmente no domínio de sua referência externa, ou seja, das porções de metal com peso atômico 79, e não em uma ideia: o significado, escreve ele, “está fora de nossas cabeças!”[39] Ao especificar a essência nominal do ouro, um filósofo como Locke estaria tendo em mente apenas as parcelas convencionais do significado, que Putnam decidiu chamar de marcador sintático (nome de massa), marcador semântico (substância sólida) e estereótipo (cor amarelada, maleável, solúvel em acqua regia). Contudo, em acordo com seu representacionalismo semântico, Locke certamente rejeitaria o externalismo semântico de Putnam. Ele consideraria a ideia da essência real do ouro como o metal de transição de número atômico 79 como o significado definitivo da palavra ‘ouro’, mesmo que a palavra possa ser usada de modo derivativo por pessoas que não saibam disso, mas que pelo menos saibam classificar o ouro através de algum marcador ou estereótipo que lhes permita introduzir a palavra de maneira secundária no discurso. Concordo com Locke, mas não é aqui o lugar para objetar contra o externalismo do significado em Putnam.[40]

 

13

 

O livro IV é o último do Ensaio. É só nesse livro que Locke abordou a questão do conhecimento. Para ele o conhecimento implica em certeza, no sentido de certeza absoluta adicionada à crença e justificação. Com isso ele admite a existência do conhecimento matemático. Mas como não alcançamos tão alto grau de certeza em nosso conhecimento do mundo externo, Locke rejeita que a experiência empírica nos traga conhecimento. O que ela nos traz é apenas uma crença provável. Mesmo que do mundo externo só possamos alcançar uma crença provável, isso já é suficiente para a vida.

   Essa aparente rejeição do conhecimento empírico já fez alguns perguntarem se Locke não seria um racionalista. Mas isso seria um grande mal-entendido. Ele apenas usa a palavra ‘conhecimento’ em um sentido desviante, bem mais estrito do que aquele em que usamos a palavra na linguagem ordinária, pois nela jamais exigimos certeza absoluta para o conhecimento empiricamente fundado.

   Em adição às assunções acima, Locke define o conhecimento como o acordo e o desacordo entre ideias. Esses acordos e desacordos podem ser de quatro tipos:

1.    Identidade e diversidade: é o caso de proposições insignificantes (triffling propositions), como “O branco é branco” e “O branco não é preto”. (IV, 8)

2.    Relações lógicas: é o caso de “A soma dos ângulos do triângulo perfaz 1800” (IV 3, 18)

3.    Coexistência: certas ideias apresentam-se sempre juntas, como o amarelo do ouro e seu peso.

4.    Existência real: quando a real existência da coisa está em acordo com a ideia (IV 1, 7). Aqui é assumida a concepção da verdade como correspondência.

 

Locke distinguiu também entre três graus de conhecimento, do mais ao menos certo: o conhecimento intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo. O conhecimento intuitivo é o da evidência imediata, como o de que 2 + 2 = 4, ou mesmo de nossa própria existência e de alguns princípios como o de que todo evento tem uma causa. O conhecimento demonstrativo demanda raciocínio a partir do conhecimento intuitivo, como acontece quando fazemos um cálculo matemático passível de erro. Finalmente, há o conhecimento sensitivo, que é o dos objetos externos quando eles estão sendo presentemente percebidos.[41] Esse conhecimento é o menos certo.

   Apesar de tudo e de forma um tanto inconsistente Locke acreditava em argumentos empíricos para demonstrar a existência de Deus, como o fato de que as entidades constituintes de nosso mundo são contingentes. Para ele a contingência do mundo depende da existência de uma causa necessária, que é Deus. Não obstante, esse argumento tem a limitação de assumir gratuitamente que o todo constituído pelo que é contingente deva ser também contingente.

   No domínio do pensamento inglês Locke representa o final de uma fase construtiva que se iniciou com Ockham, tendo continuado com Bacon e Hobbes. Os filósofos que lhe seguirão, Berkeley e Hume, se encarregarão de produzir uma metafísica crítica e destrutiva com o objetivo de por abaixo o edifício empirista levantado por Locke.



[1] Ensaio, I, I, 2.

[2] Ver Ensaio  I, I, 8.

[3]  E. J. Lowe: Locke (New York: Routledge 2005), pp. 17-18.

[4] Ensaio I, 2, 18.

[5] Ver a breve defesa desses princípios no capítulo III, sec. 2.

[6] Essay I, II, 18.

[7] Oliver Scott Curry, Daniel Austin Mullins, Harvey Whitehouse, “Is it Good to Cooperate? Testing the Theory of Morality as Cooperation in 60 Societies”, Current Anthropology, Vol. 60, n. 1, 2019, 47-69.

[8] Hume objetou que uma pessoa que conheça bem as cores, mas que nunca tenha visto certa tonalidade de marrom, talvez seja capaz de imaginá-la. Mas o próprio Hume reconheceu esse contra-exemplo como irrelevante. Ver David Hume, Enquiry Concerning Human Understanding, seção II.

[9] Essay, II, 1, 2.

[10] Essay II, 1, 1.

[11] Essay II, 1, 4.

[12] Essay II, 7, 1.

[13] D. J. O’Connor, John Locke, p. 51.

[14] Uma premissa da metapsicanálise freudiana é que as representações (ideias) são sempre ligadas a cargas (Besetzungen) afetivas. Ver Sigmund Freud: Metapsicologia.

[15] Essay, II, 7, 5.

[16] Essay II, 7, 7.

[17] Wittgenstein: Investigações Filosóficas, sec. 46-48.

[18]  Essay II, 2, 6.

[19] Essay II, 12, 40.

[20] Essay II, 12, 7.

[21] Essay II, 12, 1.

[22] Essay II, 25-28.

[23] See: “Scientists Reconstruct Brain’s Visions Into Digital Video in Historic Experiment.” Artigo por Jesus Dias, in Gizmodo 2011.

[24] Essay II 8, 8.

[25] Anthony Kenny, A New History of Western Philosophy, vol. III, pp. 136-137.

[26] Gottlob Frege: Der Gedanke, 1918. Beiträge zur Philosophie des Deutschen Idealismus, 2, 58-77.

[27] Essa é a versão usual, algo caricata, daquilo que Eddington realmente disse. Ver o prefácio de suas Gifford Lectures de 1927.

[28] Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Book (Oxford: Basil Blackwell 1958), pp. 45-46.

[29] Essay II 13, 2.

[30] Essay II 26, 2.

[31] Essay II 27, 9.

[32] Derek Parfit: Reasons and Persons. Oxford: Clarendon Press, 1984, cap. 3.

[33] Ver C. F. Costa “Definindo identidade pessoal”, in  Arquiteturas Conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2022), pp. 283-402.

[34] Segundo um bem conhecido principio do contexto (Cf. Gottlob Frege), as palavras só ganham sentido no contexto do proferimento. Mas também acontece o oposto: o proferimento como um todo ganha seu sentido devido ao sentido das unidades semânticas que o constituem. Na verdade, o que mais acontece é que essas unidades semânticas (as palavras) costumam ser ambíguas, sendo o contexto do proferimento aquilo que as desambigua.

[35] John Searle observou que filósofos tendem a confundir objetividade/subjetividade ontológica e epistêmica. Quando tento entender o conceito de ser aí (Dasein) em Heidegger posso me defrontar com um sério problema de subjetividade epistêmica, mesmo que o autor pretenda objetividade ontológica. Mas quando falo de minha enxaqueca, alcanço plena objetividade epistêmica, embora a sensação seja ontologicamente objetiva.

[36] Uma breve consideração das complexidades envolvidas encontra-se em meu artigo “A linguagem privada e o heteropsíquico”, in Arquiteturas conceituais (Belo Horizonte: Editora Dialética), pp. 241-260.

[37] Wittgenstein: Investigações Filosóficas, sec. 243-317.

[38] Essay III 6, 50.

[39] Hilary Putnam: The Meaning of ‘Meaning’. In Meaning, Mind, and Knowledge, 1975, vol. 11, 131-193.

[40] Ver capítulo 3 de meu livro How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023).

[41] Essay IV 3, 1.

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