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sexta-feira, 17 de maio de 2024

NIETZSCHE: A CRÍTICA AO CRISTIANISMO

  Observação: o texto que se segue é só um primeiro draft a ser desenvolvido em um livro a ser intitulado Introdução histórica à filosofia.

 

 

XVI

NIETZSCHE: CRÍTICA DA CULTURA CRISTÃ

 

Entre os filósofos do século XIX Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) tem sido junto a Marx o mais popular. Isso se deve em boa parte ao fato de ele ter sido um grande poeta-filósofo. Ele foi o autor de Assim falava Zaratustra,[1] um livro considerado por Bertold Brecht a maior obra lírica da literatura alemã.

   Alguns detalhes biográficos merecem ser considerados: Nietzsche pertenceu a uma tradicional família de pastores protestantes conservadores, tendo recebido estrita educação religiosa. Ele foi um dos melhores alunos de história e línguas que passou pelo renomado colégio de Pförta, embora fosse fraco em matemática. Aos 12 anos ouviu estudantes do colégio duvidarem da história de Caio Múcio Cévola, o jovem patrício romano que, não tendo conseguido matar o rei dos etruscos que sitiavam Roma decidiu, diante do mesmo, queimar a sua mão no fogo para castigá-la... Para provar que alguém é capaz disso Nietzsche decidiu repetir o feito. Colocou sobre a mesa da sala de aula um monte de fósforos, pôs fogo e postou a sua mão sobre a chama. Ele só foi salvo de não ter se queimado mais pela intervenção do instrutor que, percebendo a seriedade da situação, impediu-o de continuar a experiência. Como lembrança do episódio Nietzsche ficou com uma grande cicatriz na mão pelo resto da vida. Essa estória mostra o tipo de caráter ferreamente determinado e descompromissado que ele demonstrou mais tarde, na imensa coragem com que decidiu abraçar sua vocação de filósofo. Ele perdeu a fé aos 20 anos de idade, quando se tornou para ele óbvio que a religião é uma ilusão.

   Aos 24 anos Nietzsche tornou-se professor de filologia em Basel, na Suíça. Ele foi pessoalmente influenciado por Richard Wagner, um crítico (um tanto imoral) da moralidade, com o qual compartilhava uma visão aristocrática do mundo. Mas a influência maior foi a de um livro escrito pelo filósofo pessimista Arthur Shopenhauer, que ele encontrou por acaso em uma livraria de usados: O mundo como vontade e representação.[2] Segundo Shopenhauer, a coisa em si kantiana deveria ser substituída pela Vontade (Will), entendida como uma força metafísica cega, caótica e destrutiva, que rege o mundo. Em oposição a Hegel (considerado por ele um impostor) o real é irracional e o irracional é real. Quanto ao homem, este é um escravo dessa vontade que torna a sua vida inevitavelmente miserável. A vontade, não possuindo nem meta nem um deus que a direcione, leva o homem ao ódio, à vingança, à crueldade, à destruição, às guerras e a toda a tragédia de sua desgraçada condição. Para Shopenhauer há só três meios de fazer frente ao domínio da vontade: (i) pelo consolo na arte, que nos faz esquecer o jugo da vontade, (ii) pelo consolo da compaixão, que nos liberta dos efeitos do egoísmo (que nos leva a ações que geram um sentimento de culpa continuado e autodestrutivo) e, principalmente, (iii) pelo consolo da ascese, que é a renúncia a tudo aquilo a que as paixões nos ligam.

   Nietzsche acabou rompendo com ambos. Ele rompeu com Wagner, no fundo, pelo oportunismo do último. E também rompeu com a filosofia de Shopenhauer por considerá-lo um niilista que buscava um substituto para a vida. Nietzsche concordava com a ideia de que a vontade rege o mundo, como uma vontade para poder (Wille zur Macht). Mas discordava que a vontade precisasse ser evitada. Pelo contrário, devemos ter a coragem de “dizer sim a vida”, defrontando-nos abertamente com sua falta de sentido, com sua natureza cega, caótica e no final das contas sempre destrutiva, afirmando o destino, qualquer que ele seja. A plenitude da vida é para ele o valor fundamental, mais do que o conhecimento. A degeneração de nossa época resulta de termos colocado o conhecimento acima da vida. Mas as forças vitais terminarão inevitavelmente por vencer através de embates cataclísmicos e, sobretudo, pela vinda do que ele chamou de super-homem (Übermensch), um além-do-homem afirmador absoluto da vida.[3]

   Em 1872, aos 28 anos, Nietzsche publicou seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia, que já era essencialmente filosófico e foi muito mal recebido pelos filólogos. Nesse livro ele introduziu uma distinção importante entre duas tendências visíveis na arte grega: a apolínea e a dionisíaca. A arte apolínea era a que se exprimia na escultura e na  arquitetura, sendo guiada pela harmonia, organização e medida. A arte dionisíaca, por contraste, era cruel, encontrando sua via de expressão na música e na embriaguez dos festivais dionisíacos e, principalmente, na tragédia. Mais tarde Nietzsche veio a ressaltar o elemento dionisíaco como indispensável à arte, vendo nele a expressão estética da vida.

   A esse primeiro livro se seguiram Meditações Intempestivas e Humano, demasiado humano, tematizando a filosofia da vida e da cultura. Em 1879, devido a sérios problemas de saúde Nietzsche renunciou ao seu posto como professor, passando a viver de uma pequena pensão. Foi nesse ponto, aos 35 anos, que ele passou a se dedicar totalmente ao ofício de escritor, vivendo solitariamente, os verões na Suíça e os invernos no norte da Itália. Nos dez anos que se seguiram escreveu mais de dez livros publicados por conta própria e praticamente sem recepção. Além de Assim falava Zaratustra, os principais foram: A genealogia da moral, Além do bem e do mal, Aurora, O anticristo, O crepúsculo dos ídolos e Gaya scientia. Em seu último livro, uma breve autobiografia intelectual intitulada Ecce Homo, ele já dava mostras de delírio de grandeza. Em 1889, aos 45 anos, Nietzsche enlouqueceu, abraçando em lágrimas um cavalo que estava sendo vergastado em uma rua de Gênova. Nietzsche viveu os próximos dez anos junto à sua mãe e irmã, sem recuperar a razão, com paralisia cerebral progressiva provavelmente causada por sífilis.

   Nietzsche escreveu na forma de aforismos ou pequenos trechos de prosa, sem qualquer preocupação em organizar seu pensamento de forma sistemática. Ele foi muito mais um crítico do que um pensador construtivo, oscilando dialeticamente de forma tão violenta que se torna difícil retirar uma filosofia coerente de seus escritos. Mesmo assim é possível dizer que ele foi acima de tudo um filósofo da vida e um importante crítico da moral e visão de mundo cristã que ele conhecia profundamente. No que se segue quero expor suas ideias básicas, ocupando-me também de uma crítica a suas deficiências.

 

1

 

Para compreendermos Nietzsche, a primeira coisa a notar é que se trata de um filósofo elitista. Ele acreditava em uma aristocracia de sangue e aceitava a monarquia de Guilherme I, rejeitando coisas como a democracia e o socialismo. Ele distinguia entre “homens superiores” (como César, Napoleão, Goethe...) e homens inferiores, os plebeus, o populacho, as moscas da praça pública. A distinção entre homens superiores e inferiores era para ele de cunho biológico[4], o que significa que seu elitismo era racista, mesmo que ele admitisse que as raças se encontram hoje bastante misturadas. Ele acreditava na raça ariana como sendo a dos homens superiores:

 

O latim malus (que eu relaciono a mélas, “negro” pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos (hic niger est), o autóctone preário do solo itálico que se distinguia muito pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos puros arianos (...) “o bom”, “o nobre”, “o puro”, significava antigamente “o de cabelos ruivos” em oposição ao nativo de cabelos negros.[5]

 

A admissão da existência dessas duas estirpes (ou raças) humanas, nos faz entender melhor a sugestão central em Nietzsche da existência de dois tipos de moral: a dos senhores (ou nobre) e a dos escravos (ou servil).[6] Note que para ele essas duas formas de moral são claramente distinguíveis uma da outra, embora elas possam conviver simultaneamente em um mesmo grupo humano e mesmo em uma mesma pessoa, posto que as duas estirpes tem se misturado há pelo menos dois mil anos... Para ele, a moral ativa dos senhores era claramente distinguível nas tribos guerreiras da Grécia dos tempos homéricos. Para a moral dos senhores ser bom é ter coisas associadas à felicidade, como nobreza, honestidade, bravura, autodomínio, coragem, força, saúde, riqueza e poder. E ser mau é ser covarde, medroso, mesquinho, vingativo, inconfiável, pobre, fraco e doente, objeto de aversão mais do que de ódio. Nietzsche sugere assim que uma oposição entre o bom (= nobre) e o mau (desprezível), típica da nobreza, é anterior a nossa oposição moral entre o bem e o mal.

   A moral dos escravos ou plebeus, por sua vez, reativa ao invés de ativa. Através dela, aquilo que na moralidade dos senhores seriam defeitos humanos, como a debilidade e a fraqueza de espírito, passam a ser considerados valores positivos. Assim, o orgulho, que era uma qualidade para a nobreza da antiga Grécia, não sendo uma qualidade dos escravos, passou a ser um defeito. A piedade, que antes era uma fraqueza, passou a ser vista como possuindo um grande valor, o mesmo acontecendo com a humildade, a simpatia, a benevolência, a obediência e mesmo a estupidez.

   Para Nietzsche o que aconteceu historicamente foi que os escravos, com sua moral de degenerada, venceram, graças à intromissão genial dos judeus que inventaram o cristianismo. Com a ascensão do cristianismo, tal como professado por São Paulo, uma grande mudança começou a ser sentida. Foi dada voz social à moralidade reativa dos escravos e plebeus, à moralidade cristã, à moralidade do rebanho. O grande suporte que o cristianismo veio a oferecer à moral do rebanho se encontrava na sedutora crença de que a justiça final se fará após a morte, em um além-mundo no qual os que foram bons nesse mundo serão recompensados com o paraíso e os maus castigados pelo fogo eterno... Como ele escreveu:

 

Inclinemo-nos ante o fato consumado: o povo venceu, “os escravos”, “o populacho”, “o rebanho”, chamai-o como quiserdes. (...) Foram abolidos os amos, triunfou a moral do povo. Se disserdes que foi um veneno (porque misturou as raças entre si) não digo o contrário, contudo eles conseguiram esse envenenamento.[7]

 

Como os fracos eram a grande maioria, a moral cristã, a moral dos escravos acabou se impondo sobre a moral dos homens superiores. Nietzsche via a moralidade cristã como um sintoma da decadência, um adoecimento da cultura que cobriu os últimos dois mil anos da civilização ocidental. A moral dos escravos renega os valores nobres dos homens superiores, buscando domesticá-los. Ela busca transformar o lobo em cordeiro, quando é bem sabido que o ser humano não degenerado é um predador.

   É interessante ver a maneira como ele concebe a raça superior. Ele a vê sobretudo como ativa, lutadora e trabalhadora, nisso consistindo sua felicidade. Essa felicidade, nota ele, está em profunda contradição com a felicidade das raças inferiores:

 

os impotentes, os obstruídos, os de sentimentos hostis e venenosos, a quem a felicidade aparece sob a forma de estupefação, de sonho, de repouso, de paz, de sábado, de descanso do espírito, de estender dos ossos.[8]

 

Para ele os senhores só precisam ser civilizados entre si: nas suas relações eles se mostram engenhosos, senhoris, delicados, fiéis, cavalheirescos e bons amigos. Eles sentem obrigações entre eles mesmos, mas não com a plebe. Por isso, fora de seu meio são aptos a se tornarem animais selvagens:

 

...monstros alegres que saem de uma horrível série de assassínios, de incêndios e violações com tanto orgulho e serenidade de alma como se tratasse de uma brincadeira de estudantes, e persuadidos de que deram aos poetas matéria para eles celebrarem e cantarem. No fundo dessas raças aristocráticas é impossível não reconhecer a besta-fera; a besta loira lubricamente errante que busca magnificamente vitória e presas, este fundo de bestialidade mostra-se de quando em quando, necessita de descargas, o animal tem de surgir novamente, tem de voltar ao seu ambiente... Todas as raças nobres deixam vestígios de barbárie à sua passagem...[9]

Essa “audácia” das raças nobres, audácia louca, absurda, espontânea; a própria natureza de suas empresas imprevistas e inverossímeis; a sua indiferença e o seu desprezo da comodidade de seu corpo, do bem estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição; os prazeres excessivos da vitória e da crueldade; tudo isso, na imaginação das vítimas, se resumia na ideia de “bárbaro”, “maligno”, “godos”, “vândalos”.[10]

 

Essas citações são importantes porque expõem a mistura de preconceito e insight que forma a base do pensamento de Nietzsche. Não é muito difícil separar uma coisa da outra. O que ele toma como sendo diferenças categoriais originárias entre diferentes raças humanas parecem ser na verdade muito mais diferenças naturais existentes entre os membros de um mesmo grupamento humano. Elas sempre existiram. Por exemplo: entre os indígenas existe o cacique, mas existe também o feiticeiro, o caçador, o guerreiro, as mulheres, cada qual com sua vocação. A função de cada um complementa a função do outro e existem diferentes disposições genéticas em ação, como já vimos (cap. VIII, sec. 3, 4). É claro que sob pressão das circunstâncias um desses tipos humanos pode passar exercer um papel centralizador...

   Mais além, uma consideração cuidadosa da história mostrará que a diferença que importava não era entre raças ou estirpes diferentes, mas principalmente entre povos que foram amaciados pela vida sedentária mais civilizada e povos guerreiros, endurecidos por situações escassez e conflito. Isso ajuda a explicar as invasões bárbaras a um império romano enfraquecido, cristianizado e desacostumado dos ardores da vida. Algo semelhante aconteceu com as invasões dos Vikings na alta Idade Média. Eles conseguiram chegar a Paris porque eram muito mais endurecidos e belicosos do que os povos sedentários que por ali habitavam. Que os invasores fossem loiros e tivessem vindo do norte é pouco mais que um acidente histórico. Isso fica claro quando comparamos esses casos com a invasão do ocidente pelos mongóis nos séculos XIII e XIV. Genghis Kahn unificou algumas tribos nômades guerreiras, que normalmente lutavam entre si, formando assim um exército que, brilhantemente comandado, rapidamente conquistou grande parte do mundo, da Coréia à Ucrânia, da Sibéria ao sul da China.

   Se for retirado o elemento racial e forem considerados exemplos reais, o que Nietzsche considera como homem nobre, superior, violento, destrutivo não passa de um guerreiro selvagem não adoçado pela civilização. Eram simplesmente tribos guerreiras que não haviam sofrido os efeitos enfraquecedores da vida civilizada e que estavam dispostas a qualquer coisa. Mas isso nos faz levantar a questão: o que intitula Nietzsche a considerá-los superiores no sentido de serem “nobres”? Se eles eram superiores apenas na força, na brutalidade ou na estratégia, então não parece restar nada merecedor do nome. Considere a definição que os dicionários dão da nobreza moral:

 

Elevação moral, grandeza de alma; altruísmo, compaixão, generosoidade, bondade; pessoa que age ou pensa desinteressadamente, generosamente, magnanimamente...

 

A definição demonstra que aquilo que entendemos pela palavra ‘nobreza’ é um misto de qualidades do senhor e também do escravo! A conclusão é que Nietzsche não consegue dar um sentido suficientemente distinto para seu conceito de nobreza como atributo da estirpe superior.

   Ao que parece o homem superior construído por Nietzsche não possui base real; ele é um Frankenstein que une traços de violência primitiva com traços de nobreza civilizada. O mesmo vale para as suas duas morais. A melhor solução, se quisermos preservar o que resta de verdadeiro, é considerarmos as duas morais nietzscheanas como aspectos de uma mesma moral – aspectos que podem ser culturalmente enfatizados. O que o cristianismo fez foi enfatizar aspectos altruístas (e não meramente reativos) do comportamento humano que permitiram o equilíbrio social durante o entardecer do império romano e que foram, ao que parece, componentes enfraquecedores que contribuíram para a sua queda.

   Voltamos aqui à distinção entre pulsões (ou instintos) de sobrevivência do indivíduo e pulsões de sobrevivência da espécie. As últimas se tornam visíveis no caso do pai que morreu tentando salvar os filhos e em inúmeros outros casos (ver caps. VI 4; VIII 3). Disposições voltadas para a sobrevivência da espécie são altruístas, enquanto as voltadas para a sobrevivência do indivíduo são egoístas, e nossas ações são muitas vezes movidas conjuntamente por ambas. Nietzsche é uma espécie de egoísta ético. Para ele o que nos move é a vontade de poder (Wille zur Macht), que pode ser considerada característica das pulsões de sobrevivência do indivíduo. Ele renega quase por completo que sejamos movidos por pulsões de sobrevivência da espécie, inevitavelmente altruístas, a não ser de forma reativa. Não ocorre a Nietzsche que seres humanos possam sentir compaixão por tragédias humanas que ocorrem do outro lado do mundo ou que, como notou Russell, sejam capazes de sentir amor universal,[11]

 

2

 

Para Nietzsche a característica mais marcante do cristianismo é o ideal ascético.[12] Esse ideal é o que produz a repressão dos desejos instintivos naturais em nome de sua ilusória realização sublimada em um além-mundo sobrenatural. Para o crente cristão no ideal ascético a vida é purgação do pecado original. Estamos aqui para sofrer. Seguindo esse ideal devemos aliar-nos masoquisticamente à pobreza, à humildade, à castidade e a outras formas de autonegação, chegando em alguns casos à autoflagelação e ao auto-sacrifício, como formas de obter um prazer doentio e pervertido. A função do ideal ascético é dar sentido ao sofrimento humano tornando-o suportável. Essa é a explicação de atitudes aparentemente suicidas mas que na verdade são formas veladas de se preservar a vida.

   O ideal ascético, contudo, possui formas mais refinadas e positivas.[13] Um cientista que dedica seus esforços à investigação, ou mesmo um filósofo como o próprio Nietzsche, precisa encontrar-se investido do ideal ascético de modo a realizar o que pretende. O ideal ascético do cristianismo produziu um avanço civilizatório profundo na Europa, que separou de vez o mundo moderno do mundo antigo. Nietzsche não negava isso. O desaparecimento da escravidão na Europa foi um progresso civilizatório resultante da incorporação social de ideais ascéticos advindos do cristianismo. Usando um vocabulário freudiano podemos falar aqui de uma sublimação pulsional devida a uma introjeção coletiva de valores.

   Nietzsche sabia que o cristianismo já se encontrava em crise nos meios intelectuais. Daí seu diagnóstico da “morte de Deus”. Quando o cristão perde a fé em um mundo transcendente ele passa a sofrer daquilo que Nietzsche chamou de niilismo, a perda dos valores, uma anomia moral que pode se manifestar de diversas formas e mesmo pela invenção de valores substitutivos, geralmente frágeis e deturpados.[14] O niilismo pode se apresentar sob forma positiva ou negativa. Um exemplo de niilismo mais propriamente negativo pode ser encontrado em um personagem do romance Ponto e contraponto de Aldous Huxley. [15] Trata-se de um nobre inglês do início do século XX que, tendo perdido a fé, tornou-se um “cristão às avessas”, encontrando prazer em seduzir jovens mulheres e depois abandoná-las e fazendo questão de mostrar-se aos outros como uma pessoa ostensivamente imoral. Um exemplo importante de niilismo ativo foram os grandes totalitarismos do século XX. Neles o Deus cristão foi em grande parte ou totalmente substituído pelo estado ou pelo grande líder que o representava. Soluções extremistas como o fascismo e o comunismo foram sistemas políticos provenientes do niilismo resultante da crise no sistema de valores sociais dominante no início do século XX. Finalmente, também Nietzsche foi um niilista ativo. Ele rejeitou a moral cristã sem ter algo de consistente a opor a ela. Como resultado ele acabou por rejeitar a moralidade em geral, tentando substitui-la por um arremedo de moralidade que ele chamou de moral dos senhores.

 

3

 

Como já notei, não parece que ao distinguir entre moral dos senhores e moral dos escravos Nietzsche tenha feito mais do que distinguir dois aspectos de uma mesma moralidade e perceber que um desses aspectos ganhou ênfase na visão de mundo cristã que emergiu como efeito da crise do Império Romano.

   Afora isso, não parece coerente a possibilidade da substituição dos “homens superiores” pelo “super-homem” possuidor de todas as virtudes e nenhum defeito ou limitação. Para Nietzsche o super-homem seria aquele capaz de abandonar o cristianismo sem cair no niilismo. Ele seria a mais alta integração das faculdades intelectuais e volitivas. Ele reuniria alta cultura com habilidade na ação, liberdade absoluta, força, tolerância e completa afirmação da vida. Ele seria uma união do Cesar romano com alma de Cristo ou de Napoleão com Goethe.

   Um problema hoje mais aparente é a impossibilidade biológica da existência do super-homem nietzscheano. Como notei, ao nível social a antropologia nos tem demonstrado que uma sociedade maximamente funcional deve ser constituída por tipos humanos diferentes com qualidades complementares, cada tipo exercendo a sua função, reforçando-se todos na ação conjunta. Ao nível individual a qualidade e o defeito podem depender de contingências de reforço meramente casuais. É possível que Hitler se tenha transformado em um absoluto desastre para o mundo e para si mesmo apenas por ter sido reprovado ao fazer o exame para a escola de belas artes em Viena... Podemos imaginar um mundo possível no qual ele foi aprovado, tornando-se um excelente pintor do tipo trompe-l’oeil e, tendo encontrado a esposa ideal, tenha se tornado também um pacífico pai de família. Finalmente, as evidências antropológicas desmentem a besta-fera nietzscheana, dominada apenas por uma vontade de poder. Marx, com a sua ideia do mundo ideal calcada em exemplos de sociedades sem razões externas para se tornarem agressivas apontava para uma possibilidade real.

   Passando à questão importante do surgimento e ascensão do cristianismo não há muitos motivos para se acreditar na revolta dos escravos sugerida por Nietzsche. A ascensão do cristianismo parece ter ocorrido mais como um pacto capaz de diminuir o ritmo da decadência das instituições que constituíam o império. Com a queda de Roma no século V e a divisão da Europa ocidental entre tribos bárbaras o cristianismo parece ter tomado força como um intermediário que permitia um melhor equacionamento das relações de poder. Afinal, a nova moral monoteísta fazia bem ao servo, que acreditava que Deus lhe daria compensação em uma justiça póstera. Ademais, ele tinha um senhor que, já convertido, também era temente ao mesmo Deus e que por isso tinha o dever de tratá-lo com humanidade. Aí estava o germe de um novo acordo, o que se fez entre o príncipe e o servo da gleba, um acordo moralmente muito superior ao jugo forçado que existia antes entre os senhores romanos e seus escravos, que não possuíam direito algum. Mesmo repousando em uma forte e primitiva ilusão do além-mundo, o cristianismo constituiu-se historicamente em um imenso progresso moral entre os povos ocidentais ao irmanar todos os seres humanos diante de um mesmo pai celestial. A Europa medieval era pobre e fragmentada em pequenos burgos. Mas era mais civilizada do que a Europa do mundo antigo, pois deixou para trás a marca silenciosa e terrível da escravidão, comum a todas as civilizações pré-cristãs.

   Nietzsche viu claramente que o cristianismo estava chegando ao fim como uma influência intelectual viva, o que foi tornado claro na Alemanha através dos escritos de gente como Feuerbach e Shopenhauer. Ele viu que o progresso moral do cristianismo cobrava seu preço através de uma forma de repressão pulsional rudimentar. As pessoas precisavam se conformar a regras deontológicas primitivas, como os dez mandamentos, que deveriam valer para todos em situações as mais diversas, regras que denegriam o ser humano e que falseavam a sua relação com sua própria natureza, demandando formas irracionais de repressão instintiva e uma aceitação passiva do destino.

   Essa moral se adequava ao título de moral dos escravos, mas até que ponto? Como já notei, parece que Nietzsche exagerou em muito o seu caso. Ele percebeu o seu homem superior como uma besta-fera impiedosa, astuta e cruel, entendendo a consciência moral como restrita a uma internalização da crueldade: uma inversão do homem cristão. Mas não há razão alguma para considerar a agressividade como expressão de algo superior ou nobre. A ideia de Nietzsche de inverter os valores foi infeliz por não possuir base na realidade

   Nos dias de hoje existem inúmeros ateus-agnósticos (Steven Hawkins e Daniel Dennett entre eles) cujas atitudes preservam o que há de melhor nas atitudes cristãs (a mitologia cristã fez emergir uma moralidade superior que se tornou independente de sua própria mitologia). Ou seja, eles não precisam ser super-homens ou discípulos do Zaratustra nietzscheano, muito menos precisam refletir a moralidade violenta da nobreza grega que lutou em Troia. Parece que o principal problema com Nietzsche é que, por falta de treinamento filosófico, ele estava muito longe de ser capaz de articular uma filosofia moral que substituísse a deontologia e a ética da virtude cristãs, o que parece factível através de uma forma adequada de utilitarismo e ainda hoje está por ser realizada (ver Cap. VI, sec. 7). O resultado é que ele próprio se tornou aquilo que em suas palavras seria definido como uma espécie de niilista moral. Como era um admirador dos textos homéricos, ele decidiu que a verdadeira moralidade deveria ser aristocrática, semelhante a dos representantes da antiga nobreza grega e não a dos escravos. Mas valores como o orgulho, devidamente limitado, não precisam ser separados de valores cristãos como os da humildade e a piedade. E a obediência às regras deve encontrar seu lugar no caso de as regras serem justas. Em suma, parece plausível pensar que uma moralidade pós-cristã seja capaz de englobar dentro de si tanto o aceitável daquilo que Nietzsche chamava de moral do rebanho quanto aquilo que permanece sustentável em sua moral dos senhores, evidenciando a contingência de sua dicotomia.

 

4

 

É curioso examinarmos a própria gênese do pensamento moral de Nietzsche como resultado de autismo leve ou síndrome de Asperger. A autismo consiste, em uma palavra, na carência de habilidades sociais inatas. Se elas não forem excessivas, a pessoa consegue aprender a linguagem, tendo acesso ao mundo da cultura, ainda que sua capacidade de se socializar permaneça para sempre limitada e que suas amizades não durem. Como compensação, o autista leve apresenta geralmente interesses obsessivos, que podem ser voltados para a ciência e para a arte... Uma curiosidade é a moralidade autista. Como ele não compreende as sutilezas do comportamento social, a tendência é a de adotar uma moralidade inflexível, exigindo de si mesmo e dos outros integridade, honestidade e confiabilidade absolutas, além da rejeição a tudo o que parecer mentira e manipulação...

   A biografia de Nietzsche se encontra repleta de evidências de autismo. Em Pförta ele começou como um “pequeno pregador” que vivia com a bíblia debaixo do braço. Ele era tido como um aluno demasiado sério e rígido, que se excluía do convívio com os demais e era ridicularizado pelas costas. Seu posterior interesse obsessivo pela filosofia e sua capacidade de pensar e viver em quase completo isolamento podem ser interpretadas como sinais evidentes de autismo. Se juntarmos a tudo isso a educação autoritária “prussiana”, uma grande ambição pessoal, um caráter profundamente determinado e uma sensibilidade estética desenvolvida, as escolhas intelectuais de Nietzsche também se explicam. Como ele cresceu em um meio no qual a crença retrógrada na aristocracia prussiana ainda era forte, ele abraçou o ideal de nobreza para si mesmo. Por algum tempo tornou-se amigo de Richard Wagner, um oportunista que muito contribui para a o fortalecimento do racismo. Era natural que Nietzsche, ao invés de se ver como diferente e em certos aspectos mesmo inferior, preferisse entender-se a si mesmo como um homem superior, interpretando sua moral autista como uma moral nobre e aristocrática. Seu distanciamento emocional, sua falta de empatia para com as pessoas, coisa importante para o filósofo, foram transformados na ideia de que os espíritos nobres são frios, cruéis e destituídos de piedade – uma convicção que se encontrava em conflito com sua profunda sensibilidade estética.

   O Dr. Christopher Gilberg, que diagnosticou Wittgenstein como possuidor de síndrome de Asperger, fez uma observação que se aplica bem à singularidade de Nietzsche como moralista e filósofo:

 

A perseverança, o impulso para a perfeição, a boa inteligência concreta, a habilidade para desconsiderar convenções sociais e não se preocupar em demasia com as opiniões e críticas dos outros, poderiam ser todas vistas como vantajosas, talvez mesmo um pré-requisito para certas formas de novo pensamento e criatividade.[16]

 

Com efeito, no objetivo de criticar a moralidade cristã (mesmo com todos os exageros nos quais ele incorreu) não poderia haver alguém mais apropriado do que Nietzsche: um insider que pouco se preocupava com as opiniões e críticas alheias.[17]

 

5

 

O cristianismo teve para Nietzsche a sua origem na cultura ocidental mesmo anterior a Cristo. Ele identificou em Sócrates o primeiro cristão. Ele via Sócrates como um produto do ressentimento, alguém que tinha um prazer sádico em vencer seus opositores na discussão. Sócrates era feio, notou Nietzsche.[18]

  É possível concordar em alguma medida com esse juízo, como já foi considerado no capítulo sobre Platão (cap. II, sec. 4). Considere outra vez a defesa que Sócrates fez de si mesmo no julgamento que o condenou a beber cicuta. Quando os juízes o declararam culpado e lhe perguntaram que pena ele preferia sofrer, ele poderia ter decidido por uma pena branda, como a de abandonar Atenas. Ao invés disso ele respondeu orgulhosamente que como Atenas lhe devia grandes favores, ele merecia ser alimentado pelo governo como se fazia com os heróis da cidade-estado. Como consequência, eles não tiveram outra escolha senão condená-lo à morte pela cicuta. Mais tarde, já preso, ouviu dos discípulos que seria fácil corromper os guardas de modo que ele pudesse fugir. Mas ele decidiu não fazer nada disso, pois, segundo ele mesmo, como cidadão ele tinha o dever de se curvar às decisões do estado. Há, porém, uma óbvia contradição entre desafiar um estado injusto e depois considerar um dever curvar-se a suas decisões. Em minha opinião ele preferiu ser condenado porque era corajoso, se sabia já velho, sabia que o envenenamento por cicuta era praticamente indolor e, acima de tudo, porque queria ser visto pela posteridade como um herói da moralidade. Foi muito bem sucedido, mas seu modus operandi dá razão a Nietzsche.

 

6

 

A crítica à moral cristã realizada por Nietzsche tem consequências metafilosóficas de algum relevo. Para ele os filósofos tendem a se tornar prisioneiros de uma pérfida ética do ressentimento (Kant), da má-consciência (Pascal) e principalmente do ideal ascético (Platão). A filosofia ocidental tornou-se prisioneira do ideal ascético antes mesmo do cristianismo. Em contraste com Heráclito, Demócrito e Protágoras, ainda levados a sério por Nietzsche[19], Parmênides foi a primeira vítima do ideal ascético ao defender que toda a mudança é ilusória.[20] Eis o que ele escreve sobre as ideias platônicas e sobre a distinção entre o Ser e a mera aparência sensível:

 

Tudo o que os filósofos se ocupam há milhares de anos são ideias – múmias. Nada de real saiu vivo de suas mãos. Esses senhores idólatras das ideias quando adoram, matam e empalham; tudo é posto em perigo de morte quando adoram. (...) Todos acreditam desesperadamente no Ser. Porém, como não podem apoderar-se dele, buscam as razões segundo as quais ele lhes escapa: “É forçoso que haja aí uma aparência, um engano através do qual não podemos perceber o Ser – onde está o impostor? Já o apanhamos – gritam alegremente – são os sentidos! Os sentidos que por outro lado são tão imorais. São os sentidos que nos enganam acerca do mundo verdadeiro![21]

 

Pouco adiante ele denuncia o Deus dos filósofos:

 

Outra coisa peculiar nos filósofos não é menos perigosa: consiste em confundir as coisas últimas com as primeiras. Põem no princípio o que é para vir no final (...) O mais elevado não pode proceder do mais baixo (...) A conclusão é que tudo o que é de primeira ordem deve ser causa sui. Essa é a maneira pela qual chegamos ao conceito de Deus. A coisa última, a mais tênue, a mais vazia, ocupa o primeiro lugar como coisa em si, como ens realissimum. Que tenha tido a humanidade de tomar a sério as dores de cabeça desses enfermos urdidores de teias de aranha! E que tenha pago tão caro![22]

 

É possível, sob a perspectiva nietzscheana, delinear uma história da filosofia fortemente influenciada pelo ideal ascético. Para ele Sócrates levou adiante a disposição ascética de Parmênides na forma de corrupção moral, infectando a filosofia de Platão.[23] Este último, influenciado pelo orfismo, chegou a dizer que a alma humana na terra é como um caramujo que precisa carregar a sua casa, o corpo, para onde quer que vá, só podendo libertar-se dele com a morte. Platão  produziu a grande inversão escapista do senso comum denunciada por Nietzsche ao defender que o mundo real não é o mundo visível, mas um mundo inteligível, sobrenatural.[24] As doutrinas helenistas do epicurismo, do ceticismo e (principalmente) do estoicismo estavam carregadas de ascetismo reativo. Os grandes filósofos, de Agostinho a Hegel, foram quase inevitavelmente afetados pelo ideal ascético, defendendo uma ética cristã que enfatizava a moral do rebanho, além de uma metafísica e ontologia que visavam satisfazer a forma cristã de religiosidade. O exemplo particularmente marcante foi o de Plotino, um neoplatônico que via a vida em nosso mundo como degeneração e fracasso. Para ele o mal encontra-se no mundo das aparências e todo o mal que a alma possui encontra-se em seu mesclar com o mundo[25]; como a alma foi feita para escapar do mal, nossa missão é a de evadir-nos do mundo. Como ele escreveu:

 

A alma em sua natureza ama a Deus e deseja ser una com ele no nobre amor de uma alma por seu nobre pai; mas vendo por nascimento humano e seduzida pela corte dessa esfera, ela escolhe um outro amor, o mortal, abandona seu pai e cai... Mas um dia, vindo a odiar a sua vergonha, ela rejeita o mal da terra e mais uma vez busca o seu pai e encontra a sua paz.[26]

 

A vida devia ser suficientemente difícil para que pessoas honestas, conscientes e inspiradas fossem capazes de negá-la a tal extremo. Segundo consta, Plotino sofria de hanseníase, o que lhe teria dado razões adicionais para evadir-se do mundo corpóreo. A lista dos negadores do mundo tornou-se imensa durante a Idade Média e seria repetitivo expô-la aqui em detalhes.

   As condenações morais práticas do cristianismo foram sancionadas pelos filósofos de diversas épocas. Tanto Tomás de Aquino quanto Platão achavam que o ateu merecia a pena capital.[27] E um filósofo como Kant condenava o suicídio (afinal, o que seria do dono das terras se, em uma situação de extrema carência, seus servos começassem a se suicidar?)

   Na metafísica o ascetismo teve a sua influência no dualismo cartesiano, no paralelismo de Leibniz e até mesmo (segundo Nietzsche) no ascetismo de Spinoza, assim como na necessidade da postulação de uma substância incognoscível por Locke, sem falar no imaterialismo de Berkeley, na doutrina do dever pelo dever de Kant e no idealismo absoluto de Hegel. Só a partir de Hume, seguido mais tarde na Alemanha por Feuerbach e Marx, o ateísmo intelectualmente justificado começou a ganhar um espaço visível na filosofia. Ainda assim, o ideal ascético permaneceu influente em uma filosofia importante como a fenomenologia de Edmund Husserl e no irracionalismo antropológico de Heidegger. Mesmo hoje, em um mundo no qual a maioria dos cientistas não costumam ser pessoas de fé religiosa, a crença religiosa permanece influente entre filósofos. Ela serve de estímulo ao esforço intelectual de um formalista genial como Saul Kripke, uma pessoa de fé religiosa. O mundo mais etéreo do formalismo muito pouco exige do mundo sensível, o que possibilita construções metafísicas dialeticamente importantes por seus desafios, ainda que fortemente opostas ao senso comum.

   Que dizer de tudo isso? Há alguma verdade na perspectiva pela qual Nietzsche considerou a história da filosofia. Defensores de Parmênides poderiam ver no Ser uma forma de evasão. Mas a metáfora universal do Ser serviu muito mais para introduzir o princípio da não-contradição ou, digamos, a necessária atemporalidade do portador da verdade. O reino das Ideias certamente serviu como forma de evasão, mas as Ideias também serviam para explicar a unidade na diversidade, a predicação, a síntese. Tanto quanto sua dicotomia moral, a história da filosofia de Nietzsche é unilateral, levando em conta um elemento de distorção que marca toda a filosofia cristã, mas que não é suficiente para anatematizá-la.

 

7

 

Compatibilismo. Como seria de se esperar, Nietzsche também objetou contra as concepções libertarista do livre arbítrio.[28] A reflexão sobre isso nos oferece um caso de estudo sobre a contaminação da filosofia pelo ideal ascético de Agostinho a Kant.

   Segundo o libertarismo somos livres porque somos capazes de transcender o determinismo causal em nossas decisões. Isso acontece porque tendo sidos feitos à imagem e semelhança de Deus somos primeiros motores, causas incausadas. Isso tem consequências morais: como determinantes últimos de nossas ações nós passamos a ser absolutamente responsáveis pelo que decidimos fazer. Essa doutrina foi usada para justificar a justiça retributiva sem matizes imposta pela religião cristã, segundo a qual o pecado mortal condena o pecador a sofrer como castigo o fogo eterno após a morte. Essa forma primitiva de responsabilização moral justificou as penas impostas pela inquisição, assim como o direito de se fazer qualquer coisa conquanto se esteja sob a proteção da lei cristã. Foi essa concepção que motivou Kant, um libertarista retributivista, a apresentar como exemplo de aplicação da lei moral uma ilha que seria abandonada pelos seus habitantes. Para que a justiça fosse feita, pensou ele, seria necessário que antes de abandonarem a ilha os habitantes enforcassem todos os prisioneiros condenados à morte, mesmo que isso não resultasse em nenhum ganho para eles.

   Em contraste, muito mais matizada e aberta a refinamentos é a atitude do filósofo compatibilista no que concerne ao livre arbítrio.[29] Para o compatibilista ser livre é simplesmente não ser restringido, o que não tem mais nada a ver com determinismo causal. Essa ideia pode ser refinada em uma definição negativa como a seguinte:

 

Um agente não é livre (Df.) = quando ele é restringido ou por limitação ou por coerção, nem externamente nem internamente, nem ao nível físico, nem ao nível volitivo e nem mesmo ao nível das razões. [30]

 

Essa definição pode ser refinada. A restrição pode ser por limitação, quando as alternativas à disposição são diminuídas; mas ela pode ser por coerção, quando se é forçado a seguir uma alternativa. Além disso, as restrições podem ser externas ou internas. Por exemplo: um paraplégico tem suas possibilidades de movimento internamente limitadas. Mas uma pessoa amarrada em um poste é forçada a se manter em uma posição específica, o que impede sua liberdade física de uma perspectiva externa. Além disso, as limitações e coerções podem se dar em três níveis: no nível físico, no nível volicional e no nível das razões. Assim, uma pessoa sedada perdeu a liberdade de movimento (liberty). Um alcoólatra que se vê forçado a beber contra a sua vontade é coagido ao nível volitivo (free will), enquanto uma pessoa que não bebe por razões religiosas está sendo (para um avaliador externo) racionalmente coagida (liberum arbitrium)...

   A restrição ao nível racional é particularmente importante pelo fato de que a pessoa cuja liberdade é diminuída geralmente não tem consciência disso. Um psicótico que se recusa a comer por acreditar que a comida está envenenada não se considera limitado em suas decisões. Um terrorista que decide explodir uma bomba não acredita que está sendo racionalmente coagido a realizar tal ação. A instância neutra para o julgamento deve ser nesses casos externa: um grupo de avaliadores que possui as informações da pessoa que age além de outras informações adicionais que nos levam a concluir que a liberdade está sendo prejudicada.

   A aceitação do compatibilismo tem consequências importantes para a questão da responsabilidade moral. Para o compatibilista, que aceita que uma pessoa pode decidir livremente mesmo ao estar sendo causalmente determinada, a pessoa que faz o mal não o faz por uma vontade absolutamente livre, mas por contingências deterministas circunstanciais que se encontram no meio social em que se encontra, em sua história, em sua educação, em sua natureza... o que faz com que sua culpa (entendida como resultante do dano que sua ação possa causar aos afetados) seja no final das contas diluída na sociedade e na história. Isso não significa, naturalmente, que não deva haver punição, posto que a justiça retributiva deve ser aqui substituída por uma justiça restaurativa. Segundo essa última concepção, a punição deve existir por duas razões maiores. A primeira é a de impedir que a pessoa realize o mal outra vez, na medida em que ela permitir a remodelação dos seus valores e comportamentos. A segunda razão é que a punição impede que outros com as mesmas disposições a produzir o mesmo mal.

   Quero notar, por fim, que ainda que o cristianismo tenha distorcido ideias filosóficas, elas podem ainda assim trazer importante valor intrínseco. Um exemplo foi a contribuição de Platão e de Aristóteles para a ontologia. O realismo platônico-aristotélico constituiu-se certamente em uma inversão de valores com relação ao que chamamos de realidade. Sob a perspectiva do senso comum o real é o mundo sensível. Mas para o plantonista o real é o mundo das ideias. Nietzsche teve toda a razão em denunciar o platonismo como fruto filosófico do ideal ascético. Mas o platonismo não deixou de ser de grande importância por todo o questionamento intelectual que provocou, além de não ter encontrado uma teoria alternativa que o substituísse por completo. Contudo, como veremos no último capítulo, existe hoje uma teoria ontológica com o potencial de preservar as conquistas do realismo e tornando o platonismo desnecessário. Trata-se da ontologia radicalmente naturalista proposta por Donald Williams sob o nome de ontologia dos tropos. Se de um lado o platonismo e as várias formas de realismo apoiadas no ideal ascético parecem ter retardado imensamente o aparecimento da teoria dos tropos, de outro essas ontologias forneceram o campo de discussão, problemas e fórmulas argumentativas que se encontram presentes mesmo no interior da teoria dos tropos.

 

 



[1] Also Sprach Zarathustra: ein Buch für alle und Keine (1883-1885)

[2]  Arthur Shopenhauer: Die Welt als Wille und Vorstellung (1819).

[3] “...se a verdade entra em luta contra a mentira milenária, haverá convulsões, terremotos, deslocamentos de montanhas e de vales, coisas que nunca se imaginaram nem mesmo em sonhos”. Ecce Homo IV, sec. 2. Alguns sugeriram que Nietzsche estava antevendo as guerras mundiais e os totalitarismos desastrosos do século XX. Mais provável é que um monarquista como ele tenha acertado por mera coincidência.

[4] Bertrand Russell: A History of Western Philosophy (New York: Simon & Schuster 1971) p. 771.

[5] Nietzsche: A Genealogia da Moral (ed. Vozes 2009), p. 42.

[6] Friedrich Nietzsche: Genealogia da moral cap. 2. Além do bem e do mal, sec. 260.

[7] Nietzsche: A genealogia da moral, p. 40.

[8] Nietzsche: Ibid., p. 43. Millôr Fernandes tinha uma opinião muito diferente. Para ele o ser humano começou como homo sapiens. A descoberta da ciência o transformou no homo faber. Finalmente, percebendo que tudo isso não pode passar de brincadeira, ele se transformou no homo ludens, alcançando assim o ápice do florecimento humano. Nietzsche conquistou os dois primeiros níveis, mas sua ascensão ao estágio do homo ludens permaneceu incompleta, o que explica algumas de suas limitações.

[9] Nietzsche: Ibid., p. 45.

[10] Nietzsche: Ibid., p. 45.

[11] Bertrand Russell: a.a.O., p. 767.

[12] Friedrich Nietzsche: A genealogia da moral, 2 sec. 11-12; 3 sec.11

[13] Friedrich Nietzsche: Crepúsculo dos ídolos 5 sec. 5. Genealogia da moral 3 sec. 13

[14] Friedrich Nietzsche: Crepúsculo dos ídolos 9, sec. 34,

[15] Aldous Huxley: Point Counter Point (1928)

[16] Christopher Weinberg: A Guide do Asperger Syndrome (Cambridge: Cambridge University Press 2006), p.  134.

[17] Especialmente esclarecedora é a extraordinária autobiografia intitulada Ecce Homo (Companhia de Bolso 2008).

[18] Friedrich Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos, O problema de Sócrates, sec. 3. Em outras passagens Nietzsche demonstra-se muito mais simpático à figura de Sócrates.

[19] Friedrich Nietzsche: Vontade de Poder (Petrópolis: Vozes 2011) sec. 233.

[20] Friedrich Nietzsche: Filosofia na época trágica dos gregos, sec. 9.

[21] Friedrich Nietzsche: O crepúsculo dos Ídolos, A razão na filosofia, sec. 1

[22] Friedrich Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos, A razão da filosofia, sec. 4

[23] Friedrich Nietzsche: Gaya scientia, sec. 372.

[24] Friedrich Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos. A razão na filosofia, sec. 6

[25] Plotino: Enéiades I, 2, 3.

[26] Plotino: Enéiades VI, 9, 9.

[27] George Minois: História do ateismo (Unesp 2023).

[28] Friedrich Nietzsche: Além do bem e do mal, cap. I.

[29]  O compatibilismo só emergiu de forma clara com Hobbes na filosofia inglesa, tendo sido daí para frente aceito pela maioria dos filósofos ingleses.

[30] Uma pretensa definição positiva dependeria da autonomia, um conceito kantiano nunca satisfatoriamente definido. Para uma defesa sistemática dessa forma mais refinada de compatibilismo ver C. F. Costa, “O que é livre-arbítrio?” que se encontra publicada como o capítulo 7 do livro Textos esparsos de filosofia teórica e prática (Belo Horizonte: Dialética 2020).

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