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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

KANT E O IDEALISMO TRANSCENDENTAL

  DRAFT para o livro Introdução histórica à filosofia

 

  demanda forte revisão

 

XII

KANT: IDEALISMO TRANSCENDENTAL

 

Todo nosso conhecimento começa com os sentidos, continua com o entendimento e termina com a razão; não há nada mais elevado do que a razão.

Kant

 

 

Um professor alemão certa vez notou que na filosofia moderna existem grandes ilhas, mas somente dois continentes: Kant e Hegel. Como resultado, uma pessoa pode passar a vida inteira explorando um desses continentes sem chegar a conhecê-lo por completo.

   Essa parece-me uma avaliação um tanto exagerada e facciosa. Kant e Hegel construíram sistemas incomparavelmente ambiciosos, mas se a importância das ideias neles expostas é tão exponencialmente maior é algo que merece ser questionado. É difícil não concordar com P. F. Strawson, que no prefácio do mais influente ensaio sobre a obra máxima de Kant, a Crítica da Razão Pura, escreveu ter lido o livro com um “sentimento misto de grande insight e de grande mistificação”.[1] Com efeito, o sistema arquitetônico desenvolvido por Kant e legitimado pela universidade prussiana cobra um alto preço em artificialidade. As peças do quebra-cabeça, na verdade uma colcha de retalhos, só parecem se encaixar por meio de artificialismos argumentativos ocultados por uma densa nuvem de obscuridade semântica, reforçada por uma apresentação rebuscadamente dogmática. O mesmo vale ainda mais para Hegel: se um argumento parecer pouco convincente, complique-o e confunda-o a ponto de fazer com que o leitor se perca dentro dele. Também é preciso distinguir entre profundidade e amplitude. Um filósofo como Berkeley teve insights tão profundos e originais quanto os de Kant. Mas não dedicou mais do que uma pequena parte de sua vida à reflexão filosófica. Kant dedicou toda a sua longa vida ao aprendizado e à investigação. Na verdade Kant e Hegel são ilhas um pouco maiores. Nenhum continente.

   Claro, a obscuridade em filosofia existe desde seus primórdios e tem toda a razão de ser. O recurso à abertura discursiva propiciada pela vaguidade e falta de clareza é lícito quando se tem intuições importantes a veicular, mas não se tem sequer os recursos conceptuais para formulá-las de maneira adequada. Podemos encontrar essa condensação polissêmica de ideias já em filósofos como Parmênides e Anaxágoras. A invenção do “Ser” por Parmênides serviu como um recurso figurativo genialmente explorado como um meio de sugerir caminhos de investigação. E não existe exemplo mais flagrante de obscuridade construtiva do que a Metafísica de Aristóteles, onde vemos um filósofo tentando honestamente encontrar o caminho no interior de uma selva argumentativa. Como notou Wittgenstein, ele também um filósofo que, como Heráclito, era capaz de se expressar por meio de aforismos tão vagos quanto por vezes extremamente sugestivos, em um conselho dado a si mesmo sobre a arte de filosofar:

 

Não se deixe envolver por problemas parciais, mas sempre ascenda para onde houver uma concepção livre de todo o único grande problema, mesmo se essa concepção ainda não for clara.[2]

 

Se a filosofia não pode ser mais do que saber conjectural, ensaio especulativo acerca do que ainda não nos encontramos em condições de conhecer, como procurei demonstrar no primeiro capítulo, então a observação de Wittgenstein é perfeitamente adequada.

   Não obstante, também há junto a isso razões comezinhas. Dentre todos os filósofos modernos até aqui considerados, Kant foi o primeiro grande filósofo acadêmico. Hume foi um grande estilista que escrevia para leigos cultos. Precisava ser claro. O mesmo vale para Descartes, Leibniz, Locke e Berkeley. Diversamente disso, Kant foi um professor, falando para alunos do alto de uma cátedra e escrevendo para colegas versados em filosofia em um ambiente acadêmico que devia ser provinciano e pernóstico.

   Há ainda uma outra razão, ainda mais comezinha, para a pretensão de profundidade obtida por meio de uma obscuridade rebuscada, mesmo na obra de um grande filósofo como Kant. Ele servia ao reino da Prússia, um estado autoritário, militarizado, com reis despóticos, onde a liberdade de expressão era severamente controlada – uma situação retrógrada se comparada à inglesa. Certa vez um príncipe foi visitar Kant na universidade para oferecer-lhe honrarias. Assim, a seu modo ele também servia à glória do estado prussiano, devendo em filosofia fazer o melhor para condizer com essa função. Um outro filósofo acadêmico que serviu ao reino da Prússia foi Hegel, que chegou a ser professor em sua capital, Berlim. Hegel foi ainda bem mais obscuro do que Kant e seu sistema ainda mais ambicioso. O contraponto estilístico de Hegel foi seu concorrente Shopenhauer, um filósofo que não era acadêmico e escrevia de modo tão claro quanto em filosofia é possível.

   A escrita pedantesca e obscura, ou simplesmente descuidada e macarrônica, mas dotada de um tom quase profético, fez escola na Alemanha: Husserl e seu pupilo rebelde, Heidegger, foram bons exemplos. Isso não significa necessariamente má filosofia. O gênio de Kant e Hegel é inegável, assim como a importância pouco reconhecida de Husserl e até mesmo a relevância de Heidegger para a antropologia filosófica. Trata-sde uma questão de custo-benefício.

   O método de fazer poeira com palavras de modo a dar a impressão de profundidade foi importado para a França por Sartre e Merleau-Ponty, e mais tarde incrementado por acadêmicos pós-modernos, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida. O problema é que aquilo que era uma mensagem filosoficamente rica e profunda, mesmo que encoberta sob um denso nevoeiro retórico que a deveria tornar invulnerável, transformou-se em alguns escritos de Deleuze em mera experimentação linguística onde quase nada mais havia a ser dito, e em Derrida em uma mera simulação retórica dos procedimentos filosóficos que, quando trocada a miúdos, na melhor das hipóteses se demonstrava falsa e, na pior, uma algaravia estilisticamente proficiente, mas sem sentido.[3] Se nos lembrarmos do triângulo metafilosófico exposto no primeiro capítulo do presente livro (sec. 9) compreenderemos melhor: a França fez grande literatura que jogou sua filosofia para o canto estético, transformando-a em beletrismo, assim como os Estados Unidos, por exemplo, tem feito boa ciência, que joga sua filosofia para o canto do cientificismo.

   Uma maneira de tentar salvar certos escritos de Deleuze e Derrida é admitir seu valor estético; eles são como as instalações em artes plásticas. Há nisso algum valor! Não obstante, quando consideramos o que veio a ser chamado de pensamento pós-moderno como arte surge um problema. É que a arte é uma ilusão que se reconhece como tal. Por isso cada um é livre para retirar da experiência estética o que melhor lhe aprouver. É por isso que a grande arte, chamada por Collingwood de arte própria, possui um potencial ampliador da consciência (ver cap. II, sec. 8). Mas se a filosofia se utiliza de um mecanismo de produção de ilusões sem reconhecê-lo enquanto tal, ela passa facilmente ao nível do que Collingwood chamava de má arte: a arte adormecedora da consciência.[4]

   Uma última observação diz respeito aos efeitos culturais deletérios do pós-modernismo. Ele ensina as pessoas a acreditarem que estão empenhadas em uma investigação filosófica séria quando pouco mais fazem do que desenvolver curiosos experimentos retóricos. Como notou Noam Chomsky, isso pode ser culturalmente contraproducente em países subdesenvolvidos sem uma tradição cultural forte, onde a pseudoprofundidade e o experimentalismo discursivo podem passar facilmente por grandes aquisições culturais.[5]

 

1

 

Vida. Não há muito a se dizer sobre a vida de Kant (1724-1804). Ele nasceu de uma família de seleiros, sem recursos nem instrução. Eles eram pietistas, um ramo radicalizado do luteranismo, cujos valores maiores eram “o dever, o trabalho e a oração.” Aos oito anos ele entrou para uma altamente disciplinada escola pietista, que o fez mais tarde se recordar da infância como um período de escravidão, mas que lhe deixou marcas profundas que se refletiram em sua filosofia. Aos poucos ele galgou os degraus da vida acadêmica, tornando-se um aclamado professor. A monumental Crítica da Razão Pura[6] foi sua primeira grande obra, publicada quando tinha 58 anos de idade. Só depois disso vieram as outras obras filosóficas relevantes, como a Crítica da Razão Prática, a Metafísica dos Costumes e a Crítica do Juízo.

   Kant era uma pessoa altamente disciplinada. Há muitas anedotas a seu respeito. Conta-se, por exemplo, que era inflexível em fazer seu passeio diário às 4 horas da tarde sob qualquer tempo. Uma vez, precisando muito terminar um artigo, chegou o momento do passeio. Grande conflito! Felizmente ele teve uma ideia que lhe permitiu resolver o dilema. Ele postou o tinteiro uns sete metros de distância da mesa onde escrevia, de modo que a cada minuto ele precisava caminhar até o tinteiro para encher de tinta sua pena de ganso. Esse estratagema simples lhe permitiu dar o passeio e escrever o artigo ao mesmo tempo.

   Apesar de seu rigor e inflexibilidade prussianos, Kant era uma pessoa bastante sociável. São conhecidos os almoços para os quais convidava amigos, geralmente comerciantes locais e nunca professores universitários. Goethe o admirava e quis conhecê-lo pessoalmente. Kant fez tanta dificuldade que Goethe teve um acesso de raiva e desistiu da ideia. Kant nunca viajou para longe de sua cidade natal, nem se casou. Parece que preferiu seguir o conselho de um amigo inglês, investindo seu dinheiro em um banco, o que acabou por revelar-se a escolha certa.

 

2

 

Juízos. O mais importante em Kant é sua Crítica da razão pura, um livro só comparável em influência à Metafísica de Aristóteles. Como Locke e Hume, Kant também quis estabelecer a natureza e os limites daquilo que pode ser conhecido, fazendo isso com o objetivo de criticar as pretensões da metafísica dogmática, por ele entendida como uma ciência que pretendia demonstrar a imortalidade da alma, o livre arbítrio e a existência de Deus. Ele queria explicar porque a metafísica dogmática nunca conseguiu apresentar mais do que argumentos de valor duvidoso.

   A construção arquitetônica da Crítica é impressionante e profundamente original. Ela foi escrita como um ambicioso esforço de síntese que haveria de superar tanto o racionalismo continental quanto o empirismo britânico. Do racionalismo Kant queria superar a metafísica dogmática que aprendera sob a influência maior de Christian Wolff, que por sua vez foi influenciado por Leibniz. Já do empirismo ele queria superar principalmente o ceticismo de Hume, ainda que o último lhe tivesse, segundo suas palavras, acordado do sono dogmático do pensamento racionalista no qual fora educado. Ainda que muito poucos acreditem que Kant tenha alcançado seu objetivo último, é certo que ainda podemos aprender muito pelo conhecimento do trajeto percorrido.

   O primeiro passo dado por Kant para superar a oposição entre racionalismo e empirismo foi o de revisar a distinção empirista entre associações de ideias e questões de fato (Hume), correspondente à distinção racionalista entre as verdades da razão e as verdades de fato (Leibniz) – uma dicotomia cujas origens retrocedem à filosofia medieval. Kant a substituiu pela respectiva distinção entre:

 

(i)             juízos analíticos (a priori) e

(ii)           juízos sintéticos (a posteriori),

 

 adicionando então a ela um terceiro tipo de juízo, os:

 

(iii)         juízos sintéticos a priori.[7]

 

Vejamos como ele os define. (i) Juízos analíticos estão no lugar das relações de ideia em Hume. Mas Kant os define à maneira de Leibniz: eles são aqueles nos quais o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Eles são a priori no sentido de que possuem absoluta independência de qualquer experiência, possuindo as marcas do a priori, que para ele são a necessidade e universalidade estrita.[8] O exemplo dado por Kant é: “Todos os corpos são extensos”. Simplesmente encontra-se na definição de um corpo que ele deve ser extenso. Não só são os juízos analíticos necessários, mas sua negação conduz a uma contradição (incoerência ou inconsistência). Por exemplo: “Nem todos os corpos são extensos” é um enunciado necessariamente falso. Tais juízos tem a desvantagem de serem incapazes de ampliar nosso conhecimento. Eles nada nos dizem sobre o mundo, firmando apenas a relações lógico-conceituais. Exemplos são “Triângulos tem três lados”, “Vermelho é uma cor”, “Solteiros são não-casados.”

   Embora interessante, a definição de juízo analítico é insatisfatória, posto que nem todo enunciado analítico é insatisfatória, posto que nem todo enunciado tem a forma sujeito-predicado. O enunciado “Se João é casado com Maria então Maria é casada com João” é analítico, mas não cabe na definição kantiana. Por isso preferimos hoje dizer que o enunciado analítico é aquele cuja verdade (ou falsidade) depende das relações entre seus constituintes semânticos.[9] Ou então recorremos à definição fregeana, segundo a qual um enunciado é analítico quando sua verdade depende tão somente de definições e das leis da lógica. Por exemplo: “Todo triângulo tem três lados” é analítico porque o conceito de triângulo se define como sendo o de uma figura plana e fechada com três lados, de modo que sua substituição pelo sujeito do enunciado acima resulta na frase tautológica “Toda figura plana e fechada com três lados tem três lados”.

   Quanto a (ii), os juízos sintéticos (a posteriori), eles foram definidos por Kant como aqueles nos quais o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito. Por essa razão a descoberta de sua verdade parece sempre demandar experiência empírica, tornando-os a posteriori. Seu exemplo preferido era: “Todos os corpos são pesados”. Sabemos disso por experiência, o que faz com que sua negação não seja contraditória. É possível que existam corpos que não possuam peso. (Na verdade, corpos físicos que se encontram fora da ação gravitacional não possuem peso, apesar de possuírem massa...) Os juízos sintéticos a posteriori são ampliativos. Eles nos dizem algo sobre o mundo e constituem a maior parte daquilo que diariamente ajuizamos. Exemplos: “Estou de pé”, “O céu é azul”, “Londres é a capital do Reino Unido”, “Sapos não comem insetos que não se movem...” Hoje nós definiríamos o juízo sintético como aquele cuja verdade (ou falsidade) não depende das relações entre seus constituintes semânticos, mas de sua relação com o mundo.

   A grande inovação de Kant, porém, foi postular a existência de um terceiro tipo de juízo: (iii) o juízo sintético a priori. Nesse juízo o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito, mas ainda assim ele é a priori, pois ele é independente da experiência, sendo necessário e estritamente universal. Poderíamos hoje definir tais juízos como sendo aqueles cuja verdade (ou falsidade) não depende das relações entre seus constituintes semânticos, mas de suas relações com o mundo (são sintéticos), mas que ainda assim são necessários e estritamente universais, não dependendo da experiência (são a priori), ainda que possam se apoiar nela.

   A origem da ideia do juízo sintético a priori se encontra provavelmente no enorme impacto da física newtoniana da época, cujas leis Kant tinha como verdades absolutas acerca da natureza.[10] Esse seria para ele o caso das leis do movimento postuladas por Newton, como a segunda lei, segundo a qual a força depende da massa multiplicada pela aceleração (F = ma), assim como sua para a impressionante lei da gravidade universal, segundo a qual dois corpos físicos se atraem em proporção direta a suas massas e inversa ao quadrado de suas distâncias (F = m1.m2/d2).

   Também os juízos da aritmética eram para Kant sintéticos a priori, por exemplo: “7 + 5 = 12”. Segundo Kant trata-se aqui também de um juízo sintético a priori, pois o conceito do número doze não está contido no conceito da soma de 7 e 5.[11] Mas o resultado dessa soma é a priori, pois aplica-se necessariamente ao mundo na independência de qualquer experiência. A sugestão de Kant parece se tornar mais aceitável quando consideramos somas de números maiores como “389 + 973 = 1362”. Aqui decididamente não vemos o conceito do predicado “...é igual a 1362” no conceito da soma em questão. Por isso esses juízos devem ser sintéticos. Mas eles também são a priori por se aplicarem necessariamente ao mundo na independência de qualquer experiência.

   Também os juízos da geometria eram para Kant sintéticos a priori. Considere o enunciado da geometria euclidiana “A reta é a distância mais curta entre dois pontos”.[12] Para Kant podemos pensar a linha reta na independência de ser ela a distância mais curta entre dois pontos (Euclides definiu a reta como “uma linha traçada uniformemente com os pontos sobre si”). Assim, esse enunciado deve ser sintético a priori, posto que nós o vemos como sendo necessário e universal por ser dependente da intuição pura do espaço que, como veremos, é legislada pelo sujeito.

    O mais importante caso de juízo sintético a priori foi o dos juízos constitutivos do próprio sistema de filosofia teórica proposto por Kant. Exemplos standards do que ele admita como sendo juízos sintéticos a priori são enunciados supostamente metafísicos como:

 

Todo evento tem uma causa.

Em todas as mudanças nas aparências a substância permanecem.

Existe um mundo objetivo independente de nós.

 

Quero considerar aqui somente o princípio expresso pelo enunciado “Todo evento tem uma causa”. Não se trata de um juízo analítico, pois o conceito de causa expresso pelo predicado não se encontra contido no conceito de evento expresso pelo sujeito. Afinal, podemos imaginar eventos sem causa. Mas se fosse assim, como seria possível garantir nosso conhecimento de um mundo governado pela causação? Como seria possível a necessidade causal? Não cairíamos inevitavelmente no ceticismo humiano? A resposta de Kant é que se trata de um juízo sintético a priori. Por ser a priori ele se torna capaz de ser aplicado de modo necessário e universal à natureza. E isso precisa ser assim porque na seção da Crítica intitulada ‘analogias da experiência’ ele acreditou ter demonstrado que a natureza, tal como ela pode ser conhecida por nós, precisa ser subjugada ao princípio da causalidade.

   É preciso notar que um filósofo como Hume não teria dificuldades em considerar as leis da física como questões de fato, vale dizer, como enunciados sintéticos a posteriori, em princípio falseáveis. Afinal, ao considerar os juízos da matemática como relações de ideias (i.é., enunciados analíticos), ele não tinha sequer em mente a questão da aplicação desses juízos ao mundo externo. Um empirista posterior, J. S. Mill, chegou a considerar os princípios da geometria e mesmo os da matemática como juízos empíricos (sintéticos e a posteriori), dependentes da experiência e, portanto, ao menos em princípio passíveis de serem falseados. Não obstante, para Kant não poderia ser assim. Sob sua perspectiva os princípios da física, das matemáticas e da geometria de seu tempo precisavam ter o status de verdades absolutas. Para ele Euclides na geometria e Newton na física haviam decifrado o alfabeto pelo qual Deus escrevera o livro da natureza. Essas eram convicções razoáveis na época em que Kant viveu, mas que, como veremos, deixaram de ser razoáveis devido ao próprio desenvolvimento da ciência. A maioria dos filósofos da ciência tornou-se, ao menos desde C. S. Peirce (1839-1914) falibilista com relação a aplicação de nossos juízos científicos ao mundo empírico.

 

3

 

Revolução copernicana. A grande dificuldade consistia para Kant na justificação última da existência dos juízos sintéticos a priori. Afinal, o que garante que o mundo deva se comportar de tal modo que juízos ampliativos sobre ele sejam a priori no sentido de serem necessários e universais?

   Kant pensou ter alcançado a resposta através do que ele chamou de “a grande luz” que o conduziu ao pensamento crítico: uma grande descoberta por ele chamada de “revolução copernicana”.[13] Assim como após Copérnico, ao invés de o sol circular em torno da terra, a terra passa a circular em torno do sol, após Kant é o sujeito do conhecimento que passa a circular em torno dos objetos. Melhor dizendo: o sujeito do conhecimento passa a ter um papel ativo na produção de um conhecimento. Contudo, para que isso aconteça, o mundo precisa obedecer às leis impostas pelo sujeito do conhecimento de modo a poder ser conhecido naquilo que lhe é necessário e universal. Nós somos, acreditava ele, “os legisladores da natureza”! Somos nós que lhe damos forma e estrutura. É só por isso que os juízos sintéticos a priori são necessários e estritamente universais; porque o mundo, enquanto capaz de ser por nós conhecido, precisa seguir os princípios impostos pela nossa matemática, pela nossa geometria e pela nossa ciência empírica. Um princípio como o de que todo evento tem uma causa era considerado por ele necessário e universal, ou seja, não só sintético, mas também a priori, resolvendo a fortiori o problema do ceticismo humiano.

   A maior preocupação de Kant não era, porém, a fundamentação das matemáticas e das ciências empíricas. Ele também quis criticar a metafísica especulativa, demonstrando que a razão pura não é capaz de resolver questões metafísicas como as da existência de Deus, da eternidade da alma e do livre arbítrio.

   Fundamental para a revolução copernicana é a espécie de “subjetivização” do mundo da experiência proposta por Kant através da distinção entre mundo noumênico e mundo fenomênico. O mundo noumênico é o mundo como ele é em si mesmo, na independência da experiência. Objetivamente ele é constituído pelo que Kant chamou de a coisa em si (Ding an sich), enquanto subjetivamente ele é constituído por um Eu transcendental noumênico (que os metafísicos chamam de alma), um X distinto do eu empírico descrito por Hume como um feixe de ideias sempre diversas. Nada podemos saber sobre esses dois polos do impensável. Nada podemos saber sobre a coisa em si mesma, sobre o X da subjetividade transcendental ou sobre o mundo noumênico que os encerra. Tudo o que podemos saber é sobre o mundo tal como ele aparece a nós, o mundo fenomênico das aparências (a palavra grega ‘pheinomenon’ significa aparência), que é o mundo submetido a nossas formas e estruturas a priori de conhecimento.

   A distinção entre o mundo fenomênico e o mundo noumênico é fundamental para a revolução copernicana. Se somos nós que legislamos sobre o objeto do conhecimento, então esse objeto precisa ser de algum modo “subjetivizado”. Se tudo o que precisamos para legislar o universo é legislar a nós mesmos, a tarefa fica grandemente facilitada. O mundo fenomênico passa a ser, em sua forma e estrutura, dependente do sujeito da experiência. E a tarefa de dar conta dessa forma e estrutura será dada aos juízos sintéticos a priori.

   Do ponto de vista epistêmico, o que Kant quis fazer foi ancorar o mundo humiano das ideias soltas em um mundo noumênico incognoscível. Locke tem sido geralmente considerado um realista indireto. Berkeley orgulhava-se de seu idealismo, enquanto Hume foi um idealista à contragosto. Kant foi o que poderíamos chamar de um realista indireto por postulação. O mundo como ele é em si mesmo, o mundo noumênico, é um algo sobre o qual o entendimento humano nada é capaz de dizer. Trata-se de uma forma minimalista de realismo indireto.

 

4

 

Objeções. Sobre a introdução acima há um número de objeções importantes a serem feitas. A primeira diz respeito à aritmética. Vejamos, por exemplo, o enunciado “7 + 5 = 12”, que para Kant expressava um juízo sintético a priori. Analisado segundo nossa atual lógica predicativa, não se trata realmente de um enunciado do tipo sujeito-predicado, como ele pensava. Trata-se de um enunciado com o predicado relacional “...é o mesmo que...”, podendo ser explicitado como “7 + 5 é o mesmo que 12”. Nesse caso não cabe mais a questão de se saber se o número 12 não estaria contido em “7 + 5”, pois tanto o 7 + 5 quanto o 12 possuem a mesma referência, qual seja, o número 12. Assim interpretado, esse enunciado é analítico, mesmo que não tenhamos em mente o resultado da soma de 7 com 5 ao considerarmos 7 + 5. A analiticidade fica mais clara quando consideramos uma soma como “2 + 1 = 3”, em que parecemos ver o 3 no primeiro lado da identidade. Afinal, o enunciado 2 + 1 = 3 poderia ser analisado ao modo de Leibniz como (1 + 1) + 1 = ((1 + 1) + 1), admitindo que 2 (Df.) = 1 + 1 e que 3 (Df.) = 2 + 1. (Ver cap. VII, sec. 1)

   Considere agora um enunciado como “A menor distância entre dois pontos é uma linha reta (na geometria euclidiana).” Nada nos impede de definirmos uma semirreta, no plano euclidiano, como a linha mais curta entre dois pontos. Nesse caso o predicado nada mais é do que um desdobramento do sujeito e o enunciado acima poderá ser considerado analítico. Outros enunciados da geometria euclidiana, como “A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano é 1800” exigem demonstração. Mas como a demonstração parte de axiomas que não podem ser negados sem contradição, disso resulta que o mesmo vale para enunciados deles deduzidos, que se tornam indiretamente analíticos.

   Há aqui dois pontos hoje muito bem conhecidos que precisam ser considerados. O primeiro é que os enunciados da geometria podem ser tanto analíticos e a priori quanto sintéticos a posteriori, dependendo de como os consideramos. Enquanto os consideramos como fazendo parte do sistema da geometria euclidiana, eles são necessariamente verdadeiros, pois decorrem logicamente de axiomas e postulados aceitos; eles são analíticos e a priori. Mas quando consideramos esses mesmos enunciados sob a perspectiva da sua aplicação ao mundo real, eles passam a depender de medições empíricas para que a sua verdade seja atestada. Nesse caso eles se tornam sintéticos a posteriori.

   A geometria euclidiana era a única existente nos tempos de Kant, que a considerou absolutamente verdadeira. Mas apenas cerca de trinta anos após sua morte N. I. Lobachevsky desenvolveu uma geometria hiperbólica, que rejeitava o quinto postulado de Euclides e na qual a soma dos ângulos de um triângulo é menor do que 1800. Pouco mais tarde Bernhard Riemann desenvolveu uma geometria elíptica, na qual o quinto postulado também foi rejeitado e os ângulos de um triângulo resultavam em mais do que 1800. O resultado disso é que não existe apenas uma única geometria, como Kant pensava.

   De um ponto de vista interno a elas, qualquer uma dessas geometrias é verdadeira e seus enunciados podem ser considerados analíticos ou derivações analíticas de seus axiomas. Eles são relações de ideias no sentido de Hume. Seus enunciados serão necessariamente verdadeiros no sentido de que decorrem de axiomas aceitos, de modo que suas negações serão contraditórias. Não há, pois, razões intrínsecas para escolhermos um sistema geométrico em detrimento de outro.

   Contudo, a situação tornou-se ainda pior para os kantianos quando se demonstrou que a geometria que realmente costuma se adequar ao espaço físico real não é a euclidiana. Em 1915, com sua teoria da relatividade generalizada, Einstein demonstrou que onde há corpos massivos e, portanto, gravidade, o espaço-tempo se torna encurvado e só pode ser calculado pela aplicação de uma geometria riemanniana. Ou seja, se traçarmos um triângulo entre a Terra, Vênus e Marte, a soma dos seus ângulos internos será superior a 1800.

   Para uma avaliação adequada da questão, tudo o que precisamos fazer é distinguir entre geometria pura e aplicada. A validade da geometria aplicada depende da experiência. A geometria euclidiana apenas parece perfeitamente aplicável ao espaço físico, uma vez que ela nos basta para medirmos o espaço ao nosso redor. A evolução natural nos dotou da capacidade de aplicarmos naturalmente essa geometria em nossas ações e de a compreendermos com muito mais facilidade do que as geometrias alternativas. Mas a física moderna demonstrou que quando consideramos grandes distâncias entre corpos massivos a aplicação da geometria elíptica nos traz resultados mais precisos (a geometria euclidiana voltará a valer em um espaço no qual não houver gravidade). Assim, deixa de haver uma razão para que a geometria euclidiana seja considerada sintética a priori. Como geometria pura ela pode ser considerada analítica, ou seja, um sistema axiomático no qual enunciados se seguem dos axiomas formando um sistema. Mas como geometria aplicada ela será sintética e a posteriori, posto que será considerada do ponto de vista de sua aplicação ao mundo físico externo, ou seja, como parte de nossa descrição física do mundo. A insistência no sintético a priori resulta apenas de uma confusão entre o caráter sintético (mas a posteriori) da geometria aplicada ao mundo físico com o caráter analítico (mas a priori) da geometria axiomática.

   Um destino semelhante teve a física newtoniana, com suas leis que para Kant eram verdades absolutas. A relatividade generalizada nos mostrou que a lei da gravitação de Newton é apenas uma aproximação. O que mais perfeitamente se aplica é uma lei muito mais complexa, resultante da teoria da relatividade geral, que possui maior poder explicativo no mesmo domínio de aplicação. Não podemos sequer saber se essas últimas leis são necessárias e estritamente universais, a não ser por postulação. Como notou Karl Popper, mesmo que alcançássemos a verdade absoluta, jamais poderíamos saber que realmente a alcançamos. Isso vale para a física, mas supostamente também para o nosso conhecimento como um todo. Não parece logicamente impossível que um dia acordemos em um mundo encantado, descobrindo que as estrelas não passam de pirilampos colocados pelos deuses no céu da noite para enfeitar a abóboda celeste, evidenciando que nossa presente ideia do cosmo nada mais é do que uma fabulosa ilusão. A conclusão a que chegamos é que as leis da física não são juízos sintéticos a priori. Elas são juízos sintéticos a posteriori, podendo sempre em princípio ser demonstradas falsas.

   No que concerne à matemática, à geometria e à física, a suposta revolução copernicana de Kant chegou a um triste fim e temos boas razões para descartá-la antes mesmo de considerar seu sistema. Identificamos os princípios da geometria euclidiana devido a capacidades ganhas através da evolução natural, mas somos capazes de alterar esses princípios, como aconteceu com o surgimento de novas geometrias.

   Hume e Kant trataram o problema de modo diferente. O primeiro entendeu as matemáticas (aritmética e geometria) como constituídas de enunciados que são relações de ideias (ou seja, analíticos) porque ele os pensava em termos de aritmética e geometria abstratas. Nesse sentido ele estava certo. E se fosse o caso ele poderia ter considerado a geometria aplicada como resultado de inferências indutivas meramente prováveis, ou seja, como dependentes de juízos sintéticos a posteriori. Kant, por sua vez, tinha preocupação com a aplicação da aritmética e da geometria, acreditando que as verdades da geometria euclidiana fossem absolutas, já que elas eram conhecidas há mais de dois mil anos. Quanto às leis da física newtoniana, não parecia haver na época qualquer razão para que não fossem consideradas verdades absolutas. Assim, a questão que a Kant se apresentava era: como justificar a verdade absoluta dos juízos da matemática e da geometria? A única resposta que encontrou foi que seus juízos são sintéticos a priori. Eles são necessários e universais (a priori), ao mesmo tempo que são capazes de nos dizer algo sobre o mundo (sintéticos). Só através da revolução copernicana é que seríamos capazes de dar conta disso.

   A conclusão a que chegamos é que a revolução copernicana, tal como Kant a concebeu, falhou logo após seu início. Ainda se usa dizer que ele percebeu que a estrutura do mundo, tal como somos capazes de conhecê-lo, depende dos filtros inerentes ao nosso aparato cognitivo. A ideia faz sentido quando comparamos as várias maneiras de se apreender o mundo. Outros seres vivos terão outros filtros, outros pontos de vista, outras formas de apreensão perceptual que podem ser demonstradas complementares às nossas. Mas o fato de que um objeto pode ser apreendido das maneiras complementares A, B, C... e ainda outras desconhecidas não quer dizer que para além disso exista uma coisa em si que suporta apreensões cognitivas. Um corpo humano pode ser investigado por meio de exame físico, radiologia, ultrassonografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética... mas esse corpo não é mais do que aquilo que se apresenta e se pode apresentar dessas e de outras maneiras. A consciência de uma variedade irresgatável de acessos deve ter persuadido Kant de que existe algo incognoscível por trás do que é registrado pelos diversos métodos de observação, determinando-os: a transcendental coisa em si mesma. Mas o termo ‘coisa em si’ apenas parece fazer sentido. Se quisermos falar da coisa em si, ela se resumirá a ao conjunto daquilo que é possivelmente perceptível, mesmo que isso seja para nós inesgotável. A improvável revolução copernicana persegue o kantismo como uma assombração.

   Kant quis na Crítica investigar as condições necessárias à experiência, ou seja, aquilo por meio do que nós damos à experiência forma e estrutura, de maneira a possibilitar sua revolução copernicana. Para tal ele dividiu nosso aparelho cognitivo em três níveis que se pressupõem sequencialmente: o primeiro deles é tratado na estética transcendental, onde ele examinou as formas da intuição sensível pelas quais experienciamos os objetos, que para ele são o espaço e o tempo. O segundo nível é tratado na analítica transcendental, onde ele examinou os juízos do entendimento e seus conceitos fundamentais. O terceiro nível é o da dialética transcendental, onde ele examinou os encadeamentos de juízos na formação de raciocínios, criticando o seu mau uso pela metafísica dogmática de Wolff.

 

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Percepção. Após a introdução da Crítica, Kant passou à sua estética transcendental. A palavra ‘estética’ vem do grego ‘aísthesis’ que significa sensação ou percepção sensível. Esse sentido ainda era mais comum no tempo de Kant e não pode ser confundido com o estudo do belo. Já a palavra ‘transcendental’ diz respeito às condições supremas sob as quais deve ser submetido qualquer objeto do conhecimento.

   Como já vimos, para Kant nós não conhecemos os objetos em si mesmos, ou seja, como o que ele chamou de coisa em si ou noumena. Nós os conhecemos pelas modificações que eles produzem na intuição sensível, a dizer, no domínio das aparências (Erscheinungen) ou fenômenos (phainómena). Essas modificações possuem matéria e forma. A matéria é aquilo que é impresso nos sentidos pelo que lhes é externo. Ela é o material sensível. É tentador dizer que se trata de sensações como as das cores, da dureza, do calor e do frio, do gosto ou do som. Mas isso seria enganoso, pois para identificarmos sensações precisamos aplicar conceitos, os quais já pertencem ao domínio interno do entendimento. Tudo o que podemos dizer é que a matéria é aquilo que é impresso nos sentidos pela coisa em si. O material sensível vem do objeto, o que já torna esse material a posteriori. Já a forma é aquilo que o sujeito imprime no material sensível, as sensações, de maneira a organizá-las. Quando consideramos a forma da intuição sensível abstraindo dela o material sensível, temos o que Kant chama de a forma da intuição pura, que é constituída pelo espaço e pelo tempo. Espaço e tempo vêm do sujeito sendo, portanto, a priori, ou seja, intuições puras necessárias e universais.

   O espaço é para Kant único e infinito, assim como o tempo, o que significa que ele aceita uma versão da concepção newtoniana do espaço e do tempo.[14] Espaço e tempo são intuições (Anschauungen) não conceituais, subjacentes aos objetos dos quais temos conceitos. O espaço é uma intuição subjacente aos objetos externos porque, segundo Kant, podemos imaginar que eles desapareçam todos, mesmo assim permanecendo o espaço. E o mesmo acontece com o tempo. Ele rejeitou com isso a concepção leibniziana de espaço e o tempo, segundo a qual eles existem como entidades relacionais objetivas e dependentes das coisas e de suas qualidades. Para Leibniz se fizermos os objetos desaparecer um a um de modo completo, o espaço e o tempo também desaparecerão, o que parece ser intuitivamente muito mais aceitável.

   O espaço é o que Kant chama de a forma da intuição externa, de modo que todas as sensações nos parecem extensas. Como as formas geométricas se dão no espaço isso justifica o caráter sintético a priori da geometria. Quanto ao tempo, ele é a forma da intuição interna, de modo que todas as sensações se dão no tempo. Como ao contarmos séries numéricas precisamos de tempo, o que para ele justifica o caráter sintético a priori da aritmética e da matemática em geral.

 

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Crítica. Em sua História da Filosofia Ocidental Bertrand Russell fez algumas bem colocadas objeções aos argumentos de Kant em defesa da transcendentalidade do espaço e do tempo. Ele observou que não temos nenhuma ideia do que sejam as intuições do espaço e do tempo infinitos ou subjacentes aos objetos: não somos capazes, após retirarmos todos (realmente todos) os objetos, de conceber um espaço vazio, como Kant pretendeu. Kant também deixa inexplicada a razão de organizarmos as intuições do espaço de uma maneira e não de outra. Como Russell observou:

 

O que me induz a arranjar os objetos da percepção como eu faço e não de outra maneira? Por que, por exemplo, eu sempre vejo as pessoas com os olhos sobre as suas bocas, e não debaixo delas? De acordo com Kant (...) nada nas coisas corresponde aos arranjos que existem em nossa percepção.[15]

 

Note-se que isso vale para todo o material sensível conceptualizado pelo entendimento: nossa comum escolha dos mesmos arranjos de objetos fica inexplicada. A mesma coisa podemos dizer acerca do tempo. Vemos o raio e depois de alguns segundos ouvimos o trovão; mas sabemos que o raio e o trovão ocorrem de modo praticamente simultâneo. Como explicar essa simultaneidade se ordenamos as intuições temporais internamente como aparências sensíveis conceptualizadas? Se considerarmos esses dois exemplos parece que o acontecer, a organização espacial e a ordem temporal dos fenômenos, dependem e não dependem do sujeito. Dependem então da coisa em si? Mas se dependessem dela então ela e o pretenso mundo noumênico já se tornariam espaço-temporais.

   Considerando, com pouca alteração, um outro exemplo de Russell,[16] imagine que você ouve uma pessoa fazendo uma pergunta; a fala dela é anterior à sua audição, da qual se segue a sua réplica, após a qual vem o ouvir da pessoa no mundo objetivo da física. Essa ordem temporal não é determinada por você, o que parece demonstrar a objetividade e independência do tempo físico. Esse exemplo também ilustra a impossibilidade kantiana de trazer o mundo público, no qual as pessoas interagem umas com as outras, para dentro do espaço e tempo supostamente subjetivos. A intersubjetividade da experiência é um problema para Kant. Como John Searle uma vez notou: “Como é a publicidade possível? Como é possível que eu e você vejamos a mesma aparência? Ou talvez não possamos?[17]

   Apesar de todo o maquinário conceitual construído por Kant, a estética transcendental nada tem de convincente. Como pode o sujeito da experiência determinar o espaço e o tempo físicos, se essas entidades claramente não dependem dele? A física moderna não teria descoberto que onde há corpos materiais massivos o espaço físico segue uma geometria elíptica se o espaço fosse imposto pelo sujeito como a forma da intuição sensível.

   Há certamente um espaço dependente da mente, constituído por imagens mentais dadas na percepção ou produzidas pela imaginação, assim como uma consciência psicológica do passar do tempo. Mas esses não são nem o espaço medido por fitas métricas, nem o tempo contado pelos relógios, mas fenômenos psicológicos secundários, que não passam reflexos nem sempre confiáveis de espaços e tempos físicos, dos quais dependem até mesmo para se tornarem em algum sentido mensuráveis. A argumentação kantiana parece apoiar-se em uma confusão do espaço e tempo psicológicos secundários com o espaço e o tempo reais dos quais eles dependem.

 

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Analítica. Passemos agora à segunda parte da Crítica, a analítica transcendental. Assim como a estética transcendental tinha a ver com as intuições sensíveis, a analítica transcendental tem a ver com conceitos do entendimento. Como já fiz notar, para Kant intuições e conceitos são complementares, pois intuições só se tornam cognitivamente acessíveis quando conceptualizáveis e conceitos não ancorados em intuições nada nos dizem. Como ele com boas razões escreveu:

 

As intuições sem os conceitos e os conceitos sem as intuições não produzem conhecimento. Os conceitos sem as intuições são vazios e as intuições sem os conceitos são cegas.[18]

 

O objetivo original da analítica transcendental é, através da revolução copernicana, provar a verdade necessária e universal das leis da natureza, como as grandes descobertas feitas pela física de Newton, que Kant ainda podia considerar verdades absolutas. Para ele isso só é possível se o intelecto puder impor suas leis ao mundo tal como ele nos aparece (como fenômeno) e não tal como ele é em si mesmo (como noumenon). Assim, o intelecto precisa impor suas leis à experiência. Contudo, o caminho que para Kant conduz a isso é muito mais encarpado do que um leitor desprevenido é capaz de imaginar.

   A atividade do entendimento não é mais a de intuir, mas a de formar juízos sobre o que é dado à sensibilidade. O trabalho dos juízos é o de unificar a experiência formando sínteses a partir das intuições sensíveis.  As classes mais gerais de predicados através das quais o entendimento sintetiza a experiência são formadas por “superconceitos puros” que são as categorias kantianas, com as quais ele pretendeu substituir as categorias de Aristóteles. Uma diferença é que enquanto para Aristóteles as categorias pertenciam ao domínio do ser, ou seja, da realidade objetiva (legis entis), as categorias de Kant pertencem ao domínio do sujeito (legis mentis), dado que é ele quem às impõe ao mundo da aparência fenomênica. Outra diferença é que enquanto em Aristóteles as categorias parecem ter sido estabelecidas de maneira meramente rapsódica, Kant pretende tê-las feito derivar de uma tábua dos juízos herdada da lógica clássica, seguindo o que chamou de dedução metafísica das categorias.

   As categorias ocupam na analítica o mesmo lugar que o espaço e o tempo na estética. A estética tratava das formas a priori de toda a sensibilidade. A analítica trata das leis a priori que estruturam todo o pensamento. Para serem intuídas as coisas precisavam ser submetidas às formas da intuição sensível. Mas para serem pensadas elas também precisam ser submetidas às leis do pensamento. No que se segue apresento a tábua dos juízos tal como ela foi proposta por Kant, seguida das categorias que neles se encontram incorporadas:

 

ESQUEMAS:            JUÍZOS:                   CATEGORIAS:

                                   universal                  unidade

Quantidade                particular                  pluralidade

                                  singular                     totalidade

 

                                  afirmativo                 realidade

Qualidade                  negativo                    negação

                                  Infinito                      limitação

 

                                  categórico                  substância/acidente

Relação                     hipotético                   causa/efeito

                                  disjuntivo                   ação recíproca

 

                                  problemático              possibilidade/impossibilidade

modalidade               assertórico                  existência/inexistência

                                  apodítico                    necessidade/contingência

 

As categorias são conceitos gerais que se encontram implícitos em tudo o que pensamos. A ideia de extrair conceitos fundamentais das formas dos juízos é importante, ainda que seu desenvolvimento seja questionável nos detalhes. Exemplos podem mostrar como isso funciona. Digamos que eu faça o seguinte juízo: “Essa rosa é vermelha”. Trata-se de um juízo singular, afirmativo, categórico e assertórico. De modo correspondente, as categorias aplicadas são respectivamente as de totalidade (trata-se de um todo), realidade (o referente é real), substância (a rosa), acidente (é vermelha), e existência (a rosa existe). Considere agora o juízo: “Se um metal é aquecido então ele se expande”. Aqui o juízo é hipotético e a categoria de causalidade é aplicada, além das categorias de unidade, causalidade, realidade e existência. Há arbitrariedades evidentes, como o fato de que os juízos singulares e universais poderiam conter inversamente as categorias de unidade e pluralidade. Além disso, a simetria das tríades é uma invenção demasiado suspeita.

   Não satisfeito com a dedução metafísica (quid factum) da tábua das categorias, Kant decidiu apresentar uma dedução transcendental (quid juris) capaz de demonstrar que as categorias são condição necessária para a possibilidade da experiência enquanto tal. Essa dedução é a parte mais indevassável da Crítica e seu estudo já foi comparado à travessia do grande deserto árabe... Vou resumir o que me pareceu mais essencial.

   Tudo começa com a observação de que nosso entendimento opera através de sínteses que se iniciam pela combinação do múltiplo dado na intuição. Isso é bem exemplificado na síntese da apreensão do múltiplo, que é seguida de sua reprodução ou retenção na imaginação e de sua posterior recognição como sendo o mesmo. As sínteses inevitavelmente envolvem a aplicação dos juízos e respectivas categorias. Além disso, meu conhecimento não é constituído de elementos separados entre si, mas forma um todo unitário. Sou consciente dessa união através do que Kant chamou de unidade sintética da apercepção (autoconsciência), que não é empírica, mas transcendental. Trata-se da forma de autoconsciência já identificada no próprio “eu penso” cartesiano. Se não fosse capaz disso eu não seria capaz de experienciar nada como pertencente à minha própria consciência, disso resultando uma fragmentação da consciência. Como ele escreve:

 

O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações (...) uma vez que as múltiplas representações presentes em determinada intuição não seriam minhas se não pertencessem todas à minha autoconsciência. De outro modo o meu eu seria tão vário e colorido quanto são as representações que formo.[19]

 

Esse eu apreendido no “eu penso” não pode, porém, ser um eu empírico humiano, pois esse último é um eu multicor, constituído por feixes de intuições que se sucedem rapidamente umas às outras, sendo diverso a cada nova experiência. O eu pensante tem de ser um único. Ele está para Kant sempre acima e além da experiência, uma vez que nada do que é dado à experiência empírica pode lhe pertencer.

   O eu pensante da apercepção transcendental é um “Eu transcendental”, um X noumênico cuja assunção é uma necessidade lógica para que possamos ter a consciência de nossas sínteses como pertencentes a um único sujeito da experiência. Esse X noumênico precisa ser também uma atividade aperceptível sintetizadora do múltiplo da intuição sensível e fonte da ordem objetiva da natureza. A unidade sintética da apercepção daí decorrente é necessária à aplicação das categorias porque os juízos só são plenamente reconhecidos quando são integrados na unidade de uma consciência. Finalmente, como o eu pensante realiza as sínteses do entendimento só através de juízos e como os juízos contém as categorias, todo nosso conhecimento demanda a aplicação das categorias.

 

 

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[[[[   A sugestão de que o eu possa ser comparado a uma comunidade pode ser interpretada como sendo a do eu como algo que somos capazes de conhecer pela progressiva formação de uma autoimagem, entendida como a ideia que fazemos de nós mesmos. Uma pessoa não pode ter acesso imediato a tudo aquilo que caracteriza o seu eu, pois isso é impossível: os traços característicos do eu são múltiplos e disposicionais, só emergindo sob circunstâncias específicas, as quais variam de acordo com cada traço. Mas uma pessoa pode aprender sempre mais acerca de si mesma. Ela pode ter a experiência reflexiva de seus estados mentais e paralelamente a isso identificar suas reações comportamentais diante de circunstâncias que se repetem. Ela também pode comparar essa experiência com os comportamentos e supostos estados mentais de outras pessoas em circunstâncias similares. E pode, comparativamente e aos poucos aprender quais são as características de si mesma como sujeito, em contraste com as de outras pessoas. A auto-imagem que a pessoa dessa maneira cria deve ser a de uma classe (comunidade) de propriedades mentais cujos membros não precisam ser definitivos e se encontram mais ou menos interconectados. Também pode ser que uma pessoa forme uma auto-imagem distorcida de si mesma e isso parece ser bastante frequente. Nesse caso outras pessoas, analisando seu comportamento e comparando com os próprios e os de outros, poderão chegar a conclusões até mesmo mais corretas do que as que ela tem sobre si mesma.]]]

 

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A ilusão do grande Eu. Quero agora expor uma maneira de reconstruir o insight de Kant de maneira a lhe retirar a questionável postulação de um Eu transcendental noumênico e postar esse Eu em um nível mais propriamente empírico.

   Quando Kant escreveu sobre o eu empírico ele tinha em mente o “feixe de percepções que se sucedem com rapidez vertiginosa” de Hume.   Contudo, já vimos que há uma outra espécie pouco lembrada de eu empírico humiano, o “eu comunitário”, que é a de algo similar a uma comunidade organizada de estados mentais (perceptos para Hume) da qual entram e saem membros, mas que nem por isso deixa de ser a mesma (ver cap. XI, sec. 15). Uma pessoa pode aprender a se conhecer como o repositório desses traços mentais geralmente disposicionais. E até mesmo outras pessoas podem descobri-los nela por analogia com o que a elas mesmas acontece. Se isso for aceito então o acesso que uma pessoa tem a esse eu comunitário é forçosamente segmentado, pois ela só tem a experiência de si mesma como possuindo certos traços psicológicos (digamos, ser corajosa) em contextos nos quais esses traços se manifestam (ela demonstra coragem em seu comportamento) e nos quais outras pessoas sejam capazes de lhe atestar esses traços psicológicos em virtude de seu comportamento.

   Aqui alguém poderia objetar: o que tem isso a ver com o “eu penso” kantiano, que acompanha todas as minhas representações? A consciência de um Eu transcendental não é de uma experiência de traços mentais egóicos. Afinal, tudo o que preciso saber é que sou um algo único que está ativamente pensando, experienciado, nada de específico se passando em minha mente...

   A resposta razoável é que uma pessoa é perfeitamente capaz de ganhar consciência de seu eu-comunitário como aquilo que acompanha todas as suas representações sem precisar tomar consciência de sua constituição, simplesmente por ter a consciência de possuir uma auto-imagem de seu eu comunitário. Uma vez que a pessoas já desenvolveu essa auto-imagem, ela já possui uma autoconsciência superior (a consciência de que tem autoconsciência), que não requer a atualização das representações dos traços mentais que constituem seu eu, o que já basta para justificar sua consciência de que um mesmo “eu” acompanha todas as suas representações. Na verdade, não há nada de especial nisso, pois temos consciência de muita coisa que não precisamos ou mesmo que não podemos atualizar. Exemplos: sei que é noite porque jantei há algumas horas, sei que convidei seis pessoas para jantar, mas não me lembro de quem era a sexta pessoa.

   Uma consequência dessa solução é que um sujeito incapaz de introspecção, um recém-nascido, um animal, não será capaz de ter a consciência cartesiana de si mesmo demandada por Kant. Para que eu me pense presentemente como um eu pensante é preciso que antes já tenha ganho algum conhecimento de meu eu-comunitário, ou seja, dos traços psicológicos reiteráveis mais característicos de mim mesmo.

   Temos agora um triplo conceito de eu empírico:

 

(i)             o eu humiano fugaz entendido como “o feixe de percepções que se sucedem” (Hume);

(ii)           o eu-comunitário (também sugerido por Hume), entendido como um conjunto mais ou menos organizado de traços mentais reiteráveis cuja conhecimento permite a formação de uma auto-imagem que deve servir a uma autoidentificação.

(iii)         a consciência que uma pessoa tem de si mesma como um sujeito que possui (ii) sem que para isso ela precise atualizar características de (ii) em sua memória.

 

A minha tese é que o sentido (iii) é o do “Eu” que acompanha todas as minhas representações, o eu cartesiano. Ele nada mais é do que a consciência que tenho de (ii) sempre que penso em mim, sem considerar qualquer representação. E minha sugestão é que Kant tomou o sentido (iii) como sendo a indicação de um eu transcendental de algum modo implicado pela unidade da apercepção.

   Com isso temos em princípio explicada a suposta diferença entre o eu empírico e o Eu transcendental entendido como o X que acompanha todos os meus pensamentos. O eu empírico fugaz considerado por Kant é (i). Mas o que ele pretende que seja o “Eu” do “eu penso”, responsável pela unidade transcendental da autoconsciência, não é mais do que (iii), ou seja, a simples consciência de ordem superior, uma metaconsciência que possuo de que tenho um eu comunitário do qual já tive as mais variadas introspecções parciais sem que para isso precise atualizar sua auto-imagem. Com isso o Eu transcendental noumênico passa à categoria de ilusão. Retornarei a esse ponto ao discutir Fichte, um filósofo que se comprometeu até o pescoço com o ilusório Eu transcendental.

 

 

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Causalidade. Na parte seguinte da Crítica, em suas analogias da experiência, Kant buscou explicitar os princípios reguladores que subjazem à descoberta das leis empíricas da física newtoniana. Contudo, seus argumentos também são aqui abertos à contestação. Por exemplo, na segunda analogia ele tentou demonstrar seu princípio sintético a priori de que a causalidade é condição necessária a toda a experiência pelo fato de que a ordem subjetiva das percepções é reversível enquanto a ordem objetiva é irreversível. Disso ele concluiu que a ordem das nossas percepções é como tal necessária, o que confirma que as mudanças apropriadas no objeto precisam ser causalmente determinadas. Mas a conclusão de que porque a ordem das percepções é irreversível ela é necessária é um salto perfeitamente arbitrário. Um dia se sucede, irreversivelmente, a uma noite, mas essa irreversibilidade nem é necessária nem sequer causal. E nada garante a irreversibilidade do que é dado à experiência, tanto quanto para Hume nada garante a causalidade. É curioso que um argumento por essência tão frágil tenha dado lugar a tanta discussão.[20] Considere as ocorrências que se dão em um cenário cético, como o do sonho ou da alucinação. Elas são reversíveis, dado que a suposta ordem causal pode em tal cenário ser arbitrariamente alterada. Kant rejeitava o apelo a hipóteses céticas porque sabia que elas seriam desastrosas para seu sistema.

 

   Uma alternativa mais promissora para salvar o princípio da causalidade seria apelarmos ao mesmo artifício que recorremos com respeito ao princípio de que o futuro será semelhante ao passado (ver cap. XI, sec. 9): enfraquecer o princípio. Suponhamos que o princípio:

 

PC:  Todo evento é causado

 

seja substituído pelo princípio minimalista:

 

          PC1: Algum evento é causado.

 

Não há dúvida que para que possamos ter qualquer conhecimento do mundo, a versão minimalista precisa ser aceita. Afinal, até mesmo nossa atividade perceptual é causal. A segunda formulação é analítica, pois sua negação como “Nenhum evento é causado” é contraditória. Afinal, que aplicação poderíamos dar sentido à noção de evento se nada é causado? Assim, sem abandonar a assunção da analiticidade podemos tornar a segunda versão do princípio mais forte como:

 

PC*: Para que possamos obter conhecimento do mundo empírico, ao menos um número suficiente de eventos precisa ser causado.

 

Admitindo que possuímos realmente conhecimento do mundo, então esse princípio precisa ser analítico. Afinal, negá-lo afirmando que podemos obter conhecimento do mundo empírico sem que um número ao menos suficiente de eventos seja causado parece inconsistente. Embora demande elaboração esse argumento aponta para um caminho transitável.

   Um outro argumento frágil é a suposta refutação do idealismo. De acordo com ela, a experiência interna só é possível pela experiência externa. Logo, se tenho consciência de minhas próprias experiências é porque há objetos exteriores a mim... além disso, a percepção de minha existência no tempo só é possível sob a assunção da existência de algo fora de mim. O problema com esse argumento é que ele também não resiste a hipóteses céticas: um gênio maligno não teria dificuldade alguma em produzir em nós experiências internas como se fossem externas em espaço e tempo aparentemente objetivos.

 

 

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Contra o noumenon. Há maneiras mais fortes e mais fracas de se interpretar a Crítica. Segundo a interpretação mais forte, a unidade transcendental da consciência deve ser entendida como um Eu transcendental que é a pura atividade sintetizadora que serve como fonte da ordem objetiva da natureza. Espaço, tempo e categorias são vistos como puramente subjetivos. A coisa em si (o domínio noumênico) seria algo incognoscível, mas existente e real (somos “uma ilha no oceano noumênico” segundo Kant). De acordo com essa interpretação tradicional nós somos literalmente os legisladores da natureza tal como ela nos aparece.[21]

   Essa maneira de ver torna o sistema da Crítica incoerente: a coisa em si passa a ser tratada como objeto de aplicação da categoria causalidade e mesmo das categorias de realidade e existência. Ela é vista como algo real a causar os estados fenomenais. Todavia, a coisa em si não é espaço-temporal e as categorias foram feitas para serem aplicadas ao mundo fenomênico espaço-temporal de modo a garantir a aplicabilidade de nossos juízos sintéticos a priori.

   Diante desses problemas, a maneira de salvar o sistema da Crítica de inconsistências parece ser optar por interpretações mais fracas.[22] Segundo essas interpretações, o texto de Kant poderia ser reduzido a uma detalhada análise do conceito de experiência. Sob essa perspectiva, mais epistêmica, o conceito de unidade transcendental da consciência passa a dizer respeito à condição lógica de possibilidade do trabalho de síntese. O conceito de coisa em si, por sua vez, torna-se um mero conceito limitador.

   A interpretação fraca encontra dificuldades textuais: Kant escreve que os nossos sentidos são afetados pelos objetos... Isso parece envolver a ideia de que objetos noumênicos são de fato capazes de causar as sensações. Por certo, o intérprete é livre para expurgar da crítica elementos secundários e problemáticos. Ele poderá dizer que a coisa em si é o inseparável correlato do fenômeno, existindo assim como o outro lado de uma mesma folha de papel, o lado que não podemos ver! O noumenon é “a coisa que aparece sem o seu aparecer.” O problema é que essas metáforas não parecem resgatáveis: o outro lado da folha de papel pode ser visto e descrito, a coisa em si não. Como notou Wittgenstein, o conceito de fronteira exige que sejamos capazes de pensar o que está do outro lado dela. O conceito de um limite que só contém o lado de cá é incoerente. E falar da coisa que aparece à parte o seu aparecer é pura retórica. Conclusão: se em uma interpretação forte o conceito de coisa em si mesma era incoerente, em uma interpretação fraca ele é ininteligível.

 

 

 

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Regras conceituais. Na seção da Crítica intitulada ‘analítica dos conceitos’ Kant deu uma importante contribuição à filosofia sobre a qual vale a pena chamarmos atenção. Para ele os conceitos são capacidades para classificar e ajuizar, de modo que ele os via como habilidades governadas por regras. Como você deve estar lembrado, os empiristas tendiam a interpretar conceitos como imagens mentais reprodutoras de impressões sensíveis. Essa maneira de ver sempre foi problemática. Afinal, para identificar uma imagem parece que precisamos presumir seu conceito. Além disso há conceitos que não parecem demandar imagens... Com a noção de conceito como envolvendo essencialmente a noção de regra esse problema desaparece. As regras conceituais possuem critérios de aplicação que podem evidentemente demandar a construção de imagens, mas agora de forma inteiramente flexível. Por exemplo: se defino o conceito de triângulo como “a figura plana fechada formada por três semirretas que se tocam em suas extremidades”, tenho uma regra cujos critérios de aplicação me permitem formar imagens de triângulos retângulos, equiláteros, isósceles e escalenos. Não caio assim no problema supostamente criado por Locke de imaginar um triângulo que é tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Outro exemplo pode ser dado pelo conceito de cadeira. Posso defini-lo como “um artefato constituído de um banco não veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez”. A regra aqui expressa nos permite identificar cadeiras de balanço, cadeiras de rodas, cadeiras elétricas, poltronas e tronos como satisfazendo seus critérios. Mas coisas como sofás (onde mais de uma pessoa pode se sentar), assentos de carro e de avião (veiculares), cadeiras esculpidas pelo vento na rocha (não são artefatos) são excluídas dos critérios da regra conceitual.

   Na continuação da analítica Kant percebeu que os conceitos puros do entendimento e as intuições sensíveis deveriam ser completamente heterogêneos. Faz-se necessária uma ponte que ligue as categorias às intuições fenomênicas, permitindo sua aplicação. Essa ponte precisa ser algo homogêneo tanto às categorias quanto à intuição fenomênica, que pare ele é o tempo. Trata-se aqui do que Kant chamou de esquematismo. Para cada categorias deve haver um esquema temporal próprio, por exemplo: para a categoria de substância temos a permanência no tempo (substância é o que permanece o mesmo); para a categoria de causa e efeito temos a sucessão temporal do múltiplo segundo uma regra; para a categoria de ação recíproca temos a simultaneidade temporal; para a categoria de realidade temos a existência de um objeto no tempo; para a categoria de necessidade temos a existência de um objeto em todos os tempos.

   É interessante compararmos aqui o esquematismo de Kant com a ideia defendida por Michael Dummett[23] e retomada por Ernst Tugendhat[24], segundo a qual conceitos são basicamente regras criteriais pelas quais (através de termos gerais) identificamos propriedades ou (através de termos singulares) identificamos indivíduos. Essas regras criteriais podem demandar a formação de elementos espaço-temporais imagéticos como critérios de sua aplicação.

 

 

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Ideias da razão. Chegamos, por fim, à dialética transcendental. Seu objeto de estudo é a atividade da razão. A razão é a capacidade de relacionar juízos fazendo inferências. O objetivo de Kant é duplo: investigar a razão em si mesma e investigar os usos ilusórios da razão.

   A razão pura em si mesma se constitui para Kant no esforço de unificar o conhecimento associando sequências de juízos introduzidos em raciocínios silogísticos na busca de sínteses cada vez mais amplas, com o objetivo último e inatingível de unificar toda a experiência. A razão procura uma explicação última para tudo e faz isso guiada pelo que Kant chamou de ideias transcendentais da razão. Essas ideias da razão são conceitos diretivos, ou seja, conceitos que não possuem objeto dado na intuição sensível, alcançando apenas o nível do entendimento, mas que tem a função de orientar o raciocínio.

   As ideias da razão são arranjadas em três classes:

 

A primeira contendo a unidade absoluta (não-condicionada) do sujeito pensante; a segunda a unidade absoluta da série das condições da aparência; a terceira, a unidade absoluta da condição de todos os pensamentos em geral.[25]

 

Essas ideias da razão são respectivamente as da Alma, Mundo e Deus, usadas em sentido técnico. A ideia de alma orienta o raciocínio em direção a uma unidade absoluta que só poderia ser preenchida por um sujeito incondicionado noumênico que está além da esfera da experiência possível. Seu modelo de raciocínio (segundo Kant) seria o do silogismo categórico: “Todo M é P, Todo S é M; logo, todo S é P”. A ideia do mundo orienta o raciocínio em direção à unidade formada por um incondicionado noumênico objetivo também situado além da experiência possível. Seu modelo de raciocínio seria o do silogismo hipotético: “Se A então B, A é dado; logo: B”. E a ideia de Deus orienta os raciocínios em direção a uma unidade absoluta, a qual seria um incondicionado noumênico determinante tanto do mundo quanto da alma. Ela dependeria do silogismo disjuntivo: “A ou B, não-A; logo: B”.

   Como chegamos a essas ideias da razão? A resposta é: pela tentativa de tornar as premissas absolutas. Sempre que raciocinamos precisamos de premissas. Mas as conclusões só serão verdadeiras se as premissas também o forem. Mas então precisamos de novos raciocínios, novas inferências para justificar essas premissas e assim por diante... A razão procura uma base absoluta para as premissas, o incondicionado, mesmo que nunca possa encontrá-lo. Eis um exemplo exposto por Kant em um silogismo:

 

Todos os homens são mortais.

Todos os scholars são homens.

Logo: todos os scholars são mortais.

 

A conclusão se segue da premissa maior e da menor. Mas podemos nos perguntar pela razão da premissa maior, considerando-a como a conclusão de um pró-silogismo:

 

Todos os animais são mortais.

Todos os homens são animais.

Logo: todos os homens são mortais.

 

Com isso unificamos juízos como “Todos os elefantes são mortais” e “Todos os répteis são mortais”.

   Contudo, podemos ainda prosseguir submetendo a premissa “Todos os animais são mortais” a um processo similar, exibindo-a como a conclusão de um pró-silogismo cuja premissa maior seja “Todos os seres vivos são mortais”, com o que unificaremos uma gama ainda maior de juízos.

   A razão, diversamente do entendimento, não produz juízos. Mas ela conecta os juízos uns aos outros em um processo de justificação que não tem fim. A máxima lógica da razão é proceder “sempre mais para cima” em busca de unificações cada vez maiores, progredindo sempre em direção a uma suposta premissa que não seja condicionada por nenhuma outra. A razão busca sempre o incondicionado, mas tudo o que ela encontra é o condicionado, uma vez que o incondicionado jamais poderá ser dado à experiência. Daí o lamento de Novalis: “Buscamos por toda parte o incondicionado e encontramos somente coisas” (Wir suchen überall das Unbedingte und finden immer nur Dinge“).

   É interessante lembrar aqui que Karl Popper aplicou a sugestão de um conceito diretivo à ideia de uma verdade absoluta. Para ele teorias científicas com o mesmo escopo podem ter maior ou menor verossimilhança com relação a um ideal de verdade absoluta.[26] Assim, a teoria da gravitação na relatividade generalizada tem maior verossimilhança com o ideal de verdade absoluta do que a teoria newtoniana da gravitação. Afinal, apesar de possuírem o mesmo escopo, a primeira explica a deflexão da luz pelos campos gravitacionais, a precessão exata de Mercúrio, etc., o que a teoria newtoniana não é capaz. Mas, como Popper observou, mesmo que chegássemos pela ciência à verdade absoluta, não seríamos capazes de identificá-la como tal, uma vez que não poderíamos saber se novas experiências não nos forçariam outra vez a questioná-la.

 

 

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Existência. Chegamos agora à parte negativa da dialética, a crítica das ilusões da razão constitutivas do que Kant considerava uma metafísica dogmática. Para ele as ideias da razão não são nem derivadas da experiência, como pensaria um empirista, nem são representações da coisa em si, como poderia ter pensado um racionalista. Dentro do escopo da razão pura as ideias de alma, mundo e Deus tem como única função unificar juízos, sem serem capazes de se referir a absolutamente nada. É nesse ponto que entram em questão as ilusões da razão. Por não atentar para essa função meramente diretiva e por tratar as ideias da razão como se elas fossem conceitos ordinários referindo-se a coisas em si ou a fenômenos, filósofos foram induzidos a realizar investigações equivocadas sobre a existência da alma, da origem do mundo e da existência e natureza de Deus.

   Para Kant a psicologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de alma, como se nos fosse possível conhecer um eu absoluto como objeto noumênico. No tocante à ideia de alma, a razão produz um paralogismo que consiste em considerar o “eu penso” unificador da consciência como se ele fosse um substrato unificador substancial acessível à experiência. Contudo, a categoria de substância só pode ser aplicada aos dados sensíveis, mas nunca ao sujeito de todo o pensamento. A cosmologia especulativa produz ilusões sobre a ideia do mundo, como se fosse possível conhecer a coisa em si como fenômeno. E a teologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de Deus, como se fosse possível conhecer a causa noumênica, tanto do sujeito quanto do objeto fenomenal.

   Não pretendo discutir aqui em qualquer detalhe os argumentos de Kant com respeito às ilusões da razão. Quero considerar apenas a famosa crítica feita por ele ao argumento ontológico de Anselmo para provar a existência de Deus, uma vez que ela está na origem da mais importante linha de pensamento com respeito ao conceito de existência. Segundo esse argumento, Deus, por ser o que de maior pode ser pensado, precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós iríamos nos contradizer acreditando sermos capazes de pensar algo maior do que o que de maior pode ser pensado (cap. IV, sec. 6).

   Para Kant o problema com o argumento se encontra no fato de que a existência não é um predicado. Por isso a atribuição de existência não adiciona nada ao conceito: a existência de uma nota de 100 táleres nada adiciona ao conceito de 100 táleres.[27] Não é muito acertado, porém, dizer que a existência não é um predicado. Mais apropriado é dizer que a existência é algo como um predicado de ordem superior. Gottlob Frege, no final do século, XIX percebeu isso. Para ele a existência é a propriedade de uma função conceitual (conceito) de que sob ela cai ao menos um objeto. Por exemplo, quando digo que a Lua da terra existe, estou dizendo que ao menos um objeto cai sob o conceito de Lua da terra.[28] Como a função conceitual ou conceito já é uma propriedade, a existência passa a ser aqui uma propriedade de segunda ordem, uma propriedade-propriedade. Melhor dizendo: ela é uma propriedade de certas propriedades que atribuímos predicativamente ao objeto.

   Posso esclarecer melhor o que acabei de dizer usando um mínimo de lógica predicativa.[29] Considere o enunciado: “Gatos existem”. Esse enunciado pode ser lido como “Existe ao menos um x, tal que x é um gato”, ou ainda: “Ex (Fx)”, onde ‘E’ = existe e ‘F’ = gato. O ‘F’ entre parêntese designa a propriedade de x de ser um gato. E o quantificador existencial ‘E’ tem como objeto a propriedade F de x, sendo por isso mesmo uma propriedade de segunda ordem de x, ou seja, uma propriedade-propriedade.

   Acredito ser possível corrigir e aprofundar essa análise com base em Kant, Michael Dummett e Ernst Tugendhat. Kant foi o primeiro a pensar conceitos em termos de regras. Dummett interpretou os sentidos (Sinne) fregeanos como regras criteriais. Tugendhat deu nome aos bois: o sentido do termo singular é sua regra de identificação, o sentido do termo geral é sua regra de aplicação. Para simplificar chamarei aqui ambas de regras conceituais.

   Para Frege um predicado exprime um sentido que, por sua vez, deve ter como referência o conceito sob o qual podem cair objetos. Frege nunca conseguiu explicar o que seria o sentido de um predicado. Por isso desvio-me aqui de Frege seguindo o entendimento mais natural, segundo o qual o sentido do predicado é o próprio conceito por ele expresso, a própria função conceitual, a regra conceitual do predicado, sendo a sua referência um particular entendido como uma propriedade espaço-temporalmente localizável (tropo) do objeto referido pelo termo singular no caso de enunciados do tipo Fa, ou seja, enunciados predicativos singulares.

   Esse entendimento nos sugere que a existência nada mais é do que uma propriedade da regra conceitual expressa por um predicado, qual seja, a propriedade de sua garantida aplicabilidade.[30] Seguindo esse entendimento, com relação à regra de identificação podemos, aplicando a lógica predicativa, dizer “Sócrates existe” inventando o verbo ‘socratizar’ ou S para nomear a regra de identificação de Sócrates. Assim, dizer que Sócrates e somente um Sócrates existe é o mesmo que dizer “Ex (Sx & (y) (Sy → y = x))”, onde S exprime a regra conceitual de identificação para Sócrates e E nos diz que essa regra é efetivamente, garantidamente aplicável. O mesmo pode ser dito de regras de aplicação de predicados. Como dizemos que Sócrates é tagarela dizendo que a regra conceitual de aplicação do predicado ‘...é tagarela’ se aplica a Sócrates? Ora, ao invés de “Ta” (a = Sócrates, T = tagarela) teremos de dizer “Ex (Sx & (y) (Sy → y = x) & Tx)” (Existe somente um algo que é Sócrates e ele é tagarela).

   Com a expressão ‘efetiva ou garantida aplicabilidade’ não quero dizer a mera possibilidade de aplicação, mas uma aplicabilidade que pode ser tida como certa, dadas as condições adequadas. Ou seja: se forem dadas as condições adequadas e o agente quiser aplicá-la, ele inevitavelmente a aplicará. Isso é importante para desambiguar: dizer que a existência é a efetiva ou garantida aplicabilidade da regra de atribuição de um predicado exclui a ideia de que essa aplicabilidade seja meramente hipotética. Essa é o que considero uma mais adequada paráfrase da sugestão fregeana de que a existência é a propriedade de um conceito de que ao menos um objeto cai sob ele.

   A aplicabilidade pode ser garantida por verificação direta (ex: “O cavalo no estábulo existe porque eu o vi”), mas também por sua coerência com outros enunciados (“Como essa é uma escola de equitação, eles devem ter cavalos no estábulo”). Note-se que para a efetivação de um juízo de existência é necessário que existam sujeitos epistêmicos capazes de aplicar a regra quando postados em situações adequadas. Mas a existência enquanto tal não é o mesmo que o juízo de existência. Assim, mesmo que o juízo de existência não seja efetivado, as coisas não deixam de existir. Daí que a existência não é um conceito antropomórfico. Não é necessário sequer que as regras conceituais em questão existam. O importante é que, caso elas existam e caso existam agentes cognitivos que queiram aplicá-las e que estejam em situações adequadas para aplicá-las, elas se demonstrem garantidamente aplicáveis.

   Uma objeção importante à sugestão acima se encontra na ideia de que se considerarmos a existência como a propriedade de uma regra conceitual parece que ela é algo que se encontra flutuando acima e além do objeto do qual afirmamos existência. A resposta consiste em inverter o modo de exposição. Podemos igualmente considerar a existência como uma propriedade disposicional do objeto, qual seja, a meta-propriedade de um objeto de ter a sua regra conceptual de identificação garantidamente aplicável a si mesmo, uma vez dadas as condições adequadas. Há objetos que não possuem essa meta-propriedade disposicional. Eles são os objetos meramente concebidos ou imaginados. Por exemplo, a Torre de Babel. Mas outros objetos, como a Pirâmide de Quéops, possuem essa propriedade. A pirâmide de Quéops possui a propriedade de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesma. Por isso dizemos que a Torre de Babel não existe, enquanto a pirâmide de Quéops existe. Nesse caso a existência passa a ser a propriedade de um objeto pertencente a certo domínio, de ter a sua regra de identificação garantidamente aplicável a ele. Entendida dessa maneira a concepção da existência como uma propriedade de ordem superior se torna bem mais aversa a objeções.

   Certamente, em um contexto ficcional a Torre de Babel será considerada um objeto existente, pois esse objeto ficcional possui a disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesmo como encontramos escrito no contexto bíblico (estou considerando a Bíblia como um texto ficcional). Com isso explicamos também porque podemos dizer que tudo existe, uma vez que qualquer coisa concebível pode enquanto tal possuir a disposição de ter sua regra conceitual de identificação garantidamente aplicável a si mesma. E com isso explicamos até mesmo porque podemos dizer que a própria existência existe. É que a disposição da aplicabilidade das regras de terem uma regra de identificação de ordem superior garantidamente aplicável a si mesmas também é dada.

 

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Ética kantiana. A presente exposição do pensamento kantiano restará incompleta se não considerarmos ideias e conclusões de sua crítica da razão prática. Para Kant, assim como existe uma razão pura teórica, existe também uma razão pura prática, que tem por objetivo investigar o que existe de sintético a priori na determinação das decisões e ações humanas.

   Tudo o que Kant rejeitou em sua crítica da razão pura teórica ele passou a aceitar em sua razão pura prática. E o que ele critica aqui é a razão “impura” prática, vale dizer, aquelas éticas que colocam as origens do comportamento moral na experiência empírica, como acontece com as éticas que colocam o bem no prazer (hedonismo), nas ações onde prevalece o bem maior para todos (o utilitarismo) ou na felicidade humana enquanto tal (eudemonismo). Para ele essas concepções obedecem ao que ele chama de imperativo hipotético, que tem a forma: “Se queres obter Y deves fazer X”. O imperativo hipotético é teleológico, imiscuindo questões empíricas na teoria moral, o que a faz deixar de ser necessária e universal. Para que a moralidade tenha valor absoluto ela deve, pois, obedecer à lei pela própria lei e não por algum outro motivo. O imperativo categórico último é para ele o do dever pura e simplesmente: devemos obedecer às leis morais. A forma do imperativo categórico é: “Devemos fazer X pelo simples dever de fazer X”.

   Para que o imperativo categórico se torne factível Kant apresentou três formulações explicitadoras interligadas, que servem como meta-regras a serem aplicadas às máximas que encontramos embutidas nas ações de modo a estabelecê-las como moralmente corretas. Elas são:

 

1)    Age de forma que a máxima embutida em sua ação possa ser sempre universalizada para todos os agentes.

2)    Age de forma que a tua vontade possa considerar a si mesma como a vontade que qualquer ser humano estaria disposto a aprovar como instituidora de uma legislação universal.

3)    Age de forma que possas tratar a humanidade, tanto a sua quanto a de outros, sempre como um fim e nunca como um meio.[31]

 

Considere, por exemplo, ações como as de mentir ou roubar. Elas contêm embutidas as máximas de que a pessoa pode mentir e roubar. Mas essas máximas ferem o imperativo categórico. Não devemos infringir a regra (1) querendo que todos mintam ou roubem, pois logo seremos também ludibriados e roubados, nem podemos infringir (2) querendo que nossa vontade de mentir ou roubar seja instituída como a vontade que qualquer ser humano quereria aprovar em uma legislação universal. E também parece claro que não devemos infringir (3) tratando os outros como meio, mentindo ou roubando. À primeira vista tudo isso é correto.

   Para que o imperativo categórico seja aplicável ele pressupõe a satisfação de três condições que Kant chamou de postulados da razão pura prática. Esses postulados são:

 

1)    A liberdade: para que o homem possa satisfazer o imperativo categórico ele precisa ter a liberdade de agir em conformidade com a razão prática, o que significa ser capaz de em suas decisões e ações transcender o determinismo universal do mundo fenomênico.

2)    A imortalidade: o ser humano deve ser capaz de progredir em direção a uma adequação completa de sua vontade à lei moral. Como esse progresso é infinito devemos ser dotados de uma duração indefinida, ou seja, de uma alma imortal.

3)    A existência de Deus. Não há na lei moral nenhum fundamento de uma necessária ligação entre ela e uma felicidade que lhe seja proporcional. Por conseguinte, é preciso que essa desproporção seja ajustada pela existência de Deus como o elemento causal necessário à existência do sumo bem. (A ideia por trás disso é que como não somos devidamente recompensados ou castigados pelo que fazemos nesse mundo, é necessário que exista um Deus para promover a justiça lá no outro mundo).

 

Juntando a epistemologia crítica com essa teoria moral um tanto dogmática chegamos a um breve resumo geral da concepção de mundo epistemológica, metafísica e moral de Kant.

 

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Crítica. Um dos primeiros críticos da ética kantiana foi Hegel. Ele a viu como um subproduto do pessimismo antropológico luterano. Para ele Kant teria em sua ética desnecessariamente separado a sensibilidade da razão, transformando o ser humano em uma espécie de mártir do dever. Mas o ser humano, pensava Hegel, é um universal concreto, que deve ser capaz de harmonizar a sensibilidade particular à razão universal ao invés de ser opressivamente submetido a ela. Afora isso, a ética kantiana justifica os valores de sua educação e de seu meio. Apesar de sua grande originalidade, ela nos lembra da ferina, mas em meu juízo acertada observação feita por Russell de que Kant exemplifica o fato de que a maioria das pessoas jamais consegue se libertar das verdades auridas quando se encontravam junto ao ventre materno... Por causa disso, depois de ter sido acordado de seu sonho dogmático por Hume, ele logo tratou de inventar um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez.[32] Esses julgamentos críticos parecem confirmados pelas considerações que farei a seguir.

   Uma primeira consideração é que temos sempre o direito de nos perguntar para que serve um dever quando nos vemos na obrigação de cumpri-lo. O mero sentimento do dever não possui em si mesmo nada de justificadamente moral. Afinal, a ideia de que temos a intuição do que devemos ou não fazer, do que é certo e do que é errado, pode ser profundamente enganosa. Mahatma Ghandi sentia que era seu dever fazer greve de fome para conseguir a libertação da Índia. Mas também Adolf Eichmann sentia que era seu dever obedecer aos seus superiores e organizar a deportação dos judeus para os campos de extermínio da maneira mais eficiente possível, mesmo não tendo pessoalmente nada contra eles. A intuição do que é certo pode ser produto de uma herança cultural de séculos, cuja origem escapa por completo da consciência do agente. Nada indica que tenhamos uma capacidade incondicionada de distinguir o que seja “fazer X pelo puro dever de fazer X” em um sentido moral. Algo está faltando! E a resposta natural é que esse algo só pode ser a finalidade do dever. As deficiências da deontologia nos levam a perguntar sobre as razões para seguirmos a lei, o que nos reconduz a uma normatividade justificada pelo valor beneficial de suas consequências concretas.

   Aqui o defensor do imperativo categórico poderá apelar para a justificação do dever através das três meta-regras já apresentadas. O problema é que essas meta-regras são claramente insuficientes. Contra (1), o princípio da universalização, há um bom número de contraexemplos. São muitos os casos de mentiras benignas. Assim, imagine que durante a Segunda Guerra Mundial um cidadão alemão consciente esconda um ex-empregado judeu em sua fábrica. Quando um oficial nazista bate à porta para saber se ele sabe alguma coisa sobre o paradeiro de seu ex-empregado judeu, é obvio que ele deve mentir. Mas Kant foi explícito em considerar que em tal caso ele deveria falar a verdade, pois se mentisse infringiria o princípio da universalização.[33] Também contraexemplos às duas outras formulações podem ser facilmente encontrados. Quanto a (2), a generalização da vontade moral das pessoas é muito variável para servir de parâmetro. Uma vontade comum a todas as pessoas, ou é impossível de ser encontrada, ou é trivial. Além disso, quanto a (3) podemos pensar no contraexemplo de um perseguido político que usou um passaporte falso para poder escapar da Lituânia ocupada pelos nazistas. Parece óbvio que ele deveria tratar o oficial da alfândega como um meio, mentindo quando questionado sobre seu passaporte. Mas para Kant parece que ele deveria tratar o guarda como um fim em si mesmo, confessando que se trata de um passaporte falso. Ou será que ele deveria realmente mentir de maneira a tratar-se a si mesmo como um fim? A regra é insuficiente para uma resposta.

   A conclusão é que os princípios do imperativo categórico de Kant pouco fazem para determinar o comportamento moral. O que eles são capazes de fazer é servir como regras auxiliares, simples regras de polegar, tais como: “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti mesmo” (que pressupõe que o que os desejos dos outros sejam os mesmos que os teus).

   Diante de semelhantes arbítrios, quando voltamos ao imperativo categórico do fazer X pelo dever de fazer X, surge uma pergunta ainda mais insidiosa: quem estabelece o que é o dever? Na falta de algo mais, quem estabelece o que é o dever é quem tem o poder – na época de Kant as autoridades de um sistema totalitário. Acontece aqui o que acaba por acontecer com as deontologias em geral. Não se tem como fundamentar regras como a dos dez mandamentos, senão recorrendo à autoridade divina. No caso de Kant, os mandamentos são reduzidos a três meta-regras. Se forem literalmente interpretadas elas se tornam rígidas demais, produzindo um número de valorações morais injustas. Mas se formos mais flexíveis, elas se tornam arbitrariamente abertas a inúmeras exceções, acabando por servir a quem for detentor do poder de decisão. Algo assim acontece com outros sistemas deontológicos. Se estritamente seguidos eles servirão para impor uma ordem à tribo, mesmo que a custo de injustiças. Mas se forem interpretados de uma maneira frouxa, eles cederão lugar ao arbítrio. Sistemas deontológicos cujas raízes consequencialistas se perderam acabam por servir a sistemas éticos de fundamentação autoritária, seja ela divina ou secular.[34] Por tudo isso me inclino a pensar que John Searle estava certo em sua sarcástica observação de que o imperativo categórico é como um hipopótamo, morto há muito tempo, mas cercado de pessoas muito inteligentes que tentam ressuscitá-lo por meio de respiração boca a boca.

   Uma razão pela qual dou preferência ao utilitarismo de duas camadas brevemente sugerido no capítulo VI (seção 6) é que por meio dele uma sociedade se torna capaz de alterar e aprimorar as regras morais, na medida em que elas promovem o bem geral, e não a partir de algum dever fundado em uma intuição possivelmente arbitrária e geralmente originada de alguma autoridade humana ou divina. O utilitarismo de duas camadas transforma os princípios absolutos sugeridos por Kant em meta-regras auxiliares geralmente válidas, na medida em que satisfizerem a função de licitar o seguimento dos princípios utilitários mais fundamentais, capazes de produzir o bem geral.

 

 

 

 

 

 



[1] Strawson, The Bounds of Sense (London: Methuen 1966), p. 11

[2] Diário, 1/11/1914.

[3] Anthony Kenny observou que Derrida foi aceito nos departamentos de arte nos Estados Unidos, mas não em departamentos de filosofia, “onde as pessoas tem mais experiência em distinguir filosofia autêntica de suas falsificações.” Ver A New History of Western Philosophy (Oxford: Clarendon Press 2007) vol. IV, p. 96.

[4] Como Brian Magee escreveu: “como forma de treinamento mental a filosofia continental é contraprodutiva: ela ensina os estudantes (…) a abandonar o argumento racional pela retórica. Ela ativamente treina-os a não pensar e a serem falsos; e ao fazer essas coisas ela corrompe as suas mentes.” Brian Magee: Confessions of a Philosopher (New York: Modern Library Paperbacks 1999), p. 429.

[5] Ver entrevista no vídeo: “Noam Chomsky: The Strange Bubble of French Intellectuals.” Philosophyinsights on Youtube.

[6] Kritik der reinen Vernunft. A primeira edição apareceu em 1781; a segunda edição, fortemente revisada, apareceu em 1787. Trad. port. Crítica da razão pura (Lisboa: Calouste Gulbenkian 1989).

 

[7] Crítica, Introdução.

[8] Crítica, Intr. B 3, B 4.

[9] Cf. Ernst Tugendhat: Propedêutica Lógico-Semântica (Petrópolis: Vozes 1997), p. 35.

[10] Kant acreditava na necessidade das leis da física sem admiti-las como condições necessárias a toda a experiência. Isso fica claro em Os primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza (Edições 70: 2019 (1786)).

[11] Crítica, B 15-17.

[12] Crítica, B 16.

[13] Crítica B XVI-XVII.

[14] Ver o capítulo sobre Leibniz, sec 4.

[15] Russell, A History of Western Philosophy (New York: Touchstone 1972) p. 714-715.

[16] Ibid. p. 715.

[17] John Searle: resumo não publicado da Crítica.

[18] Crítica B 74-75.

[19] Crítica B 131-132-134.

[20] O argumento (Crítica: A 191-2011; B 233-256) é formulado de maneira tão desproporcionalmente complicada que um leitor crédulo ficaria se perguntando se não há um tesouro escondido sob o pedredouro terminológico.

[21] As primeiras interpretações de Kant foram fortes e literais. Como notou Jakobi “sem a coisa em si não é possível penetrar no sistema de Kant; mas com a coisa-em-si não é possível permanecer nele”. F. H. Jacobi: David Hume on Faith or Idealism and Realism: A Dialogue, in G. di Giovanni (ed.), The Main Philosophical Writings and the Novel Allwill, Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1994 (1787), p. 336.

[22] Exemplos mais influentes de interpretações fracas são P. F. Strawson: The Bounds of Sense: An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason (London: Methuen & Co 1985) e Henry E. Allison: Kant’s Transcendental Idealism (Yale: Yale University Press 2004).

 

[23]  Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language (London: Duckworth) 1981, pp. 194, 229. Ele fala de regra como o sentido (Sinn) fregeano, o que corresponde ao que usualmente chamamos de conceito.

[24]  Ernst Tugendhat: Logisch-Semantik Propädeutik  (Stutgart: Reklam 1983), p. 236.

[25] Crítica, B 391.

[26] Karl Popper: Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge (London: Routledge 1989), cap. 10.

[27] Crítica: A 599, B 627. A 596 – B 630

[28] Frege: Die Grundlagen der Arithmetik: Eine Logish Mathematische Untersuchung Über den Begriff der Zahl (Legare Street Press 2022), sec. 59.

[29] Ver John Searle: “The Unity of the Proposition”, in Philosophy in a New Century (Cambridge: Cambridge University Press 2008), p. 176.

[30] Essa sugestão inspira-se na definição de matéria como “garantida ou permanente possibilidade de sensações” aventada por J. S. Mill em An Examination of Sir William Hamilton’s Philosophy (Forgotten Books 2018), caps. X-XII. Para o que se segue, ver Claudio Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy (CSP 2016), Ch. IV, sec. 12.

[31]  Fundamentação da metafísica dos costumes (Lisboa: Edições 70), pp. 59, 69.

[32] Bertrand Russell: A History of Western Philosophy, Parte II, cap. XX.

[33]  Kant apresentou um exemplo similar no breve artigo traduzido com o título de “Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens” (Belo Horizonte, Editora UFMG 2002).

[34]    Devido à inflexibilidade e relativismo circunstancial dos mandamentos das éticas deontológicas, elas entram facilmente em conflito umas com as outras. Um exemplo é dado pelos conflitos morais descritos por T. E. Lawrence em seu livro Os Sete Pilares da Sabedoria. Ele, um inglês que se doutorou em Oxford, vestido de árabe e falando a língua local, aceitou o compromisso de liderar a revolta árabe. Contudo, a todo momento as regras de sua moral refinada se chocavam com os ditames rudimentares e supersticiosos das tribos árabes. Por vezes a sua decisão prevalecia, como quando decidiu voltar sozinho para salvar um árabe que havia se perdido da caravana e que os outros consideravam morto por decisão de Alá. Contudo, na maioria das vezes a moral da tribo prevalecia, como quando foi levado a matar pessoas já rendidas após o assalto de um trem.

 

 



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