DRAFT para o livro Introdução histórica à filosofia
demanda forte revisão
XII
KANT: IDEALISMO TRANSCENDENTAL
Todo nosso conhecimento começa com os sentidos,
continua com o entendimento e termina com a razão; não há nada mais elevado do
que a razão.
Kant
Um
professor alemão certa vez notou que na filosofia moderna existem grandes
ilhas, mas somente dois continentes: Kant e Hegel. Como resultado, uma pessoa
pode passar a vida inteira explorando um desses continentes sem chegar a
conhecê-lo por completo.
Essa
parece-me uma avaliação um tanto exagerada e facciosa. Kant e Hegel construíram
sistemas incomparavelmente ambiciosos, mas se a importância das ideias neles
expostas é tão exponencialmente maior é algo que merece ser questionado. É
difícil não concordar com P. F. Strawson, que no prefácio do mais influente
ensaio sobre a obra máxima de Kant, a Crítica da Razão Pura, escreveu
ter lido o livro com um “sentimento misto de grande insight e de grande
mistificação”.[1]
Com efeito, o sistema arquitetônico desenvolvido por Kant e legitimado pela
universidade prussiana cobra um alto preço em artificialidade. As peças do
quebra-cabeça, na verdade uma colcha de retalhos, só parecem se encaixar por
meio de artificialismos argumentativos ocultados por uma densa nuvem de
obscuridade semântica, reforçada por uma apresentação rebuscadamente dogmática.
O mesmo vale ainda mais para Hegel: se um argumento parecer pouco convincente,
complique-o e confunda-o a ponto de fazer com que o leitor se perca dentro
dele. Também é preciso distinguir entre profundidade e amplitude. Um filósofo
como Berkeley teve insights tão profundos e originais quanto os de Kant. Mas
não dedicou mais do que uma pequena parte de sua vida à reflexão filosófica.
Kant dedicou toda a sua longa vida ao aprendizado e à investigação. Na verdade
Kant e Hegel são ilhas um pouco maiores. Nenhum continente.
Claro, a obscuridade em filosofia existe
desde seus primórdios e tem toda a razão de ser. O recurso à abertura
discursiva propiciada pela vaguidade e falta de clareza é lícito quando se tem
intuições importantes a veicular, mas não se tem sequer os recursos conceptuais
para formulá-las de maneira adequada. Podemos encontrar essa condensação polissêmica
de ideias já em filósofos como Parmênides e Anaxágoras. A invenção do “Ser” por
Parmênides serviu como um recurso figurativo genialmente explorado como um meio
de sugerir caminhos de investigação. E não existe exemplo mais flagrante de
obscuridade construtiva do que a Metafísica de Aristóteles, onde vemos
um filósofo tentando honestamente encontrar o caminho no interior de uma selva
argumentativa. Como notou Wittgenstein, ele também um filósofo que, como
Heráclito, era capaz de se expressar por meio de aforismos tão vagos quanto por
vezes extremamente sugestivos, em um conselho dado a si mesmo sobre a arte de
filosofar:
Não se deixe envolver por problemas parciais, mas
sempre ascenda para onde houver uma concepção livre de todo o único grande
problema, mesmo se essa concepção ainda não for clara.[2]
Se
a filosofia não pode ser mais do que saber conjectural, ensaio especulativo
acerca do que ainda não nos encontramos em condições de conhecer, como procurei
demonstrar no primeiro capítulo, então a observação de Wittgenstein é
perfeitamente adequada.
Não obstante, também há junto a isso razões
comezinhas. Dentre todos os filósofos modernos até aqui considerados, Kant foi
o primeiro grande filósofo acadêmico. Hume foi um grande estilista que escrevia
para leigos cultos. Precisava ser claro. O mesmo vale para Descartes, Leibniz,
Locke e Berkeley. Diversamente disso, Kant foi um professor, falando para
alunos do alto de uma cátedra e escrevendo para colegas versados em filosofia em
um ambiente acadêmico que devia ser provinciano e pernóstico.
Há
ainda uma outra razão, ainda mais comezinha, para a pretensão de profundidade obtida
por meio de uma obscuridade rebuscada, mesmo na obra de um grande filósofo como
Kant. Ele servia ao reino da Prússia, um estado autoritário, militarizado, com
reis despóticos, onde a liberdade de expressão era severamente controlada – uma
situação retrógrada se comparada à inglesa. Certa vez um príncipe foi visitar Kant
na universidade para oferecer-lhe honrarias. Assim, a seu modo ele também servia
à glória do estado prussiano, devendo em filosofia fazer o melhor para condizer
com essa função. Um outro filósofo acadêmico que serviu ao reino da Prússia foi
Hegel, que chegou a ser professor em sua capital, Berlim. Hegel foi ainda bem mais
obscuro do que Kant e seu sistema ainda mais ambicioso. O contraponto estilístico
de Hegel foi seu concorrente Shopenhauer, um filósofo que não era acadêmico e escrevia
de modo tão claro quanto em filosofia é possível.
A escrita pedantesca e obscura, ou
simplesmente descuidada e macarrônica, mas dotada de um tom quase profético, fez
escola na Alemanha: Husserl e seu pupilo rebelde, Heidegger, foram bons
exemplos. Isso não significa necessariamente má filosofia. O gênio de Kant e
Hegel é inegável, assim como a importância pouco reconhecida de Husserl e até mesmo
a relevância de Heidegger para a antropologia filosófica. Trata-sde uma questão
de custo-benefício.
O método
de fazer poeira com palavras de modo a dar a impressão de profundidade foi
importado para a França por Sartre e Merleau-Ponty, e mais tarde incrementado por
acadêmicos pós-modernos, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida.
O problema é que aquilo que era uma mensagem filosoficamente rica e profunda, mesmo
que encoberta sob um denso nevoeiro retórico que a deveria tornar invulnerável,
transformou-se em alguns escritos de Deleuze em mera experimentação linguística
onde quase nada mais havia a ser dito, e em Derrida em uma mera simulação
retórica dos procedimentos filosóficos que, quando trocada a miúdos, na melhor
das hipóteses se demonstrava falsa e, na pior, uma algaravia estilisticamente
proficiente, mas sem sentido.[3] Se nos lembrarmos do
triângulo metafilosófico exposto no primeiro capítulo do presente livro (sec.
9) compreenderemos melhor: a França fez grande literatura que jogou sua
filosofia para o canto estético, transformando-a em beletrismo, assim como os
Estados Unidos, por exemplo, tem feito boa ciência, que joga sua filosofia para
o canto do cientificismo.
Uma maneira de tentar salvar certos escritos
de Deleuze e Derrida é admitir seu valor estético; eles são como as instalações
em artes plásticas. Há nisso algum valor! Não obstante, quando consideramos o que
veio a ser chamado de pensamento pós-moderno como arte surge um problema. É que
a arte é uma ilusão que se reconhece como tal. Por isso cada um é livre para retirar
da experiência estética o que melhor lhe aprouver. É por isso que a grande
arte, chamada por Collingwood de arte própria, possui um potencial ampliador da
consciência (ver cap. II, sec. 8). Mas se a filosofia se utiliza de um
mecanismo de produção de ilusões sem reconhecê-lo enquanto tal, ela passa facilmente
ao nível do que Collingwood chamava de má arte: a arte adormecedora da
consciência.[4]
Uma última observação diz respeito aos
efeitos culturais deletérios do pós-modernismo. Ele ensina as pessoas a acreditarem
que estão empenhadas em uma investigação filosófica séria quando pouco mais
fazem do que desenvolver curiosos experimentos retóricos. Como notou Noam Chomsky,
isso pode ser culturalmente contraproducente em países subdesenvolvidos sem uma
tradição cultural forte, onde a pseudoprofundidade e o experimentalismo
discursivo podem passar facilmente por grandes aquisições culturais.[5]
1
Vida. Não há muito a se dizer sobre a vida de Kant (1724-1804).
Ele nasceu de uma família de seleiros, sem recursos nem instrução. Eles eram
pietistas, um ramo radicalizado do luteranismo, cujos valores maiores eram “o
dever, o trabalho e a oração.” Aos oito anos ele entrou para uma altamente
disciplinada escola pietista, que o fez mais tarde se recordar da infância como
um período de escravidão, mas que lhe deixou marcas profundas que se refletiram
em sua filosofia. Aos poucos ele galgou os degraus da vida acadêmica,
tornando-se um aclamado professor. A monumental Crítica da Razão Pura[6] foi sua primeira grande
obra, publicada quando tinha 58 anos de idade. Só depois disso vieram as outras
obras filosóficas relevantes, como a Crítica da Razão Prática, a Metafísica
dos Costumes e a Crítica do Juízo.
Kant
era uma pessoa altamente disciplinada. Há muitas anedotas a seu respeito.
Conta-se, por exemplo, que era inflexível em fazer seu passeio diário às 4
horas da tarde sob qualquer tempo. Uma vez, precisando muito terminar um
artigo, chegou o momento do passeio. Grande conflito! Felizmente ele teve uma
ideia que lhe permitiu resolver o dilema. Ele postou o tinteiro uns sete metros
de distância da mesa onde escrevia, de modo que a cada minuto ele precisava
caminhar até o tinteiro para encher de tinta sua pena de ganso. Esse
estratagema simples lhe permitiu dar o passeio e escrever o artigo ao mesmo
tempo.
Apesar
de seu rigor e inflexibilidade prussianos, Kant era uma pessoa bastante
sociável. São conhecidos os almoços para os quais convidava amigos, geralmente
comerciantes locais e nunca professores universitários. Goethe o admirava e
quis conhecê-lo pessoalmente. Kant fez tanta dificuldade que Goethe teve um
acesso de raiva e desistiu da ideia. Kant nunca viajou para longe de sua cidade
natal, nem se casou. Parece que preferiu seguir o conselho de um amigo inglês,
investindo seu dinheiro em um banco, o que acabou por revelar-se a escolha
certa.
2
Juízos.
O mais importante em Kant é sua Crítica da razão
pura, um livro só comparável em influência à Metafísica de
Aristóteles. Como Locke e Hume, Kant também quis estabelecer a natureza
e os limites daquilo que pode ser conhecido, fazendo isso com o objetivo de
criticar as pretensões da metafísica dogmática, por ele entendida como uma
ciência que pretendia demonstrar a imortalidade da alma, o livre arbítrio e a
existência de Deus. Ele queria explicar porque a metafísica dogmática nunca
conseguiu apresentar mais do que argumentos de valor duvidoso.
A construção arquitetônica da Crítica
é impressionante e profundamente original. Ela foi escrita como um ambicioso
esforço de síntese que haveria de superar tanto o racionalismo continental
quanto o empirismo britânico. Do racionalismo Kant queria superar a metafísica
dogmática que aprendera sob a influência maior de Christian Wolff, que por sua
vez foi influenciado por Leibniz. Já do empirismo ele queria superar principalmente
o ceticismo de Hume, ainda que o último lhe tivesse, segundo suas palavras, acordado
do sono dogmático do pensamento racionalista no qual fora educado. Ainda que muito
poucos acreditem que Kant tenha alcançado seu objetivo último, é certo que ainda
podemos aprender muito pelo conhecimento do trajeto percorrido.
O primeiro passo dado por Kant para superar
a oposição entre racionalismo e empirismo foi o de revisar a distinção empirista
entre associações de ideias e questões de fato (Hume), correspondente
à distinção racionalista entre as verdades da razão e as verdades de
fato (Leibniz) – uma dicotomia cujas origens retrocedem à filosofia
medieval. Kant a substituiu pela respectiva distinção entre:
(i)
juízos
analíticos (a priori) e
(ii)
juízos
sintéticos (a posteriori),
adicionando então a ela um terceiro tipo de juízo, os:
(iii)
juízos sintéticos
a priori.[7]
Vejamos
como ele os define. (i) Juízos analíticos estão no lugar das relações de ideia
em Hume. Mas Kant os define à maneira de Leibniz: eles são aqueles nos quais o
conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Eles são a priori
no sentido de que possuem absoluta independência de qualquer experiência,
possuindo as marcas do a priori, que para ele são a necessidade e universalidade
estrita.[8]
O exemplo dado por Kant é: “Todos os corpos são extensos”. Simplesmente encontra-se
na definição de um corpo que ele deve ser extenso. Não só são os juízos
analíticos necessários, mas sua negação conduz a uma contradição (incoerência
ou inconsistência). Por exemplo: “Nem todos os corpos são extensos” é um
enunciado necessariamente falso. Tais juízos tem a desvantagem de serem
incapazes de ampliar nosso conhecimento. Eles nada nos dizem sobre o mundo, firmando
apenas a relações lógico-conceituais. Exemplos são “Triângulos tem três lados”,
“Vermelho é uma cor”, “Solteiros são não-casados.”
Embora interessante, a definição de juízo
analítico é insatisfatória, posto que nem todo enunciado analítico é
insatisfatória, posto que nem todo enunciado tem a forma sujeito-predicado. O
enunciado “Se João é casado com Maria então Maria é casada com João” é
analítico, mas não cabe na definição kantiana. Por isso preferimos hoje dizer
que o enunciado analítico é aquele cuja verdade (ou falsidade) depende das
relações entre seus constituintes semânticos.[9] Ou então recorremos à
definição fregeana, segundo a qual um enunciado é analítico quando sua
verdade depende tão somente de definições e das leis da lógica. Por
exemplo: “Todo triângulo tem três lados” é analítico porque o conceito de
triângulo se define como sendo o de uma figura plana e fechada com três lados,
de modo que sua substituição pelo sujeito do enunciado acima resulta na frase
tautológica “Toda figura plana e fechada com três lados tem três lados”.
Quanto a (ii), os juízos sintéticos (a
posteriori), eles foram definidos por Kant como aqueles nos quais o conceito do
predicado não está contido no conceito do sujeito. Por essa razão a descoberta
de sua verdade parece sempre demandar experiência empírica, tornando-os a
posteriori. Seu exemplo preferido era: “Todos os corpos são pesados”.
Sabemos disso por experiência, o que faz com que sua negação não seja contraditória.
É possível que existam corpos que não possuam peso. (Na verdade, corpos físicos
que se encontram fora da ação gravitacional não possuem peso, apesar de
possuírem massa...) Os juízos sintéticos a posteriori são ampliativos. Eles nos
dizem algo sobre o mundo e constituem a maior parte daquilo que diariamente
ajuizamos. Exemplos: “Estou de pé”, “O céu é azul”, “Londres é a capital do
Reino Unido”, “Sapos não comem insetos que não se movem...” Hoje nós
definiríamos o juízo sintético como aquele cuja verdade (ou falsidade) não
depende das relações entre seus constituintes semânticos, mas de sua
relação com o mundo.
A
grande inovação de Kant, porém, foi postular a existência de um terceiro tipo
de juízo: (iii) o juízo sintético a priori. Nesse juízo o conceito do predicado
não está contido no conceito do sujeito, mas ainda assim ele é a priori, pois
ele é independente da experiência, sendo necessário e estritamente universal. Poderíamos
hoje definir tais juízos como sendo aqueles cuja verdade (ou falsidade) não
depende das relações entre seus constituintes semânticos, mas de suas relações
com o mundo (são sintéticos), mas que ainda assim são necessários e
estritamente universais, não dependendo da experiência (são a priori), ainda
que possam se apoiar nela.
A origem da ideia do juízo sintético a
priori se encontra provavelmente no enorme impacto da física newtoniana da
época, cujas leis Kant tinha como verdades absolutas acerca da natureza.[10] Esse seria para ele o
caso das leis do movimento postuladas por Newton, como a segunda lei, segundo a
qual a força depende da massa multiplicada pela aceleração (F = ma),
assim como sua para a impressionante lei da gravidade universal, segundo a qual
dois corpos físicos se atraem em proporção direta a suas massas e inversa ao
quadrado de suas distâncias (F = m1.m2/d2).
Também os juízos da aritmética eram para
Kant sintéticos a priori, por exemplo: “7 + 5 = 12”. Segundo Kant trata-se aqui
também de um juízo sintético a priori, pois o conceito do número doze não está
contido no conceito da soma de 7 e 5.[11] Mas o resultado dessa
soma é a priori, pois aplica-se necessariamente ao mundo na independência de
qualquer experiência. A sugestão de Kant parece se tornar mais aceitável quando
consideramos somas de números maiores como “389 + 973 = 1362”. Aqui
decididamente não vemos o conceito do predicado “...é igual a 1362” no conceito
da soma em questão. Por isso esses juízos devem ser sintéticos. Mas eles também
são a priori por se aplicarem necessariamente ao mundo na independência de
qualquer experiência.
Também os juízos da geometria eram para Kant
sintéticos a priori. Considere o enunciado da geometria euclidiana “A reta é a
distância mais curta entre dois pontos”.[12] Para Kant podemos pensar
a linha reta na independência de ser ela a distância mais curta entre dois
pontos (Euclides definiu a reta como “uma linha traçada uniformemente com os
pontos sobre si”). Assim, esse enunciado deve ser sintético a priori, posto que
nós o vemos como sendo necessário e universal por ser dependente da intuição
pura do espaço que, como veremos, é legislada pelo sujeito.
O mais importante caso de juízo sintético a
priori foi o dos juízos constitutivos do próprio sistema de filosofia teórica
proposto por Kant. Exemplos standards do que ele admita como sendo juízos
sintéticos a priori são enunciados supostamente metafísicos como:
Todo evento tem uma causa.
Em todas as mudanças nas aparências a substância permanecem.
Existe um mundo objetivo independente de nós.
Quero
considerar aqui somente o princípio expresso pelo enunciado “Todo evento tem
uma causa”. Não se trata de um juízo analítico, pois o conceito de causa
expresso pelo predicado não se encontra contido no conceito de evento expresso
pelo sujeito. Afinal, podemos imaginar eventos sem causa. Mas se fosse assim,
como seria possível garantir nosso conhecimento de um mundo governado pela
causação? Como seria possível a necessidade causal? Não cairíamos
inevitavelmente no ceticismo humiano? A resposta de Kant é que se trata de um
juízo sintético a priori. Por ser a priori ele se torna capaz de ser aplicado
de modo necessário e universal à natureza. E isso precisa ser assim porque na
seção da Crítica intitulada ‘analogias da experiência’ ele acreditou ter
demonstrado que a natureza, tal como ela pode ser conhecida por nós, precisa
ser subjugada ao princípio da causalidade.
É preciso notar que um filósofo como Hume
não teria dificuldades em considerar as leis da física como questões de fato,
vale dizer, como enunciados sintéticos a posteriori, em princípio falseáveis.
Afinal, ao considerar os juízos da matemática como relações de ideias (i.é.,
enunciados analíticos), ele não tinha sequer em mente a questão da aplicação
desses juízos ao mundo externo. Um empirista posterior, J. S. Mill, chegou a
considerar os princípios da geometria e mesmo os da matemática como juízos
empíricos (sintéticos e a posteriori), dependentes da experiência e, portanto,
ao menos em princípio passíveis de serem falseados. Não obstante, para Kant não
poderia ser assim. Sob sua perspectiva os princípios da física, das matemáticas
e da geometria de seu tempo precisavam ter o status de verdades absolutas. Para
ele Euclides na geometria e Newton na física haviam decifrado o alfabeto pelo
qual Deus escrevera o livro da natureza. Essas eram convicções razoáveis na
época em que Kant viveu, mas que, como veremos, deixaram de ser razoáveis
devido ao próprio desenvolvimento da ciência. A maioria dos filósofos da
ciência tornou-se, ao menos desde C. S. Peirce (1839-1914) falibilista
com relação a aplicação de nossos juízos científicos ao mundo empírico.
3
Revolução
copernicana. A grande
dificuldade consistia para Kant na justificação última da existência dos juízos
sintéticos a priori. Afinal, o que garante que o mundo deva se comportar de tal
modo que juízos ampliativos sobre ele sejam a priori no sentido de serem
necessários e universais?
Kant pensou ter alcançado a resposta através
do que ele chamou de “a grande luz” que o conduziu ao pensamento crítico: uma
grande descoberta por ele chamada de “revolução copernicana”.[13] Assim como após
Copérnico, ao invés de o sol circular em torno da terra, a terra passa a
circular em torno do sol, após Kant é o sujeito do conhecimento que passa a
circular em torno dos objetos. Melhor dizendo: o sujeito do conhecimento passa
a ter um papel ativo na produção de um conhecimento. Contudo, para que
isso aconteça, o mundo precisa obedecer às leis impostas pelo sujeito do
conhecimento de modo a poder ser conhecido naquilo que lhe é necessário e
universal. Nós somos, acreditava ele, “os legisladores da natureza”! Somos nós
que lhe damos forma e estrutura. É só por isso que os juízos sintéticos a
priori são necessários e estritamente universais; porque o mundo, enquanto
capaz de ser por nós conhecido, precisa seguir os princípios impostos pela nossa
matemática, pela nossa geometria e pela nossa ciência empírica. Um princípio
como o de que todo evento tem uma causa era considerado por ele necessário e
universal, ou seja, não só sintético, mas também a priori, resolvendo a
fortiori o problema do ceticismo humiano.
A maior preocupação de Kant não era, porém,
a fundamentação das matemáticas e das ciências empíricas. Ele também quis
criticar a metafísica especulativa, demonstrando que a razão pura não é capaz
de resolver questões metafísicas como as da existência de Deus, da eternidade
da alma e do livre arbítrio.
Fundamental para a revolução copernicana é a
espécie de “subjetivização” do mundo da experiência proposta por Kant através
da distinção entre mundo noumênico e mundo fenomênico. O mundo
noumênico é o mundo como ele é em si mesmo, na independência da experiência.
Objetivamente ele é constituído pelo que Kant chamou de a coisa em si (Ding
an sich), enquanto subjetivamente ele é constituído por um Eu transcendental
noumênico (que os metafísicos chamam de alma), um X distinto do eu empírico
descrito por Hume como um feixe de ideias sempre diversas. Nada podemos saber
sobre esses dois polos do impensável. Nada podemos saber sobre a coisa em si mesma,
sobre o X da subjetividade transcendental ou sobre o mundo noumênico que os
encerra. Tudo o que podemos saber é sobre o mundo tal como ele aparece a nós, o
mundo fenomênico das aparências (a palavra grega ‘pheinomenon’ significa
aparência), que é o mundo submetido a nossas formas e estruturas a priori de
conhecimento.
A distinção entre o mundo fenomênico e o
mundo noumênico é fundamental para a revolução copernicana. Se somos nós que
legislamos sobre o objeto do conhecimento, então esse objeto precisa ser de
algum modo “subjetivizado”. Se tudo o que precisamos para legislar o universo é
legislar a nós mesmos, a tarefa fica grandemente facilitada. O mundo fenomênico
passa a ser, em sua forma e estrutura, dependente do sujeito da experiência. E
a tarefa de dar conta dessa forma e estrutura será dada aos juízos sintéticos a
priori.
Do ponto de vista epistêmico, o que Kant quis
fazer foi ancorar o mundo humiano das ideias soltas em um mundo noumênico
incognoscível. Locke tem sido geralmente considerado um realista indireto.
Berkeley orgulhava-se de seu idealismo, enquanto Hume foi um idealista à
contragosto. Kant foi o que poderíamos chamar de um realista indireto por
postulação. O mundo como ele é em si mesmo, o mundo noumênico, é um algo sobre
o qual o entendimento humano nada é capaz de dizer. Trata-se de uma forma
minimalista de realismo indireto.
4
Objeções.
Sobre a introdução acima há um número de objeções importantes
a serem feitas. A primeira diz respeito à aritmética. Vejamos, por exemplo, o
enunciado “7 + 5 = 12”, que para Kant expressava um juízo sintético a priori. Analisado
segundo nossa atual lógica predicativa, não se trata realmente de um enunciado
do tipo sujeito-predicado, como ele pensava. Trata-se de um enunciado com o
predicado relacional “...é o mesmo que...”, podendo ser explicitado como “7 + 5
é o mesmo que 12”. Nesse caso não cabe mais a questão de se saber se o número 12
não estaria contido em “7 + 5”, pois tanto o 7 + 5 quanto o 12 possuem a mesma
referência, qual seja, o número 12. Assim interpretado, esse enunciado é
analítico, mesmo que não tenhamos em mente o resultado da soma de 7 com 5 ao
considerarmos 7 + 5. A analiticidade fica mais clara quando consideramos uma
soma como “2 + 1 = 3”, em que parecemos ver o 3 no primeiro lado da identidade.
Afinal, o enunciado 2 + 1 = 3 poderia ser analisado ao modo de Leibniz como (1
+ 1) + 1 = ((1 + 1) + 1), admitindo que 2 (Df.) = 1 + 1 e que 3 (Df.)
= 2 + 1. (Ver cap. VII, sec. 1)
Considere agora um enunciado como “A menor
distância entre dois pontos é uma linha reta (na geometria euclidiana).” Nada
nos impede de definirmos uma semirreta, no plano euclidiano, como a linha mais
curta entre dois pontos. Nesse caso o predicado nada mais é do que um
desdobramento do sujeito e o enunciado acima poderá ser considerado analítico. Outros
enunciados da geometria euclidiana, como “A soma dos ângulos internos de um
triângulo euclidiano é 1800” exigem demonstração. Mas como a
demonstração parte de axiomas que não podem ser negados sem contradição, disso
resulta que o mesmo vale para enunciados deles deduzidos, que se tornam
indiretamente analíticos.
Há aqui dois pontos hoje muito bem
conhecidos que precisam ser considerados. O primeiro é que os enunciados da
geometria podem ser tanto analíticos e a priori quanto sintéticos a posteriori,
dependendo de como os consideramos. Enquanto os consideramos como fazendo parte
do sistema da geometria euclidiana, eles são necessariamente verdadeiros, pois
decorrem logicamente de axiomas e postulados aceitos; eles são analíticos e a
priori. Mas quando consideramos esses mesmos enunciados sob a perspectiva da sua
aplicação ao mundo real, eles passam a depender de medições empíricas para que a
sua verdade seja atestada. Nesse caso eles se tornam sintéticos a posteriori.
A
geometria euclidiana era a única existente nos tempos de Kant, que a considerou
absolutamente verdadeira. Mas apenas cerca de trinta anos após sua morte N. I. Lobachevsky
desenvolveu uma geometria hiperbólica, que rejeitava o quinto postulado
de Euclides e na qual a soma dos ângulos de um triângulo é menor do que 1800.
Pouco mais tarde Bernhard Riemann desenvolveu uma geometria elíptica, na
qual o quinto postulado também foi rejeitado e os ângulos de um triângulo
resultavam em mais do que 1800. O resultado disso é que não existe
apenas uma única geometria, como Kant pensava.
De um
ponto de vista interno a elas, qualquer uma dessas geometrias é verdadeira e
seus enunciados podem ser considerados analíticos ou derivações analíticas de
seus axiomas. Eles são relações de ideias no sentido de Hume. Seus enunciados
serão necessariamente verdadeiros no sentido de que decorrem de axiomas
aceitos, de modo que suas negações serão contraditórias. Não há, pois, razões
intrínsecas para escolhermos um sistema geométrico em detrimento de outro.
Contudo, a situação tornou-se ainda pior
para os kantianos quando se demonstrou que a geometria que realmente costuma se
adequar ao espaço físico real não é a euclidiana. Em 1915, com sua teoria da
relatividade generalizada, Einstein demonstrou que onde há corpos massivos e,
portanto, gravidade, o espaço-tempo se torna encurvado e só pode ser calculado pela
aplicação de uma geometria riemanniana. Ou seja, se traçarmos um triângulo
entre a Terra, Vênus e Marte, a soma dos seus ângulos internos será superior a
1800.
Para uma avaliação adequada da questão, tudo
o que precisamos fazer é distinguir entre geometria pura e aplicada.
A validade da geometria aplicada depende da experiência. A geometria euclidiana
apenas parece perfeitamente aplicável ao espaço físico, uma vez que ela
nos basta para medirmos o espaço ao nosso redor. A evolução natural nos dotou
da capacidade de aplicarmos naturalmente essa geometria em nossas ações e de a
compreendermos com muito mais facilidade do que as geometrias alternativas. Mas
a física moderna demonstrou que quando consideramos grandes distâncias entre
corpos massivos a aplicação da geometria elíptica nos traz resultados mais
precisos (a geometria euclidiana voltará a valer em um espaço no qual não houver
gravidade). Assim, deixa de haver uma razão para que a geometria euclidiana
seja considerada sintética a priori. Como geometria pura ela pode ser
considerada analítica, ou seja, um sistema axiomático no qual enunciados se
seguem dos axiomas formando um sistema. Mas como geometria aplicada ela
será sintética e a posteriori, posto que será considerada do ponto de vista de
sua aplicação ao mundo físico externo, ou seja, como parte de nossa descrição
física do mundo. A insistência no sintético a priori resulta apenas de uma
confusão entre o caráter sintético (mas a posteriori) da geometria aplicada ao
mundo físico com o caráter analítico (mas a priori) da geometria axiomática.
Um destino semelhante teve a física
newtoniana, com suas leis que para Kant eram verdades absolutas. A relatividade
generalizada nos mostrou que a lei da gravitação de Newton é apenas uma
aproximação. O que mais perfeitamente se aplica é uma lei muito mais complexa,
resultante da teoria da relatividade geral, que possui maior poder explicativo no
mesmo domínio de aplicação. Não podemos sequer saber se essas últimas leis são necessárias
e estritamente universais, a não ser por postulação. Como notou Karl Popper,
mesmo que alcançássemos a verdade absoluta, jamais poderíamos saber que
realmente a alcançamos. Isso vale para a física, mas supostamente também para o
nosso conhecimento como um todo. Não parece logicamente impossível que um dia
acordemos em um mundo encantado, descobrindo que as estrelas não passam de
pirilampos colocados pelos deuses no céu da noite para enfeitar a abóboda
celeste, evidenciando que nossa presente ideia do cosmo nada mais é do que uma
fabulosa ilusão. A conclusão a que chegamos é que as leis da física não são juízos
sintéticos a priori. Elas são juízos sintéticos a posteriori, podendo sempre em
princípio ser demonstradas falsas.
No que concerne à matemática, à geometria e
à física, a suposta revolução copernicana de Kant chegou a um triste fim e temos
boas razões para descartá-la antes mesmo de considerar seu sistema.
Identificamos os princípios da geometria euclidiana devido a capacidades ganhas
através da evolução natural, mas somos capazes de alterar esses princípios,
como aconteceu com o surgimento de novas geometrias.
Hume e Kant trataram o problema de modo
diferente. O primeiro entendeu as matemáticas (aritmética e geometria) como
constituídas de enunciados que são relações de ideias (ou seja, analíticos)
porque ele os pensava em termos de aritmética e geometria abstratas. Nesse
sentido ele estava certo. E se fosse o caso ele poderia ter considerado a
geometria aplicada como resultado de inferências indutivas meramente prováveis,
ou seja, como dependentes de juízos sintéticos a posteriori. Kant, por sua vez,
tinha preocupação com a aplicação da aritmética e da geometria, acreditando que
as verdades da geometria euclidiana fossem absolutas, já que elas eram
conhecidas há mais de dois mil anos. Quanto às leis da física newtoniana, não parecia
haver na época qualquer razão para que não fossem consideradas verdades
absolutas. Assim, a questão que a Kant se apresentava era: como justificar a
verdade absoluta dos juízos da matemática e da geometria? A única resposta que
encontrou foi que seus juízos são sintéticos a priori. Eles são necessários e
universais (a priori), ao mesmo tempo que são capazes de nos dizer algo sobre o
mundo (sintéticos). Só através da revolução copernicana é que seríamos capazes
de dar conta disso.
A conclusão a que chegamos é que a revolução
copernicana, tal como Kant a concebeu, falhou logo após seu início. Ainda se
usa dizer que ele percebeu que a estrutura do mundo, tal como somos capazes de
conhecê-lo, depende dos filtros inerentes ao nosso aparato cognitivo. A ideia
faz sentido quando comparamos as várias maneiras de se apreender o mundo.
Outros seres vivos terão outros filtros, outros pontos de vista, outras formas
de apreensão perceptual que podem ser demonstradas complementares às nossas.
Mas o fato de que um objeto pode ser apreendido das maneiras complementares A,
B, C... e ainda outras desconhecidas não quer dizer que para além disso exista
uma coisa em si que suporta apreensões cognitivas. Um corpo humano pode ser
investigado por meio de exame físico, radiologia, ultrassonografia, tomografia
computadorizada, ressonância magnética... mas esse corpo não é mais do que
aquilo que se apresenta e se pode apresentar dessas e de outras maneiras. A consciência
de uma variedade irresgatável de acessos deve ter persuadido Kant de que existe
algo incognoscível por trás do que é registrado pelos diversos métodos de
observação, determinando-os: a transcendental coisa em si mesma. Mas o termo
‘coisa em si’ apenas parece fazer sentido. Se quisermos falar da coisa em si,
ela se resumirá a ao conjunto daquilo que é possivelmente perceptível, mesmo
que isso seja para nós inesgotável. A improvável revolução copernicana persegue
o kantismo como uma assombração.
Kant quis na Crítica investigar as condições
necessárias à experiência, ou seja, aquilo por meio do que nós damos à
experiência forma e estrutura, de maneira a possibilitar sua revolução
copernicana. Para tal ele dividiu nosso aparelho cognitivo em três níveis que
se pressupõem sequencialmente: o primeiro deles é tratado na estética
transcendental, onde ele examinou as formas da intuição sensível pelas
quais experienciamos os objetos, que para ele são o espaço e o tempo. O segundo
nível é tratado na analítica transcendental, onde ele examinou os juízos
do entendimento e seus conceitos fundamentais. O terceiro nível é o da dialética
transcendental, onde ele examinou os encadeamentos de juízos na formação de
raciocínios, criticando o seu mau uso pela metafísica dogmática de Wolff.
5
Percepção.
Após a introdução da Crítica, Kant passou à sua
estética transcendental. A palavra ‘estética’ vem do grego ‘aísthesis’
que significa sensação ou percepção sensível. Esse sentido ainda era mais comum
no tempo de Kant e não pode ser confundido com o estudo do belo. Já a palavra
‘transcendental’ diz respeito às condições supremas sob as quais deve ser
submetido qualquer objeto do conhecimento.
Como já vimos, para Kant nós não conhecemos
os objetos em si mesmos, ou seja, como o que ele chamou de coisa em si ou noumena.
Nós os conhecemos pelas modificações que eles produzem na intuição sensível, a
dizer, no domínio das aparências (Erscheinungen) ou fenômenos (phainómena).
Essas modificações possuem matéria e forma. A matéria é aquilo
que é impresso nos sentidos pelo que lhes é externo. Ela é o material sensível.
É tentador dizer que se trata de sensações como as das cores, da dureza, do
calor e do frio, do gosto ou do som. Mas isso seria enganoso, pois para
identificarmos sensações precisamos aplicar conceitos, os quais já pertencem ao
domínio interno do entendimento. Tudo o que podemos dizer é que a matéria é
aquilo que é impresso nos sentidos pela coisa em si. O material sensível vem do
objeto, o que já torna esse material a posteriori. Já a forma é aquilo
que o sujeito imprime no material sensível, as sensações, de maneira a organizá-las.
Quando consideramos a forma da intuição sensível abstraindo dela o material
sensível, temos o que Kant chama de a forma da intuição pura, que é
constituída pelo espaço e pelo tempo. Espaço e tempo vêm do
sujeito sendo, portanto, a priori, ou seja, intuições puras necessárias
e universais.
O espaço é para Kant único e infinito, assim
como o tempo, o que significa que ele aceita uma versão da concepção newtoniana
do espaço e do tempo.[14] Espaço e tempo são
intuições (Anschauungen) não conceituais, subjacentes aos objetos dos
quais temos conceitos. O espaço é uma intuição subjacente aos objetos externos
porque, segundo Kant, podemos imaginar que eles desapareçam todos, mesmo assim
permanecendo o espaço. E o mesmo acontece com o tempo. Ele rejeitou com isso a
concepção leibniziana de espaço e o tempo, segundo a qual eles existem como
entidades relacionais objetivas e dependentes das coisas e de suas qualidades.
Para Leibniz se fizermos os objetos desaparecer um a um de modo completo, o
espaço e o tempo também desaparecerão, o que parece ser intuitivamente muito
mais aceitável.
O
espaço é o que Kant chama de a forma da intuição externa, de modo que todas as
sensações nos parecem extensas. Como as formas geométricas se dão no espaço
isso justifica o caráter sintético a priori da geometria. Quanto ao tempo, ele
é a forma da intuição interna, de modo que todas as sensações se dão no tempo.
Como ao contarmos séries numéricas precisamos de tempo, o que para ele
justifica o caráter sintético a priori da aritmética e da matemática em geral.
6
Crítica.
Em sua História da Filosofia Ocidental Bertrand
Russell fez algumas bem colocadas objeções aos argumentos de Kant em defesa da
transcendentalidade do espaço e do tempo. Ele observou que não temos nenhuma
ideia do que sejam as intuições do espaço e do tempo infinitos ou subjacentes
aos objetos: não somos capazes, após retirarmos todos (realmente todos) os
objetos, de conceber um espaço vazio, como Kant pretendeu. Kant também deixa
inexplicada a razão de organizarmos as intuições do espaço de uma
maneira e não de outra. Como Russell observou:
O que me induz a arranjar os objetos da percepção como
eu faço e não de outra maneira? Por que, por exemplo, eu sempre vejo as pessoas
com os olhos sobre as suas bocas, e não debaixo delas? De acordo com Kant (...)
nada nas coisas corresponde aos arranjos que existem em nossa percepção.[15]
Note-se
que isso vale para todo o material sensível conceptualizado pelo entendimento: nossa
comum escolha dos mesmos arranjos de objetos fica inexplicada. A mesma coisa
podemos dizer acerca do tempo. Vemos o raio e depois de alguns segundos ouvimos
o trovão; mas sabemos que o raio e o trovão ocorrem de modo praticamente
simultâneo. Como explicar essa simultaneidade se ordenamos as intuições
temporais internamente como aparências sensíveis conceptualizadas? Se
considerarmos esses dois exemplos parece que o acontecer, a organização
espacial e a ordem temporal dos fenômenos, dependem e não dependem do sujeito.
Dependem então da coisa em si? Mas se dependessem dela então ela e o pretenso
mundo noumênico já se tornariam espaço-temporais.
Considerando,
com pouca alteração, um outro exemplo de Russell,[16] imagine que você ouve uma
pessoa fazendo uma pergunta; a fala dela é anterior à sua audição, da qual se
segue a sua réplica, após a qual vem o ouvir da pessoa no mundo objetivo da
física. Essa ordem temporal não é determinada por você, o que parece demonstrar
a objetividade e independência do tempo físico. Esse exemplo também ilustra a impossibilidade
kantiana de trazer o mundo público, no qual as pessoas interagem umas
com as outras, para dentro do espaço e tempo supostamente subjetivos. A
intersubjetividade da experiência é um problema para Kant. Como John Searle uma
vez notou: “Como é a publicidade possível? Como é possível que eu e você
vejamos a mesma aparência? Ou talvez não possamos?[17]
Apesar de todo o maquinário conceitual
construído por Kant, a estética transcendental nada tem de convincente. Como
pode o sujeito da experiência determinar o espaço e o tempo físicos, se essas entidades
claramente não dependem dele? A física moderna não teria descoberto que onde há
corpos materiais massivos o espaço físico segue uma geometria elíptica se o
espaço fosse imposto pelo sujeito como a forma da intuição sensível.
Há
certamente um espaço dependente da mente, constituído por imagens mentais dadas
na percepção ou produzidas pela imaginação, assim como uma consciência
psicológica do passar do tempo. Mas esses não são nem o espaço medido por fitas
métricas, nem o tempo contado pelos relógios, mas fenômenos psicológicos
secundários, que não passam reflexos nem sempre confiáveis de espaços e tempos
físicos, dos quais dependem até mesmo para se tornarem em algum sentido
mensuráveis. A argumentação kantiana parece apoiar-se em uma confusão do espaço
e tempo psicológicos secundários com o espaço e o tempo reais dos quais eles
dependem.
7
Analítica.
Passemos agora à segunda parte da Crítica, a analítica
transcendental. Assim como a estética transcendental tinha a ver com as
intuições sensíveis, a analítica transcendental tem a ver com conceitos do
entendimento. Como já fiz notar, para Kant intuições e conceitos são
complementares, pois intuições só se tornam cognitivamente acessíveis quando
conceptualizáveis e conceitos não ancorados em intuições nada nos dizem. Como
ele com boas razões escreveu:
As intuições sem os conceitos e os conceitos sem as
intuições não produzem conhecimento. Os conceitos sem as intuições são vazios e
as intuições sem os conceitos são cegas.[18]
O
objetivo original da analítica transcendental é, através da revolução
copernicana, provar a verdade necessária e universal das leis da natureza, como
as grandes descobertas feitas pela física de Newton, que Kant ainda podia
considerar verdades absolutas. Para ele isso só é possível se o intelecto puder
impor suas leis ao mundo tal como ele nos aparece (como fenômeno) e não tal
como ele é em si mesmo (como noumenon). Assim, o intelecto precisa impor
suas leis à experiência. Contudo, o caminho que para Kant conduz a isso é muito
mais encarpado do que um leitor desprevenido é capaz de imaginar.
A atividade do entendimento não é mais a de
intuir, mas a de formar juízos sobre o que é dado à sensibilidade. O trabalho
dos juízos é o de unificar a experiência formando sínteses a partir das
intuições sensíveis. As classes mais
gerais de predicados através das quais o entendimento sintetiza a experiência
são formadas por “superconceitos puros” que são as categorias kantianas,
com as quais ele pretendeu substituir as categorias de Aristóteles. Uma
diferença é que enquanto para Aristóteles as categorias pertenciam ao domínio
do ser, ou seja, da realidade objetiva (legis entis), as categorias de
Kant pertencem ao domínio do sujeito (legis mentis), dado que é ele quem
às impõe ao mundo da aparência fenomênica. Outra diferença é que enquanto em
Aristóteles as categorias parecem ter sido estabelecidas de maneira meramente rapsódica,
Kant pretende tê-las feito derivar de uma tábua dos juízos herdada da lógica
clássica, seguindo o que chamou de dedução metafísica das categorias.
As categorias ocupam na analítica o mesmo
lugar que o espaço e o tempo na estética. A estética tratava das formas a
priori de toda a sensibilidade. A analítica trata das leis a priori que estruturam
todo o pensamento. Para serem intuídas as coisas precisavam ser submetidas às
formas da intuição sensível. Mas para serem pensadas elas também precisam ser
submetidas às leis do pensamento. No que se segue apresento a tábua dos juízos tal
como ela foi proposta por Kant, seguida das categorias que neles se encontram
incorporadas:
ESQUEMAS: JUÍZOS: CATEGORIAS:
universal unidade
Quantidade particular pluralidade
singular totalidade
afirmativo realidade
Qualidade
negativo negação
Infinito limitação
categórico
substância/acidente
Relação hipotético causa/efeito
disjuntivo ação recíproca
problemático possibilidade/impossibilidade
modalidade assertórico existência/inexistência
apodítico necessidade/contingência
As categorias são conceitos gerais que se encontram
implícitos em tudo o que pensamos. A ideia de extrair conceitos fundamentais
das formas dos juízos é importante, ainda que seu desenvolvimento seja
questionável nos detalhes. Exemplos podem mostrar como isso funciona. Digamos
que eu faça o seguinte juízo: “Essa rosa é vermelha”. Trata-se de um juízo
singular, afirmativo, categórico e assertórico. De modo correspondente, as
categorias aplicadas são respectivamente as de totalidade (trata-se de um
todo), realidade (o referente é real), substância (a rosa), acidente (é
vermelha), e existência (a rosa existe). Considere agora o juízo: “Se um metal
é aquecido então ele se expande”. Aqui o juízo é hipotético e a categoria de
causalidade é aplicada, além das categorias de unidade, causalidade, realidade
e existência. Há arbitrariedades evidentes, como o fato de que os juízos
singulares e universais poderiam conter inversamente as categorias de unidade e
pluralidade. Além disso, a simetria das tríades é uma invenção demasiado
suspeita.
Não
satisfeito com a dedução metafísica (quid factum) da tábua das categorias,
Kant decidiu apresentar uma dedução transcendental (quid juris) capaz de
demonstrar que as categorias são condição necessária para a possibilidade da
experiência enquanto tal. Essa dedução é a parte mais indevassável da Crítica
e seu estudo já foi comparado à travessia do grande deserto árabe... Vou resumir o que me pareceu mais essencial.
Tudo começa com a observação de que nosso
entendimento opera através de sínteses que se iniciam pela combinação do
múltiplo dado na intuição. Isso é bem exemplificado na síntese da apreensão do
múltiplo, que é seguida de sua reprodução ou retenção na imaginação e de sua
posterior recognição como sendo o mesmo. As sínteses inevitavelmente envolvem a
aplicação dos juízos e respectivas categorias. Além disso, meu conhecimento não
é constituído de elementos separados entre si, mas forma um todo unitário. Sou
consciente dessa união através do que Kant chamou de unidade sintética da
apercepção (autoconsciência), que não é empírica, mas transcendental. Trata-se
da forma de autoconsciência já identificada no próprio “eu penso” cartesiano. Se
não fosse capaz disso eu não seria capaz de experienciar nada como pertencente à
minha própria consciência, disso resultando uma fragmentação da consciência. Como
ele escreve:
O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações
(...) uma vez que as múltiplas representações presentes em determinada intuição
não seriam minhas se não pertencessem todas à minha autoconsciência. De outro
modo o meu eu seria tão vário e colorido quanto são as representações que
formo.[19]
Esse eu apreendido no “eu penso” não pode,
porém, ser um eu empírico humiano, pois esse último é um eu multicor,
constituído por feixes de intuições que se sucedem rapidamente umas às outras,
sendo diverso a cada nova experiência. O eu pensante tem
de ser um único. Ele está para Kant sempre acima e além da experiência, uma vez
que nada do que é dado à experiência empírica pode lhe pertencer.
O eu
pensante da apercepção transcendental é um “Eu transcendental”, um X noumênico cuja
assunção é uma necessidade lógica para que possamos ter a consciência de nossas
sínteses como pertencentes a um único sujeito da experiência. Esse X noumênico precisa
ser também uma atividade aperceptível sintetizadora do múltiplo da intuição
sensível e fonte da ordem objetiva da natureza. A unidade sintética da
apercepção daí decorrente é necessária à aplicação das categorias porque os
juízos só são plenamente reconhecidos quando são integrados na unidade de uma
consciência. Finalmente, como o eu pensante realiza as sínteses do entendimento
só através de juízos e como os juízos contém as categorias, todo nosso conhecimento
demanda a aplicação das categorias.
8
[[[[ A sugestão de que o eu possa ser comparado
a uma comunidade pode ser interpretada como sendo a do eu como algo que somos
capazes de conhecer pela progressiva formação de uma autoimagem,
entendida como a ideia que fazemos de nós mesmos. Uma pessoa não pode ter
acesso imediato a tudo aquilo que caracteriza o seu eu, pois isso é
impossível: os traços característicos do eu são múltiplos e disposicionais, só
emergindo sob circunstâncias específicas, as quais variam de acordo com cada
traço. Mas uma pessoa pode aprender sempre mais acerca de si mesma. Ela pode
ter a experiência reflexiva de seus estados mentais e paralelamente a isso
identificar suas reações comportamentais diante de circunstâncias que se
repetem. Ela também pode comparar essa experiência com os comportamentos e
supostos estados mentais de outras pessoas em circunstâncias similares. E pode,
comparativamente e aos poucos aprender quais são as características de si mesma
como sujeito, em contraste com as de outras pessoas. A auto-imagem que a pessoa
dessa maneira cria deve ser a de uma classe (comunidade) de propriedades
mentais cujos membros não precisam ser definitivos e se encontram mais ou menos
interconectados. Também pode ser que uma pessoa forme uma auto-imagem
distorcida de si mesma e isso parece ser bastante frequente. Nesse caso outras
pessoas, analisando seu comportamento e comparando com os próprios e os de
outros, poderão chegar a conclusões até mesmo mais corretas do que as que ela
tem sobre si mesma.]]]
00000
A ilusão do grande Eu. Quero agora expor uma maneira de reconstruir o insight de Kant de
maneira a lhe retirar a questionável postulação de um Eu transcendental
noumênico e postar esse Eu em um nível mais propriamente empírico.
Quando Kant escreveu sobre o eu empírico ele tinha
em mente o “feixe de percepções que se sucedem com rapidez vertiginosa” de
Hume. Contudo, já vimos que há uma
outra espécie pouco lembrada de eu empírico humiano, o “eu comunitário”, que é a
de algo similar a uma comunidade organizada de estados mentais (perceptos para
Hume) da qual entram e saem membros, mas que nem por isso deixa de ser a mesma (ver
cap. XI, sec. 15). Uma pessoa pode aprender a se conhecer como o repositório
desses traços mentais geralmente disposicionais. E até mesmo outras pessoas
podem descobri-los nela por analogia com o que a elas mesmas acontece. Se isso
for aceito então o acesso que uma pessoa tem a esse eu comunitário é
forçosamente segmentado, pois ela só tem a experiência de si mesma como
possuindo certos traços psicológicos (digamos, ser corajosa) em contextos nos
quais esses traços se manifestam (ela demonstra coragem em seu comportamento) e
nos quais outras pessoas sejam capazes de lhe atestar esses traços psicológicos
em virtude de seu comportamento.
Aqui alguém
poderia objetar: o que tem isso a ver com o “eu penso” kantiano, que acompanha
todas as minhas representações? A consciência de um Eu transcendental não é de
uma experiência de traços mentais egóicos. Afinal, tudo o que preciso saber é
que sou um algo único que está ativamente pensando, experienciado, nada
de específico se passando em minha mente...
A resposta razoável é que uma pessoa é
perfeitamente capaz de ganhar consciência de seu eu-comunitário como aquilo que
acompanha todas as suas representações sem precisar tomar consciência de sua constituição,
simplesmente por ter a consciência de possuir uma auto-imagem de seu eu
comunitário. Uma vez que a pessoas já desenvolveu essa auto-imagem, ela já
possui uma autoconsciência superior (a consciência de que tem autoconsciência),
que não requer a atualização das representações dos traços mentais que constituem
seu eu, o que já basta para justificar sua consciência de que um mesmo “eu”
acompanha todas as suas representações. Na verdade, não há nada de especial
nisso, pois temos consciência de muita coisa que não precisamos ou mesmo que
não podemos atualizar. Exemplos: sei que é noite porque jantei há algumas
horas, sei que convidei seis pessoas para jantar, mas não me lembro de quem era
a sexta pessoa.
Uma consequência dessa solução é que um
sujeito incapaz de introspecção, um recém-nascido, um animal, não será capaz de
ter a consciência cartesiana de si mesmo demandada por Kant. Para que eu me
pense presentemente como um eu pensante é preciso que antes já tenha ganho algum
conhecimento de meu eu-comunitário, ou seja, dos traços psicológicos reiteráveis
mais característicos de mim mesmo.
Temos agora
um triplo conceito de eu empírico:
(i)
o eu
humiano fugaz entendido como “o feixe de percepções que se sucedem” (Hume);
(ii)
o eu-comunitário
(também sugerido por Hume), entendido como um conjunto mais ou menos organizado
de traços mentais reiteráveis cuja conhecimento permite a formação de uma
auto-imagem que deve servir a uma autoidentificação.
(iii)
a
consciência que uma pessoa tem de si mesma como um sujeito que possui (ii) sem
que para isso ela precise atualizar características de (ii) em sua memória.
A minha tese é que o sentido (iii) é o do “Eu” que acompanha todas as
minhas representações, o eu cartesiano. Ele nada mais é do que a consciência
que tenho de (ii) sempre que penso em mim, sem considerar qualquer
representação. E minha sugestão é que Kant tomou o sentido (iii) como sendo a
indicação de um eu transcendental de algum modo implicado pela unidade da
apercepção.
Com isso
temos em princípio explicada a suposta diferença entre o eu empírico e o Eu
transcendental entendido como o X que acompanha todos os meus pensamentos. O eu
empírico fugaz considerado por Kant é (i). Mas o que ele pretende que seja o “Eu”
do “eu penso”, responsável pela unidade transcendental da autoconsciência, não
é mais do que (iii), ou seja, a simples consciência de ordem superior, uma
metaconsciência que possuo de que tenho um eu comunitário do qual já tive as
mais variadas introspecções parciais sem que para isso precise atualizar sua
auto-imagem. Com isso o Eu transcendental noumênico passa à categoria de
ilusão. Retornarei a esse ponto ao discutir Fichte, um filósofo que se
comprometeu até o pescoço com o ilusório Eu transcendental.
9
Causalidade. Na parte seguinte
da Crítica, em suas analogias da experiência, Kant buscou explicitar os
princípios reguladores que subjazem à descoberta das leis empíricas da física
newtoniana. Contudo, seus argumentos também são aqui abertos à contestação. Por
exemplo, na segunda analogia ele tentou demonstrar seu princípio sintético a
priori de que a causalidade é condição necessária a toda a experiência pelo
fato de que a ordem subjetiva das percepções é reversível enquanto a ordem
objetiva é irreversível. Disso ele concluiu que a ordem das nossas percepções é
como tal necessária, o que confirma que as mudanças apropriadas no objeto
precisam ser causalmente determinadas. Mas a conclusão de que porque a ordem das
percepções é irreversível ela é necessária é um salto perfeitamente arbitrário.
Um dia se sucede, irreversivelmente, a uma noite, mas essa irreversibilidade
nem é necessária nem sequer causal. E nada garante a irreversibilidade do que é
dado à experiência, tanto quanto para Hume nada garante a causalidade. É
curioso que um argumento por essência tão frágil tenha dado lugar a tanta discussão.[20] Considere as ocorrências que
se dão em um cenário cético, como o do sonho ou da alucinação. Elas são
reversíveis, dado que a suposta ordem causal pode em tal cenário ser
arbitrariamente alterada. Kant rejeitava o apelo a hipóteses céticas porque
sabia que elas seriam desastrosas para seu sistema.
Uma alternativa mais promissora para salvar
o princípio da causalidade seria apelarmos ao mesmo artifício que recorremos
com respeito ao princípio de que o futuro será semelhante ao passado (ver cap.
XI, sec. 9): enfraquecer o princípio. Suponhamos que o princípio:
PC:
Todo evento é causado
seja
substituído pelo princípio minimalista:
PC1: Algum evento é causado.
Não
há dúvida que para que possamos ter qualquer conhecimento do mundo, a versão minimalista
precisa ser aceita. Afinal, até mesmo nossa atividade perceptual é causal. A
segunda formulação é analítica, pois sua negação como “Nenhum evento é causado”
é contraditória. Afinal, que aplicação poderíamos dar sentido à noção de evento
se nada é causado? Assim, sem abandonar a assunção da analiticidade podemos
tornar a segunda versão do princípio mais forte como:
PC*: Para que possamos obter conhecimento do mundo
empírico, ao menos um número suficiente de eventos precisa ser causado.
Admitindo
que possuímos realmente conhecimento do mundo, então esse princípio precisa ser
analítico. Afinal, negá-lo afirmando que podemos obter conhecimento do mundo
empírico sem que um número ao menos suficiente de eventos seja causado
parece inconsistente. Embora demande elaboração esse argumento aponta para um
caminho transitável.
Um
outro argumento frágil é a suposta refutação do idealismo. De acordo com ela, a
experiência interna só é possível pela experiência externa. Logo, se tenho
consciência de minhas próprias experiências é porque há objetos exteriores a
mim... além disso, a percepção de minha existência no tempo só é possível sob a
assunção da existência de algo fora de mim. O problema com esse argumento é que
ele também não resiste a hipóteses céticas: um gênio maligno não teria
dificuldade alguma em produzir em nós experiências internas como se fossem
externas em espaço e tempo aparentemente objetivos.
10
Contra o noumenon. Há maneiras
mais fortes e mais fracas de se interpretar a Crítica. Segundo a
interpretação mais forte, a unidade transcendental da consciência deve ser
entendida como um Eu transcendental que é a pura atividade sintetizadora que
serve como fonte da ordem objetiva da natureza. Espaço, tempo e categorias são
vistos como puramente subjetivos. A coisa em si (o domínio noumênico) seria algo
incognoscível, mas existente e real (somos “uma ilha no oceano noumênico”
segundo Kant). De acordo com essa interpretação tradicional nós somos
literalmente os legisladores da natureza tal como ela nos aparece.[21]
Essa maneira
de ver torna o sistema da Crítica incoerente: a coisa em si passa a ser
tratada como objeto de aplicação da categoria causalidade e mesmo das
categorias de realidade e existência. Ela é vista como algo real a causar os
estados fenomenais. Todavia, a coisa em si não é espaço-temporal e as
categorias foram feitas para serem aplicadas ao mundo fenomênico
espaço-temporal de modo a garantir a aplicabilidade de nossos juízos sintéticos
a priori.
Diante desses
problemas, a maneira de salvar o sistema da Crítica de inconsistências parece
ser optar por interpretações mais fracas.[22] Segundo essas interpretações,
o texto de Kant poderia ser reduzido a uma detalhada análise do conceito de
experiência. Sob essa perspectiva, mais epistêmica, o conceito de unidade
transcendental da consciência passa a dizer respeito à condição lógica de
possibilidade do trabalho de síntese. O conceito de coisa em si, por sua vez,
torna-se um mero conceito limitador.
A
interpretação fraca encontra dificuldades textuais: Kant escreve que os nossos
sentidos são afetados pelos objetos... Isso parece envolver a ideia de
que objetos noumênicos são de fato capazes de causar as sensações. Por certo, o
intérprete é livre para expurgar da crítica elementos secundários e
problemáticos. Ele poderá dizer que a coisa em si é o inseparável correlato do
fenômeno, existindo assim como o outro lado de uma mesma folha de papel, o lado
que não podemos ver! O noumenon é “a coisa que aparece sem o seu aparecer.”
O problema é que essas metáforas não parecem resgatáveis: o outro lado da folha
de papel pode ser visto e descrito, a coisa em si não. Como notou Wittgenstein,
o conceito de fronteira exige que sejamos capazes de pensar o que está do outro
lado dela. O conceito de um limite que só contém o lado de cá é incoerente. E
falar da coisa que aparece à parte o seu aparecer é pura retórica. Conclusão:
se em uma interpretação forte o conceito de coisa em si mesma era incoerente,
em uma interpretação fraca ele é ininteligível.
11
Regras conceituais. Na seção
da Crítica intitulada ‘analítica dos conceitos’ Kant deu uma importante
contribuição à filosofia sobre a qual vale a pena chamarmos atenção. Para ele
os conceitos são capacidades para classificar e ajuizar, de modo que ele os via
como habilidades governadas por regras. Como você deve estar lembrado,
os empiristas tendiam a interpretar conceitos como imagens mentais reprodutoras
de impressões sensíveis. Essa maneira de ver sempre foi problemática. Afinal,
para identificar uma imagem parece que precisamos presumir seu conceito. Além
disso há conceitos que não parecem demandar imagens... Com a noção de conceito
como envolvendo essencialmente a noção de regra esse problema desaparece. As
regras conceituais possuem critérios de aplicação que podem evidentemente demandar
a construção de imagens, mas agora de forma inteiramente flexível. Por exemplo:
se defino o conceito de triângulo como “a figura plana fechada formada por três
semirretas que se tocam em suas extremidades”, tenho uma regra cujos critérios
de aplicação me permitem formar imagens de triângulos retângulos, equiláteros,
isósceles e escalenos. Não caio assim no problema supostamente criado por Locke
de imaginar um triângulo que é tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Outro
exemplo pode ser dado pelo conceito de cadeira. Posso defini-lo como “um artefato
constituído de um banco não veicular com encosto feito para uma só pessoa se
sentar de cada vez”. A regra aqui expressa nos permite identificar cadeiras de
balanço, cadeiras de rodas, cadeiras elétricas, poltronas e tronos como satisfazendo
seus critérios. Mas coisas como sofás (onde mais de uma pessoa pode se sentar),
assentos de carro e de avião (veiculares), cadeiras esculpidas pelo vento na
rocha (não são artefatos) são excluídas dos critérios da regra conceitual.
Na
continuação da analítica Kant percebeu que os conceitos puros do entendimento e
as intuições sensíveis deveriam ser completamente heterogêneos. Faz-se
necessária uma ponte que ligue as categorias às intuições fenomênicas,
permitindo sua aplicação. Essa ponte precisa ser algo homogêneo tanto às
categorias quanto à intuição fenomênica, que pare ele é o tempo. Trata-se aqui
do que Kant chamou de esquematismo. Para cada categorias deve haver um
esquema temporal próprio, por exemplo: para a categoria de substância temos a
permanência no tempo (substância é o que permanece o mesmo); para a categoria
de causa e efeito temos a sucessão temporal do múltiplo segundo uma regra; para
a categoria de ação recíproca temos a simultaneidade temporal; para a categoria
de realidade temos a existência de um objeto no tempo; para a categoria de
necessidade temos a existência de um objeto em todos os tempos.
É interessante compararmos aqui o esquematismo
de Kant com a ideia defendida por Michael Dummett[23] e retomada por Ernst
Tugendhat[24],
segundo a qual conceitos são basicamente regras criteriais pelas quais
(através de termos gerais) identificamos propriedades ou (através de termos
singulares) identificamos indivíduos. Essas regras criteriais podem demandar a
formação de elementos espaço-temporais imagéticos como critérios de sua
aplicação.
12
Ideias da razão. Chegamos,
por fim, à dialética transcendental. Seu objeto de estudo é a atividade da razão.
A razão é a capacidade de relacionar juízos fazendo inferências. O objetivo de
Kant é duplo: investigar a razão em si mesma e investigar os usos ilusórios da
razão.
A razão pura em si mesma se constitui para Kant
no esforço de unificar o conhecimento associando sequências de juízos introduzidos
em raciocínios silogísticos na busca de sínteses cada vez mais amplas, com o
objetivo último e inatingível de unificar toda a experiência. A razão procura
uma explicação última para tudo e faz isso guiada pelo que Kant chamou de ideias
transcendentais da razão. Essas ideias da razão são conceitos diretivos,
ou seja, conceitos que não possuem objeto dado na intuição sensível, alcançando
apenas o nível do entendimento, mas que tem a função de orientar o raciocínio.
As ideias da
razão são arranjadas em três classes:
A primeira contendo a unidade absoluta (não-condicionada) do sujeito
pensante; a segunda a unidade absoluta da série das condições da aparência; a
terceira, a unidade absoluta da condição de todos os pensamentos em geral.[25]
Essas ideias da razão são respectivamente as da Alma,
Mundo e Deus, usadas em sentido técnico. A ideia de alma orienta
o raciocínio em direção a uma unidade absoluta que só poderia ser preenchida
por um sujeito incondicionado noumênico que está além da esfera da experiência
possível. Seu modelo de raciocínio (segundo Kant) seria o do silogismo
categórico: “Todo M é P, Todo S é M; logo, todo S é P”. A ideia do mundo
orienta o raciocínio em direção à unidade formada por um incondicionado
noumênico objetivo também situado além da experiência possível. Seu modelo de
raciocínio seria o do silogismo hipotético: “Se A então B, A é dado; logo: B”. E
a ideia de Deus orienta os raciocínios em direção a uma unidade absoluta, a qual
seria um incondicionado noumênico determinante tanto do mundo quanto da alma.
Ela dependeria do silogismo disjuntivo: “A ou B, não-A; logo: B”.
Como chegamos
a essas ideias da razão? A resposta é: pela tentativa de tornar as premissas
absolutas. Sempre que raciocinamos precisamos de premissas. Mas as conclusões
só serão verdadeiras se as premissas também o forem. Mas então precisamos de
novos raciocínios, novas inferências para justificar essas premissas e assim
por diante... A razão procura uma base absoluta para as premissas, o incondicionado,
mesmo que nunca possa encontrá-lo. Eis um exemplo exposto por Kant em um
silogismo:
Todos os homens são mortais.
Todos os scholars são homens.
Logo: todos os scholars são mortais.
A conclusão se segue da premissa maior e da menor. Mas
podemos nos perguntar pela razão da premissa maior, considerando-a como a
conclusão de um pró-silogismo:
Todos os animais são mortais.
Todos os homens são animais.
Logo: todos os homens são mortais.
Com isso unificamos juízos como “Todos os elefantes
são mortais” e “Todos os répteis são mortais”.
Contudo, podemos
ainda prosseguir submetendo a premissa “Todos os animais são mortais” a um
processo similar, exibindo-a como a conclusão de um pró-silogismo cuja premissa
maior seja “Todos os seres vivos são mortais”, com o que unificaremos uma gama
ainda maior de juízos.
A razão,
diversamente do entendimento, não produz juízos. Mas ela conecta os juízos uns
aos outros em um processo de justificação que não tem fim. A máxima lógica da
razão é proceder “sempre mais para cima” em busca de unificações cada vez
maiores, progredindo sempre em direção a uma suposta premissa que não seja
condicionada por nenhuma outra. A razão busca sempre o incondicionado, mas tudo
o que ela encontra é o condicionado, uma vez que o incondicionado jamais poderá
ser dado à experiência. Daí o lamento de Novalis: “Buscamos por toda parte o
incondicionado e encontramos somente coisas” („Wir suchen überall das Unbedingte und finden immer nur Dinge“).
É
interessante lembrar aqui que Karl Popper aplicou a sugestão de um conceito
diretivo à ideia de uma verdade absoluta. Para ele teorias científicas
com o mesmo escopo podem ter maior ou menor verossimilhança com relação a um
ideal de verdade absoluta.[26] Assim, a teoria da
gravitação na relatividade generalizada tem maior verossimilhança com o ideal
de verdade absoluta do que a teoria newtoniana da gravitação. Afinal, apesar de
possuírem o mesmo escopo, a primeira explica a deflexão da luz pelos campos
gravitacionais, a precessão exata de Mercúrio, etc., o que a teoria newtoniana
não é capaz. Mas, como Popper observou, mesmo que chegássemos pela ciência à
verdade absoluta, não seríamos capazes de identificá-la como tal, uma vez que
não poderíamos saber se novas experiências não nos forçariam outra vez a
questioná-la.
13
Existência. Chegamos agora à parte
negativa da dialética, a crítica das ilusões da razão constitutivas do que Kant
considerava uma metafísica dogmática. Para ele as ideias da razão não são nem
derivadas da experiência, como pensaria um empirista, nem são representações da
coisa em si, como poderia ter pensado um racionalista. Dentro do escopo da
razão pura as ideias de alma, mundo e Deus tem como única função unificar
juízos, sem serem capazes de se referir a absolutamente nada. É nesse ponto que
entram em questão as ilusões da razão. Por não atentar para essa função
meramente diretiva e por tratar as ideias da razão como se elas fossem
conceitos ordinários referindo-se a coisas em si ou a fenômenos, filósofos
foram induzidos a realizar investigações equivocadas sobre a existência da
alma, da origem do mundo e da existência e natureza de Deus.
Para Kant a
psicologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de alma, como se nos fosse
possível conhecer um eu absoluto como objeto noumênico. No tocante à ideia de
alma, a razão produz um paralogismo que consiste em considerar o “eu penso”
unificador da consciência como se ele fosse um substrato unificador substancial
acessível à experiência. Contudo, a categoria de substância só pode ser
aplicada aos dados sensíveis, mas nunca ao sujeito de todo o pensamento. A
cosmologia especulativa produz ilusões sobre a ideia do mundo, como se fosse
possível conhecer a coisa em si como fenômeno. E a teologia especulativa produz
ilusões sobre a ideia de Deus, como se fosse possível conhecer a causa
noumênica, tanto do sujeito quanto do objeto fenomenal.
Não pretendo
discutir aqui em qualquer detalhe os argumentos de Kant com respeito às ilusões
da razão. Quero considerar apenas a famosa crítica feita por ele ao argumento
ontológico de Anselmo para provar a existência de Deus, uma vez que ela está na
origem da mais importante linha de pensamento com respeito ao conceito de
existência. Segundo esse argumento, Deus, por ser o que de maior pode ser
pensado, precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós iríamos nos
contradizer acreditando sermos capazes de pensar algo maior do que o que de
maior pode ser pensado (cap. IV, sec. 6).
Para Kant o problema com o argumento se
encontra no fato de que a existência não é um predicado. Por isso a
atribuição de existência não adiciona nada ao conceito: a existência de uma
nota de 100 táleres nada adiciona ao conceito de 100 táleres.[27] Não é muito acertado,
porém, dizer que a existência não é um predicado. Mais apropriado é dizer que a
existência é algo como um predicado de ordem superior. Gottlob Frege, no final
do século, XIX percebeu isso. Para ele a existência é a propriedade de uma
função conceitual (conceito) de que sob ela cai ao menos um objeto. Por
exemplo, quando digo que a Lua da terra existe, estou dizendo que ao menos um
objeto cai sob o conceito de Lua da terra.[28] Como a função conceitual ou
conceito já é uma propriedade, a existência passa a ser aqui uma propriedade de
segunda ordem, uma propriedade-propriedade. Melhor dizendo: ela é uma
propriedade de certas propriedades que atribuímos predicativamente ao objeto.
Posso esclarecer
melhor o que acabei de dizer usando um mínimo de lógica predicativa.[29] Considere o enunciado: “Gatos
existem”. Esse enunciado pode ser lido como “Existe ao menos um x, tal que x é
um gato”, ou ainda: “Ex (Fx)”, onde ‘E’ = existe e ‘F’ = gato. O ‘F’ entre
parêntese designa a propriedade de x de ser um gato. E o quantificador
existencial ‘E’ tem como objeto a propriedade F de x, sendo por isso mesmo uma
propriedade de segunda ordem de x, ou seja, uma propriedade-propriedade.
Acredito ser possível corrigir
e aprofundar essa análise com base em Kant, Michael Dummett e Ernst Tugendhat.
Kant foi o primeiro a pensar conceitos em termos de regras. Dummett interpretou
os sentidos (Sinne) fregeanos como regras criteriais. Tugendhat deu nome
aos bois: o sentido do termo singular é sua regra de identificação, o
sentido do termo geral é sua regra de aplicação. Para simplificar
chamarei aqui ambas de regras conceituais.
Para Frege um predicado exprime um sentido que,
por sua vez, deve ter como referência o conceito sob o qual podem cair objetos.
Frege nunca conseguiu explicar o que seria o sentido de um predicado. Por isso
desvio-me aqui de Frege seguindo o entendimento mais natural, segundo o qual o
sentido do predicado é o próprio conceito por ele expresso, a própria função
conceitual, a regra conceitual do predicado, sendo a sua referência um
particular entendido como uma propriedade espaço-temporalmente
localizável (tropo) do objeto referido pelo termo singular no caso de enunciados
do tipo Fa, ou seja, enunciados predicativos singulares.
Esse entendimento nos sugere que a existência
nada mais é do que uma propriedade da regra conceitual expressa por um
predicado, qual seja, a propriedade de sua garantida aplicabilidade.[30] Seguindo esse
entendimento, com relação à regra de identificação podemos, aplicando a lógica
predicativa, dizer “Sócrates existe” inventando o verbo ‘socratizar’ ou S para nomear
a regra de identificação de Sócrates. Assim, dizer que Sócrates e somente um
Sócrates existe é o mesmo que dizer “Ex (Sx & (y) (Sy → y = x))”, onde S
exprime a regra conceitual de identificação para Sócrates e E nos diz que essa
regra é efetivamente, garantidamente aplicável. O mesmo pode ser dito de regras
de aplicação de predicados. Como dizemos que Sócrates é tagarela dizendo que a
regra conceitual de aplicação do predicado ‘...é tagarela’ se aplica a
Sócrates? Ora, ao invés de “Ta” (a = Sócrates, T = tagarela) teremos de dizer “Ex
(Sx & (y) (Sy → y = x) & Tx)” (Existe somente um algo que é Sócrates e
ele é tagarela).
Com a expressão ‘efetiva ou garantida
aplicabilidade’ não quero dizer a mera possibilidade de aplicação, mas uma
aplicabilidade que pode ser tida como certa, dadas as condições adequadas. Ou
seja: se forem dadas as condições adequadas e o agente quiser aplicá-la, ele
inevitavelmente a aplicará. Isso é importante para desambiguar: dizer que a
existência é a efetiva ou garantida aplicabilidade da regra de atribuição de um
predicado exclui a ideia de que essa aplicabilidade seja meramente hipotética.
Essa é o que considero uma mais adequada paráfrase da sugestão fregeana de que
a existência é a propriedade de um conceito de que ao menos um objeto cai sob
ele.
A aplicabilidade pode ser garantida por
verificação direta (ex: “O cavalo no estábulo existe porque eu o vi”), mas
também por sua coerência com outros enunciados (“Como essa é uma escola de
equitação, eles devem ter cavalos no estábulo”). Note-se que para a efetivação
de um juízo de existência é necessário que existam sujeitos epistêmicos capazes
de aplicar a regra quando postados em situações adequadas. Mas a existência enquanto
tal não é o mesmo que o juízo de existência. Assim, mesmo que o juízo de
existência não seja efetivado, as coisas não deixam de existir. Daí que a
existência não é um conceito antropomórfico. Não é necessário sequer que as
regras conceituais em questão existam. O importante é que, caso elas existam e
caso existam agentes cognitivos que queiram aplicá-las e que estejam em situações
adequadas para aplicá-las, elas se demonstrem garantidamente aplicáveis.
Uma objeção importante à
sugestão acima se encontra na ideia de que se considerarmos a existência como a
propriedade de uma regra conceitual parece que ela é algo que se encontra
flutuando acima e além do objeto do qual afirmamos existência. A resposta
consiste em inverter o modo de exposição. Podemos igualmente considerar a
existência como uma propriedade disposicional do objeto, qual
seja, a meta-propriedade de um objeto de ter a sua regra conceptual de
identificação garantidamente aplicável a si mesmo, uma vez dadas as condições
adequadas. Há objetos que não possuem essa meta-propriedade disposicional. Eles
são os objetos meramente concebidos ou imaginados. Por exemplo, a Torre de
Babel. Mas outros objetos, como a Pirâmide de Quéops, possuem essa propriedade.
A pirâmide de Quéops possui a propriedade de ter sua regra de identificação
garantidamente aplicável a si mesma. Por isso dizemos que a Torre de Babel não
existe, enquanto a pirâmide de Quéops existe. Nesse caso a existência passa a
ser a propriedade de um objeto pertencente a certo domínio, de ter a sua regra
de identificação garantidamente aplicável a ele. Entendida dessa maneira a
concepção da existência como uma propriedade de ordem superior se torna bem mais
aversa a objeções.
Certamente, em um contexto
ficcional a Torre de Babel será considerada um objeto existente, pois esse
objeto ficcional possui a disposição de ter sua regra de identificação
garantidamente aplicável a si mesmo como encontramos escrito no contexto
bíblico (estou considerando a Bíblia como um texto ficcional). Com isso
explicamos também porque podemos dizer que tudo existe, uma vez que qualquer
coisa concebível pode enquanto tal possuir a disposição de ter sua regra conceitual
de identificação garantidamente aplicável a si mesma. E com isso explicamos até
mesmo porque podemos dizer que a própria existência existe. É que a disposição
da aplicabilidade das regras de terem uma regra de identificação de ordem
superior garantidamente aplicável a si mesmas também é dada.
14
Ética kantiana. A presente
exposição do pensamento kantiano restará incompleta se não considerarmos ideias
e conclusões de sua crítica da razão prática. Para Kant, assim como existe uma
razão pura teórica, existe também uma razão pura prática, que tem por objetivo
investigar o que existe de sintético a priori na determinação das decisões e
ações humanas.
Tudo o que Kant
rejeitou em sua crítica da razão pura teórica ele passou a aceitar em sua razão
pura prática. E o que ele critica aqui é a razão “impura” prática, vale dizer,
aquelas éticas que colocam as origens do comportamento moral na experiência
empírica, como acontece com as éticas que colocam o bem no prazer (hedonismo),
nas ações onde prevalece o bem maior para todos (o utilitarismo) ou na
felicidade humana enquanto tal (eudemonismo). Para ele essas concepções
obedecem ao que ele chama de imperativo hipotético, que tem a forma: “Se
queres obter Y deves fazer X”. O imperativo hipotético é teleológico,
imiscuindo questões empíricas na teoria moral, o que a faz deixar de ser necessária
e universal. Para que a moralidade tenha valor absoluto ela deve, pois,
obedecer à lei pela própria lei e não por algum outro motivo. O imperativo
categórico último é para ele o do dever pura e simplesmente: devemos
obedecer às leis morais. A forma do imperativo categórico é: “Devemos fazer X
pelo simples dever de fazer X”.
Para que o imperativo categórico se torne
factível Kant apresentou três formulações explicitadoras interligadas, que
servem como meta-regras a serem aplicadas às máximas que encontramos embutidas
nas ações de modo a estabelecê-las como moralmente corretas. Elas são:
1)
Age de
forma que a máxima embutida em sua ação possa ser sempre universalizada para
todos os agentes.
2)
Age de
forma que a tua vontade possa considerar a si mesma como a vontade que qualquer
ser humano estaria disposto a aprovar como instituidora de uma legislação
universal.
3)
Age de
forma que possas tratar a humanidade, tanto a sua quanto a de outros, sempre
como um fim e nunca como um meio.[31]
Considere, por exemplo, ações como as de mentir ou roubar. Elas contêm
embutidas as máximas de que a pessoa pode mentir e roubar. Mas essas máximas
ferem o imperativo categórico. Não devemos infringir a regra (1) querendo que
todos mintam ou roubem, pois logo seremos também ludibriados e roubados, nem
podemos infringir (2) querendo que nossa vontade de mentir ou roubar seja
instituída como a vontade que qualquer ser humano quereria aprovar em uma
legislação universal. E também parece claro que não devemos infringir (3) tratando
os outros como meio, mentindo ou roubando. À primeira vista tudo isso é
correto.
Para que o imperativo
categórico seja aplicável ele pressupõe a satisfação de três condições que Kant
chamou de postulados da razão pura prática. Esses postulados são:
1)
A
liberdade: para que o homem possa satisfazer o imperativo categórico ele
precisa ter a liberdade de agir em conformidade com a razão prática, o que
significa ser capaz de em suas decisões e ações transcender o determinismo
universal do mundo fenomênico.
2)
A
imortalidade: o ser humano deve ser capaz de progredir em direção a uma
adequação completa de sua vontade à lei moral. Como esse progresso é infinito
devemos ser dotados de uma duração indefinida, ou seja, de uma alma imortal.
3)
A
existência de Deus. Não há na lei moral nenhum fundamento de uma necessária
ligação entre ela e uma felicidade que lhe seja proporcional. Por conseguinte,
é preciso que essa desproporção seja ajustada pela existência de Deus como o
elemento causal necessário à existência do sumo bem. (A ideia por trás disso é
que como não somos devidamente recompensados ou castigados pelo que fazemos nesse
mundo, é necessário que exista um Deus para promover a justiça lá no outro
mundo).
Juntando a epistemologia crítica com essa teoria moral um tanto
dogmática chegamos a um breve resumo geral da concepção de mundo
epistemológica, metafísica e moral de Kant.
15
Crítica. Um dos primeiros críticos da ética kantiana foi Hegel.
Ele a viu como um subproduto do pessimismo antropológico luterano. Para ele Kant
teria em sua ética desnecessariamente separado a sensibilidade da razão,
transformando o ser humano em uma espécie de mártir do dever. Mas o ser humano,
pensava Hegel, é um universal concreto, que deve ser capaz de harmonizar a
sensibilidade particular à razão universal ao invés de ser opressivamente
submetido a ela. Afora isso, a ética kantiana justifica os valores de sua
educação e de seu meio. Apesar de sua grande originalidade, ela nos lembra da ferina,
mas em meu juízo acertada observação feita por Russell de que Kant exemplifica
o fato de que a maioria das pessoas jamais consegue se libertar das verdades
auridas quando se encontravam junto ao ventre materno... Por causa disso,
depois de ter sido acordado de seu sonho dogmático por Hume, ele logo tratou de
inventar um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez.[32] Esses julgamentos críticos
parecem confirmados pelas considerações que farei a seguir.
Uma primeira consideração é que
temos sempre o direito de nos perguntar para que serve um dever quando
nos vemos na obrigação de cumpri-lo. O mero sentimento do dever não possui em
si mesmo nada de justificadamente moral. Afinal, a ideia de que temos a
intuição do que devemos ou não fazer, do que é certo e do que é errado, pode
ser profundamente enganosa. Mahatma Ghandi sentia que era seu dever fazer greve
de fome para conseguir a libertação da Índia. Mas também Adolf Eichmann sentia
que era seu dever obedecer aos seus superiores e organizar a deportação dos
judeus para os campos de extermínio da maneira mais eficiente possível, mesmo
não tendo pessoalmente nada contra eles. A intuição do que é certo pode ser produto
de uma herança cultural de séculos, cuja origem escapa por completo da
consciência do agente. Nada indica que tenhamos uma capacidade incondicionada
de distinguir o que seja “fazer X pelo puro dever de fazer X” em um sentido
moral. Algo está faltando! E a resposta natural é que esse algo só pode ser a finalidade
do dever. As deficiências da deontologia nos levam a perguntar sobre as razões para
seguirmos a lei, o que nos reconduz a uma normatividade justificada pelo valor
beneficial de suas consequências concretas.
Aqui o defensor do imperativo categórico poderá apelar para a
justificação do dever através das três meta-regras já apresentadas. O problema
é que essas meta-regras são claramente insuficientes. Contra (1), o princípio da
universalização, há um bom número de contraexemplos. São muitos os casos de
mentiras benignas. Assim, imagine que durante a Segunda Guerra Mundial um cidadão
alemão consciente esconda um ex-empregado judeu em sua fábrica. Quando um
oficial nazista bate à porta para saber se ele sabe alguma coisa sobre o
paradeiro de seu ex-empregado judeu, é obvio que ele deve mentir. Mas Kant foi
explícito em considerar que em tal caso ele deveria falar a verdade, pois se
mentisse infringiria o princípio da universalização.[33] Também contraexemplos às
duas outras formulações podem ser facilmente encontrados. Quanto a (2), a generalização
da vontade moral das pessoas é muito variável para servir de parâmetro. Uma
vontade comum a todas as pessoas, ou é impossível de ser encontrada, ou é
trivial. Além disso, quanto a (3) podemos pensar no contraexemplo de um perseguido
político que usou um passaporte falso para poder escapar da Lituânia ocupada
pelos nazistas. Parece óbvio que ele deveria tratar o oficial da alfândega como
um meio, mentindo quando questionado sobre seu passaporte. Mas para Kant parece
que ele deveria tratar o guarda como um fim em si mesmo, confessando que se
trata de um passaporte falso. Ou será que ele deveria realmente mentir de
maneira a tratar-se a si mesmo como um fim? A regra é insuficiente para uma
resposta.
A conclusão é que os princípios
do imperativo categórico de Kant pouco fazem para determinar o comportamento
moral. O que eles são capazes de fazer é servir como regras auxiliares, simples
regras de polegar, tais como: “Não faças aos outros o que não queres que façam
a ti mesmo” (que pressupõe que o que os desejos dos outros sejam os mesmos que
os teus).
Diante de semelhantes arbítrios, quando
voltamos ao imperativo categórico do fazer X pelo dever de fazer X, surge uma
pergunta ainda mais insidiosa: quem estabelece o que é o dever? Na falta de
algo mais, quem estabelece o que é o dever é quem tem o poder – na época
de Kant as autoridades de um sistema totalitário. Acontece aqui o que acaba por
acontecer com as deontologias em geral. Não se tem como fundamentar regras como
a dos dez mandamentos, senão recorrendo à autoridade divina. No caso de Kant,
os mandamentos são reduzidos a três meta-regras. Se forem literalmente
interpretadas elas se tornam rígidas demais, produzindo um número de valorações
morais injustas. Mas se formos mais flexíveis, elas se tornam arbitrariamente abertas
a inúmeras exceções, acabando por servir a quem for detentor do poder de
decisão. Algo assim acontece com outros sistemas deontológicos. Se estritamente
seguidos eles servirão para impor uma ordem à tribo, mesmo que a custo de
injustiças. Mas se forem interpretados de uma maneira frouxa, eles cederão
lugar ao arbítrio. Sistemas deontológicos cujas raízes consequencialistas se
perderam acabam por servir a sistemas éticos de fundamentação autoritária, seja
ela divina ou secular.[34] Por tudo isso me inclino
a pensar que John Searle estava certo em sua sarcástica observação de que o
imperativo categórico é como um hipopótamo, morto há muito tempo, mas cercado
de pessoas muito inteligentes que tentam ressuscitá-lo por meio de respiração
boca a boca.
Uma razão pela qual dou
preferência ao utilitarismo de duas camadas brevemente sugerido no capítulo VI
(seção 6) é que por meio dele uma sociedade se torna capaz de alterar e
aprimorar as regras morais, na medida em que elas promovem o bem geral, e não a
partir de algum dever fundado em uma intuição possivelmente arbitrária e geralmente
originada de alguma autoridade humana ou divina. O utilitarismo de duas camadas
transforma os princípios absolutos sugeridos por Kant em meta-regras auxiliares
geralmente válidas, na medida em que satisfizerem a função de licitar o
seguimento dos princípios utilitários mais fundamentais, capazes de produzir o
bem geral.
[1] Strawson, The
Bounds of Sense (London: Methuen 1966), p. 11
[2] Diário, 1/11/1914.
[3] Anthony Kenny observou que Derrida foi aceito nos
departamentos de arte nos Estados Unidos, mas não em departamentos de filosofia,
“onde as pessoas tem mais experiência em distinguir filosofia autêntica de suas
falsificações.” Ver A New History of Western Philosophy (Oxford: Clarendon Press
2007) vol. IV, p.
96.
[4] Como Brian Magee escreveu: “como forma de
treinamento mental a filosofia continental é contraprodutiva: ela ensina os
estudantes (…) a abandonar o argumento racional pela retórica. Ela ativamente
treina-os a não pensar e a serem falsos; e ao fazer essas coisas ela corrompe
as suas mentes.” Brian Magee: Confessions of a Philosopher (New York:
Modern Library Paperbacks 1999), p. 429.
[5] Ver entrevista no vídeo: “Noam
Chomsky: The Strange Bubble of French Intellectuals.” Philosophyinsights
on Youtube.
[6] Kritik der reinen Vernunft. A primeira edição apareceu em
1781; a segunda edição, fortemente revisada, apareceu em 1787. Trad. port. Crítica
da razão pura (Lisboa: Calouste Gulbenkian 1989).
[7] Crítica, Introdução.
[8] Crítica, Intr. B 3, B 4.
[9] Cf. Ernst Tugendhat: Propedêutica Lógico-Semântica (Petrópolis:
Vozes 1997), p. 35.
[10] Kant acreditava na necessidade das leis da física sem
admiti-las como condições necessárias a toda a experiência. Isso fica claro em Os
primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza (Edições 70: 2019
(1786)).
[11] Crítica, B 15-17.
[12] Crítica, B 16.
[13] Crítica B XVI-XVII.
[14] Ver o capítulo sobre Leibniz,
sec 4.
[15] Russell, A
History of Western Philosophy (New York: Touchstone 1972) p.
714-715.
[16] Ibid. p. 715.
[17] John Searle: resumo não publicado da Crítica.
[18] Crítica B
74-75.
[19] Crítica B 131-132-134.
[20] O argumento (Crítica: A
191-2011; B 233-256) é formulado de maneira tão desproporcionalmente complicada
que um leitor crédulo ficaria se perguntando se não há um tesouro escondido sob
o pedredouro terminológico.
[21] As primeiras interpretações de Kant foram
fortes e literais. Como notou Jakobi “sem a coisa em si não é possível penetrar
no sistema de Kant; mas com a coisa-em-si não é possível permanecer nele”. F.
H. Jacobi: David
Hume on Faith or Idealism and Realism: A Dialogue, in G. di Giovanni
(ed.), The Main Philosophical Writings and the Novel Allwill,
Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1994 (1787), p. 336.
[22] Exemplos mais influentes de interpretações fracas são
P. F. Strawson: The Bounds of Sense: An Essay on Kant’s Critique of Pure
Reason (London: Methuen & Co 1985) e Henry E. Allison: Kant’s
Transcendental Idealism (Yale: Yale University Press 2004).
[23] Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language
(London: Duckworth) 1981, pp. 194, 229. Ele fala de regra como o sentido (Sinn)
fregeano, o que corresponde ao que usualmente chamamos de conceito.
[24] Ernst Tugendhat: Logisch-Semantik
Propädeutik (Stutgart: Reklam 1983),
p. 236.
[25] Crítica, B 391.
[26] Karl Popper: Conjectures and Refutations: The
Growth of Scientific Knowledge (London: Routledge 1989), cap. 10.
[27] Crítica: A 599, B 627. A 596 – B 630
[28] Frege: Die Grundlagen
der Arithmetik: Eine Logish Mathematische Untersuchung Über den Begriff der
Zahl (Legare Street Press 2022), sec. 59.
[29] Ver John Searle: “The
Unity of the Proposition”, in Philosophy
in a New Century (Cambridge: Cambridge University Press 2008), p. 176.
[30] Essa sugestão
inspira-se na definição de matéria como “garantida ou permanente possibilidade
de sensações” aventada por J. S. Mill em An Examination of Sir William
Hamilton’s Philosophy (Forgotten Books 2018), caps. X-XII. Para o que se
segue, ver Claudio Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical
Philosophy (CSP 2016), Ch. IV, sec. 12.
[31] Fundamentação da metafísica dos costumes
(Lisboa: Edições 70), pp. 59, 69.
[32] Bertrand Russell: A History of Western
Philosophy, Parte II, cap. XX.
[33] Kant apresentou
um exemplo similar no breve artigo traduzido com o título de “Sobre um pretenso
direito de mentir por amor aos homens” (Belo Horizonte, Editora UFMG 2002).
[34] Devido à inflexibilidade e
relativismo circunstancial dos mandamentos das éticas deontológicas, elas entram
facilmente em conflito umas com as outras. Um exemplo é dado pelos conflitos
morais descritos por T. E. Lawrence em seu livro Os Sete Pilares da
Sabedoria. Ele, um inglês que se doutorou em Oxford, vestido de árabe e
falando a língua local, aceitou o compromisso de liderar a revolta árabe.
Contudo, a todo momento as regras de sua moral refinada se chocavam com os
ditames rudimentares e supersticiosos das tribos árabes. Por vezes a sua
decisão prevalecia, como quando decidiu voltar sozinho para salvar um árabe que
havia se perdido da caravana e que os outros consideravam morto por decisão de
Alá. Contudo, na maioria das vezes a moral da tribo prevalecia, como quando foi
levado a matar pessoas já rendidas após o assalto de um trem.
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