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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

KANT E O IDEALISMO TRANSCENDENTAL

  Draft 

 

 

XII

KANT: IDEALISMO TRANSCENDENTAL

 

Um professor alemão certa vez notou que na filosofia moderna existem grandes ilhas, mas somente dois continentes: Kant e Hegel. Como resultado, uma pessoa pode passar a vida inteira explorando um desses continentes sem chegar a conhecê-lo por completo.

   Essa parece-me uma avaliação um tanto exagerada e facciosa. Kant e Hegel construíram sistemas extremamente ambiciosos, mas se a importância das ideias neles expostas é tão exponencialmente mais maior é algo que merece ser questionado. É difícil não concordar com P. F. Strawson, que no prefácio do mais influente ensaio crítico sobre a obra máxima de Kant, a Crítica da Razão Pura, escreveu ter lido o livro com um “sentimento misto de grande insight e de grande mistificação”.[1] Com efeito, o sistema arquitetônico desenvolvido por Kant e legitimado pela universidade prussiana cobra um alto preço em artificialidade. As peças do quebra-cabeça, na verdade uma colcha de retalhos, só parecem se encaixar pelo auxílio de uma densa nuvem de obscuridade semântica, reforçada por uma apresentação dogmática rebuscadamente retórica, o mesmo valendo para Hegel. Também é preciso distinguir entre profundidade e amplitude. Um filósofo como Berkeley teve insights tão profundos e originais quanto os de Kant. Mas não dedicou mais do que uma pequena parte de sua vida à reflexão filosófica. Kant dedicou toda a sua longa vida ao aprendizado e à investigação.

   A obscuridade em filosofia existe desde seus primórdios e tem suas razões de ser. Uma delas é quando o filósofo possui realmente uma variedade de insights insuficientemente desenvolvidos e não tem recursos para relacioná-los, embora tenha consciência de que possa existir algo que os relacione. Podemos encontrar essa condensação polissêmica de ideias já em filósofos como Parmênides e Anaxágoras. A invenção do Ser por Parmênides serviu como um recurso figurativo genialmente explorado por esse filósofo como um meio de sugerir caminhos de investigação. E não existe exemplo mais flagrante de obscuridade construtiva do que a Metafísica de Aristóteles.

   O recurso à abertura discursiva propiciada pela vaguidade e falta de clareza pode ser lícito quando se tem intuições importantes a veicular, mas não se tem sequer os recursos conceptuais para formulá-las de forma mais adequada, o que certamente também aconteceu com Kant. Como notou Wittgenstein, ele também um filósofo tão vago quanto genialmente sugestivo, em um conselho dado a si mesmo sobre como filosofar:

 

Não se deixe envolver por problemas parciais, mas sempre ascenda para onde houver uma concepção livre de todo o único grande problema, mesmo se essa concepção ainda não for clara.[2]

 

Se a filosofia não pode ser mais do que saber conjectural, ensaio especulativo acerca daquilo sobre o que não nos encontramos em posição de conhecer, como procurei mostrar no primeiro capítulo, então a observação de Wittgenstein é perfeitamente adequada.

   Não obstante, também há junto a isso razões comezinhas. Dentre todos os filósofos modernos aqui considerados, Kant foi o primeiro grande filósofo acadêmico. Hume foi um grande estilista que escrevia para leigos cultos. Precisava ser claro. Diversamente disso, Kant foi um professor, falando para alunos do alto de uma cátedra e escrevendo para colegas versados em filosofia em um ambiente acadêmico que devia ser provinciano e pernóstico.

   Há ainda uma outra razão, ainda mais comezinha, para a pretensão de profundidade obtida por meio de uma rebuscada obscuridade, mesmo na obra de um grande filósofo como Kant. Ele servia ao reino da Prússia, um estado autoritário, militarizado, com reis despóticos, onde a liberdade de expressão era severamente controlada – uma situação retrógrada se comparada à inglesa. Certa vez um príncipe foi visitar Kant na universidade para oferecer-lhe honrarias. Assim, a seu modo ele também servia à glória do estado prussiano, devendo em filosofia fazer o melhor para condizer com essa função. Um outro filósofo acadêmico que serviu ao reino da Prússia foi Hegel, que chegou a ser professor em sua capital, Berlim. Hegel foi ainda bem mais obscuro do que Kant e seu sistema ainda mais ambicioso. O contraponto estilístico de Hegel foi seu concorrente Shopenhauer, um filósofo que não era acadêmico e escrevia de modo tão claro quanto em filosofia é possível.

   A escrita pedantesca e obscura, ou simplesmente descuidada e por vezes macarrônica, mas dotada de um tom quase profético, fez escola na Alemanha: Husserl e seu pupilo rebelde, Heidegger, foram bons exemplos. Isso não significa necessariamente má filosofia. O gênio de Kant e Hegel é inegável, assim como a importância pouco reconhecida de Husserl e até mesmo a relevância de Heidegger para a antropologia filosófica. Trata-se aqui de uma questão de custo-benefício.

   O método de fazer poeira com palavras de modo a dar a impressão de profundidade foi importado para a França por Sartre e Merleau-Ponty, e mais tarde incrementado por acadêmicos pós-modernos, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida. O problema é que aquilo que era uma mensagem filosoficamente rica e profunda, mesmo que encoberta sob um denso nevoeiro retórico que a deveria tornar invulnerável, transformou-se em alguns escritos de Deleuze em experimentação com a linguagem onde quase nada mais havia a ser dito, e em Derrida em uma mera simulação retórica dos procedimentos filosóficos que, quando trocada a miúdos, na melhor das hipóteses se demonstrava falsa e, na pior, uma algaravia estilisticamente proficiente, mas sem sentido.[3]

   Uma maneira de tentar salvar certos escritos de Deleuze e Derrida é admitir seu valor estético; eles são como as instalações em artes plásticas. Há nisso um valor. Não obstante, quando consideramos o pensamento pós-moderno como arte surge um problema. É que a arte é uma ilusão que se reconhece como tal. Por isso cada um é livre para retirar da experiência estética o que melhor lhe aprouver. É por isso que a grande arte, chamada por Collingwood[4] de arte própria, possui um potencial ampliador da consciência. Mas se a filosofia se utiliza de um mecanismo de produção de ilusões sem reconhecê-lo enquanto tal ela acaba por perder o potencial de ampliação da consciência. Ela passa facilmente ao nível do que Collingwood chamava de má arte: a arte adormecedora da consciência.

   Uma última observação diz respeito aos efeitos culturais deletérios do pós-modernismo. Ele ensina as pessoas a acreditarem que estão empenhadas em uma investigação filosófica séria quando pouco mais fazem do que desenvolver curiosos experimentos retóricos. Como notou Noam Chomsky, isso pode ser culturalmente contraproducente em países subdesenvolvidos sem uma tradição cultural forte, onde a pseudoprofundidade e o experimentalismo discursivo podem passar facilmente por grandes aquisições culturais.[5]

 

1

 

Vida. Não há muito a se dizer sobre a vida de Kant (1724-1804). Ele nasceu de uma família de seleiros, sem recursos nem instrução. Eles eram pietistas, um ramo radicalizado do luteranismo, cujos valores maiores eram o dever, o trabalho e a oração. Aos oito anos ele entrou para uma altamente disciplinada escola pietista, que o fez mais tarde se recordar da infância como um período de escravidão, mas que lhe deixou marcas profundas que se refletiram em sua filosofia. Aos poucos ele galgou os degraus da vida acadêmica, tornando-se um aclamado professor. A monumental Crítica da Razão Pura [6] foi sua primeira grande obra, publicada quando tinha 58 anos de idade. Só depois disso vieram as outras obras filosóficas relevantes, como a Crítica da Razão Prática, a Metafísica dos Costumes e a Crítica do Juízo.

   Kant era uma pessoa altamente disciplinada. Há muitas anedotas a seu respeito. Conta-se, por exemplo, que era inflexível em fazer seu passeio diário às 4 horas da tarde sob qualquer tempo. Uma vez, precisando muito terminar um artigo, chegou o momento do passeio. Grande conflito! Felizmente ele teve uma ideia que lhe permitiu resolver o dilema. Ele postou o tinteiro uns sete metros de distância da mesa onde escrevia, de modo que a cada minuto ele precisava caminhar até o tinteiro para encher de tinta sua pena de ganso. Esse estratagema simples lhe permitiu dar o passeio e escrever o artigo ao mesmo tempo.

   Apesar de seu rigor e inflexibilidade prussianos, Kant era uma pessoa bastante sociável. São conhecidos os almoços para os quais convidava amigos, geralmente comerciantes locais e nunca professores universitários. Goethe o admirava e quis conhecê-lo pessoalmente. Kant fez tanta dificuldade que Goethe teve um acesso de raiva e desistiu da ideia. Kant nunca saiu de sua cidade natal, nem se casou. Parece que preferiu seguir o conselho de um amigo inglês, investindo seu dinheiro em um banco, o que acabou por revelar-se a escolha certa.

 

2

 

Juízos. O mais importante em Kant é sua Crítica da razão pura. Como Locke e Hume, ele também quis estabelecer a natureza e os limites daquilo que pode ser conhecido, fazendo isso com o objetivo de criticar as pretensões da metafísica dogmática, por ele entendida como uma ciência que pretendia demonstrar a imortalidade da alma, o livre arbítrio e a existência de Deus. Ele queria explicar porque a metafísica dogmática nunca conseguiu apresentar mais do que argumentos de valor duvidoso.

   O projeto filosófico de Kant foi profundamente original e inovador, podendo ser entendido como um ambicioso esforço de superação, tanto do racionalismo continental quanto do empirismo britânico, mesmo que seus resultados pendessem mais para o racionalismo. Do racionalismo ele queria superar a metafísica dogmática que aprendera sob a influência maior de Christian Wolff, um filósofo influenciado por Leibniz. Já do empirismo ele queria superar principalmente o ceticismo de Hume, ainda que o último lhe tivesse, segundo suas palavras, acordado do sono dogmático do pensamento racionalista no qual fora educado. Ainda que muito poucos acreditem que Kant tenha alcançado seu objetivo último, é certo que ainda podemos aprender muito pelo conhecimento do trajeto percorrido.

   Um racionalista prototípico como Leibniz era guiado pela ideia de que, ao menos em princípio, somos capazes de obter conhecimento sobre o inteiro mundo empírico baseados apenas nos poderes da razão. Afinal, as suas mônadas, além de serem eternas, já conhecem o universo inteiro a priori, mesmo que de modo inconsciente. Por outro lado, um empirista como Locke acreditava que todo nosso conhecimento é proveniente da experiência empírica, incluindo até mesmo os princípios lógicos.

   O primeiro passo dado por Kant para superar a oposição entre racionalismo e empirismo foi o de revisar a distinção empirista entre associações de ideias e questões de fato (Hume), correspondente à distinção racionalista entre as verdades da razão e as verdades de fato (Leibniz). Kant a substitui pela distinção entre:

 

(i)             juízos analíticos (a priori) e

(ii)           juízos sintéticos (a posteriori),

 

 adicionando a ela um terceiro tipo de juízo, os:

 

(iii)         juízos sintéticos a priori.[7]

 

Vejamos como ele os define. Juízos analíticos estão no lugar das relações de ideia em Hume. Mas Kant os define à maneira de Leibniz: eles são aqueles nos quais o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Eles são a priori no sentido de que possuem absoluta independência de qualquer experiência, possuindo as marcas do a priori, que para ele são a necessidade e universalidade estrita.[8] O exemplo dado por Kant é: “Todos os corpos são extensos”. Simplesmente encontra-se na definição de um corpo que ele deve ser extenso. Os juízos analíticos são também necessários e sua negação conduz a uma contradição: “Nem todos os corpos são extensos” é um enunciado necessariamente falso. Tais juízos tem a desvantagem de serem incapazes de ampliar nosso conhecimento. Eles nada nos dizem sobre o mundo, dizendo respeito apenas a relações lógico-conceituais. Exemplos são “Triângulos tem três lados”, “Vermelho é uma cor”, “Solteiros são não-casados.”

   Essa definição de juízo analítico caiu em desuso, posto que nem todo enunciado analítico tem a forma sujeito-predicado. O enunciado “Se João é casado com Maria então Maria é casada com João” é analítico, mas não cabe na definição kantiana. Por isso preferimos hoje dizer que o enunciado analítico é aquele cuja verdade (ou falsidade) depende dos significados de seus constituintes semânticos. Ou então recorremos à definição de Frege, segundo a qual um enunciado é analítico quando sua verdade depende tão somente de definições e das leis da lógica. Por exemplo: “Todo triângulo tem três lados” é analítico porque o conceito de triângulo se define como o de uma figura plana e fechada com três lados e sua substituição pelo sujeito do enunciado acima resulta na frase tautológica “Toda figura plana e fechada com três lados tem três lados”.

   Os juízos sintéticos são aqueles nos quais o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito. Por essa razão a descoberta de sua verdade parece sempre demandar experiência empírica, tornando-os a posteriori. O exemplo de Kant é: “Todos os corpos são pesados”. Sabemos disso por experiência, o que faz com que sua negação não seja contraditória. É possível que existam corpos que não possuam peso. Na verdade, corpos físicos que se encontram fora da ação gravitacional não possuem peso, apesar de possuírem massa... Os juízos sintéticos a posteriori são ampliativos. Eles nos dizem algo sobre o mundo e constituem a maior parte daquilo que diariamente ajuizamos. Exemplos: “O céu é azul”, “Londres é a capital do Reino Unido”, “Sapos não comem insetos que não se movem...”

   Contudo, para Kant há uma espécie de juízo em que o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito, mas que mesmo assim é a priori, pois independe da experiência, sendo necessário e estritamente universal. Este seria para ele o caso das leis universais descobertas em seu tempo pela física newtoniana. Outro caso é o das verdades da matemática e da geometria enquanto aplicadas ao mundo externo. Esses enunciados dizem algo sobre como o mundo se comporta. Eles não são analíticos, pois são ampliadores do conhecimento. Seriam eles sintéticos a posteriori? Um filósofo como Hume não teria dificuldades em considerar as leis da física como verdades de fato, ou seja, como enunciados sintéticos a posteriori. E ao considerar os enunciados da matemática como relações de ideias (i.é., enunciados analíticos) ele não tinha sequer em mente o problema da aplicabilidade dos mesmos ao mundo externo. E um empirista posterior, J. S. Mill, chegou a considerar os princípios da geometria e mesmo os da matemática como juízos empíricos (sintéticos e a posteriori), dependentes da experiência e, portanto, ao menos em princípio passíveis de serem falseados. Não obstante, para Kant não poderia ser assim. Sob sua perspectiva os princípios da física, das matemáticas e da geometria de seu tempo deveriam possuir o status de verdades absolutas: juízos necessários e estritamente universais. Euclides na geometria e Newton na física haviam decifrado o alfabeto pelo qual Deus escrevera o livro da natureza.

   Diante de tal problema Kant decidiu por uma terceira via, tão ousada quanto controversa. Ele concluiu que para bem fundamentar as ciências seria necessário recorrer a uma nova espécie de juízo: o juízo sintético a priori. Em tal juízo o predicado não pertence ao sujeito, mesmo assim sendo necessária e universalmente ligado a ele!

   Exemplos standards de supostos juízos sintéticos a priori são enunciados metafísicos como “Todo evento tem uma causa”, “Em todas as mudanças nas aparências a substância permanecem”, “Existe um mundo objetivo independente de nós”.

   Quero considerar aqui somente o princípio expresso pelo enunciado “Todo evento tem uma causa”. Não se trata de um juízo analítico, pois o conceito de causa expresso pelo predicado não se encontra contido no conceito de evento expresso pelo sujeito. Podemos, pois, imaginar eventos sem causa. Mas se fosse assim, como seria possível garantir nosso conhecimento de um mundo governado pela causação? A resposta de Kant é que se trata de um juízo sintético a priori. Por ser a priori ele se torna capaz de ser aplicado de modo necessário e universal à natureza. E isso precisa ser assim porque na seção da Crítica intitulada ‘analogias da experiência’ ele acreditou ter demonstrado que a natureza, tal como ela pode ser conhecida por nós, precisa ser subjugada ao princípio da causalidade.

   Os juízos da aritmética são também para Kant sintéticos a priori, por exemplo: “7 + 5 = 12”. Segundo Kant trata-se aqui também de um juízo sintético a priori, pois o conceito do número doze não está contido no conceito da soma de 7 e 5.[9] Isso parece se tornar mais aceitável quando consideramos somas de números maiores como “389 + 973 = 1362”. Aqui decididamente não vemos o conceito do predicado “...é igual a 1362” no conceito da soma em questão. Por isso esses juízos seriam sintéticos. Mas eles também são a priori por serem necessários e estritamente universais.

   Também os juízos da geometria são para ele sintéticos a priori. Considere o enunciado da geometria euclidiana “A reta é a distância mais curta entre dois pontos”.[10] Para Kant podemos pensar a linha reta na independência de ser ela a distância mais curta entre dois pontos (Euclides definiu a reta como “uma linha traçada uniformemente com os pontos sobre si”). Assim, esse enunciado deve ser sintético a priori, posto que nós o vemos como sendo necessário e universal. O mesmo acontece com os conceitos da física newtoniana, que na época de Kant era o paradigma da ciência empírica. Um princípio como o da permanência da matéria era para ele um juízo sintético a priori. Ele seria sintético porque o conceito de permanência não está contido no conceito de corpo material; ele seria a priori porque deveria valer necessariamente para todos os constituintes materiais do universo. Kant acreditava que a ciência era capaz de encontrar a verdade absoluta acerca do mundo empírico, um conceito hoje rejeitado, posto que filósofos da ciência contemporâneos são geralmente falibilistas.

 

3

 

Revolução copernicana. A grande dificuldade consiste na justificação da existência dos juízos sintéticos a priori. Afinal, o que garante que o mundo deva se comportar de tal modo que juízos ampliativos sobre ele, como é o caso de juízos sintéticos a priori, sejam a priori no sentido de serem necessários e universais?

   Kant pensou ter alcançado a resposta através do que chamou de “a grande luz” que o conduziu ao pensamento crítico, uma grande descoberta por ele chamada de “revolução copernicana”.[11] Assim como após Copérnico, ao invés de o sol circular em torno da terra, a terra passa a circular em torno do sol, após Kant é o sujeito do conhecimento que passa a circular em torno dos objetos. Melhor dizendo: o sujeito do conhecimento passa a ter um papel ativo na produção do conhecimento. Mais do que isso: o mundo precisa obedecer às leis impostas pelo sujeito do conhecimento, de modo a poder ser conhecido naquilo que lhe é necessário e universal. Nós somos, acreditava ele, “os legisladores da natureza”! Somos nós que lhe damos forma e estrutura. Eis porque os juízos sintéticos a priori são necessários e estritamente universais. Eles são necessariamente aplicáveis porque o mundo, para ser conhecido, precisa seguir os princípios impostos pela nossa matemática, pela nossa geometria e pela nossa ciência empírica. Esses princípios eram considerados por ele necessários e universais, ou seja, não só sintéticos, mas também a priori.

   A maior preocupação de Kant não era, porém, a fundamentação das matemáticas e das ciências empíricas. Ele quis criticar a metafísica especulativa, demonstrando que a razão pura não é capaz de resolver questões metafísicas como as da existência de Deus, da eternidade da alma e do livre arbítrio.

   Fundamental para a revolução copernicana é a subjetivização do mundo da experiência proposta por Kant através da distinção entre mundo noumênico e mundo fenomênico. O mundo noumênico é o mundo como ele é em si mesmo, na independência da experiência. Objetivamente ele é constituído pelo que ele chamou de a coisa em si (Ding an sich), enquanto subjetivamente ele é constituído por um Eu transcendental noumênico (que os metafísicos chamam de alma), um X distinto do eu empírico considerado por Hume. Nada podemos saber sobre esses dois polos do impensável. Nada podemos saber sobre a coisa em si mesma, sobre o X da subjetividade transcendental ou sobre o mundo noumênico que os encerra. Tudo o que podemos saber é sobre o mundo tal como ele aparece a nós, o mundo fenomênico das aparências (a palavra grega ‘pheinomenon’ significa aparência).

   A distinção entre o mundo fenomênico e o mundo noumênico é fundamental para a revolução copernicana. Se somos nós que legislamos sobre o objeto do conhecimento, então esse objeto precisa ser de algum modo “subjetivizado”. É pelo fato de que o objeto empírico do conhecimento pertence ao mundo tal como ele nos aparece e não tal como ele é em si mesmo que a ele pode ser aplicada a revolução copernicana. O mundo fenomênico passa a ser, em sua forma e estrutura, dependente do sujeito da experiência.

   Do ponto de vista epistêmico, o que Kant fez foi ancorar o mundo humiano das ideias soltas em um mundo noumênico incognoscível. Locke tem sido geralmente considerado um realista indireto. Berkeley orgulhava-se de seu idealismo, enquanto Hume foi um idealista que não se dava por achado. Kant foi o que poderíamos chamar de um realista indireto por postulação. O mundo como ele é em si mesmo, o mundo noumênico, é um algo sobre o qual o entendimento humano nada é capaz de dizer. Trata-se de uma forma minimalista de realismo indireto.

 

4

 

Objeções. Sobre a introdução acima há um número de objeções importantes a serem feitas. A primeira diz respeito à aritmética. Vejamos, por exemplo, o enunciado “7 + 5 = 12”, considerado por Kant um juízo sintético a priori. Analisado segundo nossa atual lógica predicativa não se trata realmente de um enunciado do tipo sujeito-predicado, como ele pensava. Trata-se de um enunciado com o predicado relacional “...é o mesmo que...”, podendo ser explicitado como “7 + 5 é o mesmo que 12”. Nesse caso não cabe mais a questão de se saber se o 12 não estaria contido em “7 + 5”, pois tanto o 7 + 5 quanto o 12 possuem a mesma referência, qual seja, o número 12. Assim interpretado, esse enunciado é analítico mesmo que não tenhamos em mente o resultado da soma de 7 com 5 ao considerarmos 7 + 5. A analiticidade fica mais clara quando consideramos uma soma como “2 + 1 = 3”, em que parecemos ver o 3 no primeiro lado da identidade. Afinal, o enunciado 2 + 1 = 3 poderia ser analisado ao modo de Leibniz como (1 + 1) + 1 = ((1 + 1) + 1), admitindo que 2 (Df.) = 1 + 1 e que 3 (Df.) = 2 + 1.

   Considere agora um enunciado como “A menor distância entre dois pontos é uma linha reta (na geometria euclidiana).” Nada nos impede de definirmos uma semirreta, no plano euclidiano, como a linha mais curta entre dois pontos. Nesse caso o predicado nada mais é do que um desdobramento do sujeito e o enunciado acima poderá ser considerado analítico. Outros enunciados da geometria euclidiana, como “A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano é 1800” exigem demonstração. Mas como a demonstração parte de axiomas que não podem ser negados sem contradição, disso resulta que esses outros enunciados também não podem ser negados, sendo eles também analíticos.

   Há aqui dois pontos hoje muito bem conhecidos que precisam ser lembrados. O primeiro é que os enunciados da geometria podem ser tanto analíticos e a priori quanto sintéticos a posteriori, dependendo de como os consideramos. Enquanto os consideramos como fazendo parte do sistema da geometria euclidiana, eles são necessariamente verdadeiros, pois decorrem logicamente de axiomas e postulados aceitos. Eles são analíticos e a priori. Mas quando consideramos esses mesmos enunciados sob a perspectiva da geometria em sua aplicação ao mundo real, eles passam a depender de medições empíricas para que a sua verdade seja atestada. Nesse caso eles se tornam sintéticos a posteriori.

   A geometria euclidiana era a única existente nos tempos de Kant, que a considerou absolutamente verdadeira. Mas apenas cerca de trinta anos após sua morte Lobachevsky desenvolveu uma geometria hiperbólica, que rejeitava o quinto postulado de Euclides e na qual a soma dos ângulos de um triângulo é menor do que 1800. Pouco mais tarde Riemann desenvolveu uma geometria elíptica, na qual o quinto postulado também foi rejeitado e os ângulos de um triângulo resultam em mais do que 1800. O resultado disso é que não existe apenas uma única geometria, como Kant pensava.

   De um ponto de vista interno a elas, qualquer uma dessas geometrias é verdadeira e seus enunciados podem ser considerados analíticos ou derivações analíticas de seus axiomas. Eles são relações de ideias no sentido de Hume. Seus enunciados serão necessariamente verdadeiros no sentido de que decorrem de axiomas aceitos, de modo que suas negações serão contraditórias. Não há, pois, razões intrínsecas para escolhermos um sistema geométrico em detrimento de outro.

   Contudo, a situação tornou-se ainda pior para os kantianos quando se demonstrou que a geometria que realmente costuma se adequar ao espaço físico real não é a euclidiana. Em 1915 a teoria da relatividade generalizada demonstrou que onde há corpos massivos e, portanto, gravidade, o espaço-tempo se torna encurvado e só pode ser calculado pela aplicação da geometria riemanniana. Ou seja, se traçarmos um triângulo entre a Terra, Vênus e Marte, a soma dos seus ângulos internos será superior a 1800.

   Para avaliarmos adequadamente a situação precisamos introduzir aqui a distinção entre geometria pura e aplicada. A validade da geometria aplicada depende da experiência. A geometria euclidiana apenas parece necessariamente aplicável ao espaço físico, uma vez que ela nos basta para medirmos o espaço ao nosso redor. A evolução natural nos dotou da capacidade de aplicarmos naturalmente essa geometria em nossas ações e de a compreendermos com muito mais facilidade do que as geometrias alternativas. Mas a física moderna demonstrou que quando consideramos grandes distâncias entre corpos massivos a aplicação da geometria elíptica nos traz resultados mais precisos (a geometria euclidiana voltará a valer em um espaço no qual não houver gravidade). Assim, deixa de haver uma razão para que a geometria euclidiana seja considerada sintética a priori. Como geometria pura ela pode ser considerada analítica, ou seja, um sistema axiomático no qual enunciados se seguem dos axiomas formando um sistema. Mas como geometria aplicada ela será sintética e a posteriori, posto que será considerada do ponto de vista de sua aplicação ao mundo físico externo, ou seja, como parte de nossa descrição física do mundo. O sintético a priori demonstra-se aqui resultado de uma confusão do caráter analítico e a priori da geometria axiomática com o caráter sintético e a posteriori da geometria aplicada ao mundo físico.

   Um destino semelhante teve a física newtoniana, cujas leis Kant considerava verdades absolutas. A relatividade generalizada nos mostrou que a lei da gravitação de Newton é apenas uma aproximação. O que mais perfeitamente se aplica são leis muito mais complexas, resultantes da teoria da relatividade geral, que possuem maior poder explicativo em um mesmo domínio de aplicação. Não podemos sequer saber se essas últimas leis são necessárias e estritamente universais, a não ser por postulação. Como notou Karl Popper, mesmo que alcançássemos a verdade absoluta, jamais poderíamos saber que realmente a alcançamos. Isso vale para a física, mas talvez até mesmo para todo nosso conhecimento. Não é logicamente impossível que um dia acordemos em um mundo encantado, descobrindo que as estrelas não passam de pirilampos colocados pelos deuses no céu da noite para enfeitar a abóboda celeste, evidenciando que nossa presente ideia do cosmo nada mais é do que uma fabulosa ilusão. A conclusão a que chegamos é que as leis da física não são juízos sintéticos a priori. Elas são juízos sintéticos a posteriori, podendo sempre em princípio ser demonstradas falsas.

   No que concerne à matemática, à geometria e à física, a suposta revolução copernicana de Kant chega a um triste fim e temos boas razões para descartá-la antes mesmo de considerar seu sistema. Identificamos os princípios da geometria euclidiana devido a capacidades que foram ganhas como efeito da evolução natural, mas somos capazes de alterar esses princípios, como aconteceu com o surgimento de novas geometrias.

   Aqui podemos notar uma diferença entre o entendimento dos problemas por Hume e por Kant. Hume entendeu as matemáticas (aritmética e geometria) como constituídas de enunciados que são relações de ideias (ou seja, analíticos) porque ele os pensava em termos de aritmética e geometria abstratas. Nesse sentido ele estava certo. E se quisesse ele poderia ter considerado a geometria aplicada como resultado de inferências indutivas meramente prováveis, ou seja, como dependentes de juízos sintéticos a posteriori. Kant, por sua vez, tinha preocupação com a aplicação da aritmética e da geometria, acreditando que as verdades da geometria euclidiana fossem absolutas, já que elas eram conhecidas há mais de dois mil anos. Quanto às leis da física newtoniana, por exemplo, não parecia haver na época razão qualquer razão para que não fossem consideradas verdades absolutas. Assim, a questão que a Kant se apresentava era: como justificar a verdade absoluta dos juízos da matemática e da geometria? A única resposta que encontrou foi a de que seus juízos são sintéticos a priori. Eles são necessários e universais (a priori), ao mesmo tempo que são capazes de nos dizer algo sobre o mundo (sintéticos). E só através da revolução copernicana seríamos capazes de dar conta disso.

   A conclusão a que chegamos é que a revolução copernicana, tal como Kant a concebeu, falhou logo após seu início. Ainda se usa dizer que Kant percebeu que a estrutura do mundo, tal como somos capazes de conhecê-lo, depende dos filtros inerentes ao nosso aparato cognitivo. Mas que sentido faz falar do mundo além de como somos capazes de conhecê-lo? No que me toca, nenhum. A ideia só faz sentido quando comparamos várias maneiras de se conhecer o mundo e especificamos uma delas como sendo a nossa. Mas nesse caso somos capazes de compará-las, ter acesso a alternativas, mas dando primazia ao modo como escolhemos nos orientar no universo. A improvável revolução copernicana persegue o kantismo como uma assombração.

 

5

 

Divisões. Kant quis na Crítica investigar as condições necessárias à experiência, ou seja, aquilo por meio do que nós damos à experiência forma e estrutura, de maneira a possibilitar sua revolução copernicana. Para tal ele dividiu nosso aparelho cognitivo em três níveis que se pressupõem sequencialmente: o primeiro deles é tratado na estética transcendental, onde ele examinou as formas da intuição sensível pelas quais experienciamos os objetos, que para ele são o espaço e o tempo. O segundo nível é tratado na analítica transcendental, onde ele examinou os juízos do entendimento e seus conceitos fundamentais. O terceiro nível é o da dialética transcendental, onde ele examinou os encadeamentos de juízos na formação de raciocínios e criticou seu mau uso pela metafísica dogmática.

 

6

 

Percepção. Após a introdução da Crítica, Kant passa à sua estética transcendental. A palavra ‘estética’ vem do grego ‘aísthesis’ que significa sensação ou percepção sensível. Esse sentido era mais comum no tempo de Kant e não pode ser confundido com o estudo do belo. Já a palavra ‘transcendental’ diz respeito às condições supremas sob as quais deve ser submetido qualquer objeto do conhecimento.

   Para Kant nós não conhecemos os objetos em si mesmos, ou seja, como o que ele chamou de noumena. Nós os conhecemos pelas modificações que eles produzem na intuição sensível, a dizer, no domínio das aparências (Erscheinungen) ou fenômenos (phainómena). Essas modificações possuem matéria e forma. A matéria é aquilo que é impresso nos sentidos pelo que lhes é externo. Ela é o material sensível. É tentador dizer que se trata de sensações como as das cores, da dureza, do calor e do frio, do gosto ou do som. Mas isso seria enganoso, pois para identificarmos sensações precisamos aplicar conceitos, os quais já pertencem ao domínio interno do entendimento. Tudo o que podemos dizer é que a matéria é aquilo que é impresso nos sentidos pela coisa em si. O material sensível vem do objeto, o que torna esse material a posteriori. Já a forma é aquilo que o sujeito imprime no material sensível, as sensações, de maneira a organizá-las. Quando consideramos a forma da intuição sensível abstraindo dela o material sensível, temos o que Kant chama de a forma da intuição pura, que é constituída pelo espaço e pelo tempo. Espaço e tempo vêm do sujeito sendo, portanto, a priori, ou seja, intuições puras necessárias e universais.

   O espaço é para Kant único e infinito, assim como o tempo, o que significa que ele aceita uma versão da concepção newtoniana do espaço e do tempo.[12] Espaço e tempo são intuições (Anschauungen) não conceituais, subjacentes aos objetos dos quais temos conceitos. O espaço é uma intuição subjacente aos objetos externos porque, segundo Kant, podemos imaginar que eles desapareçam todos, mesmo assim permanecendo o espaço. E o mesmo acontece com o tempo. Ele rejeitou com isso a concepção leibniziana de espaço e o tempo, segundo a qual eles existem como entidades relacionais objetivas e dependentes das coisas e de suas qualidades. Para Leibniz se fizermos os objetos desaparecer um a um de modo completo o espaço e o tempo também desaparecerão, o que parece ser intuitivamente muito mais aceitável.

   O espaço é o que Kant chama de a forma da intuição externa, de modo que todas as sensações nos parecem extensas. Como as formas geométricas se dão no espaço isso justifica o caráter sintético a priori da geometria. Quanto ao tempo, ele é a forma da intuição interna, de modo que todas as sensações se dão no tempo. Como ao fazermos cálculos e contarmos séries numéricas precisamos de tempo, isso justifica para Kant o caráter sintético a priori da aritmética e da matemática em geral.

 

7

 

Crítica. Em sua História da Filosofia Ocidental Bertrand Russell fez algumas bem colocadas objeções aos argumentos de Kant em defesa da transcendentalidade do espaço e do tempo. Ele observou que não temos nenhuma ideia do que sejam as intuições do espaço e do tempo infinitos ou subjacentes aos objetos: não somos capazes, após retirarmos todos (realmente todos) os objetos, de conceber um espaço vazio, como Kant pretendeu. Kant também deixa inexplicada a razão de organizarmos as intuições do espaço de uma maneira e não de outra. Como Russell observa:

 

O que me induz a arranjar os objetos da percepção como eu faço e não de outra maneira? Por que, por exemplo, eu sempre vejo as pessoas com os olhos sobre as suas bocas, e não debaixo delas? De acordo com Kant (...) nada nas coisas corresponde aos arranjos que existem em nossa percepção.[13]

 

Note-se que isso vale para o material sensível conceptualizado pelo entendimento: nossa comum escolha dos arranjos de objetos fica inexplicada. Algo semelhante podemos dizer acerca do tempo. Vemos o raio e depois de alguns segundos ouvimos o trovão; mas sabemos que o raio e o trovão ocorrem de modo praticamente simultâneo. Como explicar essa simultaneidade se ordenamos as intuições temporais internamente como aparências sensíveis conceptualizadas? Se considerarmos esses dois exemplos parece que o acontecer, a organização espacial e a ordem temporal dos fenômenos, dependem e não dependem do sujeito. Dependem então da coisa em si? Mas se dependerem dela então ela e o pretenso mundo noumênico já se tornam espaço-temporais.

   Considerando, com pouca alteração, um outro exemplo de Russell,[14] imagine que você ouve uma pessoa fazendo uma pergunta; a fala dela é anterior à sua audição, da qual se segue a sua réplica, após a qual vem o ouvir da pessoa no mundo objetivo da física. Essa ordem temporal não é determinada por você, o que parece demonstrar a objetividade e independência do tempo físico. Esse exemplo também ilustra a dificuldade que Kant tem para trazer o mundo público, no qual as pessoas interagem umas com as outras, para dentro do espaço e tempo supostamente subjetivos. A intersubjetividade da experiência é um problema para Kant. Como John Searle uma vez notou: “Como é a publicidade possível? Como é possível que eu e você vejamos a mesma aparência? Ou talvez não possamos?[15]

   Apesar de todo o maquinário conceitual construído por Kant, a estética transcendental é muito pouco convincente. Como pode o sujeito da experiência determinar o espaço e o tempo físicos, se essas entidades claramente não dependem dele? A física moderna não teria descoberto que onde há corpos materiais massivos o espaço físico segue uma geometria elíptica se o espaço fosse imposto pelo sujeito como a forma da intuição sensível. Há certamente um espaço dependente da mente, constituído por imagens mentais dadas na percepção ou produzidas pela imaginação, assim como uma consciência psicológica do passar do tempo. Nesse caso, tanto o tempo quanto o espaço poderiam ser respectivamente tratados como “formas do sentido externo e interno”. Mas esses não são nem o espaço medido por fitas métricas, nem o tempo contado pelos relógios, mas fenômenos psicológicos secundários, que dependem dos espaços e tempos físicos para se tornarem reflexos nem sempre confiáveis dos últimos e mesmo para se tornarem em algum sentido mensuráveis. A argumentação kantiana parece apoiar-se em uma confusão do espaço e tempo psicológicos secundários com o espaço e o tempo reais dos quais eles dependem.

 

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Analítica. Passemos agora à segunda parte da Crítica, a analítica transcendental. Assim como a estética transcendental tinha a ver com as intuições sensíveis, a analítica transcendental tem a ver com conceitos do entendimento. Como já fiz notar, para Kant intuições e conceitos são complementares, pois intuições só se tornam cognitivamente acessíveis quando conceptualizáveis e conceitos não ancorados em intuições nada nos dizem. Como ele com razão escreveu:

 

As intuições sem os conceitos e os conceitos sem as intuições não produzem conhecimento. Os conceitos sem as intuições são vazios e as intuições sem os conceitos são cegas.[16]

 

O objetivo original da analítica transcendental é, através da revolução copernicana, provar a verdade necessária e universal das leis da natureza, como as grandes descobertas feitas pela física de Newton, que Kant ainda podia considerar verdades absolutas. Para Kant isso só é possível se o intelecto puder impor suas leis ao mundo tal como ele nos aparece (como fenômeno) e não tal como ele é em si mesmo (como noumenon). Assim, o intelecto precisa impor suas leis à experiência. Contudo, o caminho que para Kant conduz a isso é muito mais encarpado do que um leitor desprevenido poderia imaginar.

   A atividade do entendimento não é mais a de intuir, mas a de formar juízos sobre o que é dado à sensibilidade. O trabalho dos juízos é o de unificar a experiência formando sínteses a partir das intuições sensíveis.  As classes mais gerais de predicados através das quais o entendimento sintetiza a experiência são formadas por “superconceitos” que são as categorias kantianas, com as quais ele pretendeu substituir as categorias de Aristóteles. Uma diferença é que enquanto para Aristóteles as categorias pertenciam ao domínio do ser, ou seja, da realidade objetiva (legis entis), as categorias de Kant pertencem ao domínio do sujeito (legis mentis), dado que é ele quem às impõe ao mundo da aparência fenomênica. Outra diferença é que enquanto em Aristóteles as categorias foram estabelecidas de maneira meramente rapsódica, Kant pretende tê-las feito derivar de uma tábua dos juízos herdada da lógica clássica, seguindo o que chamou de uma dedução metafísica das categorias.

   As categorias ocupam na analítica o mesmo lugar que o espaço e o tempo na estética. A estética tratava das formas a priori de toda a sensibilidade. A analítica trata das leis a priori que estruturam todo o pensamento. Para serem intuídas as coisas precisavam ser submetidas às formas da intuição sensível. Mas para serem pensadas elas agora também precisam ser submetidas às leis do pensamento. No que se segue apresento a tábua dos juízos tal como ela foi proposta por Kant, seguida das categorias que neles se encontram incorporadas:

 

ESQUEMAS:            JUÍZOS:                   CATEGORIAS:

                                   Singulares                 totalidade

Quantidade                particulares                pluralidade

                                  Universais                  unidade

 

                                  afirmativos                 realidade

Qualidade                  negativos                    negação

                                  Infinitos                      limitação

 

                                  categóricos                 substância/acidente

Relação                     hipotéticos                  causa/efeito

                                  disjuntivos                  ação recíproca

 

                                  problemáticos             possibilidade/impossibilidade

modalidade               assertóricos                 existência/inexistência

                                  apodíticos                   necessidade/contingência

 

As categorias são conceitos gerais que se encontram implícitos em tudo o que pensamos. A ideia de retirar conceitos fundamentais das formas dos juízos sempre me pareceu um importante insight, ainda que seu desenvolvimento seja questionável nos detalhes. Exemplos podem mostrar como a coisa é capaz de funcionar. Digamos que eu faça o seguinte juízo: “Essa rosa é vermelha”. Trata-se de um juízo singular, afirmativo, categórico e assertórico. De modo correspondente, as categorias aplicadas são respectivamente as de totalidade (trata-se de um todo), realidade (o referente é real), substância (a rosa), acidente (é vermelha), e existência (a rosa existe). Considere agora o juízo: “Se um metal é aquecido então ele se expande”. Aqui o juízo é hipotético e a categoria de causalidade é aplicada, além das categorias de unidade, causalidade, realidade e existência. Há arbitrariedades evidentes, como o fato de que os juízos singulares e universais poderiam conter inversamente as categorias de unidade e pluralidade. Além disso, a simetria das tríades é uma invenção bastante suspeita.

   Não satisfeito com a dedução metafísica (quid factum) da tábua das categorias, Kant decidiu apresentar uma dedução transcendental (quid juris) capaz de demonstrar que as categorias são condição necessária para a possibilidade da experiência enquanto tal. Essa dedução é a parte mais indevassável da Crítica e seu estudo já foi comparado à travessia do grande deserto árabe... Vou resumir o que me pareceu mais essencial.

 

   Tudo começa com a observação de que nosso entendimento opera através de sínteses que se iniciam pela combinação do múltiplo dado na intuição. Isso é bem exemplificado na síntese da apreensão do múltiplo, que é  seguida de sua reprodução ou retenção na imaginação e de sua posterior recognição como sendo o mesmo. As sínteses inevitavelmente envolvem a aplicação dos juízos e respectivas categorias. Além disso, meu conhecimento não é constituído de elementos separados entre si, mas forma um todo unitário. Sou consciente dessa união através do que Kant chama de unidade sintética da apercepção (autoconsciência), que não é empírica, mas transcendental. Trata-se da forma de autoconsciência já identificada no próprio “eu penso” cartesiano. Se eu não fosse capaz disso eu não seria capaz de experienciar nada como pertencente à minha própria consciência, disso resultando uma fragmentação da consciência. Como ele escreve:

 

O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações (...) uma vez que as múltiplas representações presentes em determinada intuição não seriam minhas se não pertencessem todas à minha autoconsciência. De outro modo o meu eu seria tão vário e colorido quanto são as representações que formo.[17]

 

Esse eu apreendido no “eu penso” não pode, porém, ser um eu empírico humiano, pois esse último é um eu multicor, constituído por feixes de intuições que se sucedem rapidamente umas às outras, sendo diverso a cada nova experiência. O eu pensante tem de ser um único. Ele está para Kant sempre acima e além da experiência, uma vez que nada do que é dado à experiência empírica pode lhe pertencer.

   O Eu da apercepção transcendental é um “Eu transcendental”, um X noumênico cuja assunção é uma necessidade lógica para que possamos ter a consciência de nossas sínteses como pertencentes a um único sujeito da experiência. Esse X noumênico precisa ser também uma atividade aperceptível, sintetizadora do múltiplo da intuição sensível e fonte da ordem objetiva da natureza. A unidade sintética da apercepção daí decorrente é necessária à aplicação das categorias porque os juízos só são plenamente reconhecidos quando são integrados na unidade de uma consciência. Finalmente, como o eu pensante realiza as sínteses do entendimento só através de juízos e como os juízos contém as categorias, todo nosso conhecimento demanda a aplicação das categorias.

 

 

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A ilusão do grande Eu. Quero agora expor uma maneira de reconstruir o insight de Kant de maneira a lhe retirar a questionável postulação de um Eu transcendental noumênico, colocando esse Eu na mesma classe do eu empírico Humiano.

   Quando Kant escreveu sobre o eu empírico ele tinha em mente o “feixe de percepções que se sucedem com rapidez vertiginosa” de Hume.   Contudo, há uma outra espécie pouco lembrada de eu empírico humiano, que é a de algo similar a uma comunidade organizada de estados mentais (perceptos humianos) da qual entram e saem membros, mas que nem por isso deixa de ser a mesma (ver cap. XI, sec. 15). Uma pessoa pode aprender a se conhecer como o repositório desses traços mentais geralmente disposicionais. E até mesmo outras pessoas podem descobri-los nela por analogia com o que a elas mesmas acontece. Se isso for aceito então o acesso que umas pessoa tem a esse eu comunitário é forçosamente segmentado, pois ela só tem as experiência de si mesma como possuindo certos traços psicológicos (digamos, ser corajosa) em contextos nos quais esses traços se manifestam (ela demonstra coragem em seu comportamento) e nos quais outras pessoas sejam capazes de lhe atestar esses traços psicológicos em virtude de seu comportamento.

   Aqui se poderia objetar: o que tem isso a ver com o “eu penso” kantiano, que acompanha todas as minhas representações? A consciência de um Eu transcendental não é de uma experiência de traços mentais egóicos. Simplesmente sei que preciso ser um Algo único que está ativamente pensando, experienciado, nada de específico se passando em minha mente...

   A resposta plausível é que uma pessoa é perfeitamente capaz de ter consciência de seu eu-comunitário como aquilo que acompanha todas as suas representações sem precisar tomar consciência de sua constituição, simplesmente por ter a consciência de possuir alguma auto-imagem de seu eu comunitário. Uma vez que a pessoas já ganhou essa auto-imagem, ela já possui uma autoconsciência sem precisar atualizar as representações dos traços mentais que constituem seu eu, o que já basta para justificar sua consciência de que um mesmo “eu” acompanha todas as suas representações. Na verdade, não há nada de especial nisso, pois temos consciência de muita coisa que não precisamos ou mesmo que não podemos atualizar. Exemplos: sei que é noite porque jantei há algumas horas, sei que convidei seis pessoas para jantar, mas não me lembro de quem era a sexta pessoa.

   Uma consequência dessa solução é que um sujeito incapaz de introspecção, uma criança, um animal, não deverá ser capaz de ter a consciência de si demandada por Kant. Para que eu me pense presentemente como um eu pensante é preciso que antes já tenha tido algum conhecimento de meu eu-comunitário, ou seja, dos traços psicológicos reiteráveis mais característicos de mim mesmo.

   Temos agora um triplo conceito de eu empírico:

 

(i)             como o eu humiano fugaz entendido como “o feixe de percepções que se sucedem” (Hume);

(ii)           como o eu-comunitário (também sugerido por Hume), entendido como um conjunto mais ou menos organizado de traços mentais reiteráveis cuja conhecimento permite a formação de uma auto-imagem que deve servir à autoidentificação.

(iii)         como a consciência que uma pessoa tem de si mesma como um sujeito que possui (ii) sem que para isso eu precise atualizar características de (ii) em sua memória.

 

A minha tese é que o sentido (iii) é o da “eu” que acompanha todas as minhas representações. Ele nada mais é do que a consciência que tenho de (ii) sempre que penso em mim sem considerar qualquer representação. E minha sugestão é que Kant tomou o sentido (iii) como sendo a indicação de um eu transcendental de algum modo implicado pela unidade da apercepção. da consciência.

   Com isso temos em princípio explicada a suposta diferença entre o eu empírico e o Eu transcendental entendido como o X que acompanha todos os meus pensamentos. O eu empírico fugaz considerado por Kant é (i). Mas o que ele pretende que seja o “eu” do “eu penso”, responsável pela unidade transcendental da autoconsciência, não é mais do que (iii), ou seja, a simples consciência que possuo de que tenho um eu comunitário do qual já tive as mais variadas introspecções parciais sem que para isso precise atualizar sua auto-imagem. Com isso o Eu transcendental noumênico passa à categoria de ilusão. Voltarei a considerar esse ponto ao discutir Fichte, um filósofo que se comprometeu radicalmente com esse Eu transcendental ilusório.

 

 

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Causalidade. Na parte seguinte da Crítica, em suas analogias da experiência, Kant tentou estabelecer os princípios reguladores que nos levaram à descoberta das conexões empíricas da física newtoniana. Contudo, seus argumentos são aqui outra vez contestáveis. Por exemplo: ele tentou demonstrar seu princípio sintético a priori de que a causalidade é condição necessária a toda a experiência pelo fato de que a ordem subjetiva das percepções é reversível enquanto a ordem objetiva é irreversível. Disso ele concluiu que porque a ordem das nossas percepções é como tal necessária, o que para ele significa confirmar que as mudanças apropriadas no objeto precisam ser causalmente determinadas. Mas a constatação de que a ordem irreversível das percepções é necessária é falsa. Afinal, nada garante a sua irreversibilidade, tanto quanto para Hume nada garante a causalidade. As ocorrências que se dão em um cenário cético, como o do sonho ou da alucinação, etc. são reversíveis, dado que a suposta ordem causal pode em tal cenário ser arbitrariamente alterada.

 

   Uma alternativa para salvar o princípio da causalidade seria apelarmos ao mesmo artifício que recorremos com respeito ao princípio de que o futuro será semelhante ao passado (ver cap. XI, sec. 9): enfraquecer o princípio. Suponhamos que o princípio:

 

PC:  Todo evento é causado

 

seja substituído pelo princípio minimalista:

 

          PC1: Algum evento é causado.

 

Não há dúvida que para que possamos ter qualquer conhecimento do mundo a versão minimalista precisa ser aceita. Afinal, até mesmo nossa atividade perceptual é causal. A segunda formulação é analítica, pois sua negação como “Nenhum evento é causado” parece contraditória. Afinal, como poderíamos dar sentido a noção de evento se nada é causado? Assim, sem abandonar a assunção da analiticidade podemos tornar a segunda versão do princípio mais forte como:

 

PC*: Para que possamos obter conhecimento do mundo empírico, ao menos um número suficiente de eventos precisa ser causado.

 

Admitindo que nós possuímos realmente conhecimento do mundo, então esse princípio precisa ser analítico. Afinal, negá-lo afirmando que podemos obter conhecimento do mundo empírico sem que um número suficiente de eventos seja causado parece inconsistente. Embora demande elaboração esse argumento aponta para um caminho sugestivo.

   Um outro argumento frágil é a suposta refutação do idealismo. De acordo com ela a experiência interna só é possível pela experiência externa. Logo, se tenho consciência de minhas próprias experiências é porque há objetos exteriores a mim... além disso a percepção de minha existência no tempo só é possível sob a assunção da existência de algo fora de mim. O problema com esse argumento é que ele não resiste a hipóteses céticas: um gênio maligno não teria dificuldade alguma em produzir em nós experiências internas como se fossem externas em um espaço e um tempo supostamente objetivos.

 

 

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Contra o noumenon. Há maneiras mais fortes e mais fracas de se interpretar a Crítica. Segundo uma interpretação forte a unidade transcendental da consciência deve ser entendida como um Eu transcendental que é a pura atividade sintetizadora que serve como fonte da ordem objetiva da natureza. Espaço, tempo e categorias são vistos como puramente subjetivos. A coisa em si (o domínio noumênico) seria alguma coisa incognoscível, mas existente, real (somos “uma ilha no mar noumênico” segundo Kant). Segundo essa interpretação, somos literalmente os legisladores da natureza tal como ela nos aparece. Essa maneira de ver torna a Crítica incoerente: a coisa em si passa a ser tratada como objeto de aplicação da categoria causalidade e mesmo das categorias de realidade e existência. Ela é vista como algo real a causar os estados fenomenais. Contudo, as categorias foram feitas para serem aplicadas ao mundo fenomênico, sendo isso o que garante a aplicabilidade de nossos juízos sintéticos a priori.

   Diante desses problemas, a maneira de salvar a Crítica de inconsistências parece ser uma interpretação mais fraca. Segundo essa interpretação, o texto de Kant poderia ser reduzido a uma detalhada análise do conceito de experiência. Sob essa perspectiva, o conceito de unidade transcendental da consciência passa a dizer respeito à condição lógica de possibilidade do trabalho de síntese. O conceito de coisa em si, por sua vez, torna-se um mero conceito limitador.

   A interpretação fraca encontra dificuldades textuais: Kant escreve que os nossos sentidos são afetados pelos objetos... Isso parece envolver a ideia de que objetos noumênicos são de fato coisas que causam as sensações. Por certo, ao intérprete é livre para expurgar da crítica elementos secundários e problemáticos. Ele dirá que a coisa em si é o inseparável correlato do fenômeno, existindo assim como o outro lado de uma mesma folha de papel, o lado que não podemos ver! O noumenon é “a coisa que aparece sem o seu aparecer”...

   O problema é que essas metáforas são insatisfatórias: o outro lado da folha de papel pode ser visto e descrito, a coisa em si não. Como notou Wittgenstein, o conceito de fronteira exige que sejamos capazes de pensar o que está do outro lado dela. O conceito de um limite que só contém o lado de cá é incoerente. E falar da coisa que aparece à parte o seu aparecer parece pura retórica. Assim, o conceito de coisa em si, tal como Kant supostamente o pensou, parece inconsistente e no final das contas ininteligível.

 

 

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Regras conceituais. Na seção da Crítica intitulada ‘analítica dos conceitos’ Kant deu uma importante contribuição à filosofia sobre a qual vale a pena chamarmos atenção. Para ele os conceitos são capacidades para classificar e ajuizar, de modo que ele os via como habilidades governadas por regras. Como você deve estar lembrado, os empiristas tendiam a interpretar conceitos como imagens mentais reprodutoras de impressões sensíveis. Essa maneira de ver sempre foi problemática. Afinal, para identificar uma imagem parece que precisamos presumir seu conceito. Além disso sempre foi difícil explicar ideias gerais e abstratas. Com a noção de conceito como envolvendo essencialmente a noção de regra esse problema desaparece. As regras conceituais possuem critérios de aplicação que podem evidentemente demandar a construção de imagens, mas agora de forma inteiramente flexível. Por exemplo: se defino o conceito de triângulo como “figura plana fechada formada por três semirretas que se tocam em suas extremidades”, tenho uma regra cujos critérios de aplicação me permitem formar imagens de triângulos retângulos, equiláteros, isósceles e escalenos. Não caio assim no problema supostamente criado por Locke de imaginar um triângulo que seja tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Outro exemplo pode ser dado pelo conceito de cadeira. Podemos defini-lo como “um artefato constituído de um banco não veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez”. A regra aqui expressa me permite imaginar cadeiras de balanço, cadeiras de rodas, cadeiras elétricas, poltronas e tronos com satisfazendo os critérios dados pela definição. Mas coisas como sofás (onde mais de uma pessoa pode se sentar), assentos de carro e de avião (veiculares), cadeiras esculpidas pelo vento na rocha (não são artefatos) são excluídas dos critérios da regra conceitual.

   Na continuação da analítica Kant descobriu que os conceitos puros do entendimento e as intuições sensíveis são completamente heterogêneos. É necessária uma ponte que ligue as categorias às intuições fenomênicas, permitindo sua aplicação. Essa ponte precisa ser algo homogêneo tanto às categorias quanto à intuição fenomênica. Trata-se aqui do que Kant chamou de esquematismo. Mesmo conceitos mais comuns, como o de cão, possuem seus esquemas particulares. Kant pensava que podemos fazer um esquema empírico de um cão como um pequeno animal quadrúpede e que isso nos ajuda a identificar o animal. Esse é um produto da imaginação empírica que parece regredir ao triângulo que é tudo e nada de Locke. Com as categorias não é muito diferente.

   Para cada categorias deve haver um esquema temporal próprio, por exemplo: para a categoria de substância temos a permanência no tempo (substância é o que permanece o mesmo); para a categoria de causa e efeito temos a sucessão temporal do múltiplo segundo uma regra; para a categoria de ação recíproca temos a simultaneidade temporal; para a categoria de realidade temos a existência de um objeto no tempo; para a categoria de necessidade temos a existência de um objeto em todos os tempos. É interessante compararmos aqui o esquematismo de Kant com a ideia defendida por Michael Dummett[18] e retomada por Ernst Tugendhat[19], segundo a qual conceitos são basicamente regras criteriais pelas quais (através de termos gerais) identificamos propriedades ou (através de termos singulares) identificamos indivíduos. Essas regras criteriais podem demandar a formação de elementos espaço-temporais imagéticos como critérios de sua aplicação.

 

 

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Ideias da razão. Chegamos, por fim, à dialética transcendental. Seu objeto de estudo é a atividade da razão. A razão é a capacidade de relacionar juízos fazendo inferências. O objetivo de Kant é duplo: investigar a razão em si mesma e investigar os usos ilusórios da razão.

   A razão pura em si mesma se constitui para Kant no esforço de unificar o conhecimento associando sequências de juízos introduzidos em raciocínios silogísticos na busca de sínteses cada vez mais amplas, com o objetivo último e inatingível de unificar toda a experiência. A razão procura uma explicação última para tudo e faz isso guiada pelo que Kant chamou de ideias transcendentais da razão. Essas ideias da razão são conceitos diretivos, ou seja, conceitos que não possuem objeto dado na intuição sensível, alcançando apenas o nível do entendimento, mas que tem a função de orientar o raciocínio.

   As ideias da razão são arranjadas em três classes:

 

A primeira contendo a unidade absoluta (não-condicionada) do sujeito pensante; a segunda a unidade absoluta da série das condições da aparência; a terceira, a unidade absoluta da condição de todos os pensamentos em geral.[20]

 

Essas formas da razão são respectivamente as da Alma, Mundo e Deus, usadas em sentido técnico. A ideia de alma orienta o raciocínio em direção a uma unidade absoluta que só poderia ser preenchida por um sujeito incondicionado noumênico que está além da esfera da experiência possível. Seu modelo de raciocínio (segundo Kant) seria o do silogismo categórico: “Todo M é P, Todo S é M; logo, todo S é P”. A ideia do mundo orienta o raciocínio em direção à unidade formada por um incondicionado noumênico também situado além da experiência possível. Seu modelo de raciocínio seria o do silogismo hipotético: “Se A então B, A é dado; logo: B”. E a ideia de Deus orienta os raciocínios em direção a uma unidade absoluta, a qual seria um incondicionado noumênico determinante tanto do mundo quanto da alma. Ela dependeria do silogismo disjuntivo: “A ou B, não-A; logo: B”.

   Como chegamos a essas ideias da razão? A resposta é: pela tentativa de tornar as premissas absolutas. Sempre que raciocinamos precisamos de premissas. Mas as conclusões só serão verdadeiras se as premissas também o forem. Mas então precisamos de novos raciocínios, novas inferências para justificar essas premissas e assim por diante... A razão procura uma base absoluta para as premissas, o incondicionado, mesmo que nunca possa encontrá-lo. Eis um exemplo exposto por Kant em um silogismo:

 

Todos os homens são mortais.

Todos os scholars são homens.

Logo: todos os scholars são mortais.

 

A conclusão se segue da premissa maior e da menor. Mas podemos nos perguntar pela razão da premissa maior, considerando-a como a conclusão de um pró-silogismo:

 

Todos os animais são mortais.

Todos os homens são mortais.

Logo: todos os homens são mortais.

 

Com isso unificamos juízos como “Todos os elefantes são mortais” e “Todos os répteis são mortais”.

   Contudo, podemos ainda prosseguir submetendo a premissa “Todos os animais são mortais” a um processo similar, exibindo-a como a conclusão de um pró-silogismo cuja premissa maior seja “Todos os seres vivos são mortais”, com o que unificaremos uma gama ainda maior de juízos.

   A razão, diversamente do entendimento, não produz juízos. Mas ela conecta os juízos uns aos outros em um processo de justificação que não tem fim. A máxima lógica da razão é proceder “sempre mais para cima” em busca de unificações cada vez maiores, progredindo sempre em direção a uma suposta premissa que não seja condicionada por nenhuma outra. A razão busca sempre o incondicionado, mas tudo o que ela encontra é o condicionado, uma vez que o incondicionado não poderá nunca ser dado à experiência. Daí o lamento de Novalis: “Buscamos por toda parte o incondicionado e encontramos somente coisas” (Wir suchen überall das Unbedingte und finden immer nur Dinge“).

   É interessante lembrar aqui que Karl Popper aplicou a sugestão de um conceito diretivo à ideia de uma verdade absoluta. Para ele teorias científicas com o mesmo escopo podem ter maior ou menor verossimilhança com relação a um ideal de verdade absoluta. Assim, a teoria da gravitação na relatividade generalizada tem maior verossimilhança com o ideal de verdade absoluta do que a teoria newtoniana da gravitação. Afinal, apesar de possuírem o mesmo escopo, a primeira explica a deflexão da luz por campos gravitacionais, a precessão exata de Mercúrio, etc., o que a teoria newtoniana não é capaz. Mas, como Popper observou, mesmo que chegássemos pela ciência à verdade absoluta, não seríamos capazes de identificá-la como tal, uma vez que não poderíamos saber se novas experiências não nos forçariam outra vez a questioná-la.

 

 

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Chegamos agora à parte negativa da dialética, a crítica das ilusões da razão constitutivas do que Kant considerava uma metafísica dogmática. Para ele as ideias da razão não são nem derivadas da experiência, como pensaria um empirista como Locke, nem são representações da coisa em si, como poderia ter pensado um racionalista como Descartes. Dentro do escopo da razão pura as ideias de alma, mundo e Deus tem como única função unificar juízos, sem serem capazes de se referir a absolutamente nada. É nesse ponto que entram em questão as ilusões da razão. Por não atentar para essa função meramente diretiva e por tratar as ideias da razão como se elas fossem conceitos ordinários referindo-se a coisas em si ou a fenômenos, filósofos foram induzidos a realizar investigações equivocadas sobre a existência da alma, da origem do mundo e da existência e natureza de Deus.

   Para Kant a psicologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de alma, como se nos fosse possível conhecer um eu absoluto como objeto noumênico. No tocante à ideia de alma, a razão produz um paralogismo que consiste em considerar o “eu penso” unificador da consciência como se ele fosse um substrato unificador substancial acessível à experiência. Contudo, a categoria de substância só pode ser aplicada aos dados sensíveis, mas nunca ao sujeito de todo o pensamento. A cosmologia especulativa produz ilusões sobre a ideia do mundo, como se fosse possível conhecer a coisa em si como fenômeno ou como objeto noumênico. E a teologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de Deus, como se fosse possível conhecer a causa noumênica, tanto do sujeito quanto do objeto fenomenal.

   Não pretendo discutir aqui em qualquer detalhe os argumentos de Kant com respeito aos paralogismos ou às antinomias. Quero considerar apenas a famosa crítica feita por ele ao argumento ontológico de Anselmo para provar a existência de Deus, uma vez que ela está na origem da mais importante linha de pensamento com respeito ao conceito de existência. Segundo esse argumento, Deus, por ser o que de maior pode ser pensado, precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós iríamos nos contradizer acreditando sermos capazes de pensar algo maior do que o que de maior pode ser pensado (cap. IV, sec. 6).

   Para Kant o problema com o argumento se encontra no fato de que a existência não é um predicado. Por isso a atribuição de existência não adiciona nada ao conceito: a existência de uma nota de 100 táleres nada adiciona ao conceito de 100 táleres.[21] Não é certo, porém, que a existência não seja um predicado. Mais adequado seria dizer que a existência é algo como um predicado de ordem superior. Gottlob Frege no final do século XIX percebeu isso. Para ele a existência é a propriedade de uma função conceitual (conceito) de que sob ela cai ao menos um objeto. Por exemplo, quando digo que a Lua da terra existe, estou dizendo que ao menos um objeto cai sob o conceito de Lua da terra.[22] Como a função conceitual ou conceito já é uma propriedade, a existência passa a ser aqui uma propriedade de segunda ordem, uma propriedade-propriedade. Melhor dizendo: ela é a propriedade de certas propriedades que atribuímos predicativamente ao objeto. Bertrand Russell reapresentou a ideia de Frege notando que uma frase como “Gatos existem” é equivalente a frase “A função proposicional ‘x é um gato’ é verdadeira para algum valor de x.”

   Posso esclarecer melhor o que acabei de dizer usando um mínimo de lógica predicativa.[23] Considere o enunciado: “Gatos existem”. Esse enunciado pode ser lido como “Existe ao menos um x, tal que x é um gato”, ou ainda: “Ex(Fx)”, onde ‘E’ = existe e ‘F’ = gato. O ‘F’ entre parêntese designa a propriedade de x de ser um cavalo. E o quantificador existencial ‘E’ tem como objeto a propriedade F de x, sendo por isso mesmo uma propriedade de segunda ordem de x, ou seja, uma propriedade-propriedade.

   Penso ser possível aprofundar essa análise com base em Kant, Michael Dummett e Ernst Tugendhat. Kant foi o primeiro a pensar conceitos como regras. Dummett interpretou os sentidos (Sinne) fregeanos como regras criteriais. Tugendhat deu nome aos bois: o sentido do termo singular é sua regra de identificação, o sentido do termo geral é sua regra de aplicação. Para simplificar chamarei aqui ambas de regras conceituais.

   Para Frege um predicado exprime um sentido que, por sua vez, deve ter como referência o conceito sob o qual podem cair objetos. Frege nunca explicou o que seria o sentido de um predicado. Desviamo-nos aqui de Frege seguindo o entendimento mais natural, segundo o qual o sentido do predicado é o próprio conceito por ele expresso, a própria função conceitual, a regra conceitual do predicado, sendo a sua referência uma propriedade espaço-temporalmente localizável (tropo) do objeto referido pelo termo singular no caso de enunciados do tipo Fa, ou seja, enunciados predicativos singulares.

   Esse entendimento nos sugere que a existência nada mais é do que uma propriedade da regra conceitual expressa por um predicado, qual seja, a propriedade de sua efetiva ou garantida aplicabilidade.[24] Seguindo esse entendimento, com relação à regra de identificação podemos, aplicando a lógica predicativa, dizer “Sócrates existe” inventando o verbo ‘socratizar’ ou S para a regra de identificação de Sócrates. Assim, dizer que Sócrates existe é o mesmo que dizer que Ex (Sx), ou ‘x socratiza’, onde S exprime a regra de identificação para Sócrates e E nos diz que essa regra é efetivamente aplicável. E como dizemos que Sócrates é tagarela dizendo que a regra de aplicação do predicado ‘...é tagarela’ se aplica a Sócrates? Ora, ao invés de “Ta” (a = Sócrates, T = tagarela) teremos de dizer “Ex (Sx) & (y) (Sy → y = x) & (Sx → Tx)” (Existe algo que é tagarela e esse algo é Sócrates).

   Com a expressão ‘efetiva ou garantida aplicabilidade’ não quero dizer a mera possibilidade de aplicação, mas uma aplicabilidade que pode ser tida como certa, dadas as condições adequadas. Ou seja: se forem dadas as condições adequadas e o agente quiser aplicá-la, ele inevitavelmente a aplicará. Isso é importante para desambiguar: dizer que a existência é a efetiva ou garantida aplicabilidade da regra de atribuição de um predicado exclui a ideia de que essa aplicabilidade seja meramente hipotética.

   A aplicabilidade pode ser garantida por verificação direta (ex: “O cavalo no estábulo existe porque eu o vi”), mas também por sua coerência outros enunciados (“Como essa é uma escola de equitação, eles devem ter cavalos no estábulo”). Note-se que para a efetivação de um juízo de existência é necessário que existam sujeitos epistêmicos capazes de aplicar a regra quando postados em situações adequadas. Mas a existência enquanto tal não é o mesmo que o juízo de existência. Assim, mesmo que o juízo de existência não seja efetivado, as coisas não deixam de existir. Isso quer dizer que a existência não é um conceito antropomórfico. Não é necessário sequer que as regras conceituais em questão existam. O importante é que, caso elas existam e caso existam agentes cognitivos que queiram aplicá-las e que estejam em situações adequadas para aplicá-las, elas se demonstrem garantidamente aplicáveis.

   Uma objeção importante ao que acabei de dizer se encontra na ideia de que se considerarmos a existência como a propriedade de uma regra conceitual parece que ela é algo que se encontra flutuando acima do objeto do qual afirmamos existência. A alternativa a isso é considerar a existência como uma propriedade disposicional do objeto em consideração, qual seja, a meta-propriedade do objeto de ter a sua regra conceptual garantidamente aplicável a ele, uma vez dadas as condições adequadas. Há objetos que não possuem essa meta-propriedade disposicional, que são os objetos meramente imaginários. Por exemplo, a Torre de Babel. Mas outros objetos, como a Pirâmide de Quéops, possuem essa propriedade. A pirâmide de Quéops possui a propriedade de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a ela mesma. Por isso dizemos que a Torre de Babel não existe, enquanto a pirâmide de Quéops existe. Nesse caso a existência passa a ser a propriedade de um objeto pertencente a certo domínio, não importa qual, de ter a sua regra de identificação garantidamente aplicável a ele. Entendida dessa maneira a concepção da existência como uma propriedade de ordem superior se torna muito menos aversa a objeções.

   Certamente, em um contexto ficcional a Torre de Babel será considerada um objeto existente, pois esse objeto ficcional possui a disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesmo como encontramos escrito no contexto bíblico (estou considerando a Bíblia como um texto ficcional). Com isso explicamos também porque podemos dizer que tudo existe, uma vez que qualquer coisa concebível pode enquanto tal possuir a disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesma. E com isso explicamos, por fim, porque podemos dizer que a própria existência existe. É que a disposição da aplicabilidade das regras de terem uma regra de identificação de ordem superior garantidamente aplicável a si mesmas também é dada.

 

15

 

 

A presente exposição do pensamento kantiano restará incompleta se não considerarmos ideias e conclusões de sua crítica da razão prática. Para Kant, assim como existe uma razão pura teórica, existe também uma razão pura prática, que tem por objetivo investigar o que existe de sintético a priori na determinação das decisões e ações humanas.

   Aqui o compromisso kantiano com o racionalismo torna-se patente. Tudo aquilo que ele rejeitou ao criticar a razão pura teórica ele passa a aceitar em sua razão pura prática. E o que ele irá criticar aqui é a razão “impura” prática, ou seja, aquelas éticas que colocam as origens do comportamento moral na experiência empírica, como acontece com as éticas que colocam o bem no prazer (hedonismo), nas ações onde prevalece o bem maior para todos (o utilitarismo) ou na felicidade humana enquanto tal (eudemonismo). Para ele essas concepções obedecem ao que ele chama de imperativo hipotético, que tem a forma: “Se queres obter X deves fazer Y”. O imperativo hipotético é teleológico, imiscuindo questões empíricas na teoria moral, o que a faz deixar de ser necessária e universal. Para que a moralidade tenha valor absoluto ela deve, pois, obedecer à lei pela própria lei e não por algum outro motivo. O imperativo categórico último é para ele o do dever pura e simplesmente: devemos obedecer às leis morais. A forma do imperativo categórico é: “Devemos fazer X pelo simples dever de fazer X”.

   Para que o imperativo categórico se torne factível Kant apresentou três formulações explicitadoras interligadas, que servem como meta-regras a serem aplicadas às máximas que encontramos embutidas nas ações de modo a estabelecê-las como moralmente corretas. Elas são:

 

1)    Age de forma que a máxima embutida em sua ação possa ser sempre universalizada para todos os agentes.

2)    Age de forma que a tua vontade possa considerar a si mesma como a vontade que qualquer ser humano estaria disposto a aprovar como instituidora de uma legislação universal.

3)    Age de forma que possas tratar a humanidade, tanto a sua quanto a de outros, sempre como um fim e nunca como um meio.[25]

 

Considere, por exemplo, ações como as de mentir ou roubar. Elas contêm embutidas as máximas de que a pessoa pode mentir e roubar. Mas essas máximas ferem o imperativo categórico. Não podemos (1) querer que todos mintam ou roubem, pois logo seremos também ludibriados e roubados, nem podemos (2) querer que nossa vontade de mentir ou roubar seja instituída como a vontade que qualquer ser humano quereria aprovar em uma legislação universal. E também parece claro que (3) tratar os outros como meio, mentindo ou roubando, infringe nossa intuição do que é certo.

   Para que o imperativo categórico seja aplicável ele pressupõe a satisfação de três condições que Kant chamou de postulados da razão pura prática. Esses postulados são:

 

1)    A liberdade: para que o homem possa satisfazer o imperativo categórico ele precisa ter a liberdade de agir em conformidade com a razão prática, ou seja, ser capaz de em suas decisões e ações transcender o determinismo universal do mundo fenomênico.

2)    A imortalidade: o ser humano deve ser capaz de progredir em direção a uma adequação completa de sua vontade à lei moral. Como esse progresso é infinito devemos ser dotados de uma duração indefinida, ou seja, de uma alma imortal.

3)    A existência de Deus. Não há na lei moral nenhum fundamento de uma necessária ligação entre ela e uma felicidade que lhe seja proporcional. Por conseguinte, é preciso que essa desproporção seja ajustada pela existência de Deus como o elemento causal necessário à existência do sumo bem. (A ideia por trás disso é que como não somos devidamente recompensados ou castigados pelo que fazemos nesse mundo, é necessário que exista um Deus para promover a justiça no outro mundo).

 

Juntando a epistemologia crítica com essa teoria moral um tanto dogmática chegamos a um resumo geral da concepção de mundo epistemológica, metafísica e moral de Kant.

 

Stop==´´~~0000000000000

 

   A teoria moral de Kant lembra-nos hoje da ferina, mas em meu juízo acertada observação feita por Bertrand Russell ao notar que Kant exemplifica o fato de que a maioria das pessoas jamais consegue se libertar das verdades auridas quando se encontravam no seio materno... de modo que depois de ter sido acordado de seu sonho dogmático por Hume, Kant logo tratou de inventar um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez.[26] Hegel também percebeu que havia algo errado, vendo na ética kantiana um subproduto do pessimismo antropológico luterano. Para ele Kant teria em sua ética desnecessariamente separado a sensibilidade da razão, transformando o ser humano em uma espécie de mártir do dever. Mas o ser humano, pensava Hegel, é um universal concreto, que deve ser capaz de harmonizar a sensibilidade particular à razão universal ao invés de ser opressivamente submetido a ela. Esses julgamentos críticos parecem confirmados pelas considerações que farei a seguir.

   Uma primeira consideração é que a pergunta sobre o para que serve o dever é capaz de ser colocada sempre que nós nos percebemos na obrigação de fazer alguma coisa. O mero sentimento do dever não possui em si mesmo nada de justificadamente moral. Afinal, a ideia de que temos a intuição do que é certo e do que é errado, do que devemos ou não fazer, como já notei, pode ser profundamente enganosa. Mahatma Ghandi sentia que era seu dever fazer greve de fome para conseguir a libertação da Índia. Mas também Adolf Eichmann sentia que era seu dever obedecer aos seus superiores e organizar a deportação dos judeus para os campos de extermínio da maneira mais eficiente possível, mesmo não tendo pessoalmente nada contra os judeus. Nada indica que tenhamos uma capacidade incondicionada de distinguir o que seja “fazer X pelo puro dever de fazer X” em um sentido moral. Algo está faltando! E a resposta natural é que esse algo só pode ser a finalidade do dever. As deficiências da deontologia nos levam a perguntar sobre as razões para seguirmos a lei, o que nos conduz a uma normatividade justificada pelo valor moral de suas consequências concretas.

   Vejamos agora algo sobre a força dos três princípios que para Kant explicitam o imperativo categórico. O primeiro, o da universalização, encontra um bom número de contraexemplos. São muitos os casos de mentiras benignas. Assim, imagine que durante a Segunda Guerra um alemão consciente esconde um judeu em sua fábrica. Quando um oficial nazista bate à porta para saber se ele sabe alguma coisa sobre o paradeiro de seu ex-empregado judeu, é obvio que ele deve mentir. Mas para Kant ele deve falar a verdade, pois se mentisse ele infringiria o princípio da universalização. Também contraexemplos às duas outras formulações podem ser facilmente encontrados. Quando um perseguido político usou um passaporte falso para poder escapar da Lituânia ocupada pelos nazistas, não é certo que ele deveria tratar o guarda da alfândega como um fim em si mesmo. Ele deveria tratá-lo como um meio para que pudesse atravessar a fronteira, tratando-se com isso a si mesmo como um fim. Ou não? Finalmente a vontade moral das pessoas é muito variável para servir de parâmetro. Uma vontade comum a todas as pessoas, ou é impossível de ser encontrada, ou é trivial.

   A conclusão é que os princípios do imperativo categórico de Kant pouco fazem para determinar o comportamento moral. O que eles podem fazer é servirem como regras auxiliares, regras de polegar, tal como “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti mesmo”.

   E quanto ao imperativo categórico do fazer X pelo dever de fazer X, cabe a pergunta: quem estabelece o que é o dever? Na falta de algo mais, quem estabelece o que é o dever é quem tem o poder, na época de Kant as autoridades de um sistema totalitário. Acontece aqui o que acaba por acontecer com as deontologias em geral. Não se tem como fundamentar regras como a dos dez mandamentos, senão recorrendo à autoridade divina. No caso de Kant, os mandamentos são reduzidos a meta-regras. Se elas forem literalmente interpretadas elas se tornam rígidas demais, produzindo um número de valorações morais injustas. Mas se isso não for feito, elas se tornam arbitrariamente abertas a inúmeras exceções, acabando por servir a quem tiver mais poder. O mesmo acontece com outros sistemas deontológicos. Se estritamente seguidos eles servirão para impor uma ordem à tribo, mesmo que a custo de injustiças. Mas se forem interpretados de uma maneira frouxa eles dão lugar ao arbítrio. Deontologias puras acabam por servir a sistemas éticos de fundamentação autoritária, seja ela divina ou secular.

   Devido à inflexibilidade e relativismo circunstancial dos mandamentos das éticas deontológicas, elas podem levar a conflitos morais como o descrito por T. E. Lawrence em seu livro Os Sete Pilares da Sabedoria. Ele, um inglês que se doutorou em Oxford, vestido de árabe e falando a língua local, aceitou o compromisso de liderar a revolta árabe. Contudo, a todo momento as regras de sua moral refinada se chocavam com os ditames rudimentares e supersticiosos das tribos árabes. Por vezes a sua decisão prevalecia, como quando decidiu voltar sozinho para encontrar um árabe que havia se perdido da caravana e que os outros consideravam morto por decisão de Alá. Mas na maioria das vezes a moral da tribo prevalecia, como quando foi levado a matar pessoas já rendidas após o assalto de um trem.

   Uma razão pela qual dou preferência ao utilitarismo de duas camadas brevemente sugerido no capítulo 1 (seção 3) é que por meio dele uma sociedade é capaz de alterar e aprimorar as regras morais, na medida em que elas promovem o bem geral, e não a partir de algum dever fundado em uma intuição possivelmente arbitrária e geralmente imposta por alguma autoridade. Ele tornaria os princípios absolutos sugeridos por Kant em meta-regras auxiliares geralmente válidas, na medida em que satisfizerem a função de licitar o seguimento das regras utilitárias enquanto elas são capazes de produzir o bem geral.



[1] Strawson, The Bounds of Sense (London: Methuen 1966), p. 11

[2] Diário, 1/11/1914.

[3] Anthony Kenny observou que Derrida foi aceito nos departamentos de arte nos Estados Unidos, mas não em departamentos de filosofia, “onde as pessoas tem mais experiência em distinguir filosofia autêntica de suas falsificações.” Ver A New History of Western Philosophy (Oxford: Clarendon Press 2007) vol. IV, p. 96.

[4] Ver capítulo II, sec. 8.

[5] Ver entrevista no vídeo: “Noam Chomsky: The Strange Bubble of French Intellectuals.” Philosophyinsights on Youtube.

[6] Crítica da razão pura (Lisboa: Calouste Gulbenkian 1989), traduzida do original Kritik der reinen Vernunft. A primeira edição apareceu em 1781; a segunda edição, fortemente revisada, apareceu em 1787.

 

[7] Crítica, Introdução.

[8] Crítica, Intr. B 3, B 4.

[9] Crítica, B 15-17.

[10] Crítica, B 16.

[11] Crítica B XVI-XVII.

[12] Ver o capítulo sobre Leibniz, sec 4.

[13] Russell, A History of Western Philosophy (New York: Touchstone 1972) p. 714-715.

[14] Ibid. p. 715.

[15] John Searle: resumo não publicado da Crítica.

[16] Crítica B 74-75.

[17] Crítica B 131-132-134.

[18]  Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language (London: Duckworth) 1981, pp. 194, 229.

[19]  Ernst Tugendhat: Logisch-Semantik Propädeutik  (Stutgart: Reklam 1983), p. 236.

[20] Crítica, B 391.

[21] Crítica A 599, B 627. A 596 – B 630

[22] Frege: Die Grundlagen der Mathematik, sec. 59.

[23] Ver John Searle: “The Unity of the Proposition”, in Philosophy in a New Century (Cambridge: Cambridge University Press 2008), p. 176.

[24] Para o que se segue, ver Claudio Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy (CSP 2016), Ch. IV, sec. 12.

[25]  Fundamentação da metafísica dos costumes (Lisboa: Edições 70), pp. 59, 69.

[26] Bertrand Russell: A History of Western Philosophy, Parte II, cap. XX.

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