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sábado, 7 de setembro de 2024

AULA SOBRE HEGEL

  

 (aula)

 

HEGEL: ESPIRITUALISMO DIALÉTICO

 

Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) foi a mais importante figura do idealismo alemão e o último dos grandes construtores de sistemas filosóficos. Foi colega e amigo íntimo de Schelling. A amizade perdeu-se depois que Hegel escreveu que a filosofia da identidade de Schelling é como a noite em que todas as vacas são pretas e outras coisas do gênero.[1]

   Sobre a vida de Hegel não há muito a dizer. Embora tenha nascido de uma família de algumas posses, ele viveu na época em que a Europa estava sendo assolada pelas guerras napoleônicas. Era professor em Jena quando o exército de Napoleão invadiu a cidade, confiscando seus haveres. Mas o principal deles, a Fenomenologia do Espírito[2] sua obra mais influente, foi a tempo enviado para publicação. Hegel teve então de passar por dificuldades financeiras, aceitando um lugar como diretor de um colégio em Nuremberg. Casou-se. Teve três filhos, um deles tinha sido fora do matrimônio e foi caridosamente adotado por sua esposa após a morte da mãe. Após um tempo como professor em Heidelberg, Hegel tornou-se professor em Berlim, onde viveu os últimos treze anos de sua vida e onde se tornou algo próximo de um filósofo oficial do reino da Prússia. Atendia aos serviços religiosos. Em 1831 Berlim foi assolada por uma peste. Hegel refugiou-se no campo. Contudo, sentindo falta de seus alunos acabou por retornar cedo demais, sendo fatalmente vitimado pela doença aos 61 anos. O sistema filosófico extraordinariamente imaginativo de Hegel não nasceu do nada. Ele foi lentamente erguido com o auxílio de uma imensa quantidade de leituras. Parece ter sido dele a frase: “Não há nada de original em mim e o que é original é falso”.

 

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Idealismo. O ponto de partida de Hegel foi o mesmo de todo o idealismo alemão: a rejeição da coisa em si como uma contradição dentro do próprio sistema kantiano. Uma vez aceito o idealismo, o problema epistemológico da percepção no interior do qual se deblateraram filósofos de Descartes a Locke e de Hume a Kant, desaparece. Não é preciso mais explicar como somos capazes de ter acesso a um mundo externo essencialmente heterogêneo a nós mesmos, uma vez que ele não possui mais nada que nos seja heterogêneo: tudo são ideias, mente, espírito. Com isso a investigação epistemológica que motivou muito da filosofia produzida de Descartes a Kant passou a dar lugar a uma metafísica do processo com influência neoplatônica. A preocupação de Hegel passou a ser com a evolução do mundo como um todo, entendida como o desdobramento de um espírito absoluto (Deus, a razão infinita), que se aliena a si mesmo como natureza, para depois aos poucos reconhecer-se objetivamente como ele mesmo na evolução histórica e nas instituições, passando então a reconhecer-se a si próprio como espírito subjetivo na arte, na religião e na própria história da filosofia, para reencontrar-se enfim, sob forma absoluta na filosofia do próprio Hegel. Nunca um sistema filosófico foi tão criativamente ambicioso quanto o de Hegel.

   Embora improvável enquanto travestida e magnificada na forma de uma investigação da evolução de um espírito absoluto omniabrangente, o que Hegel fez de mais importante foi investigar a evolução da consciência humana em suas múltiplas e variadas manifestações. Daí que as mais consistentes contribuições de Hegel foram para a filosofia prática, incluindo a história, a arte, o direito, a religião e a própria história da filosofia. Só esse esforço especulativo já resgata a importância de sua obra.

 

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Racionalismo. A filosofia do processo de Hegel contém dois pressupostos que precisam ser salientados. O primeiro deles é ontológico. Trata-se da assunção de que tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real.[3] Isso pode parecer estranho, mas é fácil de ser compreendido. Para ele o mundo inteiro não é nada mais do que ideia, mente, pensamento, espírito, razão, Deus, infinito, conceitos que em sua filosofia costumam significar a mesma coisa sob as mais diversas colorações semânticas. O espírito absoluto é tudo o que é real. Ele é pensamento. O pensamento precisa ser racional. Logo, tudo o que existe, seja interno ou externo a nós mesmos, tem de ser racional.

   A adoção desse princípio tem a consequência de inspirar Hegel na busca de explicações racionais. Podemos usar a razão para conhecer o mundo em qualquer nível porque ela é seu próprio princípio definidor. Da escravidão na Roma antiga até as consequências nefastas da revolução francesa, tudo deve ter alguma razão justificadora, ao menos do ponto de vista do absoluto ou de Deus. Afinal, tudo é consequência do desdobramento do espírito absoluto e a filosofia terá a função de explicar por que deve ser assim.

 

3

 

Dialética.  O segundo pressuposto é metodológico. Para Hegel o método da filosofia não poderia restringir-se à silogística aristotélica nem à lógica transcendental de Kant, incapazes de investigar o modo de transformação do espírito absoluto. A lógica que investiga o devir da realidade precisa ser o que ele chamou de dialética. Essa lógica deve dar conta do fato de que os conceitos contêm os seus opostos e que sua aplicação passa a eles no vir a ser das coisas. Assim, o conceito de ser contém o conceito do nada, o conceito de sujeito contém o de objeto, etc. Ele estava interessado em uma dialética que se aplicasse à realidade como um todo, à realidade como o espírito absoluto em suas infinitas divisões.

 

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    Ele encontrou o modo de progressão do absoluto nas tríades dialéticas inspiradas em Fichte. O absoluto tem um primeiro momento em que ele põe-se a si mesmo (tese)[4] na afirmação de uma parte da realidade que o constitui. No que se segue o absoluto nega aquilo que antes pôs, afirmando a realidade de seu oposto ou, no dizer de Hegel, sua contradição (antítese). Mas essa oposição termina por demonstrar-se insuficiente, o que faz com que o espírito unifique o que foi posto (a tese) ao que foi oposto (a antítese), naquilo que eles possuem de mais verdadeiro. Isso se dá pela negação da negação em um movimento de superação conservadora (Aufhebung) (síntese) no qual o espírito se sublima a si mesmo (sich selbst aufhebt), incorporando em si as verdades parciais do que é posto e do que é oposto. Essa superação, por sua vez, servirá de base (tese) para uma nova negação, que irá gerar uma nova oposição (antítese), que produzirá uma nova superação (síntese) e assim por diante em um processo sem fim.[5]

   Alguns pensam que Hegel fez com sua dialética foi superar o princípio da não-contradição exposto na lógica aristotélica. Mas isso decorre de uma má compreensão da relação entre a dialética e aquele princípio. Segundo o princípio da não-contradição (em sua formulação ontológica) uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto ou (em sua formulação linguística) uma proposição não pode ser afirmada e negada em um mesmo sentido. Seja como for, se Hegel pretendeu rejeitar esse princípio ele estava errado.[6] Afinal, a suposta “contradição”, em Hegel, ou existe como potência no interior de algo e, portanto, sob um aspecto diverso (ou, usando a formulação linguística do princípio, em um sentido diverso), ou ainda, quando a oposição e a superação se atualizam para nós em tempos diferentes. A contradição hegeliana não é, pois, uma simples negação, mas um contrário, uma oposição, um conflito, uma tensão, posto que a antítese é também uma tese. É só assim que a dialética é capaz de fazer sentido: ela é uma oposição surgida no cerne de alguma coisa, acabando por produzir a superação dos aspectos positivos e negativos da mesma. E a aplicação do método dialético só pode consistir de proposições que são verdadeiras sob um certo aspecto e falsas sob outro, e/ou que são verdadeiras em um momento e falsas em outro.

   Podemos encontrar um análogo da dialética idealista nas dialéticas discursivas. Esse é o caso da dialética argumentativa exercida nos diálogos de Platão, em que um falante defendia uma tese enquanto outro, geralmente Sócrates, argumentava contra ela, o que levava a alterações e novas sugestões que aos poucos conduziam a uma aproximação maior da verdade, ainda que os diálogos terminassem aporéticos. Um outro exemplo foi o método de pensamento dos filósofos céticos da antiguidade, que para Hegel precediam a dialética. Eles desenvolviam teses para então desenvolver antíteses de igual valor, de modo a demonstrarem ser impossível chegar à verdade (ver cap. IV, 3).  Mas os céticos, rejeitando a possibilidade de conhecimento, paravam aí, não procedendo como Hegel em direção a uma síntese. Também encontramos a dialética como exercício intelectual nas universidades medievais, nas quais o proponente deveria defender a tese enquanto seu oponente deveria encontrar argumentos a favor da antítese.

   Quero notar que parece haver uma confirmação de que alguma espécie de dialética possa ser entendida como um fenômeno concernente ao desenvolvimento da consciência humana em seus mais diferentes aspectos na maneira como Jean Piaget expõe os sucessivos estágios do desenvolvimento da criança. Em sua investigação, o desenvolvimento cognitivo da criança segue duas funções antagônicas, que são as de assimilação e acomodação. Na assimilação os esquemas de interação com o meio são conservados e o organismo tende a submeter o meio a suas formas de organização. A acomodação, por sua vez, é uma fonte de mudanças do organismo na criação de novas maneiras de se adaptar ao meio. Embora esses mecanismos sejam geralmente indissociáveis, na mudança de uma fase para outra do desenvolvimento da criança a acomodação leva vantagem, pois há uma diferenciação maior dos esquemas, com o desencadeamento de novas e mais robustas formas de assimilação... Como escreveu Piaget: “Toda conquista da acomodação se converte, pois, em matéria de assimilação, embora esta resista incessantemente a novas acomodações.”[7]

   Ora, não há dúvida que o processo de assimilação pode ser concebido como um por dialético (tese), enquanto a acomodação constitui-se em seu contrapor (antítese), disso se seguindo um novo processo de assimilação (síntese) que sustenta os esquemas aprendidos até que, pelo acúmulo de novas experiências, o organismo passe por uma nova acomodação (antítese) e assim por diante. Isso se dá mesmo que diversas assimilações a acomodações acabem por se sobrepor no processo. A maneira como Piaget concebe o desenvolvimento das capacidades intelectivas na criança não difere muito, estruturalmente, daquilo que Hegel seria capaz de entender como um processo dialético. Além disso, assim como a ontogênese (na embriologia) recapitula a filogênese (no desenvolvimento da espécie) também parece que as sucessivas fases do desenvolvimento da criança recapitulem o desenvolvimento da consciência humana em suas realizações objetivas e subjetivas na história. Por exemplo: Piaget notou que quando uma criança explica o movimento de uma seta como empurrando o ar com a sua ponta, de modo que ele passe para a sua cauda e a empurre para frente, ela nos provê de uma explicação similar à explicação fornecida por Aristóteles em uma de suas malfadadas tentativas de explicar fenômenos físicos especulativamente. É possível que Aristóteles, no que concerne ao raciocínio físico, a consciência humana tenha sofrido um desenvolvimento histórico recapitula o desenvolvimento da criança seguindo um modelo piagetiano de evolução dialética acima exposto.

   A conclusão de tudo o que dissemos acima parece ser que a “dialética” diz respeito primeiramente ao modo como desenvolvemos nosso pensamento. Raciocinamos opondo teses e antíteses com base no material informativo que nos é acrescentado, objetivando chegar a sínteses mais compreensivas em um processo teleológico cujo produto é intencional. Mas se o pensamento se desenvolve dialeticamente, então isso pode muito bem valer para tudo aquilo que tem a ver com o pensamento. Esse é o caso do desenvolvimento cognitivo da criança investigadas por Piaget. Mas esse também pode ser o caso de produtos sócio-históricos do pensamento. Ou seja: as instituições, a história, a cultura, as artes, a religião e mesmo a filosofia seriam capazes de se desenvolver em estágios dialéticos na medida em que são produtos intencionais. Não quero dizer com isso que tais processos sejam lineares, uma vez que há no mundo concreto inúmeros fatores intervenientes que nada tem a ver com eles (Hegel sabia muito bem disso). Mas se o que foi notado é certo, então ao menos bosquejos dialéticos podem ser encontrados nas ações humanas e em seus produtos históricos e culturais, como é o caso da arte, da religião e da filosofia. Sob essa perspectiva parece que somos capazes de validar em alguma medida as ambições de Hegel em sua filosofia do espírito. Essa antecipação especulativa de processos capazes de serem resgatados pela ciência já seria por si um grande feito.

   Não obstante, é hoje bastante claro que processos dialéticos não valem onde não há mais lugar nem para a intencionalidade nem para o que possa ser relacionado a ela, ou seja, no mundo da natureza puramente biológica e inorgânica. Hegel tentou desenvolver uma dialética da natureza, onde não existe um elemento intencional. Ele não poderia saber disso na época em que viveu. Mas nos tempos atuais, mais bem esclarecidos pela bioquímica, pela biologia e pela teoria da evolução, a crença em uma dialética da natureza torna-se uma projeção indébita da racionalidade humana lá onde ela não é mais capaz de atuar.

 

4

 

A lógica. No sistema filosófico de Hegel a primeira e mais abrangente de todas as tríades dialéticas constitui-se no movimento triádico do espírito absoluto, que começa com sua constituição lógico-metafísica (tese), é seguido de sua autoalienação no mundo da natureza (antítese) e termina na autoidentificação (do real) e no autorreconhecimento (do racional) de si mesmo como espírito absoluto (síntese).

   Há, por conseguinte, três grandes momentos dialéticos. O primeiro é estudado na Lógica de Hegel, que é ao mesmo tempo uma metafísica. Ela é a ciência da ideia em si, do espírito absoluto, “a investigação da estrutura da mente de Deus antes da criação do mundo”, por assim dizer.[8] O segundo momento é estudado em sua filosofia da natureza, que é a ciência da ideia objetificada, do Deus objetificado, da ideia que vem a ser outro de si. O terceiro momento é o da filosofia do espírito.[9] Ele é o da ciência da ideia como o Deus que se reconhece a si mesmo através dos homens, terminando na forma absoluta de autoconsciência. A lógica de Hegel nos parece hoje questionável e sua filosofia da natureza ridiculamente implausível, não importa o que seus cultores digam. Mas a filosofia do espírito é rica em insights e capaz de nos dizer algo, mesmo à luz da ciência e da cultura de nosso tempo. Vou considerar aqui esquematicamente as duas primeiras, para depois considerar em um mínimo de detalhes a filosofia do espírito.

   A lógica de Hegel deve investigar a constituição do absoluto primordial em sua eterna essência, antes de ele alienar-se de si mesmo como natureza ou como consciência humana. Ela investiga Deus, a ideia ou o pensamento em sua essência absoluta e necessária. Hegel quis que a sua lógica fosse também metafísica, posto que nela são investigados conceitos puramente abstratos cuja aplicação atravessa toda a realidade concebível, como é o caso daquilo que Aristóteles e Kant chamavam de categorias.

   A lógica de Hegel divide-se na tríade do ser, da essência e do conceito. Começando com o ser, ele apresenta uma muito famosa tríade primordial que envolve a passagem do ser para o não ser, que por sua vez passa ao vir a ser ou Devir. Ou, como ele escreveu:

 

O puro Ser (Seyn) é o começo: porque ele é de um lado o puro pensamento e de outro a imediatez em si mesma, simples e indeterminada, e porque o primeiro começo não pode ser mediado por coisa alguma ou ser mais além determinado. (...) Mas o mero Ser, sendo mera abstração, é portanto o absolutamente negativo, o qual, em seu aspecto igualmente imediato, é apenas Nada (Nichts). (...) O Nada, se ele é para ser imediato e igual a ele mesmo é também, de modo converso, o mesmo que o Ser. A verdade do Ser e do Nada é dessa maneira a unidade dos dois e essa unidade é o Devir (Werden).[10]

 

Paráfrases existem inúmeras. Aqui vai uma: o ser puro (a tese) é o absolutamente imediato e completamente indeterminado. Mas sendo assim ele é totalmente vazio de conteúdo. Mas então ele nada é. Ou seja: dele se deriva diretamente o que não é, ou seja, o Nada (a antítese), que por sua vez é algo (o ser nada). Ora, dessa oscilação entre o Ser e o Nada e o Nada e o Ser resulta sua superação no vir-a-ser, no Devir (“síntese”), que incorpora em si mesmo tanto o ser que não é – o Nada – quanto o ser que é – o Ser.

   Após essa impressionante primeira tríade Hegel prossegue mostrando que o Devir infinito se opõe ao ser determinado, que é o ser finito. O ser finito, por sua vez, se opõe ao ser determinado, o ser finito das categorias da qualidade, quantidade e medida. Da reflexão do ser infinito no finito vem a ser as relações, que passam do ser à essência... Na sequência ele vem a explicitar uma multiplicidade de outros conceitos metafísicos, incluindo os de fenômeno, realidade em ato, substancialidade, causalidade, ação recíproca, a divisão entre o subjetivo e o objetivo, etc. etc.

  Não pretendo considerar essas sequências. A falta de clareza e constante confusão conceitual é na lógica de Hegel tão imensa que podemos imaginar alguém inventando uma outra série de determinações dialéticas com similar poder de convicção. Uma pessoa com conhecimento e uma boa capacidade de análise perceberá as falhas no argumento, o que arruinará o seu prazer estético.

   Mas a lógica de Hegel não é simples mistificação. Por exemplo: ele pretende ter resolvido o grande problema humiano da falta de necessitação do efeito pela causa. Em sua doutrina da essência ele nota que a necessidade da relação entre causa e efeito advém do fato de, considerando que a causa e o efeito acontecem em um mesmo evento, elas são duas maneiras diferentes de se considerar uma mesma coisa, o que garante a necessitação do efeito pela causa.[11] Isso é falso porque embora causa e efeito se encontrem no instante de sua consumação, elas se prolongam em tempos diferentes. Mesmo estando errado, o que Hegel escreve provoca o pensamento. Daí podemos concluir que mesmo uma leitura in negativo da lógica de Hegel possa ser proveitosa.

   O segundo grande momento do absoluto é aquele investigado pela filosofia da natureza. Trata-se da ideia que se opõe a si mesma pondo-se como o outro, sem, contudo, reconhecer-se nesse outro. Hegel apresenta aqui uma progressão dialética da mecânica para a física e, finalmente, para o mundo da natureza geológica, vegetal e, finalmente, animal. O indivíduo animal morre por não se adequar à ideia, dele restando a mente humana, que é reabsorvida na ideia eterna, marcando a passagem da natureza para o espírito... A filosofia da natureza é a parte mais obviamente artificial e fantasiosa do sistema e dispensa considerações críticas.

 

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Crítica linguística. Faço uma pausa agora para comentar criticamente a famosa primeira tríade da lógica hegeliana. Ela nos lembra da abertura de certas óperas de Wagner, cujos efeitos iniciais são impressionantes, mas que logo depois se tornam melodicamente maçantes. Após Wittgenstein nós nos tornamos dispostos a ver em textos como esse um engalfinhado de confusões lógico-conceituais magnificando alguns parcos insights. Embora em termos literais o texto acima não faça sentido, ele parece fazer sentido e seu efeito pode ser mesmerizante. A questão é: o que o faz parecer ter sentido? Qual a fonte de seu inicial fascínio?

   Em uma tentativa de resposta podemos repetir aqui a sugestão feita pelo filósofo analítico Paul Edwards no que concerne a Heidegger, um filósofo que usava de estratégias discursivas semelhantes. Em um conhecido artigo[12] Edwards cita trechos nos quais Heidegger se impressiona com o fato de que o Ser se encontra para além dos entes. Por exemplo:

 

A sala de leituras é. Ela é iluminada. Nós reconhecemos a sala de leitura iluminada toda de uma vez... como algo que é. Mas onde está em toda a sala de leitura o ‘é’. Em nenhum lugar entre as coisas encontramos o ser.

Onde está o Ser dessa escola superior? Afinal ela é. O edifício é. Se qualquer coisa pertence a esse ser é seu Ser; mas não encontramos o Ser dentro dela.

Nós corremos (ou ficamos) ao redor do mundo com todas as nossas tolas sutilezas e conceitos. Mas onde em tudo isso está o Ser? [13]

 

Edwards nos lembra de que há três sentidos fundamentais do verbo ser: como cópula (“Sócrates é sábio”), como identidade (“Uma rosa é uma rosa”) e como existência (“Nos altos cumes é serenidade”), a isso se adicionando diferentes tonalidades conotativas. Heidegger está usando o verbo ser nas passagens acima no sentido de existência. E o que ele está fazendo é apontar para o fato de que a existência não é uma propriedade das coisas, embora ele o apresente como se fosse algo misterioso, superior, impressionante e indizível. Recorde-se de nossa análise do conceito de existência no capítulo XII desse livro (seção 14): a existência é o que Frege apontou como sendo a propriedade do conceito de sob ele cair ao menos um objeto e, em um sentido que também procurei demonstrar, a existência pode ser considerada a propriedade de uma efetiva ou garantida aplicabilidade de uma regra conceitual a seu objeto (o que o torna não-ficcional). Para Edwards, ao dizer que o Ser das coisas não se encontra nelas Heidegger está apenas redescobrindo de forma magnificada algo já bem sabido por filósofos, especialmente os analíticos. Como ele escreveu:

 

Umas poucas palavras estão em ordem no que concerne à ‘descoberta’ de Heidegger da “paradoxal natureza do ser”, sua “tendência misteriosa” de revelar-se tanto como de ocultar-se a si mesmo em ser uma espécie de eterno strip-tease cósmico. Esse tema é infinitamente repetido nos trabalhos de Heidegger. Podemos agora ver que não há nenhum “mistério” aqui e que Heidegger não descobriu coisa alguma. O “ocultamento” do Ser é um modo de referir ao fato de que quando procuramos pela existência nas coisas não podemos encontrá-la; a “revelação” do Ser é uma maneira desnecessariamente mística de dizer que apesar disso as coisas existem. Nós podemos honestamente caracterizar a descoberta de Heidegger da “paradoxal natureza do ser” como uma redescrição bombástica desses fatos; e, diversamente da análise dos enunciados existenciais esboçada acima, não faz nada para explicá-los.[14]  

 

Ou seja: o que Heidegger faz não é nada mais do que redescobrir o fato de que a existência não é uma propriedade das coisas, como se isso fosse a porta para uma dimensão superior da realidade, a do Ser, usualmente no lugar do Deus cristão.

   Meu ponto é que um argumento como o de Edwards contra Heidegger também pode ser aplicado à primeira tríade da doutrina do ser na lógica de Hegel. O verbo ser também é aqui usado primariamente no sentido de existência (ver cap. XII, sec, 14). Penso que se nos recordarmos que a existência foi analisada por Frege como significando o mesmo que a propriedade de um conceito, qual seja, a de que sob ele cai pelo menos um objeto, podemos parafrasear a primeira tríade da doutrina do Ser como se segue:

 

A propriedade conceitual da existência enquanto tal (o puro Ser) é o começo: ela pode ser considerada de forma pura, em separação de qualquer conceito particular a que se possa aplicar (...) Mas a simples propriedade conceitual da existência abstraída de seus conceitos não resulta em objeto algum ao qual conceitos possam se aplicar (é apenas o Nada). Essa falta de ligação com conceitos é como a existência enquanto tal, como mera propriedade... A existência como propriedade separada de conceitos não conduz à existência de coisa alguma, nem a existência de coisa alguma conduz a sua ligação com um conceito. E no perceber dessa alternância há um movimento da mente para lá e para cá e vice-versa (o Devir).

 

Podemos ainda parafrasear a mesma passagem usando a noção de efetiva ou garantida aplicabilidade (da regra) conceitual, pensada agora sem um conceito ao qual ela se aplique, posta lugar da mera noção de existência tout court, ou seja, do “Ser.” O resultado fica ainda mais estranho:

 

A efetiva aplicabilidade conceitual, tomada como a mera efetiva aplicabilidade conceitual sem o conceito (o puro Ser) é o começo: ela pode ser pensada enquanto tal, separada de qualquer conceito particular (...) Mas a simples efetiva aplicabilidade conceitual, tomada como existência abstraída de qualquer regra conceitual, não resulta em objeto algum ao qual conceitos possam se aplicar, na verdade não resulta em coisa alguma (é apenas Nada). Ora, essa existência como mera propriedade conceitual de aplicabilidade não ligada a nenhum conceito específico conduz à existência de coisa alguma, enquanto a existência de coisa alguma conduz à consideração de seu pensamento sem o conceito, de modo que na percepção dessa alternância encontra-se um movimento da mente de um lado para o outro e vice-versa (o Devir).

 

Essas paráfrases destituem o texto de Hegel de qualquer colorido metafórico, tornando-o preciso. Aqui a aura metafísica perdeu-se. Não é mais o relato de algo misterioso e extraordinário. Se estou certo então devemos aqui dar razão a Wittgenstein quando ele escreveu que toda uma nuvem de metafísica se condensa em uma gota de gramática.[15]

   É parte da gramática conceitual do verbo ‘existir’ que de tudo podemos dizer que de algum modo existe. Até da própria existência podemos dizer que ela existe. Assim, o Ser como existência pode ser usado no lugar de qualquer coisa, como uma espécie de metáfora universal. Esse foi o estratagema filosófico inventado por Parmênides e que continuou sendo usado em toda a filosofia ocidental, de Platão a Heidegger, passando por Hegel.

   Jean Paul Sartre usou essa metáfora universal em um sentido psicológico,[16] mas de maneira a magnificá-lo como uma ontologia existencial. Suas duas metáforas eram as do ser-em-si (l’être en-soi), o ser das coisas, e do ser-para-si (l’être pour-soi), o ser propriamente humano. Para ele o ser-para-si age sobre o ser em si como um abismo nadificador que se detém na angústia da negatividade (“a náusea”). Mas analisada de forma não metafórica essa progressão é trivial. Ela nada mais é do que uma maneira magnificada, altamente literária e profundamente pessimista de dizer que as coisas nos chamam atenção até que as conheçamos bem, e que depois elas se tornam tediosas e vazias. – Se bem me lembro foi Freud quem escreveu que a filosofia trata o concreto (aqui o psicológico) como se fosse o abstrato (aqui o ontológico-existencial) do mesmo modo que o esquizofrênico trata o abstrato como se fosse o concreto.

   Essas considerações, baseadas na crítica da linguagem inspirada por analíticos como Frege, Russell e principalmente Wittgenstein, nos dizem algo sobre o destino da invenção de Parmênides. A evolução do conhecimento humano parece ter tornado essa metáfora insuficiente, incapaz de dizer-nos algo suficientemente substantivo. A filosofia sofre transformações. A partir da metade do século XX filósofos analíticos, de Wittgenstein a Ernst Tugendhat, substituíram o discurso sobre o Ser pela análise mais rigorosa do significado conceitual.

 

6

 

Espírito subjetivo e objetivo. É em sua filosofia do espírito que Hegel apresentou o que ele tinha de mais importante a dizer. O espírito é o autorreconhecimento da ideia através da alteridade por ela posta. Para ele o espírito também se desenvolve através de um processo dialético triádico, que começa pondo o espírito subjetivo (individual), ao qual se opõe o espírito objetivo (geral ou social), terminando no espírito absoluto (universal ou divino).

   Comecemos com o espírito subjetivo. Ele é o indivíduo humano. Também ele passa por três momentos dialéticos. O primeiro é o da antropologia, tendo por objeto a alma sensível, em que o espírito é o indivíduo unido a um corpo. Para Hegel a alma e o corpo não podem ser opostos, pois nesse caso não haveria comunidade entre eles. O segundo momento é o da fenomenologia. Aqui o espírito se torna consciência. Ele reflete sobre si mesmo na forma de autoconsciência, pondo-se como um eu. Esse eu só se torna capaz de autoconsciência pelo reconhecimento de outras consciências, como é mostrado na famosa dialética do senhor e do escravo.[17] O terceiro momento é o da psicologia. Aqui o espírito considera-se a si mesmo de forma universal, como possuidor de uma vontade livre e capaz de submeter-se ao escrutínio racional.

   O espírito objetivo opõe-se dialeticamente ao espírito subjetivo. O espírito objetivo é o momento em que o espírito individual passa a viver a vida da humanidade, objetivando-se através de modelos de suas interações sociais e instituições culturais. Os três momentos dialéticos do espírito objetivo são os do direito, da moralidade e da eticidade.

   

(,,,)


Para Hegel o terceiro momento, o da eticidade (Sittlichkeit), é o da síntese entre o direito e a moralidade. O bem que daí resulta é o de uma comunidade social. A forma mais alta de moralidade é para ele algo concreto, ou seja, aquela que se constitui no espírito de um povo determinado sob a perspectiva de sua realização histórica. A eticidade, por sua vez, também segue um devir dialético, começando com a família, passando à sociedade civil e terminando na economia pública.

   Da oposição entre família e sociedade civil resulta o estado. O estado é a unidade universal na qual se resolvem as vontades individuais. Para Hegel o estado encontra-se sempre acima dos cidadãos. O estado não existe para o cidadão, mas o cidadão para o estado. Para ele o estado é absoluto. Ele é o Deus na terra, melhor dizendo, ele é a consciência que vige entre Deus e a humanidade! É dele que dependem a religião e a moralidade. Um cidadão aumenta a sua liberdade concreta na medida em que consegue conformar as suas ações com as instituições do estado.

   Para Hegel as decisões dos estados têm prerrogativa até mesmo sobre o direito internacional, de modo que quando os interesses vitais dos estados entram em conflito a guerra torna-se inevitável.[18]  Ele via na guerra uma forma saudável de decidir sobre quem tem razão, sendo ela responsável pelo progresso histórico da humanidade. Ela possui, ademais, a função de guardar nas mentes das pessoas as realidades da morte e da destruição. Um estado é como um indivíduo que precisa de outro para ter sua identidade reconhecida. Por conseguinte, não há em Hegel a ideia do mundo presidido por um estado mundial ou por uma confederação de estados com interesses comuns, como Kant sugeriu em À paz perpétua.[19]

   Os estados representavam para Hegel os diversos povos. Esses povos progridem e conflitam entre si como partes do espírito do mundo (Weltgeist), que se serve dos povos para realizar-se. Quando um povo acaba de exercer a sua função ele entra em decadência, dando lugar a outro. O espírito do mundo também pode se servir de indivíduos capazes de encarnar o espírito do tempo (Zeitgeist), como nos casos de Alexandre, Cesar e Napoleão. Enquanto general Napoleão encarnou o espírito de seu tempo, levando a exigência de ascensão da classe burguesa a vários outros povos. Ele esteve serviço da astúcia da razão (list der Vernunft) para depois ser descartado. A forma mais elevada de estado era para Hegel uma monarquia constitucional que respeitasse os direitos individuais, o que não era bem o caso do estado prussiano de sua época.

 

7

 

A história. Adentramo-nos aqui na mais importante filosofia da história de Hegel. A vida do espírito objetivo se revela temporalmente na historicidade, que também deve desdobrar-se em movimentos dialéticos cujo objetivo final é alcançar a consciência da liberdade. O desenvolvimento do espírito absoluto presentifica-se na história através de quatro momentos nos quais a liberdade humana se desenvolveu.

   O primeiro é o da infância da humanidade no Oriente (China, Índia, Egito Antigo e Pérsia). Nessas civilizações estacionárias só era livre o déspota, com poderes absolutos arbitrários, ele mesmo não tendo consciência de ser livre. Os indivíduos não possuíam uma moral própria e leis que deles emanassem.

  A adolescência do espírito foi representada pela Grécia antiga, onde já havia certo grau de liberdade entre os cidadãos. Mas embora já houvesse uma ideia da individualidade livre, tratava-se de uma liberdade limitada pela escravidão e pelo fato de que embora houvesse liberdade social, não havia liberdade individual. A liberdade dos cidadãos era a dos hábitos morais estabelecidos pela cidade-estado e não a liberdade reflexiva das consciências individuais, pois os cidadãos viam-se tão absolutamente ligados à cidade-estado que não distinguiam seus interesses próprios dos interesses do estado. A maior glória, por exemplo, era morrer em um campo de batalha. Tratava-se da liberdade do hábito ou do costume e não do uso da razão.

   O conflito entre a liberdade individual e a liberdade do cidadão como membro da pólis se demonstra, por exemplo, na tragédia de Antígona. O novo rei da cidade decide que o irmão de Antígona não poderá ser enterrado, devendo servir de repasto para os abutres e os animais selvagens. Contrariando essa decisão ela decide enterrar o irmão e é punida por isso. Outro exemplo é o de Sócrates, cujo delito foi o de opor aos valores da cidade estado uma liberdade originada de sua própria consciência crítica. Com isso ele se tornou o inimigo mortal da liberdade do costume, razão pela qual foi condenado.

   Roma constituiu a virilidade do espírito, que se exprimiu na forma do império. Diversamente de outros impérios, o império romano era formado de uma coleção de povos os mais diversos, que precisavam ser unificados pela mais severa disciplina através do uso da força. Disso resultou que, embora os cidadãos já tivessem uma consciência reflexiva da liberdade individual herdada da Grécia, eles não eram capazes de realizá-la na prática. Tratava-se de uma liberdade formal, posto que as liberdades concretas eram esmagadas pelo poder de Roma. No mundo romano o espírito grego espontaneamente livre havia sido destruído. Isso explica o proliferar de filosofias como as do estoicismo, epicurismo e ceticismo, que negavam a importância dos afazeres do mundo. Hegel via essas filosofias como expressões da impotência do indivíduo. Elas refletiam o desespero do indivíduo, que mesmo vendo-se a si mesmo livre era incapaz de influenciar os poderes que regiam seu destino. Afora isso, Roma precisava de escravos para nutrir seu sistema, os quais não possuíam liberdade alguma.

   Como superação dessa situação entrou em cena o cristianismo. Ele se distinguia por sua doutrina moralizante, segundo a qual vivemos nesse mundo para purgar-nos do pecado original, a verdadeira vida começando no além-mundo. Precisamos para isso quebrar o domínio de nossos desejos naturais de modo a fazermo-nos merecedores da vida eterna, o que é possível dado que fomos feitos à imagem de Deus e que por isso nosso valor é infinito. Para Hegel, o cristianismo significou um grande progresso na consciência humana, que se descobriu como sendo essencialmente espiritual. Se somos seres essencialmente espirituais então devemos ser capazes de transcender a hostilidade do mundo natural de uma forma positiva. Para Hegel o cristianismo substitui a moralidade do costume grega pela moralidade do amor. Ele acabou por dominar o mundo europeu ao tornar-se a religião oficial de Roma e permanecer, ou por ter cristianizado os bárbaros ou por resistir a eles, como aconteceu no decadente império bizantino. Só essa concepção igualitária do homem defendida pelo cristianismo permitiu o desaparecimento da escravidão na Europa, pois deu a todos a perspectiva da liberdade ao considerar cada indivíduo humano como possessor de um valor infinito e candidato a vida eterna.

   É curioso contrastarmos a opinião de Hegel sobre o cristianismo com a de Nietzsche, que consideraremos mais tarde. Este último via no cristianismo a aceitação de uma mentira vital, que era a do ideal ascético, segundo o qual nossos desejos naturais deveriam ser controlados e reprimidos em troca de uma compensação dada pela vida eterna em outro mundo. Afinal, parece razoável considerarmos o cristianismo como apenas uma forma de escapismo mais venérea e popular do que as doutrinas do estoicismo, epicurismo e ceticismo, substituindo a veneração da razão estoica pela veneração a um Deus recriminador. Sob o ponto de vista nietzscheano essa seria uma séria distorção na filosofia da história de Hegel.

   Quanto à Idade Média, tudo o que Hegel viu nela foi uma longa e terrível noite na qual a igreja perverteu o verdadeiro espírito cristão. Só com o renascimento e, mais tarde, com a revolução francesa, houve um progresso real. E foi só pelo florescimento do mundo germânico que o espírito entrou em sua fase de ancianidade construtiva.

   Para Hegel o alvorecer do mundo germânico começou com Lutero. A igreja católica havia sido corrompida, tratando a divindade como se ela estivesse incorporada no mundo real através de rituais, cerimônias e vendas de indulgência. O protestantismo permitiu a cada ser humano encontrar a salvação por si mesmo, como indivíduo. A consciência individual do ser humano passou a ser o árbitro último do que é bom e verdadeiro. Assim, após a reforma luterana, que demandou uma fé abstrata, e após a revolução francesa, que naufragou devido ao despreparo das pessoas em lidar com as demandas da racionalidade, mas que permitiu o estabelecimento de leis capazes de tornar racional o estado, fez-se possível a criação de um estado racional na Alemanha, capaz de tornar possível ao indivíduo realizar-se de modo verdadeiramente livre em sua racionalidade reflexiva. É por isso que no mundo germânico as liberdades individuais se tornaram capazes de se encontrar, em uma síntese final, com a liberdade do absoluto. Pois quando o estado é racional, ser livre é ser capaz de adequar-se a ele! Para Hegel na sociedade racionalmente organizada do mundo germânico de seu tempo que a ideia da liberdade havia alcançado a sua consumação. Pois em um mundo racionalmente organizado, a liberdade subjetiva da racionalidade individual passa a coincidir com a liberdade objetiva da racionalidade do estado.

 

8

  

Espírito absoluto. Passados pelo espírito subjetivo (tese) e por sua oposição no espírito objetivo (antítese) chegamos agora à sua superação conservadora: o espírito absoluto (síntese). Tal é o caso do espírito que se considera em si e por si mesmo e que tudo supera sem deixar nada fora de si. Ele é a síntese do temporal com o eterno, do finito com o infinito, do particular com o universal. Mas a realização do espírito absoluto também deve se dar através de três subsequentes momentos dialéticos: o da arte, o da religião e o da filosofia.

   Vejamos então o momento da arte (tese). Para Hegel é através da arte que a consciência do absoluto ou ideia toma sua primeira forma. Ela é a revelação do divino na intuição sensível: a arte é a manifestação sensível do absoluto. Na arte a ideia se manifesta como forma sensível. A arte será melhor quando mais perfeita for essa intermediação. Como a natureza é espírito adormecido e a arte é produto direto do espírito, o belo da arte é sempre superior ao belo da natureza.[20]

   A arte também se manifesta sob três formas dialéticas. A primeira, própria da arte oriental, foi a arte simbólica cultuada da Pérsia, Índia e Egito. A arquitetura foi a principal forma de arte simbólica. Ela se utilizava de elementos naturais como um leão para simbolizar a coragem, um pássaro para simbolizar a alma, a luz para simbolizar o divino. Mas como esses produtos da natureza se encontram muito distantes da ideia, ela só pôde ser por eles apresentada de forma distorcida, bizarra e grotesca,[21] ainda que por vezes contenham algo de sublime.

   A superação antitética da arte simbólica só se deu pela objetivação da ideia na arte clássica, cuja origem foi origem grega. Nessa forma de arte foi escolhida principalmente a escultura das formas humanas idealizadas para representar o absoluto, como no caso de uma estátua do deus Apolo. Contudo, por mais idealizada que fosse, não era possível libertar essa forma de arte da finitude sensual do mundo fenomenal.

   Essas duas formas de arte, a simbólica e a clássica, só foram dialeticamente superadas pela arte romântica. Ela é exemplificada pela arte cristã, que se liberta do elemento sensual para adquirir tons religiosos. As principais formas de arte romântica são para Hegel as da pintura, da música e, principalmente, a da poesia. Na poesia o que se expressava era um espírito que já se concebia como sendo infinito e que era muito mais complexo e sofisticado do que aquilo que se expressou nas duas formas anteriores de arte. Através da arte romântica a arte começou a superar a natureza própria da arte, tornando-se arte-religião e quase que abandonando o elemento sensível.

   Como manifestação do espírito absoluto, a arte encontrou o seu oposto (antítese) na religião, que é o momento da pura objetividade. Aqui a intuição se espiritualiza na forma da representação do absoluto, na medida em que isso é possível. A religião encontra um desenvolvimento histórico que coincide com o desenvolvimento da ideia de Deus na consciência humana. Hegel também encontra nesse desenvolvimento três momentos dialéticos. O primeiro foi o da religião natural. Ele foi o momento da magia, do fetichismo, do simbolismo. Ele é para Hegel o momento das religiões orientais na China e na Índia. No segundo momento a ideia de Deus passou às religiões da liberdade, passando da substancialidade à individualidade espiritual. Nós o encontramos na religião persa e na egípcia. Mais tarde encontramos as religiões da individualidade espiritual – o culto ao sublime entre os judeus, do belo entre os gregos e dos fins entre os romanos. Finalmente chegamos ao cristianismo, a religião mais alta, a religião absoluta. O cristianismo é a única religião que conseguiu satisfazer plenamente o objetivo de unir o homem ao divino. Contudo, também dentro do cristianismo encontramos uma evolução. Ele passou por um momento imagístico na Idade Média, chegando ao seu apogeu no momento conceptual do protestantismo que, como é sabido, rejeitava imagens de figuras sagradas.

   A síntese do momento subjetivo da arte com o momento objetivo da religião só pode ser encontrada na filosofia. A filosofia é definida por Hegel como a ciência que unifica arte e religião. Só na transparência da razão filosófica o espírito absoluto explicita-se a si mesmo por completo, de modo a alcançar sua inteira autoconsciência. Nela o absoluto não é mais nem intuído nem representado, vindo diretamente expresso no conceito. Também essa explicitação evolve dialeticamente. Por meio de tríades dialéticas apresentadas nas formas dos diversos sistemas filosóficos, a ideia adquire um conhecimento cada vez maior de si mesma. A história da filosofia torna-se assim a auto-explicitação do absoluto.

   Para Hegel cada filosofia necessariamente pressupõe a que a precede. Em sua leitura a história da filosofia teve seu primeiro momento com os pré-socráticos. Tales, ao considerar a água como o princípio, estava tomando o conceito de água pela primeira vez em um sentido abstrato. Sócrates foi uma figura chave por ter adicionado à moralidade grega convencional um princípio de reflexão da consciência sobre si mesma – aquilo que poderia ser chamado de moralidade reflexiva. Por isso mesmo, como Antígona, ele não encontrou respaldo na moralidade comunitária da pólis. Mesmo Platão e Aristóteles não se libertaram por suficientemente da moralidade comunitária. Somente a filosofia cristã irá universalizar o tipo de subjetividade representado por Sócrates no mundo Grego e por Cristo no mundo romano. Mas a filosofia só encontrará a sua completude quando a procissão das filosofias cristãs e modernas tiver desembocado no próprio Hegel, refletindo as condições do verdadeiro estar em casa no mundo aproximadas pela sociedade alemã de sua época. É só nessa última filosofia que o espírito atinge a sua mais completa maturidade: é quando o espírito absoluto toma consciência absoluta de si mesmo.

   Eis como Hegel descreve a posição de sua própria filosofia como a culminação última do pensamento ocidental:

 

Até aqui chegou o espírito do mundo. E cada estágio toma sua forma própria no verdadeiro sistema da filosofia. Nada se perdeu, todos os princípios foram preservados, dado que em seu aspecto final a filosofia é a totalidade de suas formas. Essa ideia concreta é o resultado dos esforços do espírito durante quase vinte e cinco séculos de trabalho honesto no sentido de tornar-se objetivo para si mesmo, de conhecer-se a si mesmo: tantae molis erat, se ipsam cognoscere mentem. [22]

 

A filosofia de Hegel explicita o absoluto na consciência plena de sua totalidade recuperada. “Depois de mim,” teria dito ele, “não haverá mais a necessidade de ser original.”

 

9

 

Crítica. O sistema de Hegel é grandioso e profundamente imaginativo em sua concepção. Mas há inúmeras objeções que podem ser levantadas, muitas vezes decorrentes do afã sistematizador de sua pretendida dialética universal, que torna seus esquemas argumentativos distorcidos, forçados, artificiais e fantasiosos, desrespeitando a própria dialética (virtude epistêmica nunca foi o forte do idealismo alemão). Um exemplo: a arte, a religião e a filosofia não culminaram uma depois da outra como seria de esperar se sua relação fosse realmente o produto de um desenvolvimento dialético. Sabemos apenas que a filosofia foi um fenômeno derivado posterior, que coexistiu com a arte e a religião, o que em meu parecer só pode ser justificado por sua natureza derivada (cap. I, sec. 9).

   Se queremos avaliar o modo como Hegel produziu sua filosofia precisamos recorrer ao esquema da filosofia entendida como sendo uma prática cultural derivada da prática científica (heurística), da prática artística (metafórica) e da prática religiosa (totalizadora) apresentado no primeiro capítulo desse livro (sec. 8). A filosofia de Hegel não contém quase nada da prática científica. Ele não foi certamente um paladino da verdade. Sua motivação pendia para os elementos estético e místico, de modo que ele estava sempre disposto a sacrificar a verdade pelos efeitos metafóricos e pela ambição totalizadora do sistema. E muito de sua filosofia impressiona mais pela configuração sistematizadora e pela tonalidade religiosa-oracular de sua retórica argumentativa.

   Essa disposição esteticista e mística torna-se mais clara quanto comparamos Hegel com Hume. O último está mais próximo da arte e da ciência, mas de modo algum da religião e da disposição totalizadora. Daí ter ele desenvolvido argumentos feitos para impressionar seus leitores pelas conclusões inaceitáveis, em apelo a um efeito estético-imaginativo. Mas eles são também proveitosos pelo desafio que colocam para quem está interessado na verdade. Como o modelo de Hume é literário, ele não nos leva pelo nariz, dado que a arte é uma ilusão que se sabe tal. Afinal, ele apresenta argumentos claros que o conduzem ao paradoxo, deixando para nós mesmos escolher se os aceitamos ou não, além do trabalho de explicar porque os aceitamos ou não. Já Hegel segue um modelo retórico-místico-oracular, capaz de lembrar-nos das prédicas religiosas nas quais tudo precisa ser de algum modo justificado.

    A questão da plausibilidade importa, mesmo que não seja o único  elemento importante na avaliação das ideias filosóficas. Não há porque duvidarmos do progresso da ciência. Hegel viveu antes da descoberta da evolução natural por Darwin, que se faz por tentativa e erro e que não é teleológica nem dialética. Ele viveu antes da descoberta dos princípios da termodinâmica e da cosmologia contemporânea, que mostraram ser a mente consciente um acaso ínfimo dentro da imensidão do universo. Mesmo que essa mente consciente seja produto do universo e, nesse sentido a sua própria consciência (o próprio universo que se pensa através dela) nada indica que ela seja um produto teleológico desse universo e isso basta para a rejeição do idealismo absoluto como uma posição especulativa extremamente implausível.

   Finalmente é preciso lembrar da mais séria objeção contra a eliminação do objeto independente da mente no idealismo absoluto. A maior razão pela qual admitimos a existência de um mundo material independente do sujeito da experiência é que o aparecimento e a ordem de aparecimento das representações sensíveis não dependem da mente ou do espírito. Como notamos no capítulo V (sec. 4) na ausência da materialização de qualquer hipótese cética radical nós nos servimos desse e de outros critérios similares para mantermos a postulação semântica de que nosso mundo é ultimamente real. Assim, na ausência da concretização de uma hipótese cética nós não encontramos razão para não acreditarmos que existe um mundo externo independente e fora da mente, que deve ser a fonte dessas representações. Essa postulação semântica é para nós natural por uma questão de simplicidade epistêmica. Ou seja, é ociosa a hipótese de que a ordem e independência das coisas seja resultado de uma imaginação produtiva inconsciente de um suposto espírito absoluto. Os filósofos que veremos a seguir, Marx e Nietzsche, poderiam com razão adicionar que foi a fé cristã em uma realidade extramundana que levou os filósofos a ignorar esse preceito e a confundir as intuições.[23]

 

 

 

 

 



[1] Hegel: Fenomenologia do espírito, prefácio.

[2] Fenomenologia do espírito (Petrópolis: Vozes 2011). Tradução do original em alemão Phenomenologie des Geistes (1807).

[3] Hegel: Filosofia do Direito, prefácio.

[4] Observe que Hegel não usa nem o verbo ‘por’ (setzen) nem as palavras ‘tese-antítese-síntese (Thesis-Antithesis-Sinthesis), que pertencem ao vocabulário de Fichte. Eu as uso aqui por razões didáticas e também por ver na dialética hegeliana uma leitura antiformalista de procedimentos fichteanos.

[5] Para se ter uma ideia dos desgastantes problemas interpretativos internos da dialética hegeliana ver o artigo “Hegel’s dialectic” na Stanford Encyclopedia of Philosophy (Internet 2019).

[6] Ver Ciência da Lógica (Wissenschaft der Logik), livro II, sec. 1, cap.2,  C.

[7] A construção do real na criança, p. 329 (Trad. Port. Rio de Janeiro: Zahar 1970.)

[8] Isso não deve ser entendido literalmente, pois como o mundo é para Hegel parte de Deus, ele não poderia tê-lo criado.

[9] Para Hegel a lógica investiga Deus como o pai, a filosofia da natureza investiga Deus incarnado, ou seja, como o Filho, e a filosofia do espírito investiga Deus como o Espírito Santo, o que resolveria filosoficamente o mistério da santíssima trindade. Ver Vorlesungen über die philosophie der Religion II (Werke vol. 12), Parte 3, I, 3.

[10] Ciência da Lógica (versão da Enciclopedia) parágrafos iniciais das seções 86, 87, 88.

[11] Hegel, Ciência da Lógica (Wissenschaft der Logik) livro II, cap. 3, sec. B.

[12] Paul Edwards: “Heidegger Quest for Being”, in Philosophy 1989, vol. 64, n. 250, pp. 437-470.

[13] Ibid. p. 443.

[14] Ibid., p. 464.

[15] Wittgenstein: Investigações filosóficas (Philosophische Untersuchungen 1953), Parte II.

[16] J. P. Sartre: O Ser e o nada (L’étre et le néant: Essay d’ontologie Phénoménologique 1945) parte II, cap. 3.

[17] Embora esse momento apareça na Enciclopedia, ele foi mais profundamente desenvolvido na Fenomenologia do Espírito, obra que mereceria um comentário à parte.

[18] Hegel: „Die Verfassung Deutschlands“, in Schriften zur Politik und Rechstsphilosophie, ed. Georg Lasson, 2a ed. Leipzig 1923.

[19] Kant, Pela paz perpétua: um esboço filosófico (Zum ewigen Frieden: einer philosophischen Entwurf), 1795.

[20] G. W. F. Hegel: Curso de estética: o belo na arte (São Paulo: Martins Fontes 1996), I, Definições Gerais, 1.

[21] G. W. F. Hegel: Curso de estética: o belo na arte. Ibid. Parte II, seção 1 (a forma simbólica de arte).

[22] “Tão difícil era para a mente conhecer-se a si mesma”. Leituras de Hegel sobre a História da Filosofia. Seção III: Filosofia alemã recente. E. Resultado final.

[23] Procurei ignorar objeções de caráter moral como as imprecações de Schopenhauer contra Hegel, as objeções exageradas de Karl Popper e mesmo as de Bertrand Russell, para quem Hegel é a prova de que um gênio também pode ser intelectualmente desonesto. Também quis ignorar a atitude dos cultores de Hegel que o interpretam da maneira como os teólogos interpretam a bíblia, às vezes pelo entretenimento de delírios filosóficos próprios calçados no interior das mensagens do profeta. Prefiro ver no idealismo alemão um jogo de ilusionismo especulativo hiperdimensionado, mas repleto de insights enriquecedores.


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