IV
FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS
A morte de Alexandre em 123 a.C. deu origem a um período conturbado e
instável chamado de helenístico, que por convenção durou até 30 a.C., ano da
morte de Marco Antônio e Cleópatra. Alexandre havia conquistado a maior parte
do mundo conhecido, mas as suas diferentes regiões acabaram por ser governadas
por seus generais, que passaram a disputá-las violentamente entre si. Atenas
entrou em decadência e passou a ser rivalizada por Alexandria como centro
cultural. Na última foi construída a famosa biblioteca de Alexandria, que se
estima ter possuído meio milhão de volumes que mais tarde foram, em sua grande
maioria, destruídos pelo fogo e pela ignorância e superstição humanas. Após as
invasões romanas da Grécia por volta de 140 a.C., o centro cultural do ocidente
acabou se deslocando para Roma.
As escolas filosóficas mais bem
sucedidas nesses tempos difíceis foram o epicurismo, o estoicismo
e o ceticismo, refletindo as atribulações da época. Para Hegel, essas
escolas exprimiam o desespero e a impotência do indivíduo, que se via a si
mesmo diante de poderes que ele era incapaz de influenciar.[1] Com efeito, há em todas elas
um elemento de consolação, que nos faz pensar em nossos manuais de autoajuda. Há
certamente níveis cada vez mais altos de autoajuda até chegarmos a um nível
filosoficamente tolerável, ou seja, ao menos suficientemente coerente e
consistente com a cultura herdada e o conhecimento acumulado (não parece que
haja um ponto de corte claro e definitivo). Com isso quero dizer que essas
filosofias se tornaram populares como testemunhas das circunstâncias incertas
da vida humana no mundo helenístico e, principalmente, no mundo romano
hedonista, violento e cruel. O império romano era formado por diferentes povos
que nada tinham em comum, de modo que ele só era mantido coeso pela força da espada,
encontrando-se sempre sob o risco de ser destruído por forças externas ou
internas. Nele a vida tendia a ser caprichosa, perigosa e por vezes sofrida e
curta.
1
Epicurismo. As filosofias do epicurismo, estoicismo e ceticismo
eram seguidas por tribos humanas diversas, na medida em que seus membros
encontravam sua afinidade de temperamento maior com uma ou outra delas. Epicuro
(341-270 a.C.) foi um materialista atomista, fortemente influenciado por
Demócrito e Leucipo e preocupado com questões práticas.[2] Para ele não precisamos
temer a morte, uma vez que ela é apenas a separação dos átomos... Não
precisamos nos preocupar com os deuses porque eles não se interessam por nós...
Ele via uma dificuldade em conciliar nosso livre arbítrio com o determinismo
dos atomistas: como podemos ser livres se somos constituídos de átomos que
seguem leis naturais? Sua solução estava na sugestão de que os átomos mais
finos que constituem nossas mentes devem ser capazes de desvios arbitrários (clínamen)
através dos quais as cadeias causais do mundo natural são rompidas.[3]
Essa ideia de que nosso livre-arbítrio se deve
a uma capacidade de transcendência dos liames causais do mundo material é hoje chamada
de libertarismo. Ela foi imensamente influente ao ser adotada pela
filosofia cristã e ainda hoje é comum. A dificuldade com ela é que se
introduzíssemos um elemento de puro acaso em nossas decisões e ações, não
parece que com isso aumentaríamos nossa liberdade. Para exemplificar, imagine
que uma pessoa comece a se comportar de maneira inesperada, imprevisível,
errática. Isso não significa que ela se tornou mais livre. Significa apenas que
ela deixou de se comportar de forma racional. E como designamos como sendo
livres somente seres racionais, parece que o melhor que podemos dizer é que não
somos mais capazes de aplicar o conceito de liberdade a um tal ser humano.
A filosofia da vida de Epicuro ainda
possui muito de atual. Trata-se de uma filosofia hedonista segundo a qual o
prazer é o mais alto bem. Esse prazer pode ser ativo (kinetic) ou
estático (katastematic). Exemplos de prazeres ativos são os de realizar
ações, como o de satisfazer um desejo ou eliminar a dor. Esse é o caso do
prazer de comer ou de fazer sexo. Já os prazeres estáticos são os de contentamento,
de tranquilidade e de serenidade alcançados pela ausência de perturbações
físicas como a dor e de perturbações da mente como o arrependimento e o medo.
Embora Epicuro valorizasse os prazeres ativos, ele valorizava mais ainda os
prazeres estáticos. Como os prazeres estáticos dependem da satisfação dos
desejos, ele classificou os desejos em três grupos: os naturais e
necessários, os naturais mas desnecessários e os não-naturais e
desnecessários. Exemplos de desejos naturais e necessários são os de
alimento e de companhia. Esses desejos são essenciais à felicidade, razão pela
qual devem ser sempre buscados. Os desejos naturais mas desnecessários são os
de coisas como o consumo de pratos refinados, o uso de roupas caras e o sexo. Devemos
buscar satisfazê-los, mas não a qualquer preço. Eles podem ser viciantes, pondo
em risco a tranquilidade característica dos prazeres estáticos. Finalmente, há
os desejos não-naturais e desnecessários, como os de poder, opulência e honras.
Eles são os desejos vãos. Eles não são provenientes de nossa natureza humana,
mas subliminarmente designados pela sociedade. Eles são difíceis de serem
satisfeitos, dado não possuírem um limite superior. Se os alcançamos logo nos
acostumamos com eles e buscamos obtê-los em maior medida. Pior ainda: ao
satisfazê-los passamos a ter medo de perder o que ganhamos, a isso se
adicionando a animosidade e a inveja de outras pessoas com ambições semelhantes,
o que destrói os nossos prazeres estáticos. Por isso os prazeres advindos da
satisfação desses desejos devem ser a todo custo evitados!
O pensamento de Epicuro é importante
no sentido de dar ao prazer um lugar mais apropriado. Durante a Idade Média e
mesmo quase até nossos tempos, como resultado do que Nietzsche mais tarde
chamou de ideal ascético, o hedonismo epicurista foi desvirtuado como se
o prazer devesse ser reduzido ao prazer físico e como se tudo o que Epicuro
defendesse fosse a indulgência nos prazeres físicos. Mas o prazer possuía para
ele uma aplicação mais ampla e suas reflexões acerca do assunto eram muito mais
elaboradas e matizadas do que se possa pensar à primeira vista.
Não obstante, há coisas a serem criticadas.
Não existe uma fórmula para a felicidade que sirva para todos os seres humanos,
dado que eles são por natureza diversos uns dos outros naquilo de que
necessitam e na dependência de inúmeros fatores. A Grécia não teria tido o
brilhantismo de um governante como Péricles, nem a ousadia e astúcia de um
general como Temístocles se prazeres sociais como os do poder, da honra e da glória
não fossem em medida saudável apreciados. Além disso, se compararmos o
epicurismo com a filosofia dos gregos antigos seremos capazes de ver inequívocos
traços de decadência: a perda da audácia especulativa da filosofia de outrora
se fazia sentir no redirecionamento das preocupações para temas mais corriqueiros,
como a busca de fórmulas para o bem viver. A felicidade suprema era para
Aristóteles um prazer ativo, o compartilhamento do pensamento de Deus, e não um
prazer estático. Mas tais prazeres sublimados, como os da criação e da
descoberta, não são mais aquilo que Epicuro tinha em mente.
2
Estoicismo. Outra doutrina menor que teve grande duração e sucesso
foi o estoicismo. Ele começou com Zeno de
Citium (335-263 a.C.), sucedido por Cleantes (-232 a.C.) e por Crysipus
(279-206 a.C.). O sucesso dessa doutrina foi maior em Roma, através de figuras
como Sêneca (4 a.C.-65 b.C.), o ex-escravo Epiteto (50-135) e o imperador Marco
Aurélio (121-189 d.C.).[4]
Os estoicos dividiam a filosofia em lógica,
física e ética, que eles viam como interdependentes, excluindo a especulação
metafísica. É famosa a metáfora do ovo: a casca é a lógica, a clara é a física
e a gema é a ética; o entendimento correto da ética pressupõe o entendimento da
física, que pressupõe o domínio da lógica. A contribuição maior para a lógica
foi a investigação de argumentos proposicionais não abrangidos pela silogística
aristotélica. Um exemplo simples é o argumento “Se é dia, então há luz; há dia,
portanto há luz”, no qual usamos a regra do Modus Ponens para obter a
conclusão.
A contribuição para a física consistiu em uma
visão materialista de Deus, da alma humana e do universo. Para os estoicos o
universo contém uma dimensão passiva e uma dimensão ativa. A dimensão passiva é
constituída pela matéria prima. A dimensão ativa é constituída por uma
inteligência que permeia e governa todo o universo, dando-lhe unidade: o logos.
O logos é o princípio universal da razão, também chamado de pneuma (o
sopro vital) ou Deus. Para os estoicos por meio do logos o universo inteiro se
encontra em simpatia consigo mesmo, ou seja, harmonicamente interconectado de
maneira determinista.
A parte mais influente do
estoicismo foi a ética. Para o filósofo estoico a felicidade não consiste no
prazer, como pensavam os epicuristas, mas na virtude. A virtude é o único bem.
Ela consiste em se viver em concordância com o todo, com o logos, com Deus, com
a natureza da qual fazemos parte. Embora o último guia da virtude seja a
opinião pessoal, eles enfatizavam as quatro virtudes cardinais gregas, que são
a coragem, a temperança, justiça e a sabedoria... Para os estoicos há duas
espécies de coisa que dificultam nossa vida: as que podemos e as que não
podemos controlar. Como as paixões mundanas dizem respeito ao que não podemos
controlar, devemos restringi-las ao máximo através do bom uso da razão. Ademais,
as paixões nos afastam da vida virtuosa, donde a razão deve ser usada para
dominá-las. Para alcançar a felicidade é preciso alcançar indiferença (apatheia)
quanto aos desejos, resignando-se diante dos absurdos da vida. Para Marco
Aurélio devemos viver sob a consciência de que a morte está sempre espreita.[5] Como consequência o
estoicismo se torna uma filosofia do autocontrole.
O mundo romano, vão e cruel, fez com que
muitos buscassem refúgio no estoicismo. Um exemplo concreto de comportamento
estoico foi a reação de Marco Aurélio ao comportamento de sua esposa Faustina,
com a qual teve quatorze filhos. Ela foi acusada de ter instigado a revolta de
Ovidio Cássio contra o marido, algo que lhe iria custar a vida. A revolta foi
descoberta a tempo. Marco Aurélio minimizou o castigo dos responsáveis e
destruiu as provas de modo que Faustina não pudesse ser responsabilizada.
Sêneca, um outro estoico Famoso, com notáveis poderes de oratória, sobreviveu a
Calígula, sobreviveu a Claudius, mas não conseguiu sobreviver a Nero, que,
tendo desconfiado de que Sêneca fazia parte de uma conspiração contra ele,
enviou-lhe uma carta ordenando-lhe cometer suicídio. Sêneca cortou os pulsos, o
é sempre melhor do que ser supliciado. Esses exemplos nos fornecem uma luz
sobre as razões psicológicas pelas quais o estoicismo fez tanto sucesso no
mundo romano.
Não quero negar que existe um
nível verdade no estoicismo: obediência à razão, autocontrole e paz de
consciência são coisas importantes. Mas não precisam ser objetos de fé. Como
Nietzsche notou, o estoicismo busca domesticar uma vida perigosa e traiçoeira
através da fé em uma razão petrificadora das paixões.[6] Parece claro que muito do
estoicismo é um exercício para escapar das vicissitudes de uma vida sobre a
qual se tinha muito pouco controle. Buscava-se refúgio contra as dificuldades de
um mundo desfavorável através da dedicação a uma vida virtuosa. Mas a virtude é
uma noção vaga demais quando coarctada das emoções, que se demonstram
importantes até mesmo para direcionar a vida virtuosa. Afinal, o que é a vida
em concordância com a natureza? Não há uma resposta. Para Marco Aurélio isso
significou absolver sua esposa. Para Júlio Cesar, em uma mesma situação, a ação
virtuosa teria sido com certeza muito diversa. Explicar a virtude em termos de
harmonia com a razão universal tem como resultado um inevitável subjetivismo moral.
3
Ceticismo. Chegamos, por fim, ao ceticismo. Ele se caracterizava
pela desconfiança de tudo o que pretendesse ser conhecimento. O fundador do
ceticismo foi Pirro de Elis (360-275 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles.
Pirro nada escreveu. Também, para que escrever quando não se acredita em nada?
Disseram os pósteros que ele era tão cético que os seus discípulos precisavam
alimentá-lo e vesti-lo… Nesse caso ele deve ter sido muito bem tratado, pois
conseguiu viver mais de 90 anos.
Se Pirro nada escreveu, seu
discípulo romano Sexto Empírico (160-210 d.C.) escreveu bastante, sendo a ele que
devemos muito dos que sabemos sobre o ceticismo antigo. O método dos céticos
para alcançar a paz de espírito era o seguinte:
1) Argumente por uma tese (por
exemplo, viveremos após a morte).
2) Argumente por uma antítese (por
exempo, não viveremos após a morte).
3) Perceba que, após o acúmulo de
argumentos tanto a favor da tese quanto da antítese, nenhuma das duas vence a
outra; esse equilíbrio chama-se isostenia.
4) Uma vez percebido isso você chega à
epoché, à suspensão da crença.
5) Uma vez chegado à epoché
você alcança a paz do espírito: a ataraxia! Você perdeu a necessidade de
pensar e se preocupar com as coisas da mente e já pode agora descansar em paz.
A verdade, porém, é que tese e a antítese dificilmente aparecem como
possuindo pesos perfeitamente idênticos, a menos que torçamos nossos argumentos
no sentido de alcançarmos tal resultado, o que não é difícil na areia movediça
da argumentação filosófica.
O sucesso do ceticismo deveu-se em
boa parte ao fato de ele representar mais uma forma de evasão diante das
vicissitudes dos novos tempos. Dessas três filosofias da vida helenistas a mais
procedente foi o epicurismo, com sua ênfase no prazer moderado. Talvez por isso
ela tenha sido a mais rejeitada nos difíceis tempos que se seguiram.
4
Plotino. O filósofo mais original do período romano foi Plotino
(204-270), um neoplatônico. A ideia suprema continua sendo, como em Platão, a
do Bem. Mas o bem é Deus, o indizível, o Uno. Embora o Uno não tenha criado o
mundo conscientemente, como o Deus cristão, ele o fez por excesso, por transbordamento
espiritual. Deus produziu o mundo através de emanações, que são como o perfume
que sai do frasco. Plotino foi um idealista, de modo que essas emanações
espirituais, esses eflúvios, somos todos nós e tudo o que se encontra ao nosso
redor. Há vários níveis de emanações, as que constituem princípios
intelectuais, as que produzem os movimentos da alma e as que constituem a
natureza visível. Tal como as ideias platônicas, as emanações são cognoscíveis.
Além delas só existe um fundo escuro de matéria incognoscível.
A doutrina das emanações teve
importância para a cristandade por relacionar Deus com o mundo, uma relação que
no cristianismo se estabelece entre o Deus pessoal, criador das escrituras, e o
mundo empírico.
5
Alta Idade Média. A Idade Média começou no
século V d.C., com a queda do Império Romano ocidental (476 d.C.) e acabou no
século XV d.C. A filosofia medieval acabou por recuperar o nível e as temáticas
das filosofias de Platão e Aristóteles, mas sem alterar o paradigma por eles
definido. Os dois mais importantes filósofos cristãos, Agostinho de Hipona e
Tomás de Aquino, herdaram respectivamente as estruturas teóricas desenvolvidas
por Platão e Aristóteles e as cristianizaram: Agostinho batizou Platão e Tomás
de Aquino batizou Aristóteles. As archai, a ideia do bem, a Substância
Pura, o Uno, foram substituídos pelo Deus cristão, criador e pessoal, enquanto
o núcleo central da filosofia medieval continuou sendo a metafísica,
principalmente no sentido de teologia. Afora isso, era vedado ao pensamento
contrariar os cânones estabelecidos pela interpretação das escrituras sagradas.
Não foram poucos os filósofos que foram proibidos de escrever por terem
infringido essa norma. E o filósofo Giordano Bruno foi queimado vivo por
reincidir.
O pensador mais importante no
início do cristianismo foi seguramente Agostinho de Aosta (354-430 d.C.). Ele
nasceu no que é hoje a costa da Algéria. Sua mãe, Mônica, era cristã, e o seu
pai pagão. Note-se que embora o império romano só tenha caído em 476 a.C., com
a tomada de Roma pelos bárbaros, a cidade eterna já havia sido saqueada em 410
a.C. e o império decadente por essa época já havia sido praticamente convertido
ao cristianismo. Por isso Agostinho já pode ser considerado o primeiro filósofo
medieval.
Em seu livro Confissões ele
descreve a sua juventude como um período de dissipação e sexualidade
exacerbada, que o levou a ter um filho ilegítimo. Essa forma de vida, na qual
sentimento e razão estavam em conflito com a paixão física, o constrangia ao extremo.
Motivado pelo desespero com relação ao seu próprio comportamento ele se
interessou pela religião e pelo problema do mal. Foi de início atraído pelo
maniqueísmo, a seita dos seguidores de Mani (216-276). Para os maniqueístas o
mundo é uma batalha entre dois princípios opostos igualmente poderosos, os do
bem e do mal, e Deus não é todo-poderoso. Durante a luta o bem se torna um
pouco mesclado ao mal. O objetivo do maniqueísta é liberar o bem. Salvos serão
os que forem bem sucedidos em liberar o bem através de uma vida de ascetismo…
Mas cedo Agostinho se decepcionou com o simplismo dessa doutrina, terminando
por converter-se ao cristianismo.
A principal marca do pensamento
agostiniano foi a preocupação com a interioridade. Para ele a finalidade da
vida humana consiste na contemplação de Deus. Só ela é capaz de nos
proporcionar a verdadeira felicidade. E sua mais famosa doutrina foi a da iluminação.
Deus ilumina a alma humana fazendo com que tenhamos acesso às ideias na mente
divina. Assim, é só através da fé que nos tornamos capazes de alcançar a
verdade.
Após Agostinho a Idade Média
bateu forte. Com a dissolução do império romano o sistema de trocas de
mercadoria que funcionava provendo as mais diferentes necessidades em locais diversos
desapareceu. Os reis bárbaros que dividiram entre si os despojos do império
eram pouco organizados e lutavam entre si. O próprio Agostinho, que morreu
quando sua cidade se encontrava sitiada pelos vândalos, escreveu:
Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o
mar. E ninguém poderá atravessar o mar do século presente se não for levado
pela cruz de cristo.[7]
A alta Idade Média (séculos V a X) foi um período muito duro em que a
Europa foi retalhada em pequenos feudos com duas classes, a dos nobres e a dos
servos. Os servos não eram mais escravos, pois já tinham alguns direitos. Por
exemplo, quando a terra era vendida eles iam juntos. Parece que embora fossem todos
mais pobres, vivia-se em um sistema menos injusto. A cultura ficou restrita a
monastérios cuja função era apenas a de conservar o que os antigos haviam
feito. O cristianismo tornou-se onipresente e foi o principal responsável pelo silencioso,
mas imenso, avanço civilizatório por ele produzido – o avanço que possibilitou
o fim da escravidão na Europa. Foi um período de despojamento, de pobreza e
analfabetismo, mas de relativa ordem. Um tempo de constrição da cultura, que de
resto podia esperar.
O único filósofo grandemente
original surgido na Alta Idade Média foi o irlandense John Scotus Eriugena
(810-877). Ele escreveu um livro chamado De Divisione Naturae, uma
história cíclica do mundo na qual as coisas se originam de Deus e ao final
retornam a Deus. O universo passa por quatro fases:
1.
A da natureza
não criada e criadora. É aqui o Deus Pai, que é o princípio primeiro e
incriado de todas as coisas, incognoscível e inefável.
2.
A da natureza
criada e criadora. É o Verbo, o mundo inteligível das ideias-arquétipos das
coisas, exprimindo os pensamentos e a vontade de Deus antes da criação do mundo
sensível.
3.
A da
natureza criada e não criadora. É o mundo criado no espaço e no tempo,
no qual vivemos. Ele não cria coisa alguma porque não é o indivíduo que gera os
outros seres, mas a espécie, a qual se determina nos indivíduos em virtude do
Espírito.
4.
A da
natureza não criada e não criadora. Aqui trata-se do próprio Deus, como
o fim absoluto de toda a natureza criada e ao qual tudo retorna. O homem, tendo
se esforçado em imitar o exemplo do filho de Deus, liberta-se do pecado
original e retorna a Deus como alma separada do corpo.
O ciclo tem início em Deus e termina em Deus. Através dele todas as
coisas criadas se tornam manifestação de Deus. Mas isso não é panteísmo, pois
embora todas as coisas estejam em Deus, ele próprio não está nelas, posto que
às transcende.
6
Baixa Idade Média. Após o século X a filosofia
começou novamente a florescer na Europa medieval com o surgimento da
escolástica. No ápice desse desenvolvimento encontra-se Tomás de Aquino
(1225-1260 d.C.). Ele foi um grande sintetizador do conhecimento em obras
imensas como a Summa Theologica e a Summa contra Gentiles. O
gênio de Aquino se encontra disperso nos volumes de sua obra teológica, o que o
torna pouco acessível a não iniciados.
No tempo de Aquino a Metafísica
de Aristóteles já havia sido traduzida para o latim. Mas os teólogos e
autoridades papais torciam o nariz para esses escritos. O Deus aristotélico – o
primo motor – não parecia nada com um Deus pessoal preocupado com seres
humanos que havia criado à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia.
Aquino conseguiu reverter esse estado de coisas. Ele cristianizou Aristóteles,
assim como Agostinho havia antes cristianizado Platão. Ele fez isso ao
introduzir a distinção entre o reino da razão e o da revelação. A revelação
está nas escrituras e era para ele incontestável. Aqui Aristóteles cometeu
erros. Mas a filosofia de Aristóteles estava certa no que concerne ao mundo
natural. O mundo visível não é constituído de cópias de ideias platônicas, mas é
um mundo real e efetivamente acessível à experiência sensível. Como o mundo
natural foi criado por Deus, que lhe impôs uma ordem, ao investigarmos o mundo
ao nosso redor nós ganhamos algum entendimento da mente divina. A função última
da metafísica aristotélica foi a de auxiliar-nos no entendimento do mundo
natural através dos olhos da razão, ganhando assim maior conhecimento do
próprio Deus.
Essa maneira de ver inovadora
foi importante porque deu aos cristãos o direito de ter em alta conta o mundo
empírico, que dessa maneira deixou de ser uma sombra visível do mundo das
ideias platônicas. Isso serviu como incentivo para o desenvolvimento das
ciências empíricas, ao menos antes que Copérnico e Galileu viessem a demonstrar
que o matrimônio entre razão e religião era incestuoso.
Tomás de Aquino costuma ser
lembrado pelos seus argumentos empíricos para demonstrar a existência de Deus.
Argumentos para provar a existência de Deus podem ser lógicos ou empíricos. O
Argumento ontológico de Anselmo Aosta (1033-1109 d.C.), visando provar a
existência de Deus foi um argumento lógico. Segundo esse filósofo, Deus deve ser
definido como o que de maior pode ser pensado. Se concordamos com essa
definição e admitimos que somos capazes de pensar Deus, isso significa que ele
precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós iríamos nos
contradizer acreditando sermos capazes de pensar algo maior do que o que de
maior pode ser pensado.[8] (Tomás discordava desse
argumento por pensar que não somos capazes de conhecer a natureza de Deus a
ponto de dar sentido à definição de Anselmo).
Resumidamente, os argumentos empíricos
que Aquino usa para demonstrar a existência de Deus, as chamadas cinco vias, são:
(1) Tudo o que se move deve ser movido por outro. Mas isso não pode continuar
indefinidamente. Logo, deve haver um motor imóvel que seja causa eficiente de
todo movimento a ser chamado de Deus. (2) se percorrermos retrospectivamente as
causas compreenderemos que essa regressão não pode ser infinita: deve existir
uma causa incausada de todas as causas, que é Deus. (3) Tudo é contingente,
logo deve haver um ser necessário, ou seja, Deus. (4) As criaturas tem graus de
bondade e de outras perfeições. Mas se é assim, deve haver algo que possua bondade
e perfeição absolutas: Deus. (5) No mundo as coisas são organizadas em direção
a fins. Assim, o arco e a flexa servem a um fim, mas precisam de um arqueiro
que justifique esse fim. Do mesmo modo, deve existir um ser que organizou o
mundo, ou seja, Deus.[9]
Todos esses argumentos parecem-nos
hoje pouco plausíveis. Não precisamos mais desse horror ao infinito. Não há
nada que nos force a pensar que deva haver um primeiro motor imóvel que seja
causa eficiente de tudo o que se move, pois uma sequência potencialmente
infinita de causas parece-nos perfeitamente concebível (negação de 1). A necessidade
do todo pode justificar a contingência das partes, não demandando um ser
necessário externo (negação de 3). Para Aquino a existência do imperfeito
demanda a existência da perfeição. O quente existe porque existe o fogo, que era
para ele o máximo de calor. É preciso existir um máximo de bondade para que
exista a bondade? Não parece que isso seja necessário (negação de 4). A grande
organização teleológica do mundo vivo nesse minúsculo ponto do universo onde nos
encontramos se explica hoje por milhões de anos de evolução natural, que embora
tenham gerado a indescritível organização e refinamento da vida sobre a terra,
tem por função última apenas aumentar o grau de desordem (entropia) no universo
(negação de 5).
É certo que nossa atual concepção científica
do mundo não precisa ser definitiva. Mas as respostas negativas baseadas na
ciência são agora as melhores que temos e a fé advinda da mera vontade de crer não
parece uma boa alternativa. Aquino se deixa compreender: afinal, se vivêssemos na
atmosfera medieval, sem o esclarecimento da ciência natural sobre o mundo, sem
a teoria darwiniana da evolução das espécies e sem os esclarecimentos da
psicologia profunda sobre nossos mecanismos de defesa (particularmente Freud), dificilmente
nos libertaríamos da crença nos ensinamentos dos textos sagrados. Não temos
hoje a mesma desculpa.
Entre outras coisas, Aquino contribuiu para a epistemologia.[10] Embora, como Aristóteles,
ele fosse um empirista que não acreditava em ideias inatas, ele também não era um
empirista no sentido de acreditar que a mente fosse um recipiente passivo. Ou
seja: para ele a mente não é uma espécie de balde que vai se enchendo de
conhecimento de modo aleatório, pois ele põe ênfase em suas capacidades inatas de
aprendizado. Ele não aceitava a doutrina agostiniana da iluminação, mas
defendia que possuímos um intelecto ativo provido de uma luz natural da
razão capaz de transformar o objeto no mundo, que é potencialmente pensável, em
objeto atualmente pensável na mente. Mas esse intelecto ativo não é mais
do que uma faculdade natural criada por Deus para nos permitir conhecer a
natureza eterna das coisas. Como em Aristóteles, para ele o conhecimento começa
com a sensação. As coisas particulares são compostas de matéria e forma. Ao
conhecermos os objetos sensíveis nós nos tornamos formalmente idênticos a
eles, produzindo cópias das formas substanciais e acidentais em nossos
órgãos sensoriais. Por esse meio temos acesso ao que ele chama de “espécies
sensíveis” que a imaginação retém e coleciona na memória como phantasmas
(imagens mentais contendo espécies). É nesse momento que entra em ação o
intelecto ativo. Esse intelecto ativo retira dos phantasmas os conceitos
imateriais e os deposita no que Aquino chamou de intelecto passivo, que é o
quadro negro no qual os conceitos são inscritos. Importante aqui é a capacidade
do intelecto ativo de formar princípios a partir da experiência, a exemplo do
princípio da não-contradição. Aquino explica esses princípios de modo
semelhante àquele pelo qual mais tarde Kant definiu os juízos analíticos: são
juízos nos quais o predicado está contido no sujeito. Um exemplo pode ser dado
pelo enunciado definitório: “Homens são animais racionais”. Aqui o predicado
animal racional está contido no conceito de homem.
Ainda mencionáveis (entre
outros tantos) são dois filósofos de língua inglesa que pertenceram ao
escolasticismo tardio: Duns Scotus e William of Ockham (século XIV). A
filosofia de Duns Scotus (1265-1308) é um labirinto de sutilezas escolásticas
que motivou Bertrand Russell a observar que o nome ‘Duns’ vem de ‘dunce’, que
quer dizer em tradução literal o mesmo que ‘obtuso’ – uma piada de mau gosto.
Scotus foi sagaz ao rejeitar a opinião de
Aquino de que a identidade individual de uma coisa dependeria de sua matéria. A
matéria de uma certa árvore, assim como a matéria de um tronco que flutua na
água, ou a matéria de uma certa cadeira, sendo a madeira de que são feitos esses
objetos, não é suficientemente determinada para nos permitir individuar a
árvore. Quanto à matéria prima, a matéria última de que as coisas são feitas,
além de ser comum a todos os indivíduos, além de indeterminada, não é sequer
cognitivamente acessível. Já a forma comum, por exemplo, a forma de Sócrates como
pertencendo à espécie humana, é indiferente à individuação por ser comum a todos
os homens. Por conseguinte, nem a matéria nem a forma comum são capazes de
individuar coisa alguma. Aquilo que identifica precisa ser uma forma própria do
indivíduo em questão, uma “diferença individualizante”, a haecceitas capaz
de distinguir essa árvore das outras árvores e Sócrates dos outros homens.[11]
William de Ockham (1285-1347),
o último filósofo que devo mencionar aqui, foi o defensor de uma forma
conceptualista de nominalismo. O primeiro nominalista, Roscelin de Compiègne
(1050-1125), sustentou a ideia radical de que os universais nada mais são do
que sopros de voz (flatus vocis), ou seja, os sons que produzimos pelo
proferimento de uma palavra como ‘o bem’ ou de um predicado como ‘...é bom’.
Segundo este nominalismo, universais no sentido realista, entendidos como
entidades reais comuns a muitos indivíduos, como o bem, a justiça, o
conhecimento, não podem existir. Ockham também rejeitava a existência de
universais no sentido realista, por acreditar que a mente humana não é capaz de
apreender quididades ou formas gerais.[12] Ele admitia a existência
de universais como conceitos mentais e, de modo derivado, como termos gerais,
mas em qualquer dos casos eles não possuem nenhuma existência metafísica, não
passando de particulares. Em sua filosofia madura ele veio a entender o
universal como um ato de pensar uma diversidade de objetos de uma só vez.
Esse ato, contudo, nada mais é do que uma qualidade singular de uma mente
individual. Ele é universal apenas no sentido de ser um símbolo mental de uma
diversidade de coisas e de poder ser predicado delas em uma proposição mental.
7
Nominalismo.
Uma versão contemporânea do nominalismo é aquela
segundo a qual termos gerais como ‘o bem’, ‘a justiça’... se referem a classes
de objetos. Assim, se dizemos que Aristóteles é branco e que Platão é branco,
ambos os predicados nos dizem o mesmo porque eles se referem à mesma classe de
objetos.[13]
Um problema encontrado em semelhante
nominalismo de classes é que termos gerais com intensões (sentidos) diferentes
podem ter a mesma extensão (a mesma classe de objetos referidos). Por exemplo:
o termo geral ‘animal com rins’ se aplica à mesma classe que o termo geral ‘animal
com coração’. Mas nesse caso parece que eles deveriam ter também a mesma intensão,
ou seja, deveriam significar, dizer a mesma coisa, o que nesse e noutros
exemplos não é o caso. Foi aqui que D. K. Lewis (1941-2001) sugeriu a aplicação
da noção de mundo possível ao problema dos universais.[14] Um mundo possível é como
um modo completo e consistente pelo qual o mundo é ou poderia ser. Ora, se a
extensão da expressão conceitual for sua aplicação tanto no mundo atual quanto
em outros mundos possíveis, então a extensão de expressões conceituais com
sentidos diferentes poderia ser diferente. Por exemplo: existem mundos possíveis
nos quais animais com rins não possuem coração e vice versa, o que justifica a
diferença na intensão ou sentido dos termos.
Um problema é que para ser assim parece ser
necessário que os mundos possíveis pertençam à mesma classe dos mundos atuais,
ou seja, que eles existam. Embora um tanto inacreditável, essa posição foi defendida
por Lewis, para quem os mundos possíveis são tão reais quanto o mundo atual,
com o único problema que eles são inacessíveis a nós. Em que pese a
originalidade da posição de Lewis, a sugestão a ser exposta no capítulo XIX terá
a vantagem de não nos comprometer com posições especulativas inescrutáveis.
[1] G. W. F. Hegel: Vorlesungen
über die Philosophie der Geschichte, Dritter Teil: Die Römische Welt (1833)
[2] Epicuro: Cartas e máximas principais (Penguin-Companhia
2021).
[3] Lucrecio:
Sobre a natureza das coisas (De rerum natura) (Autêntica 2021),
2.256-2.263.
[4] Ver Sêneca e Marco Aurélio in Grandes
Mestres do Estoicismo. Trad. Artur Costrino (Edipro 2021).
[5] As Meditações, livro
escrito por Marco Aurélio quando ele defendia o império nas fronteiras do
norte, é repleto de alusões à morte, como se ao invocar a sua presença ele
melhor pudesse dominar seu receio de encontrá-la.
[6] Ver James A.
Mollison: “Nietzsche Contra Stoicism: Naturalism and Value, Suffering and Amor
Fati.” In
Inquiry,
2019, 61: 1, 93-115. Para uma discussão do contexto histórico ver Bertrand
Russell: A History of Occidental Philosophy, cap. 28.
[7] Comentário
ao Evangelho de João (2, 2).
[8] Anselmo de
Aosta: Monologium (1077).
[9] Suma Teológica (São Paulo: Fonte
Editorial) Parte Primeira, questão 2, a existência de Deus, artigo 3, pp. 21-22.
[10] Suma
Teológica, Ibid., vol. I, Questões 84-87, pp. 751-791.
[11] Em meu livro sobre a
referência dos nomes próprios creio ter investigado essa diferença
individualizante apelando a uma regra conceitual de identificação do nome
próprio. Ver
How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III.
[12] Wilhelm of Ockham:
Opera Philosophica et Theologica, G. Gál. et al. eds., NY: The
Franciscan Institute, 1977-88, Vol. II-2.
[13] Anthony Quinton. “Properties
and Classes,” Proceedings of the Aristotelian Society 58, pp. 33-58.
[14] D. K. Lewis, On
the Plurality of the Worlds (Oxford: Oxford University Press 1986).
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