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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS (HELENISMO E IDADE MÉDIA)

  

 

IV

FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS

 

A morte de Alexandre em 123 a.C. deu origem a um período conturbado e instável chamado de helenístico, que por convenção durou até 30 a.C., ano da morte de Marco Antônio e Cleópatra. Alexandre havia conquistado a maior parte do mundo conhecido, mas as suas diferentes regiões acabaram por ser governadas por seus generais, que passaram a disputá-las violentamente entre si. Atenas entrou em decadência e passou a ser rivalizada por Alexandria como centro cultural. Na última foi construída a famosa biblioteca de Alexandria, que se estima ter possuído meio milhão de volumes que mais tarde foram, em sua grande maioria, destruídos pelo fogo e pela ignorância e superstição humanas. Após as invasões romanas da Grécia por volta de 140 a.C., o centro cultural do ocidente acabou se deslocando para Roma.

   As escolas filosóficas mais bem sucedidas nesses tempos difíceis foram o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo, refletindo as atribulações da época. Para Hegel, essas escolas exprimiam o desespero e a impotência do indivíduo, que se via a si mesmo diante de poderes que ele era incapaz de influenciar.[1] Com efeito, há em todas elas um elemento de consolação, que nos faz pensar em nossos manuais de autoajuda. Há certamente níveis cada vez mais altos de autoajuda até chegarmos a um nível filosoficamente tolerável, ou seja, ao menos suficientemente coerente e consistente com a cultura herdada e o conhecimento acumulado (não parece que haja um ponto de corte claro e definitivo). Com isso quero dizer que essas filosofias se tornaram populares como testemunhas das circunstâncias incertas da vida humana no mundo helenístico e, principalmente, no mundo romano hedonista, violento e cruel. O império romano era formado por diferentes povos que nada tinham em comum, de modo que ele só era mantido coeso pela força da espada, encontrando-se sempre sob o risco de ser destruído por forças externas ou internas. Nele a vida tendia a ser caprichosa, perigosa e por vezes sofrida e curta.

 

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Epicurismo. As filosofias do epicurismo, estoicismo e ceticismo eram seguidas por tribos humanas diversas, na medida em que seus membros encontravam sua afinidade de temperamento maior com uma ou outra delas. Epicuro (341-270 a.C.) foi um materialista atomista, fortemente influenciado por Demócrito e Leucipo e preocupado com questões práticas.[2] Para ele não precisamos temer a morte, uma vez que ela é apenas a separação dos átomos... Não precisamos nos preocupar com os deuses porque eles não se interessam por nós... Ele via uma dificuldade em conciliar nosso livre arbítrio com o determinismo dos atomistas: como podemos ser livres se somos constituídos de átomos que seguem leis naturais? Sua solução estava na sugestão de que os átomos mais finos que constituem nossas mentes devem ser capazes de desvios arbitrários (clínamen) através dos quais as cadeias causais do mundo natural são rompidas.[3]

   Essa ideia de que nosso livre-arbítrio se deve a uma capacidade de transcendência dos liames causais do mundo material é hoje chamada de libertarismo. Ela foi imensamente influente ao ser adotada pela filosofia cristã e ainda hoje é comum. A dificuldade com ela é que se introduzíssemos um elemento de puro acaso em nossas decisões e ações, não parece que com isso aumentaríamos nossa liberdade. Para exemplificar, imagine que uma pessoa comece a se comportar de maneira inesperada, imprevisível, errática. Isso não significa que ela se tornou mais livre. Significa apenas que ela deixou de se comportar de forma racional. E como designamos como sendo livres somente seres racionais, parece que o melhor que podemos dizer é que não somos mais capazes de aplicar o conceito de liberdade a um tal ser humano.

   A filosofia da vida de Epicuro ainda possui muito de atual. Trata-se de uma filosofia hedonista segundo a qual o prazer é o mais alto bem. Esse prazer pode ser ativo (kinetic) ou estático (katastematic). Exemplos de prazeres ativos são os de realizar ações, como o de satisfazer um desejo ou eliminar a dor. Esse é o caso do prazer de comer ou de fazer sexo. Já os prazeres estáticos são os de contentamento, de tranquilidade e de serenidade alcançados pela ausência de perturbações físicas como a dor e de perturbações da mente como o arrependimento e o medo. Embora Epicuro valorizasse os prazeres ativos, ele valorizava mais ainda os prazeres estáticos. Como os prazeres estáticos dependem da satisfação dos desejos, ele classificou os desejos em três grupos: os naturais e necessários, os naturais mas desnecessários e os não-naturais e desnecessários. Exemplos de desejos naturais e necessários são os de alimento e de companhia. Esses desejos são essenciais à felicidade, razão pela qual devem ser sempre buscados. Os desejos naturais mas desnecessários são os de coisas como o consumo de pratos refinados, o uso de roupas caras e o sexo. Devemos buscar satisfazê-los, mas não a qualquer preço. Eles podem ser viciantes, pondo em risco a tranquilidade característica dos prazeres estáticos. Finalmente, há os desejos não-naturais e desnecessários, como os de poder, opulência e honras. Eles são os desejos vãos. Eles não são provenientes de nossa natureza humana, mas subliminarmente designados pela sociedade. Eles são difíceis de serem satisfeitos, dado não possuírem um limite superior. Se os alcançamos logo nos acostumamos com eles e buscamos obtê-los em maior medida. Pior ainda: ao satisfazê-los passamos a ter medo de perder o que ganhamos, a isso se adicionando a animosidade e a inveja de outras pessoas com ambições semelhantes, o que destrói os nossos prazeres estáticos. Por isso os prazeres advindos da satisfação desses desejos devem ser a todo custo evitados!

   O pensamento de Epicuro é importante no sentido de dar ao prazer um lugar mais apropriado. Durante a Idade Média e mesmo quase até nossos tempos, como resultado do que Nietzsche mais tarde chamou de ideal ascético, o hedonismo epicurista foi desvirtuado como se o prazer devesse ser reduzido ao prazer físico e como se tudo o que Epicuro defendesse fosse a indulgência nos prazeres físicos. Mas o prazer possuía para ele uma aplicação mais ampla e suas reflexões acerca do assunto eram muito mais elaboradas e matizadas do que se possa pensar à primeira vista.

  Não obstante, há coisas a serem criticadas. Não existe uma fórmula para a felicidade que sirva para todos os seres humanos, dado que eles são por natureza diversos uns dos outros naquilo de que necessitam e na dependência de inúmeros fatores. A Grécia não teria tido o brilhantismo de um governante como Péricles, nem a ousadia e astúcia de um general como Temístocles se prazeres sociais como os do poder, da honra e da glória não fossem em medida saudável apreciados. Além disso, se compararmos o epicurismo com a filosofia dos gregos antigos seremos capazes de ver inequívocos traços de decadência: a perda da audácia especulativa da filosofia de outrora se fazia sentir no redirecionamento das preocupações para temas mais corriqueiros, como a busca de fórmulas para o bem viver. A felicidade suprema era para Aristóteles um prazer ativo, o compartilhamento do pensamento de Deus, e não um prazer estático. Mas tais prazeres sublimados, como os da criação e da descoberta, não são mais aquilo que Epicuro tinha em mente.

 

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Estoicismo. Outra doutrina menor que teve grande duração e sucesso foi o estoicismo. Ele começou com Zeno de  Citium (335-263 a.C.), sucedido por Cleantes (-232 a.C.) e por Crysipus (279-206 a.C.). O sucesso dessa doutrina foi maior em Roma, através de figuras como Sêneca (4 a.C.-65 b.C.), o ex-escravo Epiteto (50-135) e o imperador Marco Aurélio (121-189 d.C.).[4]

   Os estoicos dividiam a filosofia em lógica, física e ética, que eles viam como interdependentes, excluindo a especulação metafísica. É famosa a metáfora do ovo: a casca é a lógica, a clara é a física e a gema é a ética; o entendimento correto da ética pressupõe o entendimento da física, que pressupõe o domínio da lógica. A contribuição maior para a lógica foi a investigação de argumentos proposicionais não abrangidos pela silogística aristotélica. Um exemplo simples é o argumento “Se é dia, então há luz; há dia, portanto há luz”, no qual usamos a regra do Modus Ponens para obter a conclusão.

   A contribuição para a física consistiu em uma visão materialista de Deus, da alma humana e do universo. Para os estoicos o universo contém uma dimensão passiva e uma dimensão ativa. A dimensão passiva é constituída pela matéria prima. A dimensão ativa é constituída por uma inteligência que permeia e governa todo o universo, dando-lhe unidade: o logos. O logos é o princípio universal da razão, também chamado de pneuma (o sopro vital) ou Deus. Para os estoicos por meio do logos o universo inteiro se encontra em simpatia consigo mesmo, ou seja, harmonicamente interconectado de maneira determinista.

   A parte mais influente do estoicismo foi a ética. Para o filósofo estoico a felicidade não consiste no prazer, como pensavam os epicuristas, mas na virtude. A virtude é o único bem. Ela consiste em se viver em concordância com o todo, com o logos, com Deus, com a natureza da qual fazemos parte. Embora o último guia da virtude seja a opinião pessoal, eles enfatizavam as quatro virtudes cardinais gregas, que são a coragem, a temperança, justiça e a sabedoria... Para os estoicos há duas espécies de coisa que dificultam nossa vida: as que podemos e as que não podemos controlar. Como as paixões mundanas dizem respeito ao que não podemos controlar, devemos restringi-las ao máximo através do bom uso da razão. Ademais, as paixões nos afastam da vida virtuosa, donde a razão deve ser usada para dominá-las. Para alcançar a felicidade é preciso alcançar indiferença (apatheia) quanto aos desejos, resignando-se diante dos absurdos da vida. Para Marco Aurélio devemos viver sob a consciência de que a morte está sempre espreita.[5] Como consequência o estoicismo se torna uma filosofia do autocontrole.

   O mundo romano, vão e cruel, fez com que muitos buscassem refúgio no estoicismo. Um exemplo concreto de comportamento estoico foi a reação de Marco Aurélio ao comportamento de sua esposa Faustina, com a qual teve quatorze filhos. Ela foi acusada de ter instigado a revolta de Ovidio Cássio contra o marido, algo que lhe iria custar a vida. A revolta foi descoberta a tempo. Marco Aurélio minimizou o castigo dos responsáveis e destruiu as provas de modo que Faustina não pudesse ser responsabilizada. Sêneca, um outro estoico Famoso, com notáveis poderes de oratória, sobreviveu a Calígula, sobreviveu a Claudius, mas não conseguiu sobreviver a Nero, que, tendo desconfiado de que Sêneca fazia parte de uma conspiração contra ele, enviou-lhe uma carta ordenando-lhe cometer suicídio. Sêneca cortou os pulsos, o é sempre melhor do que ser supliciado. Esses exemplos nos fornecem uma luz sobre as razões psicológicas pelas quais o estoicismo fez tanto sucesso no mundo romano.

   Não quero negar que existe um nível verdade no estoicismo: obediência à razão, autocontrole e paz de consciência são coisas importantes. Mas não precisam ser objetos de fé. Como Nietzsche notou, o estoicismo busca domesticar uma vida perigosa e traiçoeira através da fé em uma razão petrificadora das paixões.[6] Parece claro que muito do estoicismo é um exercício para escapar das vicissitudes de uma vida sobre a qual se tinha muito pouco controle. Buscava-se refúgio contra as dificuldades de um mundo desfavorável através da dedicação a uma vida virtuosa. Mas a virtude é uma noção vaga demais quando coarctada das emoções, que se demonstram importantes até mesmo para direcionar a vida virtuosa. Afinal, o que é a vida em concordância com a natureza? Não há uma resposta. Para Marco Aurélio isso significou absolver sua esposa. Para Júlio Cesar, em uma mesma situação, a ação virtuosa teria sido com certeza muito diversa. Explicar a virtude em termos de harmonia com a razão universal tem como resultado um inevitável subjetivismo moral.

 

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Ceticismo. Chegamos, por fim, ao ceticismo. Ele se caracterizava pela desconfiança de tudo o que pretendesse ser conhecimento. O fundador do ceticismo foi Pirro de Elis (360-275 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles. Pirro nada escreveu. Também, para que escrever quando não se acredita em nada? Disseram os pósteros que ele era tão cético que os seus discípulos precisavam alimentá-lo e vesti-lo… Nesse caso ele deve ter sido muito bem tratado, pois conseguiu viver mais de 90 anos.

   Se Pirro nada escreveu, seu discípulo romano Sexto Empírico (160-210 d.C.) escreveu bastante, sendo a ele que devemos muito dos que sabemos sobre o ceticismo antigo. O método dos céticos para alcançar a paz de espírito era o seguinte:

1)    Argumente por uma tese (por exemplo, viveremos após a morte).

2)    Argumente por uma antítese (por exempo, não viveremos após a morte).

3)    Perceba que, após o acúmulo de argumentos tanto a favor da tese quanto da antítese, nenhuma das duas vence a outra; esse equilíbrio chama-se isostenia.

4)    Uma vez percebido isso você chega à epoché, à suspensão da crença.

5)    Uma vez chegado à epoché você alcança a paz do espírito: a ataraxia! Você perdeu a necessidade de pensar e se preocupar com as coisas da mente e já pode agora descansar em paz.

 

A verdade, porém, é que tese e a antítese dificilmente aparecem como possuindo pesos perfeitamente idênticos, a menos que torçamos nossos argumentos no sentido de alcançarmos tal resultado, o que não é difícil na areia movediça da argumentação filosófica.

  O sucesso do ceticismo deveu-se em boa parte ao fato de ele representar mais uma forma de evasão diante das vicissitudes dos novos tempos. Dessas três filosofias da vida helenistas a mais procedente foi o epicurismo, com sua ênfase no prazer moderado. Talvez por isso ela tenha sido a mais rejeitada nos difíceis tempos que se seguiram.

 

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Plotino. O filósofo mais original do período romano foi Plotino (204-270), um neoplatônico. A ideia suprema continua sendo, como em Platão, a do Bem. Mas o bem é Deus, o indizível, o Uno. Embora o Uno não tenha criado o mundo conscientemente, como o Deus cristão, ele o fez por excesso, por transbordamento espiritual. Deus produziu o mundo através de emanações, que são como o perfume que sai do frasco. Plotino foi um idealista, de modo que essas emanações espirituais, esses eflúvios, somos todos nós e tudo o que se encontra ao nosso redor. Há vários níveis de emanações, as que constituem princípios intelectuais, as que produzem os movimentos da alma e as que constituem a natureza visível. Tal como as ideias platônicas, as emanações são cognoscíveis. Além delas só existe um fundo escuro de matéria incognoscível.

   A doutrina das emanações teve importância para a cristandade por relacionar Deus com o mundo, uma relação que no cristianismo se estabelece entre o Deus pessoal, criador das escrituras, e o mundo empírico.

 

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Alta Idade Média. A Idade Média começou no século V d.C., com a queda do Império Romano ocidental (476 d.C.) e acabou no século XV d.C. A filosofia medieval acabou por recuperar o nível e as temáticas das filosofias de Platão e Aristóteles, mas sem alterar o paradigma por eles definido. Os dois mais importantes filósofos cristãos, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, herdaram respectivamente as estruturas teóricas desenvolvidas por Platão e Aristóteles e as cristianizaram: Agostinho batizou Platão e Tomás de Aquino batizou Aristóteles. As archai, a ideia do bem, a Substância Pura, o Uno, foram substituídos pelo Deus cristão, criador e pessoal, enquanto o núcleo central da filosofia medieval continuou sendo a metafísica, principalmente no sentido de teologia. Afora isso, era vedado ao pensamento contrariar os cânones estabelecidos pela interpretação das escrituras sagradas. Não foram poucos os filósofos que foram proibidos de escrever por terem infringido essa norma. E o filósofo Giordano Bruno foi queimado vivo por reincidir.

   O pensador mais importante no início do cristianismo foi seguramente Agostinho de Aosta (354-430 d.C.). Ele nasceu no que é hoje a costa da Algéria. Sua mãe, Mônica, era cristã, e o seu pai pagão. Note-se que embora o império romano só tenha caído em 476 a.C., com a tomada de Roma pelos bárbaros, a cidade eterna já havia sido saqueada em 410 a.C. e o império decadente por essa época já havia sido praticamente convertido ao cristianismo. Por isso Agostinho já pode ser considerado o primeiro filósofo medieval.

   Em seu livro Confissões ele descreve a sua juventude como um período de dissipação e sexualidade exacerbada, que o levou a ter um filho ilegítimo. Essa forma de vida, na qual sentimento e razão estavam em conflito com a paixão física, o constrangia ao extremo. Motivado pelo desespero com relação ao seu próprio comportamento ele se interessou pela religião e pelo problema do mal. Foi de início atraído pelo maniqueísmo, a seita dos seguidores de Mani (216-276). Para os maniqueístas o mundo é uma batalha entre dois princípios opostos igualmente poderosos, os do bem e do mal, e Deus não é todo-poderoso. Durante a luta o bem se torna um pouco mesclado ao mal. O objetivo do maniqueísta é liberar o bem. Salvos serão os que forem bem sucedidos em liberar o bem através de uma vida de ascetismo… Mas cedo Agostinho se decepcionou com o simplismo dessa doutrina, terminando por converter-se ao cristianismo.

   A principal marca do pensamento agostiniano foi a preocupação com a interioridade. Para ele a finalidade da vida humana consiste na contemplação de Deus. Só ela é capaz de nos proporcionar a verdadeira felicidade. E sua mais famosa doutrina foi a da iluminação. Deus ilumina a alma humana fazendo com que tenhamos acesso às ideias na mente divina. Assim, é só através da fé que nos tornamos capazes de alcançar a verdade.

   Após Agostinho a Idade Média bateu forte. Com a dissolução do império romano o sistema de trocas de mercadoria que funcionava provendo as mais diferentes necessidades em locais diversos desapareceu. Os reis bárbaros que dividiram entre si os despojos do império eram pouco organizados e lutavam entre si. O próprio Agostinho, que morreu quando sua cidade se encontrava sitiada pelos vândalos, escreveu:

 

Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o mar. E ninguém poderá atravessar o mar do século presente se não for levado pela cruz de cristo.[7]

 

A alta Idade Média (séculos V a X) foi um período muito duro em que a Europa foi retalhada em pequenos feudos com duas classes, a dos nobres e a dos servos. Os servos não eram mais escravos, pois já tinham alguns direitos. Por exemplo, quando a terra era vendida eles iam juntos. Parece que embora fossem todos mais pobres, vivia-se em um sistema menos injusto. A cultura ficou restrita a monastérios cuja função era apenas a de conservar o que os antigos haviam feito. O cristianismo tornou-se onipresente e foi o principal responsável pelo silencioso, mas imenso, avanço civilizatório por ele produzido – o avanço que possibilitou o fim da escravidão na Europa. Foi um período de despojamento, de pobreza e analfabetismo, mas de relativa ordem. Um tempo de constrição da cultura, que de resto podia esperar.

   O único filósofo grandemente original surgido na Alta Idade Média foi o irlandense John Scotus Eriugena (810-877). Ele escreveu um livro chamado De Divisione Naturae, uma história cíclica do mundo na qual as coisas se originam de Deus e ao final retornam a Deus. O universo passa por quatro fases:

 

1.    A da natureza não criada e criadora. É aqui o Deus Pai, que é o princípio primeiro e incriado de todas as coisas, incognoscível e inefável.

2.    A da natureza criada e criadora. É o Verbo, o mundo inteligível das ideias-arquétipos das coisas, exprimindo os pensamentos e a vontade de Deus antes da criação do mundo sensível.

3.    A da natureza criada e não criadora. É o mundo criado no espaço e no tempo, no qual vivemos. Ele não cria coisa alguma porque não é o indivíduo que gera os outros seres, mas a espécie, a qual se determina nos indivíduos em virtude do Espírito.

4.    A da natureza não criada e não criadora. Aqui trata-se do próprio Deus, como o fim absoluto de toda a natureza criada e ao qual tudo retorna. O homem, tendo se esforçado em imitar o exemplo do filho de Deus, liberta-se do pecado original e retorna a Deus como alma separada do corpo.

 

O ciclo tem início em Deus e termina em Deus. Através dele todas as coisas criadas se tornam manifestação de Deus. Mas isso não é panteísmo, pois embora todas as coisas estejam em Deus, ele próprio não está nelas, posto que às transcende.

 

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Baixa Idade Média. Após o século X a filosofia começou novamente a florescer na Europa medieval com o surgimento da escolástica. No ápice desse desenvolvimento encontra-se Tomás de Aquino (1225-1260 d.C.). Ele foi um grande sintetizador do conhecimento em obras imensas como a Summa Theologica e a Summa contra Gentiles. O gênio de Aquino se encontra disperso nos volumes de sua obra teológica, o que o torna pouco acessível a não iniciados.

   No tempo de Aquino a Metafísica de Aristóteles já havia sido traduzida para o latim. Mas os teólogos e autoridades papais torciam o nariz para esses escritos. O Deus aristotélico – o primo motor – não parecia nada com um Deus pessoal preocupado com seres humanos que havia criado à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia. Aquino conseguiu reverter esse estado de coisas. Ele cristianizou Aristóteles, assim como Agostinho havia antes cristianizado Platão. Ele fez isso ao introduzir a distinção entre o reino da razão e o da revelação. A revelação está nas escrituras e era para ele incontestável. Aqui Aristóteles cometeu erros. Mas a filosofia de Aristóteles estava certa no que concerne ao mundo natural. O mundo visível não é constituído de cópias de ideias platônicas, mas é um mundo real e efetivamente acessível à experiência sensível. Como o mundo natural foi criado por Deus, que lhe impôs uma ordem, ao investigarmos o mundo ao nosso redor nós ganhamos algum entendimento da mente divina. A função última da metafísica aristotélica foi a de auxiliar-nos no entendimento do mundo natural através dos olhos da razão, ganhando assim maior conhecimento do próprio Deus.

   Essa maneira de ver inovadora foi importante porque deu aos cristãos o direito de ter em alta conta o mundo empírico, que dessa maneira deixou de ser uma sombra visível do mundo das ideias platônicas. Isso serviu como incentivo para o desenvolvimento das ciências empíricas, ao menos antes que Copérnico e Galileu viessem a demonstrar que o matrimônio entre razão e religião era incestuoso.

   Tomás de Aquino costuma ser lembrado pelos seus argumentos empíricos para demonstrar a existência de Deus. Argumentos para provar a existência de Deus podem ser lógicos ou empíricos. O Argumento ontológico de Anselmo Aosta (1033-1109 d.C.), visando provar a existência de Deus foi um argumento lógico. Segundo esse filósofo, Deus deve ser definido como o que de maior pode ser pensado. Se concordamos com essa definição e admitimos que somos capazes de pensar Deus, isso significa que ele precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós iríamos nos contradizer acreditando sermos capazes de pensar algo maior do que o que de maior pode ser pensado.[8] (Tomás discordava desse argumento por pensar que não somos capazes de conhecer a natureza de Deus a ponto de dar sentido à definição de Anselmo).

   Resumidamente, os argumentos empíricos que Aquino usa para demonstrar a existência de Deus, as chamadas cinco vias, são: (1) Tudo o que se move deve ser movido por outro. Mas isso não pode continuar indefinidamente. Logo, deve haver um motor imóvel que seja causa eficiente de todo movimento a ser chamado de Deus. (2) se percorrermos retrospectivamente as causas compreenderemos que essa regressão não pode ser infinita: deve existir uma causa incausada de todas as causas, que é Deus. (3) Tudo é contingente, logo deve haver um ser necessário, ou seja, Deus. (4) As criaturas tem graus de bondade e de outras perfeições. Mas se é assim, deve haver algo que possua bondade e perfeição absolutas: Deus. (5) No mundo as coisas são organizadas em direção a fins. Assim, o arco e a flexa servem a um fim, mas precisam de um arqueiro que justifique esse fim. Do mesmo modo, deve existir um ser que organizou o mundo, ou seja, Deus.[9]

    Todos esses argumentos parecem-nos hoje pouco plausíveis. Não precisamos mais desse horror ao infinito. Não há nada que nos force a pensar que deva haver um primeiro motor imóvel que seja causa eficiente de tudo o que se move, pois uma sequência potencialmente infinita de causas parece-nos perfeitamente concebível (negação de 1). A necessidade do todo pode justificar a contingência das partes, não demandando um ser necessário externo (negação de 3). Para Aquino a existência do imperfeito demanda a existência da perfeição. O quente existe porque existe o fogo, que era para ele o máximo de calor. É preciso existir um máximo de bondade para que exista a bondade? Não parece que isso seja necessário (negação de 4). A grande organização teleológica do mundo vivo nesse minúsculo ponto do universo onde nos encontramos se explica hoje por milhões de anos de evolução natural, que embora tenham gerado a indescritível organização e refinamento da vida sobre a terra, tem por função última apenas aumentar o grau de desordem (entropia) no universo (negação de 5).

   É certo que nossa atual concepção científica do mundo não precisa ser definitiva. Mas as respostas negativas baseadas na ciência são agora as melhores que temos e a fé advinda da mera vontade de crer não parece uma boa alternativa. Aquino se deixa compreender: afinal, se vivêssemos na atmosfera medieval, sem o esclarecimento da ciência natural sobre o mundo, sem a teoria darwiniana da evolução das espécies e sem os esclarecimentos da psicologia profunda sobre nossos mecanismos de defesa (particularmente Freud), dificilmente nos libertaríamos da crença nos ensinamentos dos textos sagrados. Não temos hoje a mesma desculpa.

   Entre outras coisas, Aquino contribuiu para a epistemologia.[10] Embora, como Aristóteles, ele fosse um empirista que não acreditava em ideias inatas, ele também não era um empirista no sentido de acreditar que a mente fosse um recipiente passivo. Ou seja: para ele a mente não é uma espécie de balde que vai se enchendo de conhecimento de modo aleatório, pois ele põe ênfase em suas capacidades inatas de aprendizado. Ele não aceitava a doutrina agostiniana da iluminação, mas defendia que possuímos um intelecto ativo provido de uma luz natural da razão capaz de transformar o objeto no mundo, que é potencialmente pensável, em objeto atualmente pensável na mente. Mas esse intelecto ativo não é mais do que uma faculdade natural criada por Deus para nos permitir conhecer a natureza eterna das coisas. Como em Aristóteles, para ele o conhecimento começa com a sensação. As coisas particulares são compostas de matéria e forma. Ao conhecermos os objetos sensíveis nós nos tornamos formalmente idênticos a eles, produzindo cópias das formas substanciais e acidentais em nossos órgãos sensoriais. Por esse meio temos acesso ao que ele chama de “espécies sensíveis” que a imaginação retém e coleciona na memória como phantasmas (imagens mentais contendo espécies). É nesse momento que entra em ação o intelecto ativo. Esse intelecto ativo retira dos phantasmas os conceitos imateriais e os deposita no que Aquino chamou de intelecto passivo, que é o quadro negro no qual os conceitos são inscritos. Importante aqui é a capacidade do intelecto ativo de formar princípios a partir da experiência, a exemplo do princípio da não-contradição. Aquino explica esses princípios de modo semelhante àquele pelo qual mais tarde Kant definiu os juízos analíticos: são juízos nos quais o predicado está contido no sujeito. Um exemplo pode ser dado pelo enunciado definitório: “Homens são animais racionais”. Aqui o predicado animal racional está contido no conceito de homem.

   Ainda mencionáveis (entre outros tantos) são dois filósofos de língua inglesa que pertenceram ao escolasticismo tardio: Duns Scotus e William of Ockham (século XIV). A filosofia de Duns Scotus (1265-1308) é um labirinto de sutilezas escolásticas que motivou Bertrand Russell a observar que o nome ‘Duns’ vem de ‘dunce’, que quer dizer em tradução literal o mesmo que ‘obtuso’ – uma piada de mau gosto.

   Scotus foi sagaz ao rejeitar a opinião de Aquino de que a identidade individual de uma coisa dependeria de sua matéria. A matéria de uma certa árvore, assim como a matéria de um tronco que flutua na água, ou a matéria de uma certa cadeira, sendo a madeira de que são feitos esses objetos, não é suficientemente determinada para nos permitir individuar a árvore. Quanto à matéria prima, a matéria última de que as coisas são feitas, além de ser comum a todos os indivíduos, além de indeterminada, não é sequer cognitivamente acessível. Já a forma comum, por exemplo, a forma de Sócrates como pertencendo à espécie humana, é indiferente à individuação por ser comum a todos os homens. Por conseguinte, nem a matéria nem a forma comum são capazes de individuar coisa alguma. Aquilo que identifica precisa ser uma forma própria do indivíduo em questão, uma “diferença individualizante”, a haecceitas capaz de distinguir essa árvore das outras árvores e Sócrates dos outros homens.[11]

   William de Ockham (1285-1347), o último filósofo que devo mencionar aqui, foi o defensor de uma forma conceptualista de nominalismo. O primeiro nominalista, Roscelin de Compiègne (1050-1125), sustentou a ideia radical de que os universais nada mais são do que sopros de voz (flatus vocis), ou seja, os sons que produzimos pelo proferimento de uma palavra como ‘o bem’ ou de um predicado como ‘...é bom’. Segundo este nominalismo, universais no sentido realista, entendidos como entidades reais comuns a muitos indivíduos, como o bem, a justiça, o conhecimento, não podem existir. Ockham também rejeitava a existência de universais no sentido realista, por acreditar que a mente humana não é capaz de apreender quididades ou formas gerais.[12] Ele admitia a existência de universais como conceitos mentais e, de modo derivado, como termos gerais, mas em qualquer dos casos eles não possuem nenhuma existência metafísica, não passando de particulares. Em sua filosofia madura ele veio a entender o universal como um ato de pensar uma diversidade de objetos de uma só vez. Esse ato, contudo, nada mais é do que uma qualidade singular de uma mente individual. Ele é universal apenas no sentido de ser um símbolo mental de uma diversidade de coisas e de poder ser predicado delas em uma proposição mental.

 

7

 

Nominalismo. Uma versão contemporânea do nominalismo é aquela segundo a qual termos gerais como ‘o bem’, ‘a justiça’... se referem a classes de objetos. Assim, se dizemos que Aristóteles é branco e que Platão é branco, ambos os predicados nos dizem o mesmo porque eles se referem à mesma classe de objetos.[13]

   Um problema encontrado em semelhante nominalismo de classes é que termos gerais com intensões (sentidos) diferentes podem ter a mesma extensão (a mesma classe de objetos referidos). Por exemplo: o termo geral ‘animal com rins’ se aplica à mesma classe que o termo geral ‘animal com coração’. Mas nesse caso parece que eles deveriam ter também a mesma intensão, ou seja, deveriam significar, dizer a mesma coisa, o que nesse e noutros exemplos não é o caso. Foi aqui que D. K. Lewis (1941-2001) sugeriu a aplicação da noção de mundo possível ao problema dos universais.[14] Um mundo possível é como um modo completo e consistente pelo qual o mundo é ou poderia ser. Ora, se a extensão da expressão conceitual for sua aplicação tanto no mundo atual quanto em outros mundos possíveis, então a extensão de expressões conceituais com sentidos diferentes poderia ser diferente. Por exemplo: existem mundos possíveis nos quais animais com rins não possuem coração e vice versa, o que justifica a diferença na intensão ou sentido dos termos.

   Um problema é que para ser assim parece ser necessário que os mundos possíveis pertençam à mesma classe dos mundos atuais, ou seja, que eles existam. Embora um tanto inacreditável, essa posição foi defendida por Lewis, para quem os mundos possíveis são tão reais quanto o mundo atual, com o único problema que eles são inacessíveis a nós. Em que pese a originalidade da posição de Lewis, a sugestão a ser exposta no capítulo XIX terá a vantagem de não nos comprometer com posições especulativas inescrutáveis.

 

 

 

 



[1] G. W. F. Hegel: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Dritter Teil: Die Römische Welt (1833)

[2] Epicuro: Cartas e máximas principais (Penguin-Companhia 2021).

[3] Lucrecio: Sobre a natureza das coisas (De rerum natura) (Autêntica 2021), 2.256-2.263.

 

[4]  Ver Sêneca e Marco Aurélio in Grandes Mestres do Estoicismo. Trad. Artur Costrino  (Edipro 2021).

[5] As Meditações, livro escrito por Marco Aurélio quando ele defendia o império nas fronteiras do norte, é repleto de alusões à morte, como se ao invocar a sua presença ele melhor pudesse dominar seu receio de encontrá-la.

[6] Ver James A. Mollison: “Nietzsche Contra Stoicism: Naturalism and Value, Suffering and Amor Fati.” In Inquiry, 2019, 61: 1, 93-115. Para uma discussão do contexto histórico ver Bertrand Russell: A History of Occidental Philosophy, cap. 28.

[7]  Comentário ao Evangelho de João (2, 2).

[8] Anselmo de Aosta: Monologium (1077).

[9] Suma Teológica (São Paulo: Fonte Editorial) Parte Primeira, questão 2, a existência de Deus, artigo 3, pp. 21-22.

[10] Suma Teológica, Ibid., vol. I, Questões 84-87, pp. 751-791.

[11] Em meu livro sobre a referência dos nomes próprios creio ter investigado essa diferença individualizante apelando a uma regra conceitual de identificação do nome próprio. Ver How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III.

[12] Wilhelm of Ockham: Opera Philosophica et Theologica, G. Gál. et al. eds., NY: The Franciscan Institute, 1977-88, Vol. II-2.

[13] Anthony Quinton. “Properties and Classes,” Proceedings of the Aristotelian Society 58, pp. 33-58.

[14] D. K. Lewis, On the Plurality of the Worlds (Oxford: Oxford University Press 1986).

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