Draft para o livro "Introdução histórica à filosofia"
IX
LOCKE: CONSTRUTIVISMO EMPIRISTA
John
Locke (1632-1704) nasceu de uma família de poucos meios, mas graças aos bons
relacionamentos de seus pais estudou nas melhores escolas. Ele passou quinze
anos em Oxford, primeiro como estudante e depois como pesquisador e docente.
Ele era protestante e tinha profunda fé religiosa, o que repercutiu em seus
escritos, levando-o a postular ideias de coisas como substâncias espirituais.
Essas postulações se encontravam em tensão com seus próprios princípios
empiristas.
Como Hobbes, ele também viveu em tempos
turbulentos. Quando seu protetor, conde Shaftesbury, foi acusado de traição,
Locke teve de se esconder na Holanda por quatro anos, onde adotou o nome falso
de Dr. van der Linde para não correr o risco de ser deportado para a
Inglaterra. Só após a revolução gloriosa (1688) ele pôde retornar à Inglaterra.
Seus escritos políticos foram aclamados como defesas filosóficas do pensamento
mais liberal e tolerante que começava a se formar.
Em Oxford Locke aprendeu uma forma degradada
de escolasticismo que ele abominou, mas que não iria deixar de influenciá-lo mais
tarde. A experiência fez com que ele se decidisse por estudar ciências e
medicina, tendo mesmo se formado médico, profissão que ocasionalmente praticou.
Foi só aos 28 anos, quando leu Descartes (um filósofo solenemente ignorado em
Oxford) que ele passou a se interessar seriamente por filosofia. Locke conheceu
bem os melhores cientistas da época, tendo sido amigo de Isaac Newton. Ele foi
descrito como uma pessoa modesta e cautelosa, que gostava de crianças, que era
calorosa com os amigos e abominava o autoritarismo. Como era comum entre os
filósofos de sua época, Locke não se casou.
1
.;
Ideias. No que se segue faço uma breve exposição crítica do
livro de Locke intitulado Ensaio acerca do entendimento humano (An Essay
Concerning Human Understanding 1690), o mais importante clássico da
filosofia inglesa. Como ele conta no prefácio, a ideia de escrever o livro
nasceu de uma discussão improfícua com amigos sobre os princípios da moralidade
e da religião revelada. Ele concluiu que para não se perder tempo em
especulações inúteis seria preciso antes investigar o que podemos alcançar e
não alcançar através de nosso entendimento. Com isso ele queria desenvolver um
projeto de crítica epistêmica de nossas faculdades. Como ele escreveu, o
propósito do livro é:
…investigar a origem, certeza e extensão do
conhecimento humano, juntamente com as bases e graus de crença, opinião
e assentimento...[1]
É
com tais intenções que foi produzido o que pode ser considerado, entre outras
coisas, o primeiro grande tratado de epistemologia, um domínio da filosofia
teórica hoje definido como a investigação das origens, natureza e limites
do conhecimento humano.
Locke acreditava que todo nosso conhecimento
depende de nossas representações da realidade. Essas representações são feitas
pelo que ele chamou de ideias em um sentido psicológico da palavra. Daí ser o
conceito de ideia o mais fundamental de toda a sua pesquisa. O insight primordial
do livro é que nosso conhecimento começa com certas ideias simples dadas à
experiência, as quais são relacionadas umas com as outras de maneira a
construir tudo o que somos capazes de pensar.
É
preciso notar que o conceito de ideia usado por Locke não tem mais nada a ver
com o conceito grego de ideia (eidos), entendido como algo transcendente,
que vigorou no mundo antigo e medieval sob a influência de Platão. O conceito
de ideia por ele usado foi tomado de Descartes, que o entendia como se
referindo a qualquer conteúdo mental. Locke definiu o termo de modo igualmente abrangente.
Como ele escreveu:
[O termo ideia] eu usei para expressar qualquer coisa
que seja objeto do entendimento quando um homem pensa, eu o usei para expressar
tudo aquilo que pode ser entendido por imagem, noção, espécie, ou tudo aquilo que
a mente possa usar ao pensar. [2]
Ideia
é, portanto, o nome de qualquer conteúdo mental, seja ele sensação, emoção,
imagem ou mesmo conceito. Embora justificada por sua finalidade,
essa polissemia dificulta a interpretação, pois muitas vezes não sabemos ao
certo em que sentido ele está usando a palavra.
2
Inatismo.
O Ensaio é dividido em quatro livros. O livro I
é consagrado a uma crítica ao inatismo, a doutrina segundo a qual existem
ideias e princípios inatos imprimidos por Deus em nossas mentes. A doutrina do
inatismo, comum na época, era de que os fundamentos do conhecimento empírico,
da religião e da moral, seriam princípios e ideias inatas, postas por Deus em
nossas mentes desde o nascimento. Essa doutrina servia para justificar a defesa
de doutrinas religiosas e políticas de cunho dogmático, forçando à obediência
cega a regras morais impostas e a argumentos de autoridade. Uma razão da
crítica que Locke fez a essa visão rudimentar do inatismo, e mesmo a motivação
profunda de seu empirismo, residia em sua rejeição a qualquer espécie de
dogmatismo.[3]
Além disso, essa mesma visão rudimentar do inatismo limitava a flexibilidade da
mente em sua capacidade de chegar por si mesma onde quer que a razão a
conduzisse. O objetivo do livro I é, pois, o de abrir caminho para os livros
seguintes, nos quais Locke se esforçou para mostrar como todo o nosso conhecimento
do mundo pode ser construído a partir de ideias simples provenientes dos
sentidos.
A
consequência da negação das ideias inatas é que para Locke quando nascemos a
mente é como uma folha de papel em branco (uma tabula rasa). Essa mente
inicialmente vazia é aos poucos preenchida pelo material advindo da experiência
sensível, que é constituído de ideias. Isso não quer dizer que com seu
empirismo ele quisesse negar a existência de capacidades inatas,
responsáveis pelo aprendizado, organização e manipulação do material ideativo,
como logo veremos.
Em seu esforço para mostrar que não existem
ideias inatas Locke se valeu de argumentos observacionais. Ele começou considerando
que não há assentimento universal quanto aos princípios fundamentais da lógica.
Crianças e deficientes mentais não têm ideias do princípio da identidade, segundo
o qual tudo o que é, é, ou do princípio da não-contradição,
segundo o qual é impossível para uma mesma coisa ser e não ser. Ele não
achava correto dizer que crianças e deficientes têm esses princípios sem ter
consciência deles, pois para ele ter um pensamento implica em ter a consciência
desse pensamento. Como já foi notado (VII sec. 5), para ele nós só somos
capazes de aprender esses princípios após realizarmos juízos através da
experiência, ao percebermos, por exemplo, que uma coisa branca não é preta, que
o quadrado não é um círculo, que o amarelo não é doce... Daí concluímos que uma
coisa é o que é, assim como que ela não pode ser e não ser o que ela é ao mesmo
tempo.[4]
Uma objeção que poderia ser levantada hoje contra
esse argumento é que o conhecimento de princípios lógicos como os da identidade
e da não-contradição pode ser evidenciado não só por eles serem pensados e
expressos em palavras, mas também pelo comportamento, antes mesmo que a criança
tenha aprendido a falar, o que mostra quão originariamente fundamentais eles
são. Se uma criança não for capaz de distinguir, por suas reações
sensório-motoras, o que é branco do que não é branco, o que é quadrado do que
não é, o que é doce do que não é, ela não será capaz de ter reações
comportamentais compreensíveis, razoáveis, minimamente previsíveis. Ao ver um
leão a zebra sabe que deve fugir, mas se ela não for capaz de identificar o
leão como seu arqui-inimigo (princípio da identidade), ou que, identificando-o
como sendo um leão, não for capaz de decidir que ele não é outra coisa qualquer
(princípio da não-contradição), ela não sobreviverá por muito tempo. E isso se
aplica até mesmo a uma ameba antes de ela envolver seu alimento. O
não-seguimento de tais princípios é incompatível com a vida. Como pressupostos evolucionários,
os princípios da identidade e da não-contradição se apresentam como capacidades
inatas tão primordiais que se encontram presentes em qualquer ser vivo desde
seu nascimento. Além disso é claro que ninguém precisa conhecê-los de maneira
explícita para segui-los, pois se fosse assim então o princípio da
não-contradição não poderia ter sido seguido antes de Aristóteles tê-lo
detalhadamente investigado em sua Metafísica. Parece óbvio, porém, que
para formular esse princípio ele teve antes de pensar em casos empíricos de
suas aplicações, do mesmo modo como pelo encontro de exemplos concretos de uma
regra seguida na língua culta o linguista a adota formulando uma norma
gramatical explícita.
Afora isso, princípios lógicos como o da
identidade, da não-contradição e do meio excluído, são ubíquos:
eles imperam tanto em nossas mentes quanto no próprio mundo externo
enquanto ele é para nós cognoscível.[5] Essa espécie de
universalidade não pode ser alcançada pela experiência porque resultados da
experiência são sempre indutivos e, portanto, prováveis, o que não permite que
se alcance a universalidade e a consequente necessidade a eles inerente. O
máximo que podemos esperar da experiência é certificar-nos desses princípios
por meio de exemplos.
Um outro argumento de Locke diz respeito aos
princípios morais. Eles não podem ser inatos, pois há povos com os mais variados
princípios morais. Para ele se tais princípios existirem, eles serão de pouco
uso, como “A virtude é a maior reverência a Deus”.[6]
Com
efeito, regras morais variam muito com a cultura. E a ideia que muitos possuem
de que “no fundo todos são capazes de distinguir o certo do errado” é ingênua. Por
exemplo: Perguntaram a um homem de certa religião o que ele sentia após ter matado
sua filha por ter desonrado a família. Ele respondeu que se sentia orgulhoso e
triste ao mesmo tempo: orgulhoso por ter cumprido a lei e triste por sua filha
ter desonrado a família. Não lhe ocorreu que deveria sentir pena, vergonha ou
culpa.
Apesar da variação cultural, antropólogos
contemporâneos acreditam ser possível encontrar princípios universais
reguladores do comportamento moral. Uma concepção comum entre eles é a de que a
função da moralidade é a de promover cooperação, facilitando assim a
coordenação das ações humanas em sociedade. Com base nessa ideia os
antropólogos Oliver Scott Curry e seus colegas promoveram uma pesquisa em 60 culturas
diferentes em todo o mundo evidenciando que as seguintes regras morais são
comuns em todas elas:[7]
Ajudar a família
Ajudar o grupo
Retornar favores
Ser corajoso
Obedecer aos superiores
Dividir recursos de forma justa
Respeitar o que é dos outros.
Ora,
parece bastante plausível a admissão de que possuímos disposições inatas para
seguirmos essas regras. E elas não são de pouco uso como Locke pensava que
deveriam ser as supostas regras morais inatas.
Um filósofo poderia objetar que essas são
regras de polegar, que não valem para todas as situações. Elas todas podem ser todas
derrotadas se houver justificação para tal, como seria o caso da concorrência
com outra regra mais benéfica. A situação pode ser tal que a regra concorra com
a regra do utilitarismo de ação de produzir maior bem e menor mal para todos os
envolvidos, como foi lembrado quando consideramos o utilitarismo de duas
camadas. Mas é perfeitamente possível defender que essas regras valem de uma
maneira geral, mesmo que não tenhamos um sistema ético que nos permita
derivar as suas condições de aplicação em casos concretos. Mais além, é
perfeitamente possível supor que nós temos disposições inatas para segui-las e
que elas se manifestem quando formos instados a isso.
Ainda um argumento é o de que o intelecto
não pode criar ideias simples: um cego de nascença não pode ter a ideia de cor,
nem um surdo pode ter a ideia de som. Essa consideração será importante para a
teoria das ideias de Locke e não há razão para discordarmos dela.[8]
Locke reconhece que se interpretarmos ideias
inatas em um sentido mais fraco, como meras capacidades que nos facultam a
termos ideias, podemos dizer que as possuímos. Esse é o caso de capacidades,
como a que temos de aprender aritmética e geometria. Mesmo assim, o fato de ele
considerar isso irrelevante demonstra que ele tende a minimizar o papel
de nossas disposições inatas na construção do conhecimento. É aqui que as
objeções de Leibniz contra Locke acabaram por se demonstrar melhor justificadas (ver VII sec. 5). Afinal, a
descoberta de um número cada vez maior de disposições inatas pela psicologia
contemporânea não torna a questão irrelevante. Ela é a maneira atual de defendermos
aquilo que filósofos racionalistas exageravam falando de ideias inatas. Por
exemplo: psicólogos mostram que um recém-nascido chora quando lhe é apresentada
uma máscara assustadora. Ele sente medo. Isso significa que ele possui uma
disposição inata para reagir a certos estímulos visuais complexos para mais
tarde formar juízos sobre aquilo que lhe causa medo ou aversão. Isso significa
que existem capacidades e disposições inatas aos seres humanos que, sob
condições adequadas, os levam a produzir ideias mais ou menos específicas.
Você poderá agora se perguntar se a admissão
da existência de disposições inatas afeta o projeto de Locke de fazer derivar todos
os nossos conteúdos mentais da experiência. A resposta é que não. Vimos que a
razão da rejeição do inatismo rudimentar da parte de Locke era a sua rejeição
do dogmatismo e da inflexibilidade a ele associadas. Mas também vimos no
capítulo VII (sec. 5) a grande diferença encontrada por Popper e o nosso
inatismo e o dos animais, tomando como exemplo o fenômeno da imprintação. Diversamente
dos animais, nós somos capazes de revisar nossas “teorias” inatas enquanto eles
não. Dessa maneira a flexibilidade fica garantida, e com ela o dogmatismo é
também frustrado.
3
Ideias
simples. Passemos agora ao livro II, o
principal livro do Ensaio. O objetivo maior de Locke no capítulo I de
seu Ensaio foi o de preparar o terreno para sua tese principal. De acordo com
ela, todo o material do pensamento é resultado das mais variadas
manipulações de ideias derivadas da experiência. Por isso ele precisou defender
que a mente de quem nasce é destituída de qualquer ideia inata, o que tomado em
seu sentido literal é francamente aceitável. Para ele a mente é inicialmente
como uma folha de papel em branco, vazia de qualquer ideia.[9] Só a experiência, externa
e interna, será capaz de mobiliar a mente com ideias.
Pelo
uso do método empirista de observação Locke descobriu que existem ideias
simples, uniformes, passivamente recebidas e não analisáveis, ainda que costumem
aparecer associadas a outras ideias. Essas ideias são provenientes de duas
fontes: a sensopercepção e a reflexão das operações da mente
sobre si mesma.[10]
As ideias simples de sensação e de reflexão são importantes para ele porque sua
ambição é a de mostrar como todas as outras ideias resultam de operações da
mente na combinação dessas ideias simples. E o produto final pode ser tão
distante delas a ponto de não percebermos que relação ele possa ter com elas. Valendo-nos
de uma metáfora: não há nada no fruto de uma árvore que lembre o material
inicialmente usado para o seu crescimento e sua composição; mas sabemos que ele
se deriva de transformações de átomos de carbono, oxigênio, nitrogênio e alguns
outros microelementos. O mesmo deve se dar com as todas as ideias, por mais
complexas e refinadas que sejam. Elas são todas originariamente derivadas de combinações
de ideias simples.
Quais são as ideias simples da sensação? Para
Locke elas são as recebidas pelos nossos cinco sentidos. Assim, pelo sentido da
visão tenho a ideia da cor branca do lírio, pelo sentido do tato tenho a ideia
do frio e da dureza de um pedaço de gelo, pelo sentido da audição tenho a ideia
do som agudo de um apito, pelo sentido do paladar tenho a ideia do gosto doce
do açúcar, e pelo sentido do olfato a ideia do perfume de uma rosa... Essas
ideias nos aparecem como sendo simples e uniformes, e a mente as recebe passivamente
na percepção sensível, não sendo capaz nem de criá-las nem de destrui-las. Locke
observa que não somos capazes de imaginar um gosto realmente novo ou uma cor
realmente nova. Nem somos capazes de fazer desaparecer essas ideias de nossa
mente depois de que as tivermos experienciado.
As ideias simples da reflexão, por sua vez,
são aquelas que resultam de uma reflexão (introspecção) da mente sobre suas
próprias operações. Exemplos são as ideias do perceber, do pensar, do duvidar, do
crer, do raciocinar, do conhecer e do querer.[11]
As ideias simples da sensação podem vir de
um só sentido, como as ideias de cor ou de sabor, ou de mais de um sentido,
como as ideias de extensão, forma, repouso e movimento. Podemos ver um corpo em
movimento e podemos sentir pelo tato que ele se move.
Há, por fim, as ideias mistas, provenientes
tanto da sensação quanto da reflexão, como as de prazer (ou deleite) e dor (ou
insatisfação), assim como as de poder, existência e unidade.[12] As ideias de dor e prazer
são particularmente importantes, devendo ser entendidas em um sentido amplo,
como doadoras dos tons hedônicos de nossa experiência.[13] Sua
importância consiste em que elas nos impelem à ação e ao pensamento, induzindo-nos
a buscar o prazer e fugir da dor. Nossas ideias se encontram quase sempre
vinculadas a tonalidades e intensidades afetivas.[14] Se não tivéssemos ideias
de afetos, nós seríamos condenados à letargia física e cognitiva. Como ele
escreveu, sem tais associações o ser humano seria “uma criatura bastante
inativa, passando seu tempo em um sonho indolente e letárgico”.[15]
Para Locke as ideias de existência, unidade
e poder, acompanham todas as nossas percepções. Elas “são sugeridas por todos
os objetos externos e por todas as ideias internas”.[16] É pelo operar dos objetos
sobre nós e pelo nosso agir sobre as ideias que alcançamos a ideia mista de
poder.
Locke pensa ainda que os objetos externos
mobilham a mente com ideias das qualidades sensíveis, que são todas as
diferentes percepções que eles produzem em nós. E a mente mobilha o
entendimento com os produtos de sua própria operação.
Uma objeção que pode surgir diz respeito à noção
de simplicidade. Mesmo uma ideia tão simples quanto a do perfume de uma flor
pode variar em qualidade e intensidade. A ideia de uma cor como o vermelho pode
aparecer em tons diferentes como, por exemplo, o vermelho da china, o de
cereja, o de Borgonha... E elas também podem se apresentar combinadas de
maneira a formar inúmeras tonalidades para as quais sequer temos nomes para
dar. Pesquisas mostraram que o olho humano é capaz de diferenciar entre 200.000
a 20 milhões de tonalidades de cor. Além disso, as cores possuem diferentes
sombreamentos, diferentes saturações.
Uma
resposta é que essa objeção não se aplica verdadeiramente a Locke. Wittgenstein
fez uma bem conhecida crítica ao conceito de simplicidade, quando entendido em
termos absolutos. Para ele o conceito de simplicidade é relativo, pois é dependente
da maneira pela qual escolhemos dividir o mundo.[17] Em defesa de
Locke podemos responder que ele escolheu dividir o mundo de suas ideias em
ideias simples por relação com a natureza de nossas células receptoras de
sensação, tal como ela foi estabelecida pela evolução natural. Quanto às cores,
elas são captadas na retina por células especializadas que são os cones, o que
fundamenta a unidade do conceito de cor. Do ponto de vista fenomenal existe o
círculo cromático bem conhecido dos pintores, que possui três cores básicas,
que são o amarelo, o vermelho e o azul, três cores secundárias, que são
misturas de duas cores primárias e de seis cores terciárias, que são misturas
de cores primárias com cores secundárias. Esses dados fenomenais são fundamentados
fisiologicamente. Nós temos três tipos básicos de cones, os cones L (de “long”),
especializados em captar a cor vermelha (comprimentos de onda mais longos do
espectro visível), os cones L (de “medium”), especializados na captura
da cor amarela (comprimentos de onda médios), e os cones S (de “short”)
especializados na captura dos tons de azul, a cor mais curta do espectro. São
as combinações das ondas captadas por esses três tipos de células que formam
todas as cores que somos capazes de enxergar. Isso significa que nós temos hoje
como fundamentar em termos histológicos-funcionais a escolha das cores vermelho,
amarelo e azul como as cores verdadeiramente simples e uniformes, em suficiente
conformidade com as intenções de Locke, ainda que ele mesmo não tenha feito
essas distinções. Trata-se aqui de simplicidade com relação às capacidades
fenomenais/fisiológicas que possuímos para perceber cores, que combinadas
produzem todas as outras na independência de outros fatores adicionais, como a
luminosidade ou brilho (quantidade de fótons), a saturação (grau de pureza) e o
sombreamento (mistura com o preto).
Consideremos agora da mesma maneira os outros
sentidos. O estudo das terminações nervosas na pele nos mostra que distinguimos
estímulos táteis com base em uma variedade de diferentes receptores. Por
exemplo: os que determinam toques grosseiros e distinguem o áspero do mole
(corpúsculos pacinianos), os responsáveis pela sensação de pressão e toques
leves e contínuos (corpúsculos de Merkel), os responsáveis pela sensação de dor
(terminações nervosas livres), pela sensação de movimentos suaves (corpúsculos
de Meissner), pelas sensações de frio e o calor (nociceptores térmicos), etc.
Tanto visualmente quanto pelo tato somos capazes de perceber bordas, linhas
retas e curvas e diferentes formas geométricas. Temos assim critérios
fenomenais ancorados em critérios histológico-funcionais a nos permitir
distinguir ideias simples, passivamente recebidas, com papel primordial na
gênese de nosso conhecimento do mundo externo.
Quanto ao sentido da audição, as células
ciliares do ouvido interno reagem à intensidade e frequência do som. O tom
(frequência), a intensidade (altura) e o timbre (a qualidade) são traços
evidentes pelos quais distinguimos os sons. Parece razoável admitir que os
diferentes tons de uma oitava possam ser considerados simples (mesmo que possam
ser subdivididos em semitons, também eles divisíveis), uma vez que somos
capazes de distingui-los mais claramente.
Finalmente, também somos naturalmente aptos
a distinguir gostos básicos como o salgado, o doce, o amargo, o azedo e o ácido
por meio dos diversos tipos de papilas gustativas identificadas...
É
preciso lembrar que Locke não estava fazendo nenhum estudo psicológico ou
fisiológico que demandasse a precisão buscada por essas ciências, mas uma
investigação filosófica de como o nosso conhecimento empírico se origina de uma
variedade bem definida de sense data. Assim, longe de refutar o projeto
de Locke, a neurofisiologia o confirma. Mais do que isso, ela nos mostra quais
devem ser as cores simples, as unidades de som, as sensações simples, os gostos
simples.
A ciência contemporânea também pode trazer
revelações. Por exemplo, Locke não considerou que também podemos formar ideias
complexas de maneira passiva como resultado de disposições naturais.
Voltando ao exemplo do bebê que chora diante de uma máscara assustadora,
notamos que ele a identifica de modo passivo. Mas o que a máscara produz é uma
ideia já bastante complexa, mesmo que constituída de formas e cores, quando
analisada em termos de ideias simples que a compõem.
4
Ideias
complexas. Passemos agora às
ideias complexas que, diversamente das simples, resultam da atividade da
mente. Locke as classificou como substâncias, modos e relações,
ao que podem ser adicionadas as ideias gerais e abstratas. Locke também
fez uma classificação geral das operações da mente, das quais resultam as
ideias complexas, que são as de combinação, comparação e abstração
das ideias. Vejamos então como é possível associar as espécies de ideias
complexas às operações da mente:
A ideia de substância, em um primeiro
e não-problemático sentido do termo, resulta de combinações de ideias
simples que servem para representar coisas particulares que são independentes
ou autosubsistentes.[18]. Por exemplo: um certo
homem.
Ele chama de modos às ideias
complexas que, por mais compostas que sejam, são feitas para designar
existências de coisas dependentes ou não autosubsistentes. Ou seja: suas
referências são afecções que só existem na dependência das substâncias. Esse é
o caso das ideias de triângulo, gratidão, assassinato.[19] Também os modos devem
advir de combinações de ideias simples.
As ideias de relação resultam da
operação mental de comparação entre nossas ideias, sem que com isso elas
sejam unidas.[20]
Esse é o caso das ideias de poder, identidade e, principalmente, causalidade.
Há, por fim, o caso das ideias complexas que
são gerais ou abstratas.[21] Um exemplo é o da ideia
de ser humano, que pode ser extraída das ideias mais que nos são apresentadas
pelas mais diversas pessoas que somos capazes de conhecer. Ideias abstratas
resultam de uma operação de abstração segundo a qual separamos alguma
ideia complexa que repete sempre como partes de certos grupos de ideias mais
complexas, e que por isso nos parecem essenciais, diversamente de todas as
outras que a acompanham de modo casual na existência real. Por esse meio
produzimos uma ideia geral ou abstrata. No que se segue veremos cada uma
dessas espécies de ideias em maior detalhe.
5
Modos.
Examinemos primeiro as ideias de modo. Para Locke
existem modos simples e complexos.
Os modos simples são variações de uma mesma
ideia. Por exemplo, variações de uma mesma escala. Um capricho para violino
solo é um modo simples. Para Locke espaço, tempo, número e infinidade são modos
simples. Já os modos complexos são compostos de ideias simples de diversos
tipos. Exemplos: algo belo, que é um composto de cor e figura, causando deleite
a quem o vê; um roubo, que é a secreta mudança de posse de algo sem o consentimento
de seu proprietário. Beleza e roubo são modos complexos, pois combinam ideias
diferentes sem que essas combinações sejam autosubsistentes.
Para Locke, os modos simples de espaço,
tempo, número e infinidade são obtidos através de ampliação. Considere
os primeiros dois. As ideias simples de espaço obtemos pela percepção visual e
tátil. A distância é a consideração da extensão medida entre dois objetos sem
considerar o que se encontra entre eles. Cada medida de distância é um modo
simples do espaço. E repetindo, adicionando e expandindo a ideia simples do
espaço chegamos à ideia do espaço comum, que Locke se propõe chamar de expansão.
A expansão é o “espaço em si mesmo”.
De maneira semelhante adquirimos a ideia de
tempo. A origem da ideia de tempo está na observação de sequências de ideias se
sucedendo em nossas mentes. Isso nos dá a ideia de sucessão temporal. A
distância entre as sucessões é a duração. Quando observamos os fenômenos se
repetindo de maneira regular em períodos equidistantes obtemos a ideia de
medida da duração. Começamos contando dias e anos, depois passamos a usar
relógios com os quais aprendemos a medir o tempo em minutos, horas, etc. Como
somos capazes de repetir essas durações, percebendo que nunca chegamos mais
próximos de um fim, alcançamos a ideia de eternidade. Finalmente, juntando as
durações chegamos à ideia do tempo em geral.
Consideremos agora a ideia de unidade. Ela é
uma ideia simples sugerida pela sensação e pela reflexão, quando consideramos
um objeto presente. Ora, ao repetirmos essa ideia de unidade chegamos ao modo
complexo dos outros numerais. Por exemplo, ao juntar duas unidades formamos a
ideia complexa de uma dupla. Juntando três formamos a ideia complexa de um
trio. Juntando doze formamos a ideia de complexa de uma dúzia. E como sabemos
que podemos juntar sempre mais um, formamos a ideia de uma quantidade ilimitada
de números naturais.
Uma ideia particularmente importante para
Locke era a ideia de Deus. O Deus anglicano era definido como um espírito
infinito em sabedoria, bondade, amor e poder. Locke acreditava que essa ideia
poderia ser produzida pelo mesmo processo de ampliação. Deus costuma ser
definido como um ser sumamente justo, sábio, bom, verdadeiro. Podemos, pensava
ele, ter uma ideia confusa de Deus ampliando ideias como as recém mencionadas,
chegando assim à ideia de um ser incompreensível e infinito. Embora Deus seja
em si mesmo simples, sua ideia é complexa.
As ideias do finito e do infinito é obtida a
partir da ideia de quantidade. O finito e o infinito são para Locke modos de
quantidade, que podem ser obtidos por meio de adição e subtração de
quantidades em um processo indefinidamente contínuo: a série dos números
naturais é infinita, assim como o espaço e o tempo como um todo. Mas a
infinitude desses últimos é derivada. Primeiro pensamos a ideia de
número e com ela mensuramos extensões de espaço e durações de tempo,
ampliando-as e percebendo que não nos aproximamos de um limite, chegando assim
à ideia de infinitude. Trata-se, é claro, de uma noção de infinito potencial, o
único admitido por Locke. Ademais, esse aumento ou ampliação que nos conduz a
ideia de infinitude numérica não pode ser aplicado a conceitos qualitativos
como o de cor, pois não podemos ampliá-los indefinidamente em nossa imaginação.
Vejamos agora as ideias de modos mistos.
Eles são constituídos por combinações de ideias de tipos diferentes, ideias que
só precisam ser compatíveis entre si. Eles se distinguem das ideias de substância
pelo fato de serem dependentes da última, não representando um ser real com
existência contínua. Locke exemplifica com ideias como as de obrigação, mentira,
hipocrisia, embriaguez e assassinato. Considere o caso do assassinato: ele é um
modo misto que inclui desejo, intenção, ódio, movimentos corporais, etc.
6
Relações.
Passemos agora às ideias de relações. Na lógica
contemporânea uma relação é um predicado de mais de um lugar. Predicados de um
só lugar, como ‘...é sábio’ formam enunciados como “Sócrates é sábio”, cujo
lugar é preenchido por um único termo singular (o nome Sócrates). Predicados de
dois lugares são relações como ‘...é o marido de...’, que comparece em
enunciados como “Sócrates é o marido de Xantipa”. Também predicados de três ou
mais lugares são relações, por exemplo, “...localiza-se entre... e...”, como no
exemplo “Natal fica entre Fortaleza e João Pessoa”.
Para
Locke as ideias de relações[22] são ideias complexas
relacionando ideias simples ou relacionando ideias complexas que terminam, após
análise, em ideias simples. As relações são o resultado de uma operação da
mente chamada por Locke de comparação, pois quando temos um objeto em
mente tendemos naturalmente a buscar suas relações com outros. Há uma
multiplicidade indefinida de relações. Uma relação como ‘...é maior do que...’
resulta da comparação entre duas ideias. Existem relações naturais como a de
consanguinidade: “João é pai de Maria”; relações institucionais como a de ser o
general da armada; relações morais, como a de uma ação humana com a regra moral
a ser seguida. As principais relações analisadas por Locke são a de causalidade
e identidade.
7
Realismo
indireto. Locke trata as ideias como signos
que representam coisas do mundo externo. Em filosofia da percepção isso é
chamado de realismo indireto ou representacionalismo, pois assume a existência
de um meio intermediário entre o sujeito e o objeto, através do qual temos
acesso ao mundo externo. Esse meio, por alguns chamado de véu das sensações,
são as representações, por Locke chamadas de ideias da sensação ou, na
terminologia contemporânea, de sense data.
O realismo indireto era aceito pelos
cientistas da época, desde Galileu. Ele havia sido assumido por Descartes, teve
defensores medievais e teve sua origem nos atomistas gregos. Os argumentos da
ilusão e da ciência foram em sua época desenvolvidos em defesa do
realismo indireto. O assim chamado argumento da ilusão nos mostra que vemos os
trilhos da estrada de ferro como se eles fossem se encontrar no final, quando
sabemos que isso não é o caso. Olhamos para o sol, mas sabemos que não estamos
vendo como ele é agora, mas como ele era há 8 minutos atrás, já que a luz do
sol leva cerca de 8 minutos para chegar à terra. Se apertarmos o canto de um
olho tendo o outro olho fechado, temos a impressão de que os objetos vistos se
movem. Se sairmos lá fora sem luvas, onde a temperatura é de 20 graus abaixo de
zero e voltarmos sem sentir as mãos, a água corrente com a qual as lavamos
parece estar quente, quando sabemos que não está. E podemos ser vítimas de
alucinações perfeitamente realistas se estivermos sofrendo de alucinose
alcoólica. Há, também, os assim chamados argumentos da ciência. Sabemos que
aquilo que vemos é projetado no córtex visual primário situado na região
occipital do cérebro e que essa projeção é interpretada em regiões mais
profundas.
A prova
definitiva de que temos acesso visual ao mundo externo através de ideias que
são sense data foi dada pelas experiências com fMIR em laboratórios da
Universidade de Berkeley há poucos anos.[23] Como os vasos capilares
se dilatam levemente onde há maior atividade neuronal, foi possível através de
fMIR reconstruir computacionalmente as sequências de imagens mentais tidas por voluntários
que estavam assistindo filmes, ainda que as imagens em movimento saíssem bastante
borradas. Se é assim com a visão, deve ser assim também com os outros sentidos.
8
Qualidades.
Ainda no livro II Locke faz uma importante distinção
entre ideias e qualidades:
Qualquer coisa que a Mente percebe em si mesma, ou que
é imediato objeto de Percepção, Pensamento ou Entendimento, é o que chamo Ideia;
e o Poder de produzir qualquer Ideia em nossa mente, eu chamo de Qualidade
do objeto no qual está esse Poder. Assim, uma Bola de Neve tem o poder de
produzir as Ideias de Branco, Frio e Redondo, os poderes de
produzir tais Ideias em nós, como elas estão na bola de neve, eu chamo
de Qualidades; e como elas são Sensações ou Percepções em nosso
Entendimento, eu as chamo ideias...[24]
Em seguida ele expõe a sua versão mais elaborada da famosa distinção
entre qualidades primárias e secundárias:
(i)
As qualidades
primárias são aquelas completamente inseparáveis dos corpos em qualquer
estado em que eles se encontrem. Locke exemplifica as principais: solidez,
extensão, forma, movimento, repouso e número. Mesmo que se deforme um corpo
ou que ele seja dividido, o resultado continua possuindo essas propriedades. O
exemplo de Locke é de um grão de trigo, que ao ser dividido pode perder a cor e
o aroma, mas continuará possuindo forma e outras propriedades primárias
(Descartes tinha o exemplo da pedra, que mesmo dividida continuava a possuir
extensão). Podemos dividir um corpo o quanto quisermos e as partes resultantes
continuarão possuindo solidez, extensão, forma, movimento... Diversamente, no
escuro os objetos perdem as cores, mas não as formas... Isso tudo o faz pensar
que nossas ideias desses corpos se assemelham às suas qualidades
primárias.
(ii)
As qualidades
secundárias, por sua vez, produzem ideias em nós que em nada se
assemelham a elas. Exemplos são cores, sons, odores, sensações térmicas...
É assim porque elas na verdade são poderes (i.é, disposições) presentes
nos corpos de produzir em nós ideias de qualidades secundárias por meio de
qualidades primárias dependentes de “partículas insensíveis sobre nossos
sentidos” – aquilo que hoje chamaríamos ondas de luz de certos comprimentos
refletidas pelos corpos, de ondas de som no ar, ou moléculas de odores e
gostos.
Em suma: as ideias das qualidades primárias são semelhantes às
qualidades secundárias. Já as ideias das qualidades secundárias não podem ser
semelhantes às qualidades secundárias, pois são ideias de disposições (poderes)
de serem produzidas em nós por condições que em um nível microestrutural se
reduzem a qualidades primárias.
A sugestão de Locke de que as
ideias das qualidades primárias são semelhantes às qualidades primárias,
enquanto as ideias das qualidades secundárias não são semelhantes às qualidades
secundárias ganha suporte quando comparamos nossa percepção com a de outros
seres vivos. Eles percebem diferentemente as qualidades secundárias, mas
inevitavelmente percebem semelhantemente a nós as qualidades primárias. Assim,
outros seres vivos percebem cores e odores diversamente. As águias veem cinco
cores básicas ao invés das três que nós vemos. O odor de carniça é para nós
repelente, mas deve ser delicioso para uma ave de rapina. Contudo, eles
inevitavelmente veem formas, percebem movimentos e a solidez das coisas de modo
similar ao nosso. Um quadrado possui quatro lados, tanto para nós quanto para
qualquer outro animal. Esse argumento, mostrando que as ideias das qualidades
secundárias podem receber várias formas, me parece demonstrar conclusivamente
que Locke tinha razão ao dizer que as ideias das qualidades secundárias não são
similares às qualidades secundárias, diversamente do caso das ideais de
qualidades primárias.
9
Objetividade. Uma outra questão é se as qualidades secundárias
enquanto tais, por serem em um nível microestrutural produtos de qualidades
primárias, não justificariam a conclusão de que elas não possuem existência objetiva.
Contudo, essa seria uma inferência errônea.[25] O calor da chapa de um
fogão a lenha é uma qualidade secundária constituída pela vibração de suas
moléculas. Mas isso não o torna incapaz de ser medido por termômetros ou causar
queimaduras. Um veneno não deixa de possuir a qualidade objetiva secundária de
causar a morte no caso de ser ingerido. Os argumentos acima não servem, pois,
para tornar as qualidades secundárias subjetivas, diversamente das qualidades
primárias. Frege tinha como maior critério de objetividade a
possibilidade de concordância interpessoal e como maior critérios de realidade
a localização espaço-temporal.[26] As qualidades
secundárias, não menos do que as primárias, satisfazem esses dois critérios...
Parece claro que elas podem ser consideradas, tanto quanto as primárias,
qualidades objetivamente reais.
Podemos confirmar essas ideias
nos recordando do equívoco de Sir Arthur Eddington em seu conhecido argumento
das duas mesas. Segundo esse último autor, existe uma primeira mesa, que é dita
substancial e sólida, a do senso comum, e uma segunda mesa, a da microfísica, que
não é nem substancial nem sólida, pois essencialmente constituída de espaço
vazio e de partículas insubstanciais.[27] A mesa real é para ele a que
foi descoberta pelos físicos. Mas seus átomos se encontram demasiado distantes
uns dos outros para que se lhe possa reivindicar solidez. Logo, a mesa real não
é sólida. O argumento pode ser organizado assim:
1.
A mesa
macroscópica é sólida.
2.
A mesa da
microfísica não é nem substancial
nem sólida (pois é quase inteiramente constituída de espaço vazio).
3.
Só a (micro)física
explica como as coisas como
elas realmente são.
4.
Logo: a mesa
macroscópica não é realmente sólida.
Wittgenstein observou que existe aqui uma confusão linguística.[28] Podemos esclarecer o
equívoco notando que Eddington confundiu a gramática conceitual de duas
linguagens: a linguagem do quotidiano e a linguagem da microfísica. A premissa (3)
é falsa. A linguagem da microfísica explica como as coisas realmente são consideradas
do ponto de vista do microcosmo, enquanto a linguagem do cotidiano explica como
as coisas realmente são no mundo que nos cerca. No sentido da primeira
linguagem a mesa não pode ser realmente dita nem substancial nem sólida, pois
ela não nos oferece critérios para dizer essas coisas.[29] No sentido da segunda
linguagem a mesa é realmente substancial e sólida, pois satisfaz critérios para
dizermos isso: ela é substancial porque existe por si mesma e é sólida porque é
dura, resistindo à pressão e a forças exercidas sobre e”””la. Como
consequência, as considerações feitas por Eddington sobre a mesa da microfísica
não nos permitem passar para a conclusão de que a mesa do cotidiano não é
sólida.
Algo análogo podemos dizer sobre a suposição
de que por serem as qualidades secundárias ao nível da microfísica redutíveis a
qualidades primárias elas não possuem realidade objetiva. O fato de que em um
nível microcósmico as qualidades secundárias são constituídas por qualidades
primárias não torna as qualidades secundárias menos reais ou objetivas. Afinal,
do mesmo modo, as qualidades primárias como a de solidez dos objetos ao nosso
redor também são resultantes daquilo que ocorre na microfísica: elas são
resultantes de forças de coesão intermoleculares atuando em um espaço
essencialmente vazio, forças às quais não aplicamos o conceito de solidez. Afinal,
nada há de mais natural do que se admitir que as cores, os sons e os odores que
sentimos são fenômenos que os objetos realmente possuem, emitem ou produzem,
ainda que permitam as mais diversas traduções perceptuais.
10
Substâncias. Uma ideia particularmente importante em Locke é a de
substância. Ele define aristotelicamente a substância individual como aquilo
que tem propriedades, mas que não é propriedade de coisa alguma. Ele distingue
três tipos de ideias de substância: (i) a ideia de objetos particulares,
como esse cavalo; (ii) a ideia de diferentes espécies de substâncias,
por exemplo, ouro e ferro; (iii) a ideia mais abstrata de substância em
geral.
É à ideia de substância em geral que ele
dedica maior atenção. Ele considera que se grupos de ideias ocorrem sempre
juntas é porque deve haver algum substrato para as qualidades por elas
referidas, que é algo que está sob (de sub-stare) – a substância
– que para nós não é mais do que a suposição de um “não sei o que” que suporta
as qualidades. Como ele observa:
Nossa situação aqui não é melhor do que a do indiano
que, dizendo que o mundo era suportado por um elefante, foi perguntado onde o
elefante está pisando. Ao que ele responde: sobre uma grande tartaruga. Mas
outra vez pressionado pela pergunta sobre o que suporta a grande tartaruga ele
replica: sobre algo que eu não sei o que é.[30]
A admissão de um substrato incognoscível se encontra em contradição com
o próprio empirismo sustentado por Locke. Ela reflete um conceito de substância
comum em sua época e ainda hoje presente, marcando um esquecimento da discussão
aristotélica do conceito de substância como o indivíduo dado (Categorias),
como uma combinação particular de matéria e forma (o hilomorfismo da Física),
ou ainda como a forma substancial que se instancia em uma coisa (Metafísica).
Berkeley e Hume, os empiristas
que se seguiram a Locke, rejeitaram a noção geral de substância como uma
suposição metafísica sem qualquer justificação perceptual e, portanto, sem
força explicativa. Mas aceitaram a concepção de substância no sentido (i), ou
seja, como feixes de ideias que se encontram sempre juntas. Mesmo na
discussão contemporânea, o conceito estrutural de substância encontra-se
dividido entre os que defendem alguma forma pura de teoria do feixe de
propriedades e os que defendem que as propriedades constitutivas do feixe
repousam em alguma espécie de substrato substancial.
11
Identidade pessoal. Locke também analisou algumas
ideias de relação mais importantes, como as de causalidade, identidade e
identidade pessoal. Ele considerou a ideia de causalidade como a mais
abrangente ideia de relação. A causa é qualquer coisa que faz uma outra começar
a ser.[31] Como as outras, ela é
derivada da experiência, não só da sensação, mas também da reflexão. Para ele
as qualidades são poderes causais que causam ideias em nós (daí que sua teoria
da percepção é causal), as coisas do mundo externo causam outras, nossas ideias
causam outras ideias e também causam eventos exteriores, como a minha decisão
de levantar meu braço. Ele chegou a suspeitar que temos uma experiência direta
(reflexiva) do vínculo de necessidade entre causa e efeito pela consciência do
ato volitivo pelo qual produzimos uma ação como o levantar do braço, uma sugestão
que seria mais tarde criticamente explorada por Hume. Afora isso, Locke
acreditava que o princípio “Tudo o que começa tem uma causa” é indubitável. E
para ele a mente tem a capacidade intuitiva de apreender conexões necessárias
entre causas e efeitos. Também essa sugestão será criticamente explorada por
Hume.
Identificamos um corpo físico por
sua posição no espaço, uma vez que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar.
A relação de identidade de uma mesma coisa em momentos temporais diferentes foi
analisada por Locke como uma identidade de suas partes componentes, mesmo que
seu arranjo interno possa mudar. No caso
de criaturas vivas, o critério de identidade no tempo é diferente: é preciso
que tenha a mesma vida. Assim, uma árvore crescida é diferente de sua semente,
mas ambas possuem a mesma vida.
Quanto a nós mesmos, ele distingue a
identidade no tempo de homens (men) da identidade no tempo concernente a
pessoas. Por homem ele entende o animal humano, que nada mais é do que um ser
vivo, para cuja identificação no tempo ele aceita o critério de ter a mesma
vida. Diferente é o caso da pessoa, que para Locke é “um ser pensante
inteligente, que possui razão e capacidade de autoconsciência”.[32] A identidade da pessoa no
tempo é diferente da identidade do homem. Para prová-lo ele imagina que um
príncipe pudesse ser transformado em um mendigo com um corpo físico muito diferente.
O homem seria um outro. Mas se o mendigo continuasse a possuir a mesma
consciência do príncipe, com as mesmas lembranças, a pessoa seria a mesma. Para
ele o que faz com que uma pessoa seja idêntica a si mesma no tempo é a
identidade de sua consciência: a pessoa é a mesma até o momento do passado
em que a sua consciência mnêmica conseguir alcançar. Assim, eu sou a mesma
pessoa que fui quando tinha quatro anos de idade, na medida em que sou capaz de
ter a consciência de acontecimentos por mim vividos em minha infância. Essa
visão algo estreita da identidade pessoal suscitou objeções como a do jovem
militar que é capaz de se recordar de ter roubado uvas quando criança, mas que
quando se tornou um idoso general já se esqueceu disso, continuando apenas a
gabar-se de seus grandes feitos nas batalhas... Deixou ele de ser a criança?
Não obstante, a análise do
conceito de identidade pessoal feita por Locke é limitada. Para percebermos
isso basta nos lembrarmos de seu exemplo do príncipe mendigo. Não é só a
memória dos acontecimentos passados que faz dele o mesmo príncipe. Afinal, as
memórias do príncipe poderiam ser em princípio implantadas na mente do mendigo.
À identidade pessoal pertencem também habilidades, personalidade, conhecimento,
e até mesmo alguma forma de continuísmo (e não continuidade) corpóreo.
O problema abordado por Locke
continua conosco até hoje. Derek Parfit, por exemplo, imaginou uma variedade de
experiências em pensamento que nos ajudam a entender os critérios de
identificação pessoal e sua importância.[33] Por exemplo: ele mostra
que uma pessoa poderia manter a sua identidade pessoal mesmo que seu corpo fosse
destruído. Para tal ele imagina que uma pessoa seja teletransportada para Marte
enquanto seu corpo é destruído pela máquina de escaneamento na terra. Essa
pessoa acordaria em Marte com as mesmas habilidades, personalidade e memórias,
sendo que a última delas seria a de ter apertado o botão responsável pelo
teletransporte. Parfit também imagina casos de multiplicação e mesmo de
posterior união: se uma pessoa for multiplicada de modo que a pessoa originária
desapareça e em seu lugar apareçam trinta pessoas idênticas, com a mesma
consciência e memória, não teríamos mais critério para dizer quem é a pessoa
que era antes (na lógica criterial 1 + 1 = 0). Se essas trinta pessoas puderem
ser unificadas de modo a restar uma única, será essa a mesma que a pessoa
inicial?
Para mostrar que a continuidade
do mesmo corpo não é necessária, o inventivo filósofo Sydney Shoemaker imaginou
uma máquina de substituição do corpo. Em um ambiente futuro no qual os níveis
de radioatividade são muito grandes as pessoas entram de tempos em tempos por
máquinas de substituição do corpo de modo a evitar o aparecimento de tumores.
Essas máquinas substituem cada molécula de seus corpos por outras idênticas em
apenas algumas poucas horas. Se, ao sair da máquina, alguém perguntar a uma
delas se ela ainda é a mesma pessoa, ela responderá: “Claro que sou a mesma
pessoa, estou apenas com novo corpo”. O experimento mostra que a continuidade
requerida é essencialmente psicológica. Contudo, mesmo que a máquina tenha
substituído as moléculas, ela preservou as suas combinações e a estrutura geral
do corpo, razão pela qual podemos dizer que aqui houve um continuísmo causal
entre o que existia antes e o que passou a existir depois.
Uma outra dificuldade com o
conceito de identidade pessoal é que seus critérios não podem ser precisamente
fixados. Podemos dizer que uma pessoa é a mesma desde sua mais tenra infância
até sua morte, como gostaria Locke. Mas podemos dizer de uma pessoa que sofreu
mudanças drásticas de comportamento após uma concussão cerebral, que ela deixou
de ser a mesma. E ainda podemos dizer, em um sentido “frouxo” do termo, que
após o seu casamento Enrique deixou de ser a mesma pessoa...
No sentido forte de identidade pessoal
que Locke tem em mente há outros fatores além da memória pessoal por ele
explicitamente considerada. Afinal, podemos reconhecer uma pessoa que perdeu a
memória como sendo a mesma, se ela ainda possuir (i) a sua mesma memória pessoal,
de habilidades e proposicional (principalmente seus conhecimentos); (ii) as
suas capacidades intelectuais, como entendimento, raciocínio, reflexão,
habilidades linguísticas; e (iii) as mesmas estruturas afetivo-volicionais,
como traços de personalidade, temperamento, caráter... Afora isso há a questão física
da permanência do mesmo corpo. Embora essa permanência não seja essencial (toda
a matéria de um corpo humano é substituída em um período entre sete a dez anos...),
é certo que podemos adicionar a condição física (iv) de que alguma forma de
continuísmo causal concernente a estruturas dos constituintes do corpo deve
existir, supondo-se que as alterações sejam suficientemente lentas (uma
dançarina não pode transformar-se de repente em uma pantera e depois de alguns segundos
voltar a ser ela mesma, a não ser em um espetáculo de ilusionismo). Com base em
elementos como esses é possível estabelecer um critério múltiplo
suficientemente vago de identidade pessoal, por exemplo, estabelecendo parâmetros
mínimos de exigência para a satisfação das condições (i), (ii), (iii) e (iv).
Tal critério seria capaz de cobrir aproximadamente o que nos sentimos capazes
de dizer que é a mesma pessoa, e não o mesmo corpo humano, de sua infância até
sua velhice. Mais do que isso não parece possível devido a vaguidade mesma do
conceito.[34]
12
Teoria do significado. No livro III do Ensaio
Locke passa a investigar a linguagem. Em concordância com seu realismo
indireto, para Locke as palavras são signos de ideias e não das coisas. A
linguagem funciona como o meio de comunicar as ideias, uma vez que em si mesmas
elas são incomunicáveis. E o falante consegue comunicar as ideias para o
ouvinte pelo fato de que ambos se encontram longamente familiarizados com a
conexão implícita entre as palavras e as ideias que lhe correspondem.[35] Aquilo que chamamos de
significados das expressões são ideias e o significado das sentenças são
combinações de ideias comumente chamadas de pensamentos. O entendimento ocorre
quando as palavras evocam no ouvinte as mesmas ideias que no falante.
Essas concepções ordinárias tem
sido criticadas por filósofos da linguagem como tornando o significado privado
e as ideias incomunicáveis. De minha parte, considero isso um preconceito
contra a o que John Searle chamaria de objetividade epistêmica de elementos que
são apenas ontologicamente subjetivos.[36] Crianças parecem aprender
a associar a palavra a uma ideia (no sentido amplo, que envolve sensação,
imagem, conceito...) por meio de indução por exclusão. Por exemplo: se uma
criança sente dor e as pessoas negam que a palavra ‘dor’ se refere ao ferimento
sofrido ou ao seu choro ou a quaisquer eventos externos, ela acaba por entender
que a palavra está designando aquilo que ela está sentindo, a dor que ela
deveras sente. A capacidade de realizar esse tipo de indução é inata. Considere,
para dar mais um exemplo, o ruborizar. Essa é uma maneira que a evolução
encontrou para que as pessoas demonstrem ao grupo social que se sentem
envergonhadas, mesmo que queiram esconder o sentimento e sua razão. Sabemos
disso por indução. Vemos outras pessoas falarem que a pessoa ruborizou por tal
e tal razão, que nos leva a concluir que a pessoa sente vergonha. E percebemos
em nós mesmos o rubor como reação à vergonha que sentimos. Falta aos mecanismos
de indução por analogia uma análise apropriada e suficiente, tanto para o caso
das emoções pessoais quanto alheias.[37]
O que acabei de propor é um
vago esboço, em meu juízo bem mais plausível do que a sugestão a ser encontrada
em Wittgenstein, segundo a qual a mente é uma caixa preta inacessível a uma
linguagem referencial e que aprendemos o significado de uma palavra como ‘dor’
substituindo uma expressão natural, digamos, ‘Ou!’ pelo ‘ai! e depois pelo ‘dói!’
e mais tarde pelo mais educado ‘sinto dor’.[38]
O principal problema com o qual
Locke se defronta é aqui o de explicar por meios empiristas o uso de palavras
gerais, como ‘branco’, ‘redondo’, ‘triângulo’... Para Platão tais palavras,
assim como as palavras ‘bem, ‘justiça’ e ‘conhecimento’, deveriam se referir a
entidades pertencentes a seu reino transcendente de essências abstratas,
imutáveis e não-espaço temporais. A resposta de Locke é, como seria de se
esperar, nominalista ou particularista. Essas palavras se referem a ideias
particulares que são separadas de coisas mais complexas através de um mecanismo
de abstração. Usando um exemplo que poderia ser aceito por Aristóteles:
nós observamos seres humanos com diferentes alturas, compleições, pesos, cores
e vestimentas. Mas há algo em comum a todos eles: são seres vivos pertencentes
ao gênero animal. Mais além, descobrimos aquilo que existe de exclusivo aos
seres humanos, que os diferencia dos outros animais: eles são racionais de uma
forma altamente qualificada, digamos, reflexiva. Além disso só eles possuem uma
linguagem gramaticalmente complexa. Disso abstraímos a definição do ser humano
como um animal reflexivamente racional em capaz de aprender uma linguagem
gramaticalmente complexa.
Segundo a doutrina escolástica
que Locke aprendeu quando jovem, as coisas possuem essências que somos capazes
de apreender a priori, sem o auxílio indutivo da experiência. Rejeitando essas
doutrinas, ele rejeitou que pudéssemos conhecer as essências das coisas dessa
maneira. Aqui ele fez uma importante distinção entre a essência nominal
e a essência real. A essência real diz respeito à constituição interna
das coisas. Já a essência nominal é uma ideia complexa abstrata, com a qual
identificamos espécies de coisas. Considere, seguindo um exemplo de Locke, a
ideia do ouro.[39]
A essência nominal do ouro é a de ser entendido como uma substância amarela,
maleável, com certa massa específica e solúvel em acqua regia. Mas não
podemos estar certos do quanto a definição da essência nominal do ouro
corresponde a sua essência real e do quanto dessa definição não é simples
resultado de convenção. Podemos apenas ter a expectativa de que nossa ideia da
essência nominal seja guiada pela essência real. Diferente é apenas o caso das
ideias simples e modos, pois nesses casos as essências reais são as mesmas que
as essências reais. No caso do triângulo, por exemplo, sua essência nominal é a
mesma que a real.
Como hoje sabemos que o ouro é um metal de
transição com o número atômico 79, é bem possível que Locke concordasse que, tendo
chegado ao conhecimento da constituição interna dessa substância, descobrimos enfim
a sua essência real. Seguindo os passos de Saul Kripke, Hilary Putnam defendeu
que o significado de um termo de espécie natural como ‘ouro’ se encontra fundamentalmente
no domínio de sua referência externa, ou seja, das porções de metal com peso
atômico 79, e não em uma ideia: o significado, escreve ele, “está fora de nossas
cabeças!”[40]
Ao especificar a essência nominal do ouro, um filósofo como Locke estaria tendo
em mente apenas as parcelas convencionais do significado, que Putnam decidiu
chamar de marcador sintático (nome de massa), marcador semântico (substância
sólida) e estereótipo (cor amarelada, maleável, solúvel em acqua regia).
Contudo, em acordo com seu representacionalismo semântico, Locke certamente
rejeitaria o externalismo semântico de Putnam. Ele consideraria a ideia
da essência real do ouro como o metal de transição de número atômico 79 como o
significado definitivo da palavra ‘ouro’, mesmo que a palavra possa ser usada de
modo derivativo por pessoas que não saibam disso, mas que pelo menos saibam
classificar o ouro através de algum marcador ou estereótipo que lhes permita
introduzir a palavra de maneira secundária no discurso. Concordo com Locke, mas
não é aqui o lugar para objetar contra o externalismo do significado em Putnam.[41]
13
Conhecimento. O livro IV é o último do Ensaio. É só nesse
livro que Locke abordou a questão do conhecimento. Para ele o conhecimento
implica em certeza, no sentido de certeza absoluta adicionada à crença e
justificação. Com isso ele admite a existência do conhecimento matemático. Mas
como não alcançamos tão alto grau de certeza em nosso conhecimento do mundo
externo, Locke rejeita que a experiência empírica nos traga conhecimento. O que
ela nos traz é apenas uma crença provável. Mesmo que do mundo externo só
possamos alcançar uma crença provável, isso já é suficiente para a vida.
Essa aparente rejeição do
conhecimento empírico já fez alguns perguntarem se Locke não seria um
racionalista. Mas isso seria um grande mal-entendido. Ele apenas usa a palavra
‘conhecimento’ em um sentido desviante, bem mais estrito do que aquele em que
usamos a palavra na linguagem ordinária, pois nela jamais exigimos certeza
absoluta para o conhecimento empiricamente fundado.
Em adição às assunções acima,
Locke define o conhecimento como o acordo e o desacordo entre ideias. Esses
acordos e desacordos podem ser de quatro tipos:
1.
Identidade
e diversidade: é o caso de proposições insignificantes (triffling
propositions), como “O branco é branco” e “O branco não é preto”. (IV, 8)
2.
Relações
lógicas: é o caso de “A soma dos ângulos do triângulo perfaz 1800”
(IV 3, 18)
3.
Coexistência:
certas ideias apresentam-se sempre juntas, como o amarelo do ouro e seu peso.
4.
Existência
real: quando a real existência da coisa está em acordo com a ideia (IV 1, 7).
Aqui é assumida a concepção da verdade como correspondência.
Locke distinguiu também entre três graus de conhecimento, do mais ao
menos certo: o conhecimento intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo.
O conhecimento intuitivo é o da evidência imediata, como o de que 2 + 2
= 4, ou mesmo de nossa própria existência e de alguns princípios como o de que
todo evento tem uma causa. O conhecimento demonstrativo demanda raciocínio a
partir do conhecimento intuitivo, como acontece quando fazemos um cálculo
matemático passível de erro. Finalmente, há o conhecimento sensitivo, que é o
dos objetos externos quando eles estão sendo presentemente percebidos.[42] Esse conhecimento é o
menos certo.
Apesar de tudo e de forma um
tanto inconsistente Locke acreditava em argumentos empíricos para demonstrar a
existência de Deus, como o fato de que as entidades constituintes de nosso
mundo são contingentes. Para ele a contingência do mundo depende da existência
de uma causa necessária, que é Deus. Não obstante, esse argumento tem a
limitação de assumir gratuitamente que o todo constituído pelo que é
contingente deva ser também contingente.
No domínio do pensamento inglês
Locke representa o final de uma fase construtiva que se iniciou com Ockham,
tendo continuado com Bacon e Hobbes. Com os próximos filósofos, Berkeley e
Hume, o empirismo entrará em uma fase de metafísica revisionária, empenhada em
derrubar o frágil edifício de bom senso construído por Locke.
[1] Ensaio sobre o entendimento
humano (São Paulo:
Martins Fontes 2019) I, I, 2.
[2] Ensaio I, 1, 8.
[3] E. J. Lowe: Locke (New York: Routledge
2005), pp. 17-18.
[4] Ensaio I, 2, 18-19.
[5] Ver a breve defesa desses
princípios no capítulo III, sec. 2 do presente livro.
[6] Ensaio I, 2, 18.
[7] Oliver Scott
Curry, Daniel Austin Mullins, Harvey Whitehouse, “Is it Good to Cooperate?
Testing the Theory of Morality as Cooperation in 60 Societies”, Current
Anthropology, Vol. 60, n. 1, 2019, pp. 47-69.
[8] Hume objetou que uma pessoa que conheça bem
as cores, mas que nunca tenha visto certa tonalidade de marrom, talvez seja
capaz de imaginá-la. Mas o próprio Hume reconheceu esse contra-exemplo como
irrelevante. Ver David Hume, Enquiry Concerning Human Understanding, seção II.
[9] Ensaio, II, 1, 2.
[10] Ensaio II, 1, 1.
[11] Ensaio II, 1, 4.
[12] Ensaio II, 7, 1.
[13] D. J. O’Connor, John
Locke (New York: Dover 1967) p. 51.
[14] Uma premissa da metapsicanálise freudiana é que as
representações (ideias) são sempre ligadas a cargas (Besetzungen)
afetivas ou emocionais. Ver Sigmund Freud: Artigos sobre Metapsicologia (Imago
1999)
[15] Ensaio, II, 7, 5.
[16] Ensaio, II, 7, 7.
[17]
Wittgenstein: Investigações Filosóficas, sec. 46-48.
[18] Ensaio II, 2, 6.
[19] Ensaio II, 12, 40.
[20] Ensaio II, 12, 7.
[21] Ensaio II, 12, 1.
[22] Ensaio
II, 25-28.
[23] See: “Scientists
Reconstruct Brain’s Visions Into Digital Video in Historic Experiment.” Artigo
por Jesus Dias, in Gizmodo 2011.
[24] Ensaio II 8, 8.
[25] Anthony Kenny, A
New History of Western Philosophy, vol. III, pp. 136-137.
[26] Gottlob Frege: „Der Gedanke“,
1918. Beiträge zur Philosophie des Deutschen Idealismus, 2, 58-77.
[27] Essa é a versão usual, mesmo que algo caricata, daquilo
que Eddington realmente disse. Ver o prefácio de suas Gifford Lectures de 1927.
[28] Ludwig Wittgenstein:
The Blue and the Brown Book (Oxford: Basil Blackwell 1958), pp. 45-46.
[29] A frase entre parênteses na (2) é incorreta, pois a
linguagem da microfísica não possui critérios nem para afirmar nem para negar a
substancialidade e solidez da mesa.
[30] Ensaio II 13, 2.
[31] Ensaio II 26, 2.
[32] Ensaio II 27, 9.
[33] Derek Parfit: Reasons
and Persons. Oxford:
Clarendon Press, 1984, cap. 3.
[34] Ver C. F. Costa “Definindo identidade
pessoal”, in Arquiteturas Conceituais
(Belo Horizonte: Dialética 2022), pp. 283-402.
[35] Segundo um bem conhecido principio do
contexto (Cf. Gottlob Frege), as palavras só ganham sentido no contexto do
proferimento. Mas também acontece o oposto: o proferimento como um todo ganha
seu sentido devido ao sentido das unidades semânticas que o constituem. Na
verdade, o que mais acontece é que essas unidades semânticas (as palavras)
costumam ser ambíguas, sendo o contexto do proferimento aquilo que as
desambigua.
[36] John Searle observou que filósofos tendem a confundir
objetividade/subjetividade ontológica e epistêmica. Quando tento entender o
conceito de ser aí (Dasein) em Heidegger posso me defrontar com um sério
problema de subjetividade epistêmica, mesmo que o autor pretenda objetividade
ontológica. Mas quando falo de minha enxaqueca, alcanço plena objetividade
epistêmica, embora a sensação seja ontologicamente objetiva.
[37] Uma breve consideração das complexidades envolvidas
encontra-se em meu artigo “A linguagem privada e o heteropsíquico”, in Arquiteturas
conceituais (Belo Horizonte: Editora Dialética), pp. 241-260.
[38] Wittgenstein: Investigações
Filosóficas, sec. 243-317.
[39] Ensaio III 6, 50.
[40] Hilary Putnam: The
Meaning of ‘Meaning’. In Philosophical Papers vol. 2, Mind, Language, and
Reality (Cambridge: Cambridge University Press 1975), pp. 131-193.
[41] Ver capítulo 3 de meu livro How do Proper Names
Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023).
[42] Ensaio IV 3, 1.
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