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terça-feira, 30 de julho de 2024

Origens do empirismo inglês: Bacon e Hobbes

  para o livro "Introdução histórica..."

 

 

VIII

ORIGENS DO EMPIRISMO INGLÊS

 

Assim como no continente os filósofos foram influenciados pelas matemáticas, produzindo sistemas especulativos racionalistas, os filósofos ingleses foram influenciados pelo desenvolvimento das ciências empíricas como a física newtoniana, desenvolvendo sistemas empiristas de pensamento.

 

1

 

O primeiro grande defensor do empirismo foi Sir Francis Bacon (1561-1626).[1] Ele pode ser considerado o primeiro filósofo especializado em filosofia da ciência. Bacon desdenhava o método dedutivo da silogística aristotélica, pondo em seu lugar o método indutivo próprio das ciências empíricas. Para ele a ciência empírica deveria se desenvolver pela continua adição e seleção de observações em busca de invariantes e suas causas. Ele valorizava não tanto a indução enumerativa, que apenas probabiliza uma generalização científica, mas principalmente a indução excludente, uma vez que esta é capaz de falsear decisivamente uma generalização.

   Essa última ideia foi retomada e desenvolvida com outro nome no século XX por Karl Popper. Para este último, a característica fundamental da ciência é que ela deva ser susceptível de refutação por meio de testes empíricos.[2] Uma hipótese resultante de indução enumerativa nunca é garantida. Um exemplo é a generalização “Todos os cisnes são brancos”, que era considerada certa pelos europeus antes que eles descobrissem a Austrália. Afinal, todos os cisnes já enumerados eram brancos. Mas uma vez que foram divisados cisnes negros na Austrália, a generalização antes dada como certa foi refutada.

   Para ganharmos certeza da verdade de uma generalização científica precisaremos verificar todas as suas instâncias, o que costuma ser praticamente impossível. Como Popper notou, mesmo que alcancemos a verdade empírica última e absoluta, jamais poderemos saber se realmente a alcançamos. Mas o mesmo não acontece quando apelamos para o falseamento, pois basta uma única instância contrária ao que foi previsto pela hipótese para que ela seja falseada.

   O exemplo predileto de Popper foi a prova da teoria da relatividade generalizada realizada pela expedição de Arthur Eddington em 1919. Segundo a teoria newtoniana, a gravidade seria uma força agindo sobre objetos que possuem massa (FG = g(M1 . M2)/d2). Como a luz não possui massa, ela não poderia ser atraída pela gravidade. Mas segundo a teoria da relatividade, a gravidade não é mais uma força agindo à distância, mas uma curvatura do espaço-tempo próximo aos corpos massivos (G = 8pg/c2 . T). Como consequência, as próprias ondas de luz precisam seguir uma trajetória curva em conformidade com a curvatura espaço-temporal. Daí que, em um eclipse solar, quando as estrelas que se encontram próxima e por detrás do sol podem ser vistas, elas parecerão ao observador situado na terra aparentemente mais distantes do sol pelo fato de seus raios de luz serem encurvados ao passarem próximos do sol. No eclipse solar de 1919 essa deflexão da luz foi comprovada por meio de fotografias. Esse foi um teste crucial para a teoria, que a tornou mundialmente famosa. Se nenhuma deflexão fosse encontrada a teoria da relatividade generalizada teria sido demonstrada falsa. Assim, podemos não saber se a teoria relativista da gravitação é absolutamente verdadeira, ou mesmo se ela vale para todo o universo; mas sabemos que ela se demonstrou suficientemente confiável para resistir a um teste de falseamento crucial.

   A ideia de que a possibilidade de falseamento estabelece um limite entre ciência e não-ciência vale em boa medida para a física. Mas ela não vale para muitas outras ciências, como a biologia evolutiva, a história, a linguística, a economia… ciências nas quais a produção de experimentos falseadores pode se demonstrar impossível. Afora isso, baseado em Hume por toda sua vida Popper defendeu a ideia absurda de que a indução enumerativa não existe. Por isso ele pensava que as novas teorias científicas devem ser baseadas somente no método hipotético-dedutivo e que nossas hipóteses científicas devem se resumir a produtos da imaginação e criatividade humanas.

   No que concerne à ciência avançada de nossa época podemos aceitar as hipóteses imaginativas propostas por Popper. Mas se ativermos-nos somente a isso estaremos esquecendo que em suas bases essas ciências já foram construídas sobre o sustentáculo de uma infinidade de inferências indutivas enumerativas originárias. Encontrando-se ainda em um momento inicial do desenvolvimento das ciências empíricas, Bacon encontrava-se imune ao radicalismo anti-indutivista de Popper que ele com razão consideraria absurdo.

 

2

 

Um outro filósofo que ajudou a preparar o caminho para Locke foi Thomas Hobbes (1588-1679). Hobbes viveu em tempos de grande convulsão social. A Europa Continental estava sendo devastada pela Guerra dos Trinta Anos, que durou de 1618 a 1648, tendo dela resultado, mais de quatro milhões de mortes. Por esse tempo aconteceu na Inglaterra uma guerra civil com duração de seis anos, terminando com a decapitação do rei Charles I em 1649. Ela foi seguida da ditadura de Oliver Cromwell, eleito pelo parlamento, que acabou com sua morte seguida do coroamento de um novo rei, Charles II, que era secretamente um católico, privilegiando os católicos enquanto a maioria do parlamento era protestante.

   Hobbes não viveu para assistir a revolução gloriosa de 1688, pela qual Mary, que era protestante, destronaria seu pai, James II, o sucessor de Charles II. Ela tornou-se rainha junto a seu esposo, William de Orange, ambos cedendo o poder ao parlamento e aceitando se tornarem figuras mais decorativas, uma solução que perdura até os dias de hoje.

   Ter testemunhado tempos tão sombrios foi certamente a maior razão do pessimismo de Hobbes. Ele foi levado a pensar que só um governo com poderes absolutos seria capaz de manter a ordem em uma sociedade, prevenindo a anarquia. Essa é a tese de sua obra máxima, O Leviatã.[3] John Locke, que viveu a revolução gloriosa, moderou as ideias de Hobbes na forma de um liberalismo político.

   Como filósofo teórico Hobbes não criou um sistema original, mas atualizou o materialismo naturalista com base na emergência das novas ciências. Ele viajou pela Europa, foi amigo de Bacon, conheceu Galileu e Gassendi, um discípulo de Descartes, tendo sido influenciado pelos escritos desse último. Vou expor algumas ideias.

   Para Hobbes quando o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito nós temos um enunciado necessário. Por exemplo: “Triângulos tem três lados”. Afinal, o triângulo é uma figura plana, fechada, com três lados. Mas quando o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito, temos um enunciado contingente. Por exemplo: “O carvão tem cor preta”. Como não é parte da definição de carvão que ele seja preto, o conceito do predicado não está contido no do sujeito e o enunciado é contingente. Kant tomou de empréstimo essa ideia em sua definição de juízos analíticos e sintéticos.

   Hobbes esposava um mecanicismo materialista e um determinismo universal. Mesmo a substância deveria ser material. Como determinista, ele via o livre arbítrio como a mera ausência de limitação ou coerção externa. Assim, o escravo liberto, o rio que rompeu a barragem e agora corre livremente, a pessoa que atingiu a maioridade e agora pode fazer o que quiser, todos são livres porque não tem mais impedimento, mas não porque deixaram de ser causalmente determinados. Com isso ele rompeu com o libertarismo sustentado por filósofos atomistas como Epicuro e Lucrécio, além dos filósofos católicos da Idade Média, segundo os quais ao decidir livremente precisamos ser capazes de transcender o determinismo causal presente no mundo físico. Hobbes foi um compatibilista. Para ele o livre arbítrio é perfeitamente compatível com o determinismo causal, tendo um sentido meramente negativo. (ver cap. VI, sec. 7)

   Ele entendia as sensações como movimentos no cérebro e a percepção do mundo pelos dados sensíveis como resultado de uma tendência natural da mente de projetar para fora o que lhe é dado na independência da vontade. A imaginação é resultado da combinação de imagens já experienciadas. Assim, imaginamos um centauro combinando a figura de um homem com a de um cavalo. E a memória é uma imagem à qual é adicionada a consciência de que ela foi anteriormente percebida. Acusaram Hobbes de ateu, mas injustamente. Hobbes foi educado por um pastor calvinista depois da perda dos pais, o que fez dele uma pessoa de fé religiosa. Ele acreditava ser Deus também constituído de matéria. Ele seria “o mais puro, simples e invisível espírito corpóreo.

   Quanto ao problema dos universais, Hobbes defendeu o nominalismo, seguindo William Ockham. Para ele um termo geral não é mais do que um nome que se aplica a todo um grupo de objetos individuais sem maior discriminação.

   O importante em Hobbes é a sua filosofia social e política, tal como foi exposta no Leviatã. O contraste maior foi com Rousseau, que idealizava o ser humano natural como um “nobre selvagem”: bom por natureza e tornado mau pela sociedade. Para Hobbes era o contrário: o ser humano é mau por natureza. Mesmo quando faz algo de bom, ele o faz por egoísmo. Se faz caridade é para demonstrar seu poder. Se sente Piedade é por temer um desastre similar consigo mesmo. Se busca o poder é para desfrutar da glória de dominar outras pessoas… “Os homens”, escreveu ele, “são tomados de um perpétuo e incansável desejo de poder sobre poder, que só cessa com a morte”.[4]

   Dada a natureza egoísta do ser humano e dada a inevitável escassez de recursos, os homens estão sempre competindo entre si. O resultado disso é a guerra, a luta de todos contra todos, pois só a morte de uns tornará possível a sobrevivência de outros: “homo homini lupus”. Disso Hobbes concluiu que a condição natural da humanidade é a da guerra. E o destino do ser humano em sua condição natural é o de ter uma vida “solitária, pobre, suja, bruta e curta”. Para Hobbes, só a sociedade pode educar o egoísmo humano, fazendo do homem um ser civilizado. Não é de admirar que, com uma concepção tão pessimista da natureza humana, ele tenha sido levado a conclusões um tanto insólitas. (Não parece que Hobbes tenha sido um ser humano adorável.)

   A conclusão de Hobbes foi que a única maneira de evitar a guerra de todos contra todos é que o povo ceda o poder a uma autoridade absoluta. Para ele, um governo precisa ser formado através de um pacto (covenant), que é um contrato pelo qual os indivíduos transferem os seus direitos naturais (de fazerem o que quiserem para sobreviver, inclusive matarem seus semelhantes…) para um poder soberano em troca de paz e segurança.[5]

   Esse pacto é sustentado por certas leis da natureza (divinas, morais): os indivíduos sentem que têm (i) a obrigação de buscarem a paz, sempre que possível, (ii) que devem dispor de seus direitos naturais sempre que os outros também o fazem, (iii) que devem manter o pacto se os outros também o fazem. Essas leis asseguram o mantenimento do pacto. E os direitos naturais de realização dos interesses individuais justificam, em última análise, a existência do pacto. Com isso é criada uma sociedade civil através da qual são estabelecidas leis que nos dizem quais são as ações humanas justas ou injustas. E através dele são garantidos os direitos individuais dos cidadãos, que se tornam livres na medida em que tal liberdade não transgredir a liberdade alheia.

   Ainda que o soberano esteja acima das leis, e ainda que seus poderes de vida e morte sobre os cidadãos sejam absolutos, uma vez que foi agraciado pela soberania ele tem o dever de não decepcionar aqueles que lhe cederam tais direitos. Fica claro que se o soberano agir de modo a tornar a vida das pessoas insuportável, elas terão pleno direito de destitui-lo do poder. E a razão disso é que se foi o desejo de autopreservação que fez com que as pessoas realizassem o pacto e se o soberano não souber zelar pela autopreservação, as pessoas terão pleno direito de dissolverem o pacto.

   Contra Hobbes é para ser notado que geralmente, quando a espécie de pacto sugerida por Hobbes é feita sem que reste controle algum por parte das pessoas que deram ao soberano poder de vida e morte sobre elas, o resultado fica na dependência das circunstâncias e humores do soberano. Em tal contexto ele pode facilmente degenerar-se em um tirano que pelo seu poder absoluto escraviza seu povo sem que o povo possa fazer qualquer coisa para impedi-lo. Hobbes não tinha qualquer remédio para esse tipo de problema.

   A favor de Hobbes deve ser notado que embora ele preferisse que o poder soberano fosse exercido por um monarca absolutista, ele admitia que esse poder pudesse ser exercido por um corpo ou uma assembleia de pessoas. Ele teria aceito (creio que com alguma relutância) o modelo de parlamentarista resultante da revolução gloriosa se tivesse vivido o suficiente para vê-lo surgir. Mas como filósofo ele foi refém de seu tempo. O grande mérito do Leviatã foi o de ter, pela força de seus argumentos, construído o palco sobre o qual seriam encenadas as discussões da filosofia política nos séculos seguintes.

 

3

 

Nos dias de hoje há boas razões para se rejeitar tanto a tese de Rousseau, de que o homem é um ser naturalmente bom, quanto a de Hobbes, de que o homem é um ser naturalmente mau. Antes de postular a sua implausível pulsão de morte Freud fez uma importante distinção entre duas espécies de pulsões (trieb) ou instintos: as pulsões de sobrevivência do indivíduo e as pulsões de sobrevivência da espécie. As primeiras são, de fato, egoístas. Mas as pulsões de sobrevivência da espécie por definição não podem ser egoístas, dado que sua satisfação deve servir à espécie, mesmo que em detrimento do indivíduo. Entre os animais isso é rem relatado. Mas também é fácil encontrar exemplos entre os humanos, como o caso de pais que se sacrificam pelos filhos a ponto de pagarem com isso a própria vida. Tais gestos de altruísmo puro são derivado de pulsões que visam a sobrevivência da espécie mais que deles mesmos. (Seria ridiculamente falacioso dizer que o pai que sacrificou sua vida tentando salvar os filhos de afogamento fez isso buscando o prazer egoísta de tentar fazer o bem a outros...) Ambos, egoísmo e altruísmo são, pois, intrínsecos à natureza humana, encontrando-se geralmente misturados em nossas ações. Nosso comportamento social é biologicamente motivado por essa natureza bipolar e muitas vezes conflitiva. E a ela devem ser acrescentadas as variáveis individuais e sócio-ambientais.

   A natureza humana é individualmente variável e com isso também as medidas de egoísmo e altruísmo que dela dependem. Psicólogos que estudaram psicopatias desenvolveram meios confiáveis e sofisticados para diagnosticá-la, que foram inicialmente aplicados em presídios nos Estados Unidos e no Canadá. Embora menos de 1% sejam psicopatas graves, é fácil identificá-los, dado que muitos deles acabam cometendo homicídios, sendo pegos e levados à prisão. Mas há os psicopatas leves, que constituem 3-4% da população. Esses sentem prazer em fazer o mal, conquanto não sejam descobertos. Se o escore do teste em um extremo identifica psicopatas é porque deve existir o extremo oposto, digamos, o das “criaturas angelicais”: pessoas naturalmente altruístas e inclinadas para o bem. Provavelmente ambos os tipos (com exceção dos extremos) são resultados da seleção natural, posto que a sociedade humana precisa de uma diversidade genética como meio de produzir uma divisão de trabalho organizadora e coordenadora das ações humanas que facilite a sobrevivência de todos. Os casos mais próximos do extremo da psicopatia, quando duramente educados, podem se tornar bons líderes (vide o caso do general George Patton ou mesmo de Winston Churchill, particularmente úteis durante a Segunda Guerra Mundial, mas depois não mais). Já os mais próximos do extremo de altruísmo também podem se demonstrar úteis (vide Martin Luther King ou Mahatma Gandhi).

   Junto aos fatores genéticos temos igualmente os fatores sócio-ambientais a modelar o comportamento. O cão preso a uma corrente se torna agressivo, o cão tratado com mimos se torna dócil e confiante – o mesmo com os seres humanos. Os rigores da educação espartana produziam seres humanos desmedidamente propensos à agressão. Isso era necessário já que os hilotas (os habitantes originários) reduzidos à condição de servos do estado, formavam mais de 90% da população e precisavam ser subjugados. Os homens das civilizações pré-cristãs eram geralmente capazes de feitos de coragem e brutalidade impensáveis para nós. A educação e a cultura são, pois, fatores tão fundamentais quanto os genéticos no balanço entre o comportamento egoísta e altruísta.

   Tudo considerado, tanto o mito do altruísmo quanto o do egoísmo inatos ficam desfeitos. O ser humano não nasce bom ou mau por definição, mas é geneticamente predisposto como indivíduo mais para um ou para o outro extremo; em adição a isso o meio (a educação, a sociedade) é capaz de modelar o comportamento humano tanto em uma quanto em outra direção.

 

4

 

Voltemos agora a Hobbes. Vimos que no que concerne ao egoísmo inato ele estava simplesmente errado. Mas no que concerne à escassez de provimentos e recursos somos forçados a lhe dar razão, dado que na história da espécie humana a guerra e a violência sempre foram uma constante, e que a principal causa, em uma reprodução do que acontece em populações animais, é a conjunção do aumento da população com a escassez de alimentos e (no caso humano) a falta de recursos que facilitem a vida.

   O paralelo com os animais é esclarecedor. As espécies tendem a se reproduzir sempre mais do que seus meios de subsistência o permitem, sendo o limite geralmente imposto pelas outras espécies concorrentes dentro do ecossistema. Considere o caso dos guanacos na Patagônia. Existem ainda muitos milhares desses simpáticos herbívoros, que hoje tendem a se reproduzir como coelhos. Entre seus predadores naturais estavam o homem e o puma. Esses predadores limitavam o número de guanacos. Os condores, por sua vez, se alimentavam das carcaças dos guanacos mortos. Com a limitação do número de guanacos, o capim dos desertos da Patagônia podia crescer outra vez... Um ecossistema funciona através de limitações mútuas das espécies. A isso é preciso acrescentar a competição intraespecífica. Os guanacos são territorialistas, reunindo-se em grupos de fêmeas liderados por um macho que é o responsável pela segurança do grupo e por manter o território e perseguir os oponentes.

   Ora, o mesmo tem acontecido com os grupamentos humanos ao longo da história. Relatos de grupos humanos de caçadores-coletores que viveram em um estado comparável ao do paleolítico, como os onas na Terra do Fogo, mostram seres humanos capazes de profunda empatia, que cuidavam de seus doentes e recebiam bem os estrangeiros. Mas as pequenas tribos onas lutavam umas contra as outras em uma competição intraespecífica pela sobrevivência em territórios cuja principal fonte de alimento, os guanacos, era limitada.[6]

   A condição humana por muito tempo não foi muito diferente. A melhor explicação que conheço encontra-se na filosofia do humanitismo de Quincas Borba, personagem do romance homônimo de Machado de Assis. Eis como ele explica o mote “ao vencido, ódio e compaixão; ao vencedor as batatas”:

 

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

 

Entre os humanos, historicamente, também foi sempre assim. As tribos indígenas guerreavam entre si na competição territorial por alimentos. Para se ver a diferença entre os modos geralmente corteses e amenos do homem contemporâneo e a por vezes inacreditável violência, crueldade, coragem e resiliência física do homem pré-cristão, basta ler os historiadores antigos. Eis dois breves trechos de Plutarco em seu livro sobre a vida de César:

 

Acílio, na batalha naval frente a Massala, ao subir num barco inimigo teve a mão direita arrancada por um golpe de espada. Ele não largou o escudo que segurava na mão esquerda, acertando os inimigos na cara, pondo todos em fuga e tomando o barco.[7]

Na África Cipião escravizou todos os passageiros do barco que havia tomado, mas ofereceu poupar a vida do questor Petro. Este declarou que os soldados de Cesar não tinham o costume de receber o perdão, mas sim de concedê-lo, matando-se com um golpe de espada.[8]

 

Hoje, ao menos nas partes mais civilizadas do globo, o comportamento humano costuma ser muito mais brando. Mas esse verniz de civilização pode não ser tanto um mérito nosso. Como bem notou George Orwell, a civilização foi resultado do desenvolvimento da ciência e da técnica, que tornaram a vida humana muito mais fácil e em muitos casos acabou com a escassez de recursos, principalmente a de alimentos.[9] Isso significa que se ocorresse algo como uma guerra atômica nós perderíamos rapidamente nossos valores humanos. No filme The Day After, que retrata uma guerra nuclear entre as grandes potências, em uma cena final aparecem na escuridão cinzenta grupos de pessoas portando armas, invasores prontos a se defender e a se apossar de tudo o que puderem encontrar.

   Usando conceitos freudianos costumamos caracterizar a civilização pela capacidade de repressão pulsional, principalmente na forma de postergação racional de sua satisfação e sublimação. Se nosso comportamento cortês só é alcançado devido às facilidades de um mundo tecnológico, não parece que sejamos tão civilizados quanto gostaríamos de supor.

 

 

 

 

 



[1] Francis Bacon: Novo Organon [instauratio magna] (São Paulo: Edipro 2014).

[2] Karl Popper: A Lógica da Pesquisa Científica (São Paulo: Cultrix 2013).

[3]  Thomas Hobbes: Leviathan – With Selected Variants from the Latin Edition of 1668. Indianapolis: Hackett, 1994.

[4] Leviatã parte I, cap. 11.

[5] Leviatã, parte II, cap. XVII, p. 109.

[6] Menos civilizados foram os europeus que decidiram exterminar os Onas (ver o documentário: “Los Onas”, por Anne Chapman, 1967).

[7] Plutarco: Vidas Paralelas: Alexandre e Cesar. (São Paulo: L&PM, 2006) p. 127.

[8] Ibid, 128.

[9] George Orwell: Seeing Things as They Are. Ed. Peter Davison. London: Harvill Seeker, 2014.

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