DRAFT para o livro "Introdução histórica..." (A SER PUBLICADO)
VIII
ORIGENS DO EMPIRISMO INGLÊS
Assim
como no continente os filósofos foram influenciados pelas matemáticas,
produzindo sistemas especulativos racionalistas, os filósofos ingleses foram
influenciados pelo desenvolvimento das ciências empíricas como a física
newtoniana e de suas implicações, desenvolvendo sistemas empiristas de
pensamento.
1
Bacon. O primeiro grande defensor do empirismo foi Sir
Francis Bacon (1561-1626).[1] Ele pode ser considerado o primeiro
filósofo especializado em filosofia da ciência. Bacon desdenhava o método
dedutivo da silogística aristotélica, pondo em seu lugar o método indutivo
próprio das ciências empíricas. Para ele a ciência empírica deveria se
desenvolver pela contínua adição e seleção de observações em busca de
invariantes e suas causas. Ele valorizava não tanto a indução enumerativa,
que apenas probabiliza uma generalização científica, mas principalmente a
indução excludente, uma vez que ela é capaz de falsear
decisivamente uma generalização.
Essa última ideia foi retomada e desenvolvida com outro nome no século XX por
Karl Popper. Para esse último, a característica fundamental da ciência é que suas
teorias sejam susceptíveis de refutação por meio de testes empíricos.[2] Uma hipótese
resultante de indução enumerativa nunca é garantida. Um exemplo é a
generalização “Todos os cisnes são brancos”, que era considerada certa pelos
europeus antes que eles descobrissem a Austrália. Afinal, todos os cisnes já
enumerados eram brancos. Contudo, depois que foram divisados cisnes negros na
Austrália a generalização antes dada como certa foi decisivamente refutada.
Para ganharmos certeza da verdade de uma generalização científica precisaremos
verificar todas as suas instâncias, o que costuma ser praticamente impossível.
Como Popper notou, mesmo que alcancemos a verdade empírica última e absoluta,
jamais poderemos saber que realmente a alcançamos. Mas o mesmo não acontece
quando apelamos para o falseamento, pois basta uma única instância contrária ao
que foi previsto pela hipótese para que ela seja falseada.
O exemplo predileto de Popper foi a prova da teoria da relatividade
generalizada, realizada pela expedição de Arthur Eddington em 1919. Segundo a
teoria newtoniana, a gravidade seria uma força agindo sobre objetos que possuem
massa. Como a luz não possui massa, ela não pode ser atraída pela gravidade.
Mas segundo a teoria da relatividade, a gravidade não é mais uma força agindo à
distância, mas um encurvamento do espaço-tempo próximo aos corpos massivos.
Como consequência, mesmo as ondas de luz precisam nesse caso seguir uma
trajetória curva, em conformidade com a curvatura do espaço-tempo. Daí que, em
um eclipse solar, quando as estrelas anteriores ao sol podem ser vistas, ao
observador situado na terra elas aparecem como se estivessem mais distanciadas
do sol, pelo fato de seus raios de luz serem encurvados ao passarem próximos
dele. No eclipse solar de 1919 essa deflexão da luz foi comprovada por meio de
fotografias. Esse foi um teste crucial para a teoria, tornando-a mundialmente conhecida.
Se nenhuma deflexão fosse encontrada, a teoria da relatividade generalizada
teria caído por terra. Assim, podemos não saber se a teoria relativista da
gravitação é absolutamente verdadeira, ou mesmo se ela vale para todo o
universo; mas sabemos que ela se demonstrou suficientemente confiável para
resistir a um teste de falseamento crucial.
A ideia de que a possibilidade de falseamento experimental estabelece um
limite entre ciência e não-ciência pode valer em boa medida para a física. Mas
ela não vale para muitas outras ciências, como a biologia evolutiva, a
história, a antropologia, a linguística, a economia… ciências nas quais a
produção de experimentos falseadores é geralmente impossível. Afora isso, por
influência das ideias de Hume, por toda sua vida Popper defendeu a ideia
implausível de que a generalização por indução enumerativa não existe. Por isso
ele pensava que as novas teorias científicas devem ser baseadas somente no
método hipotético-dedutivo e que nossas hipóteses científicas devem se resumir
a produtos da imaginação e criatividade humanas.
No que concerne à ciência avançada de nossa época podemos aceitar as
hipóteses imaginativas propostas por Popper. Esse pode ter sido o famoso caso
da hipótese da equivalência entre gravidade e movimento acelerado da qual
resultou a nova teoria da gravitação de Einstein: um insight genial que
produziu resultados fabulosos. Mas se nos ativermos somente a isso estaremos
esquecendo que em suas bases essas ciências maduras já haviam sido construídas
sobre o sustentáculo de uma infinidade de inferências indutivas enumerativas
originárias. Encontrando-se ainda em um momento inicial do desenvolvimento das
ciências empíricas, Bacon estava imune ao radicalismo anti-indutivista de
Popper que ele com razão consideraria absurdo.
2
Hobbes.
Um outro filósofo que ajudou a preparar o caminho para
Locke foi Thomas Hobbes (1588-1679). Ele viveu em tempos de grande convulsão
social. A Europa Continental estava sendo devastada pela Guerra dos Trinta
Anos, que durou de 1618 a 1648 e da qual resultaram mais de quatro milhões de
mortes. Por esse tempo aconteceu na Inglaterra uma guerra civil com duração de
seis anos, terminando com a decapitação do rei Charles I em 1649. Ela foi
seguida da ditadura de Oliver Cromwell, eleito pelo parlamento, que só acabou
com a sua morte e que foi seguida pelo coroamento de um novo rei, Charles II,
que era secretamente um católico, privilegiando os católicos enquanto a maioria
do parlamento era protestante, o que gerou novos conflitos...
Hobbes não viveu para assistir à revolução gloriosa de 1688, pela qual Mary,
que era protestante, destronaria seu pai, James II, o sucessor de Charles II.
Ela tornou-se rainha junto a seu esposo, William de Orange, ambos cedendo poder
ao parlamento – uma solução que foi aos poucos aperfeiçoada até tomar a sua
forma democrática atual.
Ter testemunhado tempos tão sombrios foi certamente a maior razão do pessimismo
de Hobbes. Ele foi levado a pensar que só um governo com poderes absolutos
seria capaz de manter a ordem em uma sociedade, prevenindo a anarquia. Essa é a
tese de sua obra máxima, O Leviatã. (Leviathan 1651)[3]. John Locke,
que viveu a revolução gloriosa, moderou as ideias de Hobbes na forma de um
liberalismo político.
Como filósofo teórico, Hobbes não criou um sistema original, mas atualizou o
materialismo naturalista com base na emergência das novas ciências. Ele viajou
pela Europa, foi amigo de Bacon, conheceu Galileu e Gassendi, um discípulo de
Descartes, tendo sido influenciado pelos escritos desse último. Vou expor
algumas ideias.
Para Hobbes quando o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito
nós temos um enunciado necessário. Por exemplo: “Triângulos tem
três lados”. Afinal, o triângulo é uma figura plana, fechada, com três lados.
Mas quando o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito,
temos um enunciado contingente. Por exemplo: “O carvão tem cor preta.” Como não
é parte da definição de carvão que ele seja preto, o conceito do predicado não
está contido no conceito do sujeito e o enunciado é contingente. Já
vimos algo assim em Leibniz...
Hobbes esposava um mecanicismo materialista e um determinismo universal. Mesmo
a substância deveria ser material. Como determinista, ele via o livre arbítrio
como a mera ausência de limitação ou coerção externa. Assim, o escravo liberto,
o rio que rompeu a barragem e agora corre livremente, o jovem que atingiu a
maioridade e agora pode fazer o que quiser, todos eles são livres porque não
tem mais impedimento e não porque deixaram de ser causalmente determinados. Com
esse novo conceito de liberdade, Hobbes rompeu definitivamente com o
libertarismo sustentado por filósofos atomistas como Epicuro e Lucrécio, além
dos filósofos católicos da Idade Média, segundo os quais ao decidir livremente
precisamos ser capazes de transcender o determinismo causal presente no mundo
físico. Hobbes foi o primeiro filósofo claramente compatibilista. Para
ele o livre arbítrio é perfeitamente compatível com o determinismo causal,
tendo um sentido meramente negativo (ver cap. XVI, sec. 7).
Ele entendia as sensações como movimentos no cérebro e a percepção do mundo
pelos dados sensíveis como resultado de uma tendência natural da mente de projetar
para fora o que lhe é dado na independência da vontade. A imaginação é
resultado da combinação de imagens já experienciadas. Assim, imaginamos um
centauro combinando a figura de um homem com a de um cavalo. E a memória é uma
imagem adicionada à consciência de que ela foi anteriormente percebida.
Acusaram Hobbes de ser ateu, mas injustamente.
Hobbes foi educado por um pastor calvinista depois da perda dos pais, o que fez
dele uma pessoa de fé religiosa. Ele acreditava ser o próprio Deus também
constituído de matéria. Ele seria o mais puro, simples e invisível espírito
corpóreo. (O entendimento materialista da divindade é ao menos tão problemático
quanto seu paralelo idealista.)
Quanto ao problema dos universais, Hobbes defendeu o nominalismo seguindo
William Ockham. Para ele um termo geral não é mais do que um nome que se aplica
a todo um grupo de objetos individuais, sem maior discriminação.
O importante em Hobbes é a sua filosofia social e política, tal como foi
exposta no Leviatã. O contraste maior foi com Rousseau, que idealizou
o ser humano natural como um “nobre selvagem”: bom por natureza e tornado mau
pela sociedade.[4]
Para Hobbes era o contrário: o ser humano é mau por natureza. Mesmo quando faz
algo de bom, ele o faz por egoísmo. Se faz caridade é para demonstrar seu
poder. Se sente piedade é por temer um desastre similar consigo mesmo. Se busca
o poder é para desfrutar da glória de dominar outras pessoas… “Os homens”,
escreveu ele, “são tomados de um perpétuo e incansável desejo de poder sobre
poder, que só cessa com a morte”.[5]
Devido à natureza egoísta do ser humano e dada a inevitável escassez de
recursos, os homens estão sempre competindo entre si. O resultado disso é a
guerra, a luta de todos contra todos, pois só a morte de uns tornará possível a
sobrevivência de outros: “homo homini lupus”. Disso Hobbes concluiu que
a condição natural da humanidade é a da guerra. E o destino do ser humano em
sua condição natural é o de ter uma vida “solitária, pobre, suja, bruta e
curta”. Para Hobbes, só a sociedade pode educar o egoísmo humano, fazendo do
homem um ser civilizado. Não é de admirar que, com uma concepção tão pessimista
da natureza humana, ele tenha sido levado a conclusões um tanto insólitas. (Não
parece que Hobbes tenha sido um ser humano adorável.)
A solução proposta no Leviatã foi que a única maneira de evitar a guerra
de todos contra todos é que o povo ceda o poder a uma autoridade absoluta. Para
ele, um governo precisa ser formado através de um pacto (covenant),
que é uma espécie de contrato através do qual os indivíduos transferem os seus
direitos naturais de fazerem o que quiserem para sobreviver, inclusive matarem
seus semelhantes... para um poder soberano, em troca de paz e segurança.[6]
Esse pacto é sustentado por certas leis da natureza (divinas ou morais), as
quais nos dizem que os indivíduos sentem que têm as obrigações de buscarem a
paz, sempre que possível, de dispor de seus direitos naturais e de manter-se no
acordo, conquanto os outros também o façam. Essas leis asseguram o mantenimento
do pacto cuja existência é devida aos interesses individuais de realização dos
direitos naturais. Com isso é criada uma sociedade civil através da qual são
estabelecidas leis que nos dizem quais são as ações humanas justas ou injustas.
E através dele são garantidos os direitos individuais dos cidadãos, que se
tornam livres na medida em que sua liberdade não seja transgressora da
liberdade alheia.
Ainda que o soberano esteja acima das leis, e ainda que seus poderes de vida e
morte sobre os cidadãos sejam absolutos, uma vez que foi agraciado pela
soberania ele tem o dever de não decepcionar aqueles que lhe cederam tais
direitos. Fica claro que se o soberano agir de modo a tornar a vida das pessoas
insuportável, elas terão pleno direito de destituí-lo do poder. E a razão disso
é que se foi o desejo de autopreservação que fez com que as pessoas realizassem
o pacto, de modo que se o soberano não souber zelar por essa autopreservação,
as pessoas terão pleno direito de dissolver o pacto.
Contra Hobbes é para ser notado que geralmente, quando a espécie de pacto
sugerida por Hobbes é feita sem que reste controle algum por parte das pessoas
que deram ao soberano poder de vida e morte sobre elas, o resultado fica na
dependência das circunstâncias e humores do soberano. Em tal contexto ele pode
facilmente degenerar-se em um tirano que com seu poder absoluto escraviza seu
povo sem que o povo possa fazer qualquer coisa para impedi-lo. Hobbes não tinha
qualquer remédio contra esse tipo de problema.
A favor de Hobbes deve ser notado que embora ele preferisse que o poder
soberano fosse exercido por um monarca absolutista, ele admitia que esse poder
pudesse ser exercido por um corpo ou uma assembleia de pessoas. Ele provavelmente
teria aceito o modelo parlamentarista resultante da revolução gloriosa se
tivesse vivido o suficiente para vê-lo surgir. Mas como filósofo ele foi refém
de seu tempo. O grande mérito do Leviatã foi o de ter, pela
força de seus argumentos, construído o palco sobre o qual seriam encenadas as
discussões da filosofia política nos séculos seguintes.
3
O
fator social. Nos dias de hoje
há boas razões para se rejeitar tanto a tese de Rousseau, de que o homem é
naturalmente bom, quanto a de Hobbes, de que o homem é naturalmente mau. Antes
de postular a sua implausível pulsão de morte[7] Freud fez uma importante
distinção entre duas espécies de pulsões (trieb) ou instintos: a pulsão
de sobrevivência do indivíduo e a pulsão de sobrevivência
da espécie. A primeira é por definição egoísta. Mas a pulsão de
sobrevivência da espécie não pode enquanto tal ser egoísta, dado que sua
satisfação deve servir a outros membros da espécie, mesmo que em detrimento do
indivíduo. Em meu juízo a distinção entre essas duas pulsões básicas é por
demais bem fundada na sociobiologia para ser desconsiderada. Entre os animais
isso é muito bem documentado. Mas também é fácil encontrar exemplos entre os
humanos, como o caso de um pai que morreu tentando salvar os filhos pequenos do
afogamento em uma situação na qual as chances de ele mesmo sobreviver eram
mínimas. (Seria ridiculamente falacioso dizer que o pai que se afogou tentando
salvar os filhos fez isso por qualquer razão que não fosse o desespero de
vê-los se afogarem...) Ambos, egoísmo e altruísmo são, pois, intrínsecos à
natureza humana, encontrando-se geralmente misturados em nossas ações. Nosso
comportamento social é biologicamente motivado por essa natureza bipolar e
amiúde conflitiva. E a ele devem ser acrescentadas variáveis individuais e socioambientais.
Ao que foi dito acima deve ser adicionado que a natureza humana é
individualmente variável e com isso também as medidas de egoísmo e altruísmo
que dela dependem. Psiquiatras que estudaram psicopatias desenvolveram meios
confiáveis e sofisticados para diagnosticá-la. Embora menos de 1% sejam
psicopatas graves, é fácil identificá-los, dado que muitos deles acabam
cometendo homicídios, sendo pegos e levados à prisão. Mas há os psicopatas
leves, que constituem 3-4% da população. Esses sentem prazer em fazer o mal,
conquanto não sejam descobertos. Se o escore do teste em um extremo identifica
psicopatas é porque deve existir o extremo oposto, digamos, o das “criaturas
angelicais” – os antipsicopatas – pessoas naturalmente altruístas e inclinadas
para o bem, também existe. Combinações genéticas casuais devem originar ambas
as tendências e também os extremos, posto que a sociedade humana precisa de uma
diversidade de personalidades como meio de produzir uma divisão de trabalho
organizadora e coordenadora das ações humanas e facilitadora da sobrevivência da
comunidade como um todo. Casos mais próximos do extremo da psicopatia, quando
duramente educados, podem se tornar bons líderes (vide o caso do general George
Patton ou mesmo de Winston Churchill, particularmente úteis durante a Segunda
Guerra Mundial, mas depois não mais). Já os mais próximos do extremo de
altruísmo também podem se demonstrar úteis (vide Martin Luther King e Mahatma
Gandhi, que acabaram sendo assassinados pela ofensa que suas existências representavam
aos amor próprio dos mais beligerantes).
Junto aos fatores genéticos temos igualmente os fatores socioambientais a
modelar o comportamento. O cão preso a uma corrente se torna agressivo, o cão
tratado com mimos se torna dócil e confiante. Ora, assim também é com os seres
humanos. Os rigores da educação espartana produziam seres humanos
desmedidamente propensos à agressão. Isso era necessário já que os hilotas (os
habitantes originários) reduzidos à condição de escravos do estado, formavam a
vasta maioria da população e precisavam ser subjugados. Os homens das
civilizações pré-cristãs eram geralmente capazes de feitos de coragem e
brutalidade impensáveis para nós. A educação e a cultura são, pois, fatores tão
fundamentais quanto os genéticos no balanço entre o comportamento egoísta e
altruísta.
Tudo considerado, tanto o mito do altruísmo quanto o do egoísmo inatos ficam
desfeitos. O ser humano não nasce bom ou mau por definição, sendo apenas geneticamente
predisposto, como indivíduo, mais para um ou para o outro extremo. Em adição a
isso o meio (a educação, a sociedade) é capaz de modelar o comportamento humano
tanto mais em uma quanto mais em outra direção.
4
A
escassez. Voltemos agora a Hobbes. Vimos
que no que concerne ao egoísmo inato ele estava simplesmente errado. Mas no que
concerne à escassez de provimentos e recursos somos forçados a lhe dar razão, dado
que na história da espécie humana a guerra e a violência sempre foram uma
constante e que a principal causa, em uma reprodução do que acontece em
populações animais, é a conjunção do aumento da população com a escassez de
alimentos e, particularmente no caso humano, a falta de recursos que facilitem
a vida.
O paralelo com os animais é esclarecedor. As espécies tendem a se reproduzir
sempre mais do que seus meios de subsistência o permitem, sendo o limite
geralmente imposto pelas outras espécies concorrentes dentro do ecossistema.
Considere o caso dos guanacos na Patagônia. Existem ainda muitos milhares
desses simpáticos herbívoros, que depois de se tornarem uma espécie protegida
tendem a se reproduzir como coelhos. Entre seus predadores naturais estavam o
homem e o puma. Esses predadores limitavam o número de guanacos. Os condores,
por sua vez, se alimentavam das carcaças dos guanacos mortos. Com a limitação
do número de guanacos, o capim dos desertos da Patagônia podia crescer outra
vez... Um ecossistema funciona através de limitações mútuas entre as espécies.
A isso é preciso acrescentar a competição intraespecífica. Os guanacos são
territorialistas, reunindo-se em grupos de fêmeas liderados por um macho que é
o responsável pela segurança do grupo, por manter o território e perseguir os
oponentes.
Ora, algo semelhante aconteceu com os grupamentos humanos ao longo da história.
Relatos de grupos humanos de caçadores-coletores que viveram em um estado
comparável ao do paleolítico, como os onas na Terra do Fogo,
mostram seres humanos geralmente capazes de profunda empatia, que cuidavam de
seus doentes e que recebiam bem os estrangeiros. Antes da chegada dos europeus,
as pequenas tribos onas lutavam umas contra as outras em uma competição intraespecífica
pela sobrevivência em territórios cuja principal fonte de alimento, os
guanacos, era limitada.[8]
A condição humana por muito tempo não foi muito diferente. A melhor explicação
que conheço encontra-se na filosofia do humanitismo de Quincas Borba,
personagem do romance homônimo de Machado de Assis. Eis como ele explica o mote
“ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor as batatas”:
Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas.
As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire
forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em
abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não
chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a
destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e
recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas
públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso,
tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só
comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de
que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido,
ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
Historicamente,
entre os humanos também foi sempre assim. Era inevitável que as tribos
indígenas guerreassem entre si na competição territorial por alimentos. Para se
perceber a diferença entre os modos geralmente corteses e amenos do homem
contemporâneo e a por vezes inacreditável violência, crueldade, coragem e
resiliência física do homem pré-cristão, basta ler os historiadores antigos.
Eis dois breves trechos de Plutarco em seu livro sobre a vida de César:
Acílio, na batalha naval frente a Massala, ao subir
num barco inimigo teve a mão direita arrancada por um golpe de espada. Ele não
largou o escudo que segurava na mão esquerda, acertando os inimigos na cara,
pondo todos em fuga e tomando o barco.[9]
Na África Cipião escravizou todos os passageiros do
barco que havia tomado, mas ofereceu poupar a vida do questor Petro. Este
declarou que os soldados de Cesar não tinham o costume de receber o perdão, mas
sim de concedê-lo, matando-se com um golpe de espada.[10]
Hoje,
entre as pessoas civilizadas, o comportamento humano costuma ser muito mais
brando. Mas esse verniz de civilização não chega a ser mérito nosso. A civilização
foi acima de tudo o resultado do desenvolvimento da ciência e da técnica, que
tornaram a vida humana muito mais fácil e em muitos casos acabou com a escassez
de recursos, principalmente a de alimentos. Isso significa que se
ocorresse algo como uma guerra atômica nós perderíamos rapidamente nossos
valores humanos. No filme The Day After, que retrata uma guerra
nuclear entre as grandes potências, em uma cena final aparecem na escuridão
cinzenta grupos de pessoas portando armas, invasores prontos a se defender e a
se apossar de tudo o que puderem encontrar.
Usando conceitos freudianos costumamos caracterizar a civilização como sendo
proporcional ao nível de repressão pulsional, geralmente expresso na capacidade
de postergação racional de sua satisfação por meio de mecanismos como o da sublimação.
Se, ao invés disso, nosso comportamento civilizado só é alcançado devido às
facilidades de um mundo tecnológico, então estamos longe de sermos tão
civilizados quanto gostaríamos de supor.
[1] Francis Bacon: Novo
Organon [instauratio magna] (São Paulo: Edipro 2014).
[2] Karl Popper: A
Lógica da Pesquisa Científica (São Paulo:
Cultrix 2013).
[3] Thomas Hobbes: Leviathan (1651) Trad. port. Leviatã:
Matéria, palavra e poder de uma República eclesiástica e civil. (Petrópolis:
Vozes 2020)
[4] Jean-Jacques Rousseau: O contrato social. (Edipro:
2017)
[5] Leviatã parte
I, cap. 11.
[6] Leviatã, parte II, cap. XVII.
[7] Freud postulou mais para o final de sua vida
uma pulsão de morte (Thanatos) versus uma pulsão erótica (Eros),
a primeira sendo capaz de explicar o elemento destrutivo presente na natureza
humana. Contudo, é mais fácil pensar que a cultura germânica repressiva na qual
Freud foi criado o tenha feito exagerar o elemento de agressão e auto-agressão
no comportamento humano, perfeitamente explicáveis sem essa alternativa
metafísica.
[8] Menos civilizados foram os
europeus que acharam por bem exterminar os Onas (ver o documentário: “Los
Onas”, por Anne Chapman, 1967).
[9] Plutarco: Vidas
Paralelas: Alexandre e Cesar. (São Paulo: L&PM, 2006) p. 127.
[10] Plutarco, Ibid,
128.
Nenhum comentário:
Postar um comentário