Draft para o livro “Uma introdução histórica à filosofia”
DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”.
XI
HUME:
DESAFIOS CÉTICOS
Já
foi dito que a filosofia é um método para se inventar muitos problemas com base
em algumas poucas soluções. Caso esse método exista, David Hume (1711-1766)
parece tê-lo exemplificado de maneira incomparável. A conclusão inaceitável de
sua filosofia é a de que não há razões para se acreditar nem na existência de
um mundo externo, nem em sujeitos humanos espirituais, nem, certamente, em
Deus. Tudo o que a razão nos permite atestar é a existência de bandos de ideias
se sucedendo umas às outras.
O que importa, obviamente, não é essa conclusão absurda, mas os incomparáveis
caminhos argumentativos que Hume percorreu para chegar até ela. Os desafios
céticos por ele desenvolvidos possuem a marca da profundidade, posto que ainda
hoje nos incitam a buscar respostas.
1
Vida.
A
maior ambição de Hume era a de tornar-se famoso por sua contribuição para o
progresso do conhecimento, como ele mesmo, cândida e honestamente admitiu.
Quando jovem ele foi um grande amante da literatura. O caráter imaginativo e
desafiador de sua argumentação na produção de grandes ardis metafísicos que até
hoje ocupam as mentes dos filósofos fez escola na filosofia de língua inglesa e
tem algo a ver com a criação artística. Nisso ele era oposto a Locke, uma
pessoa com treinamento científico, que preferia deter-se diante de qualquer
resultado que lhe parecesse absurdo demais para ser verdadeiro, fazendo exceção
apenas para aquilo que de algum modo vindicasse suas crenças religiosas.
Hume veio de uma família de poucas posses, seu pai era advogado. Para ganhar a
vida ele precisou trabalhar para a nobreza da época nos mais diversos empregos
até alcançar independência financeira. Ele nunca se casou. Mas era susceptível
às mulheres, sendo conhecida a coincidência de que, aos 23 anos, pouco depois
de deixar a Escócia para trabalhar como escrivão em Bristol, ele foi citado em
um processo movido por uma criada local por ter tido um filho ilegítimo com ela
– uma acusação que nunca foi provada.[1]
Hume passou a vida estudando. Sua obra principal, planejada desde a
adolescência e escrita durante três anos de recolhimento na França, foi o Tratado
da natureza humana,[2] publicado
quando ele tinha 28 anos. Esse estudo é
considerado com boas razões a mais genial obra filosófica até hoje escrita em
língua inglesa. Para sua grande decepção, ela não encontrou acolhimento algum,
além de três resenhas hostis e desdenhosas. Só anos mais tarde, após a
publicação de uma história da Inglaterra em seis volumes, ele se tornou um
escritor conhecido e venerado (além de muito repudiado) na Inglaterra e na
França. Essa última obra permitiu-lhe viver para escrever.
As outras obras filosóficas mais importantes
de Hume, como as Investigações sobre o entendimento humano e a Investigação
sobre os princípios da moral, não foram muito mais do que importantes
exposições complementares de ideias já lançadas em sua obra principal.
Hume tentou ser aceito como professor nas Universidades de Edimburgo e Bristol,
mas foi rejeitado por suspeita de ateísmo. Nisso seus críticos tinham razão. Em
seu livro intitulado Diálogos sobre a religião natural, que teve o
cuidado de não publicar em vida, ele apresentou argumentos rejeitando a
imortalidade da alma e sugerindo que só um Deus cruel poderia ter criado um
mundo tão injusto como o nosso. Ele não aceitou a presença de um ministro
religioso para consolá-lo no leito de morte. Em sua “oração funeral para si
mesmo” escreveu que não se sentia abatido, pois afinal “ao morrer aos sessenta
e cinco um homem não faz mais do que abreviar alguns anos de enfermidade”.[3]
Hume era conhecido como uma pessoa bondosa, com um temperamento brando e
agradável, acompanhado de um inexaurível otimismo, o que torna verdadeiras as
palavras de seu amigo Adam Smith, que o considerava “um homem perfeitamente
sábio e virtuoso, tanto quanto o admite a frágil natureza humana”.[4]
2
Impressões
e ideias. Do mesmo modo que Locke, Hume também queria
estabelecer os limites do conhecimento humano de modo a obstar uma metafísica e
uma teologia destituídas de sentido. Mas, enquanto a obra de Locke era
construtiva, a obra de Hume foi desafiadoramente cética em sua exploração dos
pontos fracos das filosofias de seus antecessores. Enquanto Locke tinha a
humilde intenção de “arrumar a sala”, Hume era ambicioso o suficiente para
querer construir por meios indutivos uma nova ciência da natureza humana com
base na reflexão introspectiva e observação comportamental, do mesmo modo que
Newton havia construído uma ciência do mundo natural resultante da experiência
externa. Mais do que isso, Hume via a ciência que ele pretendia estar
construindo como ainda mais importante, uma vez que só conhecendo melhor nossa
própria natureza saberemos como é possível construir qualquer outra ciência!
Hume começou o Tratado reeditando sumariamente a teoria das
ideias de Locke. No lugar das ideias ele colocou o que chamou de percepções.
A palavra ‘percepção’ está simplesmente no lugar de qualquer conteúdo da mente
humana. As percepções dividem-se em impressões e ideias.[5] As impressões distinguem-se das
ideias pela vivacidade, força e violência com que atingem nosso pensamento e
consciência, como é o caso das sensações, paixões e emoções. Além disso, as
impressões possuem uma ordem e sucessão temporal que independe de nós mesmos.
As ideias, por sua vez, são imagens evanescentes das impressões, tanto no
pensar quanto no raciocinar. Sua tese empirista é a de que todas as nossas
ideias são, em sua origem, cópias enfraquecidas das impressões sensíveis ou
emocionais.
As impressões podem ser simples ou complexas. As
impressões simples são de coisas como a cor vermelha ou o calor. Mas as
impressões também podem ser complexas como, por exemplo, a da árvore ou da casa
que se encontra diante de nós. As ideias também podem ser simples e complexas.
As primeiras são meras cópias das impressões simples. Ideias
simples aparecem depois das impressões simples, como resultado da memória,
sendo, portanto, causadas por elas. Já as ideias complexas podem ser
decompostas em ideias simples.
Ideias complexas podem ser recordações ou ideias
da imaginação. As recordações são consideradas por Hume
cópias enfraquecidas de impressões complexas. Elas não dependem de nossa
vontade e se encontram estreitamente ligadas às impressões originais e a sua
ordem e coerência. As ideias da imaginação, porém, dependem de nossa vontade,
de modo que podemos construí-las e alterá-las a nosso bel prazer. Se associo a
ideia de sensação de um cavalo com a ideia de sensação da parte superior de um
corpo humano, eu formo a ideia da imaginação de um centauro, que depende de
minha vontade e não possui correspondente em uma ideia complexa de impressão.
Enquanto as ideias de recordações são mais fortes, as ideias da imaginação
costumam ser mais tênues.
Ao chamar as ideias recordadas de cópias das impressões Hume recai na velha
simplificação do empirismo inglês, que é o de reduzir conceitos a imagens. Pode
parecer que não existam cópias imagéticas de ideias auditivas, táteis e
gustativas, posto que elas não possuem formas espaciais, o que parece livrar
Hume do imagismo. Mas isso é incorreto, pois por imagem devemos entender aqui
qualquer reprodução ou réplica de impressões sensíveis. A memória do som de uma
explosão é como sua audição, só que muito enfraquecida, do mesmo modo que a
memória de uma dor ou de um certo gosto. Até aqui tudo bem. Reduzir conceitos a
reproduções ou cópias pode parecer razoável quando consideramos cores e sons.
Mas isso se torna problemático quando consideramos ideias mais complexas como
as de triângulo ou de homem. Aqui precisaremos nos valer de conceitos e a
partir de Kant, como veremos, de regras conceituais.
Hume também possui um conceito semelhante ao das ideias de reflexão de Locke,
embora sua gênese seja diferente.[6] Para Locke as ideias de reflexão
resultam de uma espécie de introspecção sobre atividades da mente, como a do
pensamento, do juízo e da crença, formando então as ideias de reflexão de
pensamento, de juízo e de crença. Mas para Hume, primeiro temos as impressões
que atingem os sentidos, fazendo-nos perceber coisas como o calor e o frio, a
fome e a sede, o prazer e a dor. Depois a mente produz cópias dessas
impressões, que são as ideias de calor, frio, fome, prazer e dor. Essas ideias
continuam existindo, mesmo depois de cessadas as impressões. Mas quando essas
ideias retornam à mente, associamos a elas novas impressões, como as de desejo
ou aversão, esperança ou temor, que nada mais são do que impressões de
reflexão. Essas impressões podem ser copiadas sob forma de ideias com base
na memória ou imaginação. Cabe notar que os exemplos dados por Locke e Hume são
diferentes e pode bem ser que eles estejam tratando de operações diversas,
ambas possíveis.
O seguinte esquema resume as diferentes espécies de percepções distinguidas por
Hume:
de
sensação de reflexão da memória da imaginação
As
impressões de sensação simples ou complexas, assim como as ideias de reflexão,
são fatores causais na produção de mais tênues ideias da memória que são suas
cópias respectivamente simples ou complexas. E nossa imaginação combina ideias
de memória na produção das ideias complexas da imaginação.
3
Leis
da associação. Uma importante descoberta de Hume diz
respeito a suave força que faz nossas mentes se moverem de uma ideia a outra
por meio do que ele chamou de princípios de associação. Eles são três: semelhança, contiguidade
espaço-temporal e causalidade.[7] Uma ideia se associa a outra por
semelhança, por exemplo, a lembrança de uma cena de perseguição vista em um
filme faz com que uma pessoa se recorde de um incidente ocorrido em sua
adolescência. Também há associações por contiguidade espaciotemporal, por
exemplo, alguém se recorda da casa de seu avô e a seguir se recorda da igreja
na praça à frente da casa e, em seguida, das cerimônias religiosas nos finais
de semana. Há, principalmente, associações entre causa e efeito, por exemplo,
quando alguém associa a vista de um ferimento à dor (causa para efeito), ou
quando associa a fumaça escura que sobe ao céu a um incêndio (efeito para a
causa).
4
Substância
e modo. Hume tem algo a dizer sobre as
fundamentais ideias de substância e de modo (acidentes).
Elas se resumem a coleções de ideias simples que são unidas pela imaginação e
designadas por um nome convencionalmente estabelecido.[8] As coleções de ideias que designam
substâncias podem estar ligadas a algo desconhecido a que são supostamente
inerentes. Mas geralmente estão conectadas por estreitas e inseparáveis
relações de contiguidade e causalidade, de modo que sempre que descobrimos uma
nova qualidade simples com a mesma conexão com as restantes, nós a adicionamos,
enriquecendo o conceito. O exemplo por ele dado é o do ouro como metal amarelo,
maleável, com certo peso e fusibilidade, ao qual se veio a adicionar a
propriedade de solubilidade em uma solução ácida chamada de acqua regia.
Nesse último sentido a substância é entendida como uma espécie natural, algo
como a substância segunda de Aristóteles, analisada por Hume como um feixe de
qualidades. Por fim, exemplos de modos (acidentes) são para ele as ideias
complexas de dança e de beleza.[9]
5
Universais. Hume
atribuiu grande mérito à sugestão de Berkeley de que embora existam ideias
gerais, elas não são abstratas no sentido de deixarem de ser empíricas. Segundo
Berkeley:
...uma
palavra deve ser geral quando se faz dela o signo, não de uma ideia geral
abstrata, mas de várias ideias particulares, qualquer das quais,
indiferentemente, é sugerida à mente pelo dito signo”.[10]
Hume
procura esclarecer essa sugestão. De acordo com ele, por termos impressões
sensíveis de diferentes objetos que se assemelham em algum aspecto, formamos
então, por costume, um grupo de ideias-imagens idênticas a esses objetos,
embora mais enfraquecidas, contendo aquilo que nos despertou atenção. Então nós
associamos esse grupo de ideias-imagens diferentes a uma palavra. Por exemplo:
associamos à palavra ‘cão’ a um grupo de ideias-imagens mais fracas, mas
idênticas às suas impressões sensíveis, digamos, a de um pastor alemão, de um
poodle, de um labrador, de um chihuahua... Assim, quando vemos um novo cão,
digamos, um collie, somos capazes de atualizar uma imagem semelhante de modo a
reconhecê-lo pelas particularidades que nos chamam atenção. Podemos fazer a
mesma coisa com ideias como as de governo, igreja, negociação, conquista. Essas
últimas, escreve ele, são ideias muito complexas e pouco distintas, de modo que
raramente somos capazes de fazer explícitas as ideias simples que as compõem;
mesmo assim somos capazes de atribuir a quem perde uma guerra a ideia de
negociação e não, digamos, a de conquista…[11]
A solução proposta por Hume é interessante embora insuficiente para resolver o
problema. Quando ele se pergunta por que certas ideias-imagens devem ser
escolhidas, ele recorre a noções pragmáticas como as de utilidade e adequação
ao propósito. Mas não é por sua utilidade ou propósito que reconhecemos um
triângulo isósceles como sendo um triângulo. Hume deixa insuficientemente
explicado aquilo que faz com que sejamos capazes de unir uma certa variedade de
ideias-imagens em um mesmo grupo ou conjunto.
O passo adiante no entendimento das ideias gerais só será dado mais tarde por
Kant, que irá prescindir de um discurso meramente imagético e escrever sobre
conceitos como sendo habilidades governadas por regras. Essas
habilidades podem certamente incluir a produção de modelos imagéticos, mas que
não se restringem a eles e nem sempre dependem deles. Kant nota que o conceito
de cão é uma regra através da qual somos capazes de delinear a imagem de um
cão... Mas isso não é sempre necessário: ao identificarmos o número 56 como
sendo o resultado da multiplicação de 7 por 8, não precisamos recorrer à imagem
alguma.
Ainda no século passado Michael Dummett entendeu o sentido de uma palavra
conceitual como uma regra que estabelece critérios para a sua
aplicação.[12] Ernst
Tugendhat chamou-a de regra de aplicação do termo geral,[13] a qual também pode ser abstraída da
experiência. Por exemplo: o termo geral ‘triângulo’ pode ser definido como uma
figura plana fechada, formada por três segmentos de reta que concorrem, dois a
dois, em três pontos diferentes do plano euclidiano. Se tacitamente dominamos
essa definição então parece que possuímos uma regra para a construção de
qualquer triângulo, satisfaça ele a ideia-imagem de um triângulo equilátero,
retângulo, isósceles ou escaleno. Considerando que sempre que nos for dado um
triângulo, seja ele equilátero, isósceles ou escaleno... somos capazes de, com
base em nosso domínio implícito da regra definitória, produzir uma ideia-imagem
correspondente ao que nos for dado, explica-se porque somos capazes de
identificar triângulos no plano euclidiano. É a regra conceitual que nos
permite produzir imagens que se correspondem aproximadamente àquilo que a
palavra conceitual está servindo para designar.
O que Berkeley e Hume demonstraram foi que não somos capazes de construir
imagens abstratas, embora possuamos termos gerais, imagens concretas e, sem
dúvida, capacidades inatas para seu aprendizado. Mas eles não demonstraram que
não podemos associar a termos gerais conceitos entendidos como disposições para
seguir regras de aplicação baseadas em critérios de satisfação eventualmente
imagéticos. Tais regras poderiam, por suposição, ser capazes de reproduzir
impressões em nossas mentes, reproduções identificadoras similares às
impressões sensíveis realmente percebidas. A hipótese é a de que pela
correlação dessas imagens reproduzidas com as impressões sensíveis percebidas
teríamos satisfeito o critério para o reconhecimento da imagem sensível como
exemplo para a aplicação da regra de identificação de um termo geral, por
exemplo, no enunciado “Isso é um triângulo.”
6
Analiticidade. Uma
distinção fundamental é a que Hume faz entre relações de ideias (relations
of ideas) e questões de fato (matters of fact).[14] As relações entre as ideias
(correspondentes aos juízos analíticos de Kant) são as que encontramos na
geometria, na álgebra e na aritmética. Exemplos são enunciados como:
1. Um
círculo não é um quadrado.
2. A
soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano é de 1800.
3. O
quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados de um triângulo
retângulo.
4. A
multiplicação de três por cinco é idêntica à divisão de trinta por dois.
Se
as relações de ideias não forem intuitivamente certas (como em 1), elas serão
ao menos demonstrativamente certas (como em 2, 3 e 4). Elas são necessariamente
verdadeiras porque a sua verdade não depende de nenhuma circunstância do mundo,
que é sempre mutável. A verdade das relações de ideias decorre da estrutura das
próprias ideias envolvidas, de modo que uma vez que conheçamos essas ideias
saberemos que as relações entre elas são verdadeiras.
Como os enunciados acima apenas afirmam as relações vigentes entre conceitos
mentais, eles também não podem ser falsos, sendo contraditório negá-los. Por
isso a soma dos ângulos internos de um triângulo é 1800 no
sistema da geometria euclidiana e isso continuará sendo uma verdade mesmo em um
mundo no qual não existam triângulos euclidianos. Note-se que Hume não está
falando da aplicação desses enunciados ao mundo real! Sabemos que o espaço
físico onde há gravidade é não-euclidiano, e que nele a soma dos ângulos de um
triângulo é maior do que 1800. Isso torna falsa a aplicação da
geometria euclidiana a esse espaço, mas Hume está considerando apenas o sistema
conceitual que constitutivo de uma geometria.
Diversamente do caso das relações de ideias, juízos sobre questões de fato
(correspondentes aos juízos sintéticos em Kant) dependem das circunstâncias
reais do mundo. Sua negação não conduz à contradição e sua verdade não pode ser
estabelecida por demonstração. Tanto sua afirmação quanto sua negação podem ser
em princípio verdadeiras. Exemplos são inúmeros. Eis alguns:
1.
Estou de pé.
2.
O dia está
chuvoso.
3.
A terra é
redonda.
4.
O calor dilata
os metais.
5.
O sol nascerá
amanhã.
Considere
o último enunciado: “O sol nascerá amanhã.” Estamos bem certos de que o sol
nascerá amanhã, mas não é impossível que algum evento catastrófico inesperado
impeça isso de acontecer. Negar que o sol nascerá amanhã não resulta em
contradição. Esse também é o caso, naturalmente, dos outros enunciados acima.
Para Hume as ideias metafisicas resultam da confusão entre relações de ideias e
questões de fato. A base da filosofia de Kant consiste na suposta descoberta
de juízos sintéticos a priori, que embora sendo sobre questões de
fato, são necessariamente verdadeiros. Neles as ideias-conceitos não se
encontram apenas logicamente relacionadas, pois esses juízos nos dizem algo
sobre o mundo (eles são sintéticos); mesmo assim eles são impostos pela mente
humana à natureza como verdades necessárias e universais (eles são a priori).
Para Hume o sintético a priori de Kant seria entendido como uma ficção
metafísica. Diante da Crítica da Razão Pura, um livro fundamentado
em princípios sintéticos a priori, Hume provavelmente reagiria repetindo a
frase que aparece no final de sua Investigação sobre o entendimento
humano:
Esse livro contém algum
raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio
experimental sobre questões de fato ou existência? Não. Então para o fogo com
ele, pois outra coisa não pode encerrar senão sofismas e ilusões.
7
Ceticismo
causal. O mais famoso argumento de Hume diz
respeito à natureza da causalidade e, por extensão, à possibilidade de
inferência indutiva. Para ele a causalidade é fundamental, pois:
Todo raciocínio
concernente à matéria de fato parece ser fundado na relação de causa e efeito.
Só por meio dessa relação nós vamos além das evidências da memória e dos
sentidos.[15]
Em
um exemplo seu, uma pessoa perdida em uma ilha deserta encontra um relógio e
conclui que não está só. Essa inferência resulta da conhecida relação causal
entre um artefato e a existência de um usuário. Embora muitas inferências sejam
de fato causais, essa generalização de Hume tem parecido excessiva. Por
exemplo: sei que o abacate que vejo na feira tem um grande caroço. Essa
inferência se baseia no fato de ter aberto outros abacates e de ter encontrado
neles sempre grandes caroços. Mas essa não é uma inferência fundada em uma
relação de causa e efeito, mas de contiguidade entre o abacate e seu caroço.
Apesar dessa deficiência, é sobre esse pressuposto que Hume produz a sua famosa
análise da causalidade. De acordo com a tradição racionalista de filósofos como
Descartes, Spinoza e Leibniz, e mesmo no caso de um empirista como Locke, a
causa é razão suficiente para o seu efeito, ou seja, toda causa logicamente necessita seu
efeito, do mesmo modo que 2 + 2 necessita ter como resultado o número 4. Hume
discordava. Afinal, a relação de causa e efeito é questão de fato, dependendo
da experiência. Como ele escreveu, Adão, ao ver pela primeira vez a água não
poderia saber que esta tinha o poder causal de afogá-lo, nem ao ver pela
primeira vez o fogo poderia saber que este tinha o poder causal de queimá-lo.[16]
Ao analisar a relação causal Hume encontrou três critérios perceptuais para a
identificação da relação entre causa e efeito. Eles são:
1. Contiguidade
espaço-temporal,
2. A
causa vem antes do efeito,
3. Deve
haver união constante entre causa e efeito.
Quando
uma bola de bilhar se choca contra outra e a faz mover, há uma contiguidade no
espaço e no tempo. Além disso, o movimento da primeira bola vem antes do
movimento da segunda.[17]
Finalmente, a mesma coisa acontece sempre que uma bola de
bilhar nas circunstâncias adequadas se choca contra outra. Essa análise pode
ser definida como a teoria da causalidade como regularidade. Ela
está de acordo com o empirismo humiano, uma vez que as propriedades (1), (2) e
(3) são as que a mente pode retirar de suas impressões sensíveis. Embora
existam objeções contra essa análise, elas parecem contornáveis. A questão
importante que Hume então se coloca é: “cadê a experiência da necessidade
causal?” Parece óbvio que a necessidade causal pretendida pelos filósofos
racionalistas não tem lugar como objeto de experiência.
Hume arranjou uma maneira de supostamente garantir a necessidade causal, que
seria assumir um princípio da uniformidade da natureza. Se a
natureza é uniforme então o futuro se assemelha ao passado. Se o
futuro for semelhante ao passado, como no passado quando uma bola de bilhar se
chocava com uma outra ela sempre fazia a outra se mover, então quando uma bola
de bilhar se chocar com uma outra no futuro essa outra também deverá se mover!
Essa resposta parece bastante razoável. Mas Hume encontra nela uma dificuldade
incontornável. Ele começou por notar que nada nos garante que a natureza deva
ser uniforme, de modo que o futuro seja semelhante ao passado, uma vez que essa
também é uma questão de fato. Podemos perfeitamente imaginar que o futuro venha
a ser diferente do passado. Como ele notou, é possível que da
próxima vez que a neve cair os seus flocos queimem como fogo ou que as árvores
floresçam em pleno inverno... O princípio da uniformidade da natureza nem pode
ser provado nem é intuitivamente certo. Como ele escreveu:
A suposição de que o
futuro se assemelha ao passado não é fundada em nenhuma espécie de argumento,
sendo antes derivada inteiramente do hábito, que nos determina a esperar, para
o futuro, a mesma sequência de objetos com a que já estamos acostumados.[18]
Não
é, pois, a razão, que nos leva a acreditar que o futuro será semelhante ao
passado, mas um simples hábito ou costume. O resultado é que não
temos meio racional de garantir a necessidade causal.
Se nenhum desses argumentos funciona, então como explicar nossa convicção de
que existe uma necessidade causal? A solução de Hume foi observar que quando a
mente percebe uma união espaço-temporal regular entre dois eventos, um
ocorrendo antes do outro, ela forma um costume ou hábito através do qual sempre
que ela experiencia o primeiro evento ela forma a expectativa de que o outro se
seguirá. Mas esse hábito nos confunde, fazendo-nos pensar que existe uma
relação de necessitação de um evento-causa para um
evento-efeito, quando na verdade não temos experiência alguma disso. Somos
levados a acreditar que se trata de uma necessidade causal quando na verdade
tudo o que experienciamos é uma simples expectativa psicológica de que
após a causa virá o efeito. Como nossa expectativa é apenas de ordem
psicológica, ela não é racional, mas meramente emocional.
Sob a suposição de que todo o nosso conhecimento de questões de fato se baseia
em relações causais, o resultado ao qual Hume chega é desalentadoramente
cético. Como não há necessidade causal, nossa convicção de que no futuro as
relações causais permanecerão as mesmas é destituída de qualquer fundamento
racional. Dizemos, por exemplo, que o fogo aquece e que a água apaga o fogo.
Essas são relações causais. Mas como não existe uma verdadeira necessidade
causal, nada nos garante que no futuro o fogo continuará a aquecer ou que a
água será capaz de apagá-lo. Na formação de nossas expectativas sobre questões
de fato, tanto do senso comum quanto da ciência empírica, somos como insetos
voando em direção à luz, determinados apenas pela nossa natureza instintiva.
8
Entrincheiramento.
Essas
famosas conclusões céticas podem ser problematizadas. Uma importante
dificuldade na análise da causalidade como regularidade feita por Hume, por ele
mesmo notada, é que os critérios por ele propostos não parecem suficientes.
Eles não explicam por que regularidades entre eventos contíguos que se dão por
pura coincidência não são causais. Considere, por exemplo, o caso de um ônibus
que todos os dias às 12 horas para diante de uma igreja e que logo a seguir os
sinos começam a repicar. Há aqui contiguidade espaço-temporal... Além disso há
uma união constante: isso ocorre todos os dias. Mesmo assim sabemos que não há
relação causal alguma entre uma coisa e outra. Outro exemplo é o do recorrente
nascimento dos cabelos nos bebês antes do crescimento dos dentes de leite.
Ninguém estaria disposto a dizer que o crescimento dos cabelos é a causa do
nascimento dos dentes. Aparentemente, aquilo que está faltando nesses exemplos
é um nexo de necessidade entre causa e efeito. O parar do ônibus não necessita
o badalar dos sinos, nem o crescimento dos cabelos necessita o nascimento dos
dentes.
O problema não me parece tão desanimador. Tentando um caminho menos pessimista
para lidar com ele podemos apelar para uma relação de necessidade mais fraca do
que a relação de necessidade lógica pressuposta por Hume e defendida pelos
racionalistas. Dizemos que alguém precisa ir à cidade comprar mantimentos, que
é necessário chover para que a pastagem cresça, que a insulina é necessária ao
diabético... mas essas não são necessidades lógicas. Ora, uma maneira de
entendermos a necessidade causal de maneira mais fraca parece ser a de a
identificarmos com o bom entrincheiramento (good
entrenchment) da regularidade dita causal.[19] Podemos definir o bom
entrincheiramento de uma regularidade causal como:
(i) sua
complementação com outros fatores causais do conjunto de fatores envolvidos[20] e
(ii) sua
complementação com as outras regularidades pressupostas pelo nosso sistema de
crenças.
Não
há nenhum entrincheiramento conceitual envolvendo o parar do ônibus diante da
igreja e o bater dos sinos, muito diversamente do bom entrincheiramento que
existe entre o ponteiro do relógio da igreja a marcar 12 horas e o repicar dos
sinos logo a seguir. Afinal, o martelo do relógio bate no sino fazendo esse
último tocar por causa de um complexo mecanismo que o liga ao relógio, o que
satisfaz a condição (i), enquanto o parar do ônibus defronte à Igreja não tem
nada a ver com esse mecanismo. Além disso, nosso sistema de crenças inclui leis
físicas que nos fazem pressupor correlações entre movimentos de objetos físicos
contíguos devidamente ajustados uns aos outros de modo a produzir o repicar dos
sinos, satisfazendo a condição (ii), enquanto a correlação entre o parar do
ônibus em frente à igreja e o repicar dos sinos não recebe nenhuma confirmação
por parte de nosso sistema de crenças. Quanto ao segundo exemplo, não há nenhum
entrincheiramento entre o crescimento dos cabelos e o nascimento dos dentes de
uma criança, pois não encontramos outros fatores causais associados, nem
encontramos razões biológicas pertencentes ao nosso sistema de crenças que
justifiquem uma expectativa de que essas duas coisas precisem se relacionar da
maneira especificada.
A diferença fica mais clara quando comparamos os casos acima com o bom
entrincheiramento que existe entre o raio e o trovão. Que o raio causa o trovão
é algo sabido desde a antiguidade, quando não havia ciência para explicá-lo.
Podemos começar daí. Esse é um bom exemplo, dado que fenômenos atmosféricos são
independentes da ação humana, o que os torna menos sujeitos a um grande número
de fatores intervenientes que demandem uma análise mais extensa. O bom
entrincheiramento se demonstra primeiro nos fatores causais acompanhantes.
Raios e trovões ocorrem sob um pano de fundo de nuvens tormentosas e geralmente
vento, chuva e escurecimento. Há também outras correlações, como o fato de que
quanto mais longe cai o raio, mais tempo levamos para perceber o trovão. Sempre
foi conhecida uma diversidade de correlações fenomênicas que em nosso sistema
de crenças reforçavam aquela relação de regularidade de modo a lhe conferir a
espécie de necessidade causal buscada.
Vejamos agora como é isso hoje, quando o bom entrincheiramento conceitual
desses fenômenos é muito mais detalhado conhecido. Sabemos que os raios
resultam de cargas elétricas provenientes do atrito causado pelos ventos entre
as partículas de água e gelo que formam as nuvens. As partículas mais pesadas e
com carga de gelo positiva se acumulam na parte inferior da nuvem, enquanto as
partículas mais leves e com carga negativa se concentram em sua parte superior.
Quando a diferença de cargas entre uma nuvem e outra ou entre a nuvem e o solo
é grande demais, o ar não é mais capaz de isolá-las e acontece a descarga
elétrica chamada de raio. O relâmpago é para nós hoje algo diferente do raio:
ele é a luz emitida pelo superaquecimento do ar pelo raio. Quando o ar é
superaquecido ele se expande rapidamente, produzindo uma onda de choque sonora
que ouvimos sempre após vermos a luz do relâmpago, uma vez que o som do trovão
caminha a 340 metros por segundo enquanto a luz do relâmpago se propaga de modo
praticamente instantâneo. Temos assim melhor e mais precisamente explicadas
relações de intensidade entre o relâmpago e o trovão, assim como a relação de
sucessão temporal do raio para o trovão. Podemos agora com muito mais razão
dizer que a relação entre o raio e o trovão é de necessitação em termos de um
grande entrincheiramento entre esses dois fatores causais e outros fatores
causais envolvidos junto ao nosso sistema de crenças da física e da química
aplicado às condições meteorológicas específicas.
A conclusão não se faz esperar. O que chamamos de necessitação causal
nada mais é do que o bom entrincheiramento entre os múltiplos fatores causais
envolvidos na relação ente causa e efeito e o sistema de crenças por nós aceito.
O erro dos filósofos racionalistas estava em confundir uma necessidade
empírica, a do bom entrincheiramento, com uma necessidade lógico-convencional.
E o erro de Hume está em não se ter dado conta da existência de uma
necessitação definida por um bom entrincheiramento conceitual,
tanto com os outros fatores envolvidos na relação causal quanto com nosso
sistema de crenças.
Um defensor do ceticismo humiano poderia não se dar por vencido. Eis como ele
poderia argumentar: Mesmo que seja intuitivo que o bom entrincheiramento pareça
conferir certo grau de necessitação a uma regularidade causal, dirá ele, como
as associações envolvidas no entrincheiramento também são regularidades, parece
que o mesmo argumento aplicado contra a necessidade causal de uma regularidade
particular deve poder ser aplicado ao conjunto total das regularidades ditas
entrincheirantes. Assim, embora a suspensão de uma ou outra regularidade possa
ser tornada improvável pela permanência de todas as outras regularidades
associadas, o mesmo não acontecerá no caso em que todas as
regularidades forem imediatamente suspensas, posto que não restará mais nada
para entrincheirá-las. Isso parece ser o caso se todos os fatores causais e
mesmo o próprio sistema de crenças que entrincheira uma certa regularidade
forem repentinamente suspensos! Por exemplo: suponha que daqui a cinco minutos
o mundo inteiro perca as suas regularidades. Isso parece logicamente
concebível. Afinal, o sistema como um todo não envolve necessitação, a não ser
aquela resultante de uma mera expectativa psicológica, o que nos leva de volta
ao problema humiano inicial.
A resposta que posso dar é que uma suspensão de todo nosso sistema de
regularidades não pode ser realmente concebida. A razão é similar à que foi
dada com respeito a um mundo sem mudança. Quando imaginamos uma suspensão de
todas as regularidades em nosso mundo, precisamos nos imaginar como se
estivéssemos fora do mundo, observando a sua completa perda de
regularidades. Mas para fazer isso estaremos nos fiando em um sistema de
crenças total, que inclui as regularidades e entrincheiramentos de nossas crenças
de fora do mundo observado. Mas como o mundo como um todo precisa incluir a nós
mesmos e o lugar de nossa avaliação, não somos de modo algum capazes de
conceber uma repentina desaparição completa de todas as regularidades,
posto que ela envolveria a nós mesmos como sujeitos da observação. Mas se não
somos capazes de imaginar o desaparecimento repentino do sistema completo de
regularidades que constitui nosso mundo, então não podemos imaginar o
desaparecimento da espécie de necessidade causal constituída pelo bom
entrincheiramento. Não podemos, pois, conceber como a espécie de necessidade
que constitui o bom entrincheiramento possa cair vítima de uma dúvida cética
radical.
9
Indução.
O
problema humiano da causalidade foi conjuntamente (e de forma algo equívoca)
aplicado a inferências ampliativas, o que gerou o ominoso problema da indução.
Inferências indutivas são aquelas que vão do observado para o não observado,
sendo capazes de ampliar nosso conhecimento. Por exemplo: “O sol sempre nasceu
a cada dia. Logo: o sol também nascerá amanhã”. Como garantir tais inferências?
Para Hume a solução parece se encontrar na admissão do princípio metafísico
da regularidade ou uniformidade da natureza.[21] Para o caso em questão o princípio
pode ser formulado como:
PF: O futuro será
semelhante ao passado.
Admitindo-se
essa versão do princípio da uniformidade o exemplo acima será justificado como
se segue:
O sol sempre nasceu a
cada dia
O futuro será semelhante
ao passado. (PF)
Logo: o sol nascerá
amanhã.
À
primeira vista a solução parece convincente. O problema surge quando nos
perguntamos pela justificação de um princípio da uniformidade como PF. Afinal,
como sabemos que o futuro deve ser semelhante ao passado? Essa é uma verdade de
fato, pois ela não é garantida, podendo ser negada sem contradição. Não temos
como garantir princípios de uniformidade, dado que eles não são verdades da
razão.
Podemos
com efeito recorrer a um raciocínio assegurador de PF, que seria o seguinte:
Os futuros do passado
sempre foram semelhantes aos seus próprios passados.
Logo: o futuro (do
presente) será semelhante ao passado.
O
problema é que esse argumento também é indutivo, o que apenas confirma a
circularidade da justificação: não faz sentido tentarmos justificar a indução
através de uma premissa que resulta ela própria de uma inferência indutiva.
A conclusão é que também quanto às inferências indutivas a conclusão de Hume é
extremamente pessimista: não temos como justificá-las. Mas como a ciência
empírica e mesmo o senso comum se fundamentam em inferências indutivas, a
conclusão é que não temos como justificar nosso conhecimento empírico. O que
nos faz crer que o sol nascerá amanhã resulta de uma cega fé animal resultante
de disposições psicológicas para a formação de hábitos.
10
Resposta.
Há
uma variedade de tentativas de solucionar o problema, todas elas prenhas de
dificuldades. A única salvação consiste a meu ver em refinar os princípios de
uniformidade de tal maneira que eles se tornem claramente analíticos.[22] Considere a seguinte formulação
minimalista do princípio:
PF1: Alguma coisa no futuro será
semelhante ao passado.
A
negação de PF1, “Nada no futuro será semelhante ao passado”, é incoerente. O
futuro, entendido como um todo, para ser o futuro de seu próprio passado,
precisa possuir alguma semelhança com ele. Considere o futuro Fw como o futuro
de um mundo possível w. Ele precisará ser distinguido do futuro de outros
mundos possíveis: w1, w2, w3... A única maneira pela qual isso pode acontecer é
no caso em que Fw é o futuro de seu passado Pw, que não que seja o futuro de
Pw1, nem de Pw2, nem de Pw3... Mas para que isso aconteça precisamos encontrar
em Fw um mínimo de semelhança com Pw. Essa versão minimalista de PF é plenaente
insuficiente. Mas já serve para demonstrar a impossibilidade de se conceber um
futuro que (como um todo) seja completamente diverso de seu passado.
Com base nisso uma versão mais adequada do
princípio de que o futuro será semelhante ao passado pode ser proposta. Aqui
está:
PF*: Quanto mais próximo
estiver o futuro de seu passado, mais tendencialmente semelhante a esse seu
passado ele precisará ser, tornando-se idêntico a ele no ponto de junção dos
dois (o presente).
Um
futuro, para ser o futuro se seu próprio passado, precisa ao menos tender a
assemelhar-se a ele na razão de sua proximidade dele, tornando-se ambos
indefectivelmente idênticos no momento presente.
Se considerarmos com suficiente atenção o que PF* nos diz, veremos que essa
versão do princípio é intuitiva e não resulta de nenhuma inferência indutiva.
Trata-se simplesmente de uma condição de possibilidade do conhecimento empírico
que, diversamente de um juízo sintético a priori, pode ser considerada uma
relação de ideias (analítica) que, além de ser intuitiva não pode ser negada
sem incoerência. Afinal, não faz sentido negar que na aproximação com o
presente, futuro e passado se tornem ao menos tendencialmente cada vez mais
semelhantes. Se um futuro pudesse não ser tendencialmente mais
semelhante ao seu passado tornando-se idêntico a ele no ponto de junção (no
presente), ele poderia ser totalmente diferente de seu passado. Mas nesse caso
ele não poderia ser reconhecido como sendo o futuro de seu próprio passado. Não
me é parece concebível, por exemplo,
colar o futuro de meu presente nesse mesmo lugar onde me encontro com
como ele era há quatro milhões de anos, quando eu sequer existia, e imaginá-lo
como sua continuação. Como já havia percebido Leibniz, “A natureza não dá
saltos” (Natura non facit saltus).
Ainda um testemunho dessa versão analítica do princípio de que o futuro deverá
ser semelhante ao passado é o fato de que quanto mais distante for o futuro,
menos provável será a inferência indutiva. Por exemplo: a inferência indutiva
de que o sol também nascerá no próximo dia daqui a 5 bilhões de anos é refutada
pela cosmologia atual, uma vez que por essa época ele já terá se transformado
em uma gigante vermelha, engolindo a terra.
11
Mundo
externo. Vejamos agora os argumentos pelos quais Hume foi
levado a rejeitar tanto o mundo externo independente quanto um eu permanente.
Comecemos com o tratamento que Hume dá às coisas do mundo externo. Como sabemos
que os objetos materiais externos existem separados de nós? A resposta seria
que as impressões de figura, extensão, cor e som advindas do mundo externo são
muito mais intensas (“mais fortes e violentas”), além de serem constantes,
coerentes e independentes da vontade. Mas isso é insuficiente. Afinal, nossas
dores e prazeres, assim como nossas paixões, mesmo sendo internas, são
igualmente intensas e involuntárias. Mesmo as percepções de máxima intensidade
das coisas que observamos com os olhos abertos e que tocamos e ouvimos não
passam de percepções que em sua natureza são idênticas às ideias, tornando
impossível para nós transpormos o abismo que as separa de um suposto mundo
externo.
Para Hume só existem três causas possíveis de nossa crença na existência de
coisas continuadas e distintas. Elas são os sentidos, a razão e
a imaginação. Contudo, os sentidos não nos podem atestar nem a
existência de uma substância entendida como um substrato não-perceptível das
ideias, nem a existência continuada das coisas quando não percebidas, pois
cessando a sensação os objetos deixariam de estar presentes aos sentidos.
Também a crença na existência continuada dos objetos não pode ser produzida
pela razão porque também as crianças e os rudes tem essa crença, apesar de não
possuírem a faculdade da razão. A conclusão de Hume é que a nossa crença na
existência de uma substância entendida como substrato incognoscível das ideias,
assim como nossa crença na existência continuada dos objetos do mundo externo
ao nosso redor, só pode ser resultado da imaginação. Para ele o
mesmo hábito psicológico que nos levou a crer na necessidade causal é aquele
que nos leva a imaginar que deva existir uma substância permanente como se ela
fosse observável. Eis seu argumento no Tratado:
Quando
nos acostumamos a observar uma constância em certas impressões, quando
descobrimos, por exemplo, que nossa visão do sol e do oceano retorna depois de
um período de ausência ou aniquilação, com as mesmas partes na mesma ordem que
da primeira vez, não somos mais capazes de considerar essas percepções
interrompidas como distintas (como de fato o são), mas pelo contrário, as
consideramos como individualmente as mesmas de modo a explicar sua semelhança.
Mas como a interrupção de sua existência é contrária à sua perfeita identidade
e isso nos faz julgar que a primeira impressão foi aniquilada e que a segunda
foi criada de novo, encontramo-nos algo perdidos, envolvidos em uma espécie de
contradição. Para nos livrarmos dessa dificuldade disfarçamos tanto quanto
possível a interrupção, antes removendo-a inteiramente, supondo que essas
percepções interrompidas sejam conectadas por uma existência real, à qual somos
insensíveis.[23]
Ou
seja: nossa crença na existência continuada dos objetos externos resulta apenas
de nossa imaginação! Nós temos a propensão de cobrir os vazios entre nossas
percepções imaginando que eles sejam preenchidos, como se existisse um sujeito
percipiente acompanhando os objetos quando não os percebemos. Assim, repetindo
um exemplo de Barry Stroud,[24] suponha que eu esteja com os olhos
abertos observando uma mesa de jantar com tudo o que se encontra sobre ela.
Suponha agora que eu feche os olhos por uns três segundos, depois eu os abro de
novo por alguns segundos e que eu repita essa operação várias vezes. Chamando
de A à percepção que tenho com os olhos abertos e F a percepção com os olhos
fechados, o resultado no curso do tempo será:
AAAFFFAAAFFFAAA...
Para
Hume minha imaginação é levada, por um irresistível impulso, a cobrir os tempos
vazios, disso resultando a ideia de uma continuidade da existência do objeto
percebido, como se a percepção tivesse a forma de:
AAAAAAAAAAAAAAA...
A
conclusão à qual ele chega é que nosso acesso objetivo é apenas às percepções e
nunca a um suposto mundo real externo.
12
Definição.
Não
é difícil desenvolver uma estratégia de raciocínio contra a ideia humiana de
que nós preenchemos os vazios entre as percepções imaginando que os objetos do
mundo externo permanecem existindo quando não os estamos observando. Aqui o
problema é com a ideia de permanência. A gramática lógica do
conceito de permanência dos objetos externos não parece ser precisamente aquela
sugerida por Hume. Quando o homem de Java ao voltar da caça pela primeira vez
observou que tanto a sua caverna, quanto sua mulher e seus filhos, permaneceram
onde estavam desde que ele saiu para caçar, ele não queria dizer que
eles permaneceram lá por recurso à imaginação, tal como Hume pretende. Ele
queria dizer apenas que os encontrou no mesmo lugar onde esperava encontrá-los.
Se for mais refinado ele dirá que se ele ou qualquer outra pessoa fossem
postados nas circunstâncias adequadas, ou seja, de frente à caverna, eles a
veriam e poderiam entrar nela, encontrando então sua mulher e filhos, e que
esse experimento poderia em princípio ser feito em qualquer tempo durante o
período em que ele estava caçando. Ele poderia dizer que se no tempo em que
estava caçando um visitante estivesse o tempo todo presente na caverna, ele
observaria tanto a caverna quanto a sua família. A objetividade empírica e
permanência daquilo que não está sendo observado não significa nada mais do
que uma garantida possibilidade de observação sob condições adequadas. Trata-se
aqui também da simples e verdadeira definição do que se
constitui a permanência de algo sem estar sendo observado, a qual foi ignorada
por Hume. Eis como podemos definir o conceito de permanência realmente usado:
Um objeto permanece (Df.):
quando sempre que condições adequadas para a sua percepção por um sujeito
perceptual forem dadas ele é percebido.
A
permanência é aqui definida como perceptibilidade (a qual se
dá através da satisfação conjunta dos critérios de realidade externa). Assim,
não precisamos pensar que o objeto precise estar presente para ser atestado
como permanente, uma vez que aquilo que entendemos por permanência é a
sua perceptibilidade virtualmente interpessoal sob
condições adequadas de percepção, o que só alcançamos através da experiência.
Dessa definição deduzimos que se existisse um observador em condições adequadas
disposto a observar o objeto por todo o tempo de sua existência, ele seria por
todo esse tempo observado. Mas isso não nos faz exigir que a permanência do
objeto dependa de que ele esteja sendo sempre observado, como Hume sugere. O
engano é proveniente do fato de que ele nos leva a imaginar uma espécie de
observador invisível que está sempre acompanhando a existência do objeto,
fazendo-nos confundir a ideia da permanência com a ideia desse acompanhamento.
A permanência das coisas quando não observadas, entendida como a garantida
possibilidade de observação, é algo aprendido por inúmeras e variadas
inferências indutivas anteriores acerca das regularidades do mundo em que
vivemos. Eis porque não precisamos, como Hume, imaginar algo parecido com um
olho mágico invisível, que está permanentemente percebendo as coisas enquanto
não as percebemos, para com isso nos certificarmos de sua permanência.
13
Critérios
de realidade. Que dizer dos argumentos de Hume contra
nosso conhecimento de um mundo externo que possui existência permanente, mesmo
na independência de ser percebido por nós? Na verdade, não há nada neles de tão
decisivo que não mereça sério questionamento. Consideremos o caso da existência
de um mundo externo. Hume considera os critérios de realidade externa que ele
mesmo expôs como sendo o da máxima intensidade perceptual e coerência, como
insuficientes. Já considerei esse ponto brevemente ao examinarmos o ceticismo cartesiano
e o argumento de Berkeley contra a existência da substância material. Quero
fazê-lo agora mais detalhadamente. O que disse antes, os critérios de realidade
externa expostos por Hume e Berkeley só parecem insuficientes enquanto forem
considerados isoladamente. Mas se supormos que as impressões humianas
satisfazem conjuntamente todos os critérios de realidade
externa apontados não só por Hume, mas também por Berkeley e mesmo por outros
filósofos que trataram do assunto, de Descartes a Frege, então seremos forçados
a admitir que estamos falando de um mundo de coisas externas (ver a distinção
entre os conceitos de realidade inerente e aderente introduzida no capítulo V,
sec. 4).
Para testar melhor essa hipótese, consideremos mais de perto os critérios mais
fundamentais:
1. Máxima
intensidade perceptual: a intensidade perceptual de uma percepção táctil ou
auditiva ou visual é incomparavelmente mais intensa do que a sua repetição pela
memória ou pela imaginação. Hume ofereceu como exemplo o caso de uma dor
extrema, como algo interno tão intenso quanto a percepção táctil ou visual. Mas
esse é um exemplo enganoso. Primeiro porque a dor não é uma ideia, mas uma
impressão. Depois porque a dor pode ser considerada uma percepção externa,
ainda que subjetiva (não interpessoalmente acessível), dado que localizada no
corpo físico de um ser humano. O mesmo pode acontecer com a fome intensa ou com
o desejo sexual.
2. Independência
da vontade: posso fazer o que quiser com os produtos de minha imaginação,
mas o que pertence ao mundo externo é independente do meu querer.
3. Intersubjetividade
virtual do que é apresentado à percepção. As percepções do que é
objetivamente real são passíveis de acesso intersubjetivo ou interpessoal. Se
uma pessoa se encontra só em um quarto ela sabe que os objetos ao seu redor são
reais em parte porque sabe, por experiência, que qualquer outra pessoa que
estivesse ali teria as mesmas percepções.
4. Seguimento de
leis naturais. Quando sonhamos, coisas absurdas podem acontecer: uma pedra
pode rolar montanha acima. Mas quando no mundo real soltamos um objeto pesado
no ar ele certamente cairá.
5. Coerência com
o contexto. Se uma pessoa acorda todas as manhãs em seu aposento e vai para
o trabalho, as coisas acontecem ao seu redor de forma coerente, de acordo com
as suas expectativas. Os próprios objetos externos são reconhecíveis por suas
propriedades e pelas relações entre elas e outros objetos. (Imagine que, como
em uma estória contada por Marco Polo,[25] uma pessoa tome uma droga que a faz
dormir e que ela é então levada para um jardim cheio de maravilhas e lá seja
acordada por alguns minutos, devendo então beber algo que a faça dormir outra
vez. Mais tarde ela acorda onde estava antes... Essa pessoa poderá encontrar
dificuldade em saber se o que vivenciou foi realidade ou se não estava apenas
sonhando ou delirando. A razão disso é a falta de continuidade e coerência
daquela experiência única com toda a sua história passada e presente.)[26]
6. Co-sensorialidade.
Em muitos casos não precisa estar presente, mas é indispensável às qualidades
primárias de Locke.
Não
sei se essa lista é completa e não sou capaz de estabelecer de ordená-la
melhor. Mas é claro que os primeiros cinco critérios são importantes, enquanto
o último é meramente suplementar. Além disso esses critérios precisam demandar
certo tempo para serem satisfeitos. Não é possível a satisfação imediata de
(3), (4) ou (5).
O importante é notar que individualmente
cada um desses critérios pode falhar sem que o mundo externo perca sua
realidade. Se tomarmos um ou dois desses critérios isoladamente isso não será
suficiente para considerarmos o que percebemos como pertencente a um mundo
externo. Quanto a (1) nós podemos conceber uma alucinação que pareça ao
indivíduo absolutamente real, como é relatado em casos de alucinose alcoólica.
Quanto a (2) há hoje meios pelos quais um tetraplégico pode aprender a
movimentar objetos externos pela simples ativação do córtex motor.. Quanto a
(3), em um sonho vemo-nos frequentemente conversando com outras pessoas cuja
presença deveria nos assegurar a realidade daquilo que estamos vivenciando.
Além disso, alucinações coletivas são possíveis por força da sugestão, por
exemplo, quando várias pessoas tomam juntas um mesmo alucinógeno. Quanto a (4),
existem sonhos realistas nos quais as leis naturais e expectativas seguidas são
perfeitamente possíveis. Quanto a (5), podemos imaginar um longo e tedioso
sonho que é perfeitamente coerente... Me recordo de um sonho que eu mesmo tive.
Eu precisava acordar cedo, o despertador tocou, eu continuei dormindo, mas
sonhei que tinha ido ao banheiro, lavei o rosto e escovava os dentes, até que
percebi que na verdade continuava deitado. Aqui as expectativas contextuais
foram preservadas, mas nada era real. O critério (6) de co-sensorialidade é
satisfeito facilmente nos sonhos.
A pergunta agora é a seguinte: podem todos esses critérios conjuntamente falhar
e mesmo assim o mundo que experienciamos como externo não ser real? Ou seja: a
questão é saber se, no caso em que todos esses critérios de realidade externa
estarem sendo completamente satisfeitos, ainda assim é possível que as coisas
que compõem a realidade externa não existam. A resposta, como veremos na
próxima seção é que o conceito de realidade que estivemos usando até agora é o
que chamei de realidade inerente (cap. V, sec. 4), que não se
aplica na explicação do que acontece em cenários céticos. O que acontece em
cenários céticos exige, como veremos, a aplicação de um conceito aderente
de realidade que é muito mais de ordem coerencial.
Note-se que a escolha da conjunção de todos os critérios acima é compatível com
a ideia de que a todos os nossos perceptos correspondem sense-data que
ocorrem no cérebro. Experimentos como os de reconstrução de imagens cerebrais
usando fMRI e modelos computacionais não deixam margem para dúvida: eles
reconstituem imagens visuais (os sense data) que ocorrem no cérebro
do observador de modo a torná-las visíveis para outros e até para ele mesmo![27] Contudo,
é possível argumentar que a satisfação conjunta de todos esses
critérios de realidade externa é o que basta para definir o
conteúdo percebido como pertencente ao mundo externo real, conquanto se entenda
aqui a palavra ‘realidade’ em seu sentido inerente e não aderente,
o que exclui os cenários céticos como um caso à parte (ver próxima seção). O
conteúdo mental, os conteúdos sensíveis (sense-data), são aqui
interpretados projetivamente em suas relações, como
componentes do que chamamos de realidade externa, sendo então definidos como
a parte percebida dela, na medida em que conjuntamente satisfizerem os
critérios de realidade externa já exaustivamente expostos. Estamos agora de
posse de uma paráfrase da sugestão hobbesiana de que a mente tem a tendência a
projetar para fora o que lhe é dado na independência da vontade.
Ainda uma objeção poderia ser a de que os dados sensíveis, mesmo que
interpretados projetivamente como propriedades das coisas externas, continuam
sendo fenômenos psicológicos internos, o que facilmente nos reconduz ao idealismo
de Berkeley ou ao ceticismo de Hume. Não me parece que essa conclusão seja
inevitável. Considere a comparação feita no capítulo anterior entre os dados
sensíveis e a pequena imagem projetada pela ocular de uma luneta. Se por um
lado, o que é projetado na retina é uma pequena imagem do disco lunar, por
outro o que realmente vemos é a própria superfície da Lua com seus mares e
crateras. De modo similar, quando olhamos para uma imagem em um espelho e a
vemos como simples imagem, ela se encontra lá no fundo do espelho; mas quando
nós a interpretamos projetivamente como aquilo que realmente vemos, ela é vista
como um conjunto de propriedades físicas que se encontram em frente ao espelho,
as quais não possuem mais nada de imagético. Não diremos nunca que a Lua é uma
imagem projetada por uma lente ocular, nem que as propriedades daquilo que
vemos espelhado não passam de imagens de espelho. Ora, por que então nos
recusaríamos a fazer uma distinção similar com relação aos sense data que
sabemos serem dados em nosso sistema nervoso e sua interpretação projetiva em
termos de propriedades externamente observadas?
Resta ainda explicar o que nos faz supor que a ideia mental possa ser
considerada fenomenalmente similar à qualidade física externa,
cujo nome usual é “aparência física”. Afinal, meus sense data de
um círculo vermelho é algo subjetivo! Como é possível saber que o círculo
vermelho que apontamos em uma superfície seja correspondente e de algum modo
mesmoo mesmo similar aos seus sense data? A resposta é que escolhemos
dizer assim porque, como foi notado no capítulo anterior, o conteúdo da
percepção tanto pode ser interpretado em termos de aparência física externa
quanto em termos de sense data. A imagem mental do disco lunar
repete as mesmas variações de luz e sombra do disco lunar real. Uma pessoa pode
hoje em dia comparar a aparência física de algo com a imagem dessa aparência
produzida em seu cérebro como sense data e reconstruída computacionalmente com
auxílio de fMRI de maneira a verificar objetivamente que ambas são similares.
Não podemos ao certo saber se outra pessoa que vê o círculo vermelho está tendo
a mesma experiência fenomenal que nós, mas podemos nos aproximar disso. É
verdade que seres vivos muito diversos tem acesso a qualidades
fenomenais diferentes. Mas suas relações, tanto internas (digamos,
diferentes tonalidades em uma mancha vermelha) quanto externas (as relações da
mancha com as outras coisas e com o observador), devem permanecer as mesmas
enquanto existirem. Uma águia diferencia melhor certas cores e tem visão mais
aguçada, adicionando propriedades ao fenômeno, mas sem com isso alterar as
propriedades fenomenais já distinguidas por nós, incluindo os critérios de
realidade através dos quais distinguimos o fenômeno como sense datum do
fenômeno como a aparência física externamente dada.
14
Ceticismo.
A
satisfação conjunta dos critérios de realidade externa recém apresentadas não é
imune às assim chamadas hipóteses céticas, como a de que a pessoa está
sonhando, de que ela está sendo enganada por um gênio maligno, ou de que ela
não passa de um cérebro na cuba ao qual é aplicado um programa encenando a vida
em um planeta inexistente chamado Terra...
Hipóteses céticas radicais são ao menos logicamente possíveis. Não é absurdo
pensar que eu possa certa noite acordar em um lugar estranho, rodeado por
pessoas com um aspecto bizarro com o qual não estou acostumado, meu próprio
corpo sendo curiosamente semelhante ao delas. Elas me explicam em bom português
que eu havia sido até aqui um cérebro na cuba ligado a um supercomputador no
qual corria um programa intitulado “Professor de filosofia no planeta terra”.
Me informam que esse é um experimento comum no planeta Ômega, feito para
estimular diversidade mental entre seus habitantes, mas que de agora em diante
eu poderei viver entre eles com tudo o que aprendi em minha vida no suposto
planeta Terra. Afinal, meu cérebro foi implantado no saudável corpo de um
habitante de Ômega. Embora talvez precisando de algumas seções de psicoterapia,
eu acabo me acostumando com a nova realidade, simplesmente pelo fato de ela
satisfazer todos os critérios de realidade externa acima explicitados, em
adição à coerência dos acontecimentos. Nesse caso, tanto agora quanto em minha
vida anterior, os critérios de realidade externa estavam sendo conjuntamente
satisfeitos! Mas ficou claro para mim que a única realidade externa
verdadeiramente real é a do habitante do planeta Ômega, enquanto a realidade
externa anterior era puramente ficcional. Conclusão: em cenários céticos os
critérios usuais de realidade externa (inerentes) não são suficientes para
possibilitar a distinção entre o mundo atual e o mundo ficcional.
A solução do problema não é difícil de ser encontrada. Basta distinguirmos
entre dois conceitos de realidade externa, que chamei de conceito inerente e aderente de
realidade (cap. V, sec. 4). Os critérios de realidade até agora expostos dizem
respeito ao conceito de realidade inerente. Nesse sentido, tanto a
minha vida anterior como cérebro na cuba quanto a minha vida atual como
habitante do planeta Ômega são perfeitamente reais, posto que ambas satisfazem
conjuntamente os critérios de realidade externa. Mas no sentido aderente
do conceito de realidade externa o mundo no qual eu era um cérebro na cuba não
era real, pois real é meu mundo em Ômega. Sou capaz de dizer isso porque o
conceito de realidade aderente só é aplicado em cenários céticos, quando
precisamos comparar duas realidades inerentes. Nesse caso, prefiro chamar de
aderentemente real ao mundo que inclui o outro como um produto ficcional de si
mesmo. No caso em questão, o mundo da terra, no qual vivi como cérebro na
cuba pode ser explicado como tendo sido claramente um produto ficcional do
mundo no qual vivo agora. Como consequência, o mundo no qual vivo agora é não
só inerentemente real, mas também aderentemente real, enquanto o mundo no qual
eu pensava estar vivendo como professor de filosofia no planeta terra não era
aderentemente real; ele era aderentemente irreal, mesmo que inerentemente real.
O critério aderente de realidade externa é a coerência de um mundo com
a hipótese cética. Enquanto nenhum cenário radicalmente cético ocorre, nós
assumimos que tanto o critério de realidade inerente quanto o critério de
realidade aderente estejam sendo satisfeitos; trata-se aqui de uma postulação
semântica fundamental que só admite dúvida na descoberta de um cenário
cético (cap. V, sec. 4). Assim, só no implausível caso do aparecimento de
cenários céticos seremos forçados a fazer a comparação e tomar uma decisão
quanto a qual dos mundos é aderentemente real. Assim, suponha que após ter me
acostumado com a vida em Ômega uma noite dessas eu acorde no sádico mundo do
planeta Zeta, no qual seres monstruosos me dizem que haviam feito uma
brincadeira de mau gosto e que o mundo do planeta Ômega também não existe, pois
eu verdade sou apenas um cidadão menos afortunado do planeta Zeta... Nesse caso
talvez eu acredite que sim, ou então terei dúvidas, suspenderei o juízo ou
(mais provavelmente) perca de vez a razão. Aqui mesmo o critério aderente de
realidade foi derrotado.
15
O
eu empírico. A maneira como Hume se liberta do eu dos
racionalistas, entendido como uma substância contínua, simples e sempre
idêntica a si mesma (a “alma”), segue a mesma linha. Para ele, quando voltamos
para nós mesmos, tudo o que percebemos é:
...um feixe ou coleção de
percepções diferentes, que se sucedem com rapidez inconcebível e se encontram
em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem rodar em nossas órbitas
sem variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa
visão. E todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança;
nem há na alma uma única potência que permaneça invariavelmente a mesma, sequer
por um instante. (...) Não há propriamente nenhuma simplicidade em um dado
tempo, nem identidade em tempos diferentes, qualquer que seja nossa propensão
natural em imaginar essa simplicidade e identidade. (...) As percepções
sucessivas são as únicas que constituem a mente...[28]
Aqui
também é para ele a imaginação que produz a ideia de que deva haver um sujeito
contínuo e simples, identificável com a alma.
Hume também rejeita a sugestão de Locke, segundo a qual a identidade do eu
depende da memória. Ao contrário, a memória deve pressupor o eu de modo a poder
identificá-lo como sendo o mesmo, sem falar no fato de que não podemos ter
memória de cada instante vivido. (Pense, por exemplo, na ausência de memória
que temos de nós mesmos enquanto dormimos).
Note-se que Hume estava querendo refutar o eu tradicional de Descartes e da
maioria dos filósofos de fé religiosa, ou seja, uma alma simples, imutável e
eterna, demostrando que não temos acesso experiencial a essa espécie de
sujeito. Contudo, ele também tinha uma concepção positiva do eu psicológico que
poucas vezes é lembrada. É quando ele campara o eu a uma república ou
coletividade (republic or commonwealth)...
...cujos diversos membros
encontram-se unidos por laços recíprocos de governo e subordinação, dando lugar
a outras pessoas que propagam a mesma república em incessante mudança das
partes. E assim como a mesma república individual pode mudar não só seus membros,
mas suas leis e constituição, da mesma maneira uma mesma pessoa pode mudar seu
caráter e disposição, tanto quanto suas impressões e ideias, sem perder sua
identidade.[29]
Em
meu juízo essa passagem contém o insight fundamental sobre o que podemos
substancialmente chamar de eu empírico. A sugestão de que o eu
possa ser comparado a uma comunidade pode ser interpretada como sendo a do eu
como algo que somos capazes de conhecer pela formação de uma autoimagem,
entendida como a ideia que fazemos de nós mesmos. Uma pessoa não pode ter
acesso imediato a tudo aquilo que caracteriza o seu eu, pois isso é
impossível: os traços característicos do eu são múltiplos e só aparece sob
circunstâncias específicas, as quais variam de acordo com cada traço. Mas ela
pode sempre aprender mais e mais acerca de si mesma. Ela pode ter a experiência
reflexiva de seus estados mentais e paralelamente a isso identificar suas
reações comportamentais diante de circunstâncias que se repetem. Ela também
pode comparar essa experiência com os comportamentos e supostos estados mentais
de outras pessoas em circunstâncias similares. E pode, comparativamente e aos
poucos aprender quais são as características de si mesma como sujeito, em
contraste com as de outras pessoas. A auto-imagem que a pessoa dessa maneira
cria deve ser a de uma classe de propriedades mentais cujos membros não
precisam ser definitivos e se encontram mais ou menos interconectados. Também
pode ser que uma pessoa forme uma auto-imagem distorcida de si mesma e isso
deve ser frequente. Nesse caso outras pessoas, analisando seu comportamento e
comparando com os próprios e os de outros, poderão chegar a conclusões mais
corretas do que as que ela tem sobre si mesma.
[1] A. J. Ayer: Hume (São Paulo: Loyola 1980), p.
11.
[2] Tratado da Natureza Humana (São Paulo: UNESP
2000). Traduzido do original inglês A Treatise of Human Nature
(1739-40).
[3] David
Hume: My own Life (1766) Econlib. Internet.
[4] Apud. A. J. Ayer: Hume (São
Paulo: Loyola 2003), p. 25.
[5] Tratado I,
1. 1. O algarismo romano indica o livro, o primeiro número indica a
parte e o segundo a seção.
[6] Tratado I, 1, 2.
[7] Tratado I, 1, 4.
[8] Tratado I,
1, 6.
[9] Ibid., I, 1, 6, 3.
[10] Berkeley: Tratado, Intr. 11.
[11] Tratado I, 1, 7.
[12] Frege:
Philosophy of Language (London: Duckworth)
1981, p. 229
[13] Ernst Tugendhat
& Ursula Wolff: Logische-Semantik Propädeutik (Stuttgart:
Reclam 1983), pp. 235-6.
[14] Uma investigação sobre o entendimento humano (An
Enquiry Concerning Human Understanding), IV, I, 20.
[15] Investigação IV, I, 22
[16] Investigação IV, I, sec. 23.
[17] Em alguns casos dizemos que eventos simultâneos são
causalmente relacionados. Mas só o fazemos em um sentido derivado.
[18] Tratado:
I, 3, 12, 9.
[19] Sobre o conceito geral de entrincheiramento ver P. F.
Strawson: Introduction to Logical Theory (London: Methuen
& Co. 1952), p. 245. Ver também W. V-O. Quine: “Necessary Truths” in The
Ways of Paradox (New York: Random House 1966).
[20] A condição (i) busca resgatar o que se encontra
envolvido na condição INUS, segundo a qual o que escolhemos chamar de causa é uma
“insuficiente, mas necessária parte de uma desnecessária, mas suficiente
condição”. Essa importante condição foi introduzida por J. L. Mackie em The
Cement of Universe: A Study of Causation (Oxford: Oxford University
Press 1980), cap. 3.
[21] Tratado,
I, 3, 6.
[22] Uma versão algo mais detalhada dessa solução foi
apresentada no capítulo 5 de meu livro intitulado Textos Esparsos de
filosofia teórica e prática (Belo Horizonte: Dialética 2002).
[23] Tratado I, 4, 2.
[24] Barry
Stroud, Hume (London: Routledge 1988), p. 101.
[25] Il Milione (Roma:
Mondadori 1982), XLI-XLIII, p. 45 ss. Embora o conto seja inverossimil, situações similares são facilmente
concebíveis.
[26]
Essa coerência deve incluir o seguimento das regularidades perceptuais no campo
perceptual. Por exemplo, quando movimento meus olhos ou quando me aproximo de
um objeto ocorrem mudanças bem determináveis em meu campo visual, o mesmo
ocorrendo com a audição e com o tato. Mas isso não precisa acontecer da mesma
forma na imaginação.
[27] Para uma versão sumária, ver o
artigo de Yasmin Anwar, “Scientists use brain imaging to reveal the movies in
our mind,” in Berkeley News, 9. 22. 2011.
[28] Tratado I,
4, 6.
[29] Tratado I,
4, 6.
Nenhum comentário:
Postar um comentário