Draft para o livro “Uma introdução histórica à filosofia”
XI
HUME: DESAFIOS CÉTICOS
A vida de um homem não é de maior importância para o universo do que a de
uma ostra.
Hume
Já
foi dito que a filosofia é um método para se inventar muitos problemas com base
em algumas poucas soluções. Caso esse método exista, David Hume (1711-1766) exemplificou-o
de maneira incomparável. A conclusão inaceitável de sua filosofia é que não há
razão para se acreditar nem na existência de um mundo externo, nem em sujeitos
humanos espirituais, nem, certamente, em Deus. Tudo o que a razão nos permite
atestar é a existência de bandos de ideias se sucedendo umas às outras.
O que importa, obviamente, não é essa conclusão absurda, mas os extraordinários
caminhos argumentativos que Hume percorreu para chegar a ela. Os desafios
céticos por ele desenvolvidos possuem a marca da profundidade, posto que ainda
hoje nos incitam a buscar respostas.
1
Vida.
A maior ambição de Hume era tornar-se famoso por sua
contribuição para o progresso do conhecimento, como ele mesmo, cândida e
honestamente admitiu. Quando jovem ele foi um grande amante da literatura. O
caráter imaginativo e desafiador de sua argumentação não deixa de nos lembrar
da criação artística. Nisso ele era oposto a Locke, uma pessoa com treinamento
científico, que preferia deter-se diante de qualquer resultado que lhe
parecesse absurdo demais para ser verdadeiro, fazendo exceção apenas para aquilo
que de algum modo vindicasse sua crença religiosa.
Hume veio de uma família de poucas posses, seu pai era advogado. Para ganhar a
vida ele precisou trabalhar para a nobreza da época nos mais diversos empregos,
até alcançar independência financeira. Ele nunca se casou. Mas era susceptível
às mulheres. A. J. Ayer conta que aos 23 anos, pouco depois de deixar a Escócia
para trabalhar como escrivão em Bristol, ele foi citado em um processo movido
por uma criada local por ter tido um filho ilegítimo com ela – uma acusação que
nunca foi provada.[1]
Hume passou a vida estudando. Sua obra principal, planejada desde a
adolescência e escrita durante três anos de recolhimento na França, foi o Tratado
da natureza humana,[2] publicado quando ele tinha
28 anos. Esse estudo é considerado, com
boas razões, a mais genial obra filosófica até hoje escrita em língua inglesa.
Para sua grande decepção, ela não encontrou acolhimento algum, além de três
resenhas hostis e desdenhosas. Só anos mais tarde, após a publicação de uma
história da Inglaterra em seis volumes, ele se tornou um escritor conhecido e
venerado (além de muito repudiado) na Inglaterra e na França. Essa última obra permitiu-lhe
viver para escrever.
As outras obras filosóficas mais importantes
de Hume, como as Investigações sobre o entendimento humano e a Investigação
sobre os princípios da moral, não foram muito mais do que importantes
exposições complementares de ideias já lançadas em sua obra principal.
Hume tentou ser aceito como professor nas
Universidades de Edimburg e Bristol, mas foi rejeitado por suspeita de ateísmo.
Nisso seus críticos tinham razão. Em seu livro intitulado Diálogos
sobre a religião natural, que teve o cuidado de não publicar em vida, ele
apresentou argumentos rejeitando a imortalidade da alma e sugerindo que só um
Deus cruel poderia ter criado um mundo tão injusto como o nosso. Ele não
aceitou a presença de um ministro religioso para consolá-lo no leito de morte.
Em sua “oração funeral para si mesmo” escreveu que não se sentia abatido, pois
afinal “ao morrer aos sessenta e cinco um homem não faz mais do que abreviar
alguns anos de enfermidade”.[3]
Hume era conhecido como uma pessoa bondosa, com um temperamento brando e agradável,
acompanhado de um inexaurível otimismo, o que torna verdadeiras as palavras de
seu amigo Adam Smith, que o considerava “um homem perfeitamente sábio e
virtuoso, tanto quanto o admite a frágil natureza humana”.[4]
2
Impressões
e ideias. Do mesmo modo que Locke, Hume
também queria estabelecer os limites do conhecimento humano de modo a obstar
uma metafísica e uma teologia destituídas de sentido. Mas, enquanto a obra de
Locke era construtiva, a obra de Hume foi desafiadoramente cética em sua
exploração dos pontos fracos das filosofias de seus antecessores. Enquanto
Locke tinha a humilde intenção de “arrumar a sala”, Hume era ambicioso o
suficiente para querer construir uma nova ciência da natureza humana com base
na reflexão introspectiva e observação comportamental, do mesmo modo que Newton
havia construído uma ciência do mundo natural resultante da experiência
externa. Ele via a ciência que pretendia estar construindo como ainda mais
importante, uma vez que somente conhecendo melhor nossa própria natureza
saberemos como é possível construir qualquer outra ciência!
Hume começou o Tratado reeditando sumariamente a teoria das
ideias de Locke. No lugar das ideias ele colocou o que chamou de percepções.
A palavra ‘percepção’ está simplesmente no lugar de qualquer conteúdo da mente
humana. As percepções dividem-se em impressões e ideias.[5] As ideias são cópias mnêmicas das
impressões sensíveis ou emocionais, imagens evanescentes das últimas, tanto no
pensar quanto no raciocinar. As impressões distinguem-se das ideias pela
vivacidade, força e violência com que atingem nosso pensamento e consciência,
como é o caso das sensações, paixões e emoções. Além disso, as impressões
possuem uma ordem e sucessão temporal que independe de nós mesmos. Ele admitiu
que por vezes as ideias possam ser mais intensas que as impressões, mas a
exceção apenas confirma a regra.
As impressões podem ser simples ou complexas. As
impressões simples são de coisas como a cor vermelha ou o calor. Mas as
impressões também podem ser complexas como, por exemplo, a da árvore ou da casa
que se encontra diante de nós. As ideias também podem ser simples e complexas.
As primeiras são meras cópias das impressões simples. Ideias
simples aparecem depois das impressões simples, como resultado da memória,
sendo, portanto, causadas por elas. Já as ideias complexas podem ser
decompostas em ideias simples.
Ideias complexas podem ser recordações ou ideias
da imaginação. As recordações são consideradas por Hume
cópias enfraquecidas de impressões complexas. Elas não dependem de nossa
vontade e se encontram estreitamente ligadas às impressões originais e a sua
ordem e coerência. As ideias da imaginação, porém, dependem de nossa vontade,
de modo que podemos construí-las e alterá-las a nosso bel prazer. Se associo a
ideia de sensação de um cavalo com a ideia de sensação da parte superior de um
corpo humano, eu formo a ideia da imaginação de um centauro, que depende de
minha vontade e não possui correspondente em uma ideia complexa de impressão.
Enquanto as ideias de recordações são mais fortes, as ideias da imaginação
costumam ser mais tênues.
Ao chamar as ideias recordadas de cópias das impressões Hume recai na velha
simplificação do empirismo inglês, que é o de reduzir conceitos a imagens. Pode
parecer que não existam cópias imagéticas de ideias auditivas, táteis e
gustativas, posto que elas não possuem formas espaciais, o que parece livrar
Hume do imagismo. Mas isso é incorreto, pois por imagem devemos entender aqui
qualquer reprodução ou réplica de impressões sensíveis. A memória do som de uma
explosão é como sua audição, só que muito enfraquecida, do mesmo modo que a
memória de uma dor ou de um certo gosto. Reduzir ideias a reproduções ou cópias
pode parecer razoável quando consideramos impressões visuais, auditivas e
táteis. Mas isso se torna problemático quando temos em mente ideias mais
complexas, como as de triângulo ou homem. Aqui precisaremos nos valer de
conceitos e a partir de Kant, como veremos, de regras conceituais.
Hume também possui um conceito semelhante ao das ideias de reflexão de Locke,
embora sua gênese seja diferente.[6] Para Locke as ideias de reflexão
resultam de uma espécie de introspecção sobre atividades da mente, como as do
pensamento, do juízo e da crença, formando então as ideias de reflexão de
pensamento, de juízo e de crença. Mas para Hume, primeiro temos as impressões
que atingem os sentidos, fazendo-nos perceber coisas como o calor e o frio, a
fome e a sede, o prazer e a dor. Depois a mente produz cópias dessas
impressões, que são as ideias de calor, frio, fome, prazer e dor. Essas ideias
continuam existindo, mesmo depois de cessadas as impressões. Mas quando essas
ideias retornam à mente, associamos a elas novas impressões, como as de desejo
ou aversão, esperança ou temor, que nada mais são do que impressões de
reflexão. Essas impressões podem ser copiadas sob forma de ideias com base
na memória ou imaginação.
O seguinte esquema resume as
diferentes espécies de percepções distinguidas por Hume:
de
sensação de reflexão da memória da imaginação
As
impressões de sensação simples ou complexas, assim como as ideias de reflexão,
são fatores causais na produção de mais tênues ideias da memória que são suas
cópias respectivamente simples ou complexas. E nossa imaginação combina ideias
de memória na produção das ideias complexas da imaginação.
3
Leis
da associação. Uma importante
descoberta de Hume diz respeito a suave força que faz nossas mentes se moverem
de uma ideia a outra por meio do que ele chamou de princípios de associação.
Eles são três: semelhança, contiguidade espaço-temporal e causalidade.[7] Uma ideia se associa a outra por
semelhança, por exemplo, a lembrança de minha casa me faz lembrar da casa do
meu avô. Essa última lembrança, por sua vez, por contiguidade espaço-temporal
me faz lembrar da igreja na praça à frente daquela casa. A mais importante é a
associação entre causa e efeito, por exemplo, quando alguém associa a vista de um
incêndio à destruição que ele irá produzir (causa para efeito), ou quando
associa a fumaça escura que sobe ao céu a um incêndio (efeito para a causa).
4
Substância
e modo. Hume tem algo a
dizer sobre as importantes ideias de substância e de modo (acidentes).
Para ele essas ideias se resumem a coleções de ideias simples que são unidas
pela imaginação e designadas por um nome convencionalmente estabelecido.[8] As coleções de ideias que designam
substâncias podem estar ligadas a algo desconhecido a que são supostamente
inerentes (o que não significa que essa algo deva ser, como em Locke,
incognoscível). Contudo, elas geralmente estão conectadas por estreitas e
inseparáveis relações de contiguidade e causalidade, de modo que sempre que
descobrimos uma nova qualidade simples com a mesma conexão com as restantes,
nós a adicionamos, enriquecendo o conceito. O exemplo por ele dado é o do ouro
como metal amarelo, maleável, com certo peso e fusibilidade, ao qual se veio a
adicionar a propriedade de solubilidade em uma solução ácida chamada de acqua
regia. Nesse último sentido a substância é entendida como uma espécie
natural, algo como a substância segunda de Aristóteles, analisada por Hume em
termos de um feixe de qualidades. Exemplos de modos são para ele as ideias
complexas de dança e de beleza.[9]
5
Universais. Como vimos, segundo Berkeley uma ideia geral nada mais
é do que uma ideia particular que é usada para representar quaisquer outras
ideias particulares da mesma classe.[10] Hume considera esse um
grande insight filosófico, que resolve o velho problema dos universais de
maneira particularista. Não existem ideias gerais no sentido de misturarem confusamente
ideias de coisas particulares muito diversas, podendo por isso representá-las.
Pelo contrário, nós usamos uma ideia particular bem definida, como a do
triângulo equilátero e associando essa ideia a palavra ‘triângulo’ tornamo-nos capazes
de reconhecer figuras semelhantes como sendo triângulos, como no caso de um
triângulo escaleno e isósceles. Hume acrescenta que nós somos capazes, por
costume, de apreender as semelhanças e identificar prontamente aquilo que se
parece com a ideia. Como ele escreveu:
Uma ideia particular se torna geral quando a
vinculamos a um termo geral – isto é, a um termo que, por uma conjunção
habitual, relaciona-se a muitas outras ideias particulares, evocando-as
prontamente à imaginação.[11]
Expondo
a sugestão de Hume de modo mais claro: por termos impressões sensíveis de
diferentes objetos que se assemelham em algum aspecto, formamos por costume, um
grupo de ideias-imagens idênticas a esses objetos, embora mais enfraquecidas,
contendo aquilo que nos despertou atenção. Por exemplo: aprendo primeiro a
associar à palavra ‘cão’ à ideia de um labrador (o cão do meu avô), mas por
hábito com o tempo aprendo a associar à palavra também um grupo de ideias-imagens
mais fracas, mas idênticas às suas impressões sensíveis, digamos, a de um
pastor alemão, de um poodle, de um chihuahua... Assim, quando vejo um novo cão,
digamos, um collie, sou capaz de imediatamente atualizar imagens semelhantes de
modo a reconhecê-lo pelas particularidades que me chamam atenção. Certamente
essas associações habituais dependem do aprendizado convencional da relação
entre a palavra e grupos de ideias semelhantes através de exemplos
interpessoalmente confirmados.
Hume também percebeu que podemos fazer o
mesmo com ideias muito complexas, as de governo, igreja, negociação e
conquista. Essas últimas, escreve ele, são ideias muito complexas e pouco
distintas, de modo que raramente somos capazes de tornar explícitas as ideias
simples que as compõem; mesmo assim somos capazes de atribuir a quem perde uma
guerra a ideia de negociação e não, digamos, a de conquista…[12]
A solução proposta por Hume é interessante embora insuficiente para resolver o
problema. Quando ele se perguntou por que certas ideias-imagens devem ser
escolhidas, ele recorreu a noções pragmáticas como as de utilidade e adequação
ao propósito. Mas não é por sua utilidade ou propósito que reconhecemos um
triângulo isósceles como sendo um triângulo. Hume deixou insuficientemente
explicado aquilo que faz com que sejamos capazes de unir uma certa variedade de
ideias-imagens em um mesmo grupo ou conjunto, considerando isso como que “uma
faculdade mágica da alma”.
O que faltava a um filósofo empirista como Hume, que concebia as ideias de modo
puramente imagético, era a noção de regra conceitual que só foi introduzida
mais tarde por Kant, que prescindiu de um discurso meramente imagético e
escreveu sobre conceitos em termos de habilidades governadas por regras.
Essas habilidades podem certamente incluir a produção de modelos imagéticos, mas
não se restringem a eles e nem sempre dependem deles. Kant notou que o conceito
de cão é uma regra através da qual somos capazes de delinear a imagem de um
cão... Mas o recurso a imagens não é sempre necessário: ao identificarmos o
número 56 como sendo o resultado da multiplicação de 7 por 8, não precisamos
recorrer à imagem alguma.
Ainda no século passado Michael Dummett entendeu o sentido de uma palavra
conceitual como uma regra que estabelece critérios para a sua
aplicação.[13] Ernst
Tugendhat chamou-a de regra de aplicação do termo geral,[14] a qual também pode ser abstraída da
experiência. Por exemplo: o termo geral ‘triângulo’ pode ser definido como uma
figura plana fechada, formada por três segmentos de reta que concorrem, dois a
dois, em três pontos diferentes do plano euclidiano. Se tacitamente dominamos
essa definição, então parece que possuímos uma regra para a construção de
qualquer triângulo, satisfaça ele a ideia-imagem de um triângulo equilátero,
retângulo, isósceles ou escaleno. Considerando que sempre que nos for dado um
triângulo, seja ele equilátero, isósceles ou escaleno... somos capazes de, com
base em nosso domínio implícito da regra definitória, produzir uma ideia-imagem
correspondente ao que nos for dado, explica-se porque somos capazes de
identificar triângulos no plano euclidiano. Aqui temos a regra conceitual que
nos permite produzir imagens que correspondem aproximadamente àquilo que um
termo conceitual está servindo para designar.
O que Berkeley e Hume realmente demonstraram foi que não somos capazes de
construir ideias como imagens abstratas, embora possuamos termos gerais que
associamos a imagens particulares e, sem dúvida, capacidades inatas para seu
aprendizado. Mas eles não demonstraram que não podemos associar termos gerais a
conceitos entendidos como regras de aplicação baseadas em critérios de
satisfação eventualmente imagéticos. Tais regras poderiam, por suposto, ser
capazes de produzir ideias-imagens em nossas mentes que funcionem como
reproduções identificadoras similares às impressões sensíveis realmente
percebidas na identificação de coisas no mundo real. A hipótese é a de que pela
correlação dessas imagens reproduzidas com conteúdos sensivelmente perceptíveis
teríamos satisfeito o critério para o reconhecimento das imagens sensíveis justificadora
da aplicação da regra de identificação de um termo geral, por exemplo, ‘triângulo’
no enunciado “Isso é um triângulo.”
6
A
forquilha humiana. Uma distinção
fundamental é a que Hume faz entre relações de ideias (relations
of ideas) e questões de fato (matters of fact).[15] As relações entre as ideias
(correspondentes aos juízos analíticos de Kant) são as que encontramos na
geometria, na álgebra e na aritmética. Exemplos são enunciados como:
1. Um círculo não é um
quadrado.
2. A soma dos ângulos internos
de um triângulo euclidiano é de 1800.
3. O quadrado da hipotenusa é
igual ao quadrado dos dois lados de um triângulo retângulo.
4. A multiplicação de três por
cinco é idêntica à divisão de trinta por dois.
Se
as relações de ideias não forem intuitivamente certas (como em 1), elas serão
ao menos demonstrativamente certas (como em 2, 3 e 4). Elas são necessariamente
verdadeiras porque a sua verdade não depende de nenhuma circunstância do mundo,
que é sempre mutável. A verdade das relações de ideias decorre da estrutura das
próprias ideias envolvidas, de modo que uma vez que conheçamos essas ideias
saberemos que as relações entre elas são verdadeiras.
Como os enunciados acima apenas afirmam as relações vigentes entre conceitos
mentais, eles também não podem ser falsos, sendo contraditório negá-los. Por
isso a soma dos ângulos internos de um triângulo é 1800 no
sistema da geometria euclidiana e isso continuará sendo uma verdade, mesmo em
um mundo no qual não existam triângulos euclidianos. Note-se que Hume não está
falando da aplicação de suas relações de ideias ao mundo real! Sabemos que onde
há gravidade o espaço físico não é euclidiano, de modo que nele a soma dos
ângulos de um triângulo é maior do que 1800. Isso torna falsa a
aplicação da geometria euclidiana a esse espaço. Mas como Hume está
considerando apenas as relações entre as ideias constitutivas do sistema
conceitual da geometria euclidiana, o enunciado acima se torna verdadeiro em
qualquer caso.
Diversamente do caso das relações de ideias, juízos sobre questões de fato
(correspondentes aos juízos sintéticos em Kant) dependem das circunstâncias
reais do mundo. Sua negação não conduz à contradição e sua verdade não pode ser
estabelecida por demonstração. Tanto sua afirmação quanto sua negação podem ser
em princípio verdadeiras. Exemplos são inúmeros. Eis alguns:
1.
Estou de
pé.
2.
O dia está
chuvoso.
3.
A terra é
redonda.
4.
O calor
dilata os metais.
5.
O sol
nascerá amanhã.
Considere
o último enunciado: “O sol nascerá amanhã.” Estamos bem certos de que o sol
nascerá amanhã, mas não é impossível que algum evento catastrófico inesperado impeça
isso de acontecer. Negar que o sol nascerá amanhã não resulta em contradição.
Esse também é o caso, obviamente, dos outros enunciados acima.
Hume utilizou a sua distinção entre relações de ideias e questões de fato como
uma arma contra a metafísica, a chamada forquilha humiana, segundo a qual as
ideias metafisicas resultam da confusão entre relações de ideias e questões de
fato. É curioso fazermos aqui uma comparação antecipadora entre Hume e Kant. A
base da filosofia de Kant consiste na suposta descoberta de juízos
sintéticos a priori, que embora sendo sobre questões de fato, são
necessariamente verdadeiros e universais. Neles as ideias-conceitos não se
encontram apenas logicamente relacionadas, dado que esses juízos nos dizem algo
sobre o mundo. Eles são verdades necessárias sobre matérias de fato, posto que
são sintéticos: mesmo assim, eles devem ser impostos pela mente humana à
natureza como verdades necessárias e universais.
Para Hume o sintético a priori de Kant seria entendido como uma ficção
metafísica que não passa pela sua forquilha. Diante da Crítica da Razão
Pura, um livro fundamentado em princípios sintéticos a priori, Hume certamente
reagiria repetindo a frase que aparece no final de sua Investigação
sobre o entendimento humano:
Esse livro contém algum raciocínio abstrato sobre
quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões
de fato ou existência? Não. Então para o fogo com ele, pois outra coisa não
pode encerrar senão sofismas e ilusões.
No
próximo capítulo veremos que apesar da admissão de que a filosofia teórica de
Kant possui um grande número de insights de imensa importância, há razões para
se pensar que seu projeto geral não tenha logrado atravessar ileso a forquilha
humiana.
7
Ceticismo
causal. O mais famoso
argumento de Hume diz respeito à natureza da causalidade e, por extensão, à
possibilidade de inferência indutiva. Para ele a causalidade é fundamental,
pois:
Todo raciocínio concernente à matéria de fato parece
ser fundado na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação nós vamos
além das evidências da memória e dos sentidos.[16]
Em
um exemplo seu, uma pessoa perdida em uma ilha deserta encontra um relógio e
conclui que não está só. Essa inferência resulta da conhecida relação causal
entre um artefato e a existência de um usuário. Embora muitas inferências sejam
de fato causais, essa generalização de Hume tem a muitos parecido
excessiva. Por exemplo: sei que o abacate que vejo na feira tem um grande
caroço. Essa inferência se baseia no fato de ter aberto outros abacates e de
ter encontrado neles sempre grandes caroços. Mas essa não é uma inferência
fundada em uma relação de causa e efeito, mas de contiguidade entre o abacate e
seu caroço. Essa é uma grave deficiência, pois exclui as regularidades
sincrônicas, ou seja, as que devem permanecer no tempo para que o mundo possua
estrutura.
Apesar dessa deficiência é sobre esse pressuposto que Hume produziu a sua
famosa análise da causalidade. De acordo com a tradição racionalista de
filósofos como Descartes, Spinoza e Leibniz, e mesmo no caso de um empirista
como Locke, a causa é razão suficiente para o seu efeito, ou seja, toda
causa logicamente necessita seu efeito, do mesmo
modo que 2 + 2 necessita ter como resultado o número 4. Hume discordava.
Afinal, a relação de causa e efeito é questão de fato, dependendo da
experiência. Como ele escreveu, Ao ver pela primeira vez a água, Adão não
poderia saber que esta tinha o poder causal de afogá-lo, nem ao ver pela
primeira vez o fogo poderia saber que este tinha o poder causal de queimá-lo.[17]
Ao analisar a relação causal Hume encontrou três critérios perceptuais para a
identificação da relação entre causa e efeito. Eles são:
1. Contiguidade
espaço-temporal,
2. A causa vem antes do efeito,
3. Deve haver união constante
entre causa e efeito.
Com
efeito, quando uma bola de bilhar se choca contra outra e a faz mover, há
uma contiguidade no espaço e no tempo; além disso, o movimento
da primeira bola vem antes do movimento da segunda[18]; finalmente, a mesma
coisa acontece sempre que uma bola de bilhar nas
circunstâncias adequadas se choca contra outra. Essa análise pode ser definida
como a teoria da causalidade como regularidade. Ela está de acordo
com o empirismo humiano, uma vez que as propriedades (1), (2) e (3) são as que
a mente pode retirar de suas impressões sensíveis. Embora existam objeções
contra essa análise, elas parecem a princípio contornáveis. A questão
importante que Hume então se coloca é: “cadê a experiência da necessidade
causal?” Parece óbvio que a necessidade causal pretendida pelos filósofos
racionalistas não tem lugar como objeto de experiência.
A única maneira que Hume encontrou para supostamente garantir a necessidade causal
foi assumir um princípio da uniformidade da natureza. Se a natureza
for uniforme então o futuro deve se assemelhar ao seu passado. Se o
futuro for semelhante ao seu passado, então o que vale para o passado tem boa
chance de também valer para o futuro: assim, como no passado sempre que uma
bola de bilhar ao se chocar com outra ela fazia a outra se mover, então quando
uma bola de bilhar se chocar com uma outra no futuro essa outra também haverá
de se mover! Essa resposta parece à primeira vista bem razoável. Só que Hume
encontra nela uma dificuldade incontornável. Ele começou por notar que nada nos
garante que a natureza deva ser uniforme, de modo que o futuro deva
assemelhar-se ao seu passado, uma vez que essa também é uma questão de fato.
Podemos perfeitamente imaginar que o futuro venha a ser diferente do
passado. Como ele notou, é possível que da próxima vez que a neve cair os seus
flocos queimem como fogo e que as árvores floresçam em pleno inverno... O
princípio da uniformidade da natureza nem pode ser provado nem é intuitivamente
garantido. Como ele escreveu:
A suposição de que o futuro se assemelha ao passado
não é fundada em nenhuma espécie de argumento, sendo antes derivada
inteiramente do hábito, que nos determina a esperar, para o futuro, a mesma
sequência de objetos com a que já estamos acostumados.[19]
Não
é, pois, a razão, que nos leva a acreditar que o futuro será semelhante ao
passado, mas um simples hábito ou costume.
Mas se é assim, então como explicar nossa convicção de que existe uma
necessidade causal? A solução de Hume foi observar que quando a mente percebe
uma união espaço-temporal regular entre dois eventos, um ocorrendo antes do
outro, ela forma um hábito ou costume através do qual sempre que ela
experiencia o primeiro evento ela cria a expectativa de que o outro o
seguirá. Mas esse hábito nos confunde, fazendo-nos pensar que existe uma
relação de necessitação de um evento-causa para um
evento-efeito, quando na verdade não temos experiência alguma disso. Somos
levados a acreditar que se trata de uma necessidade causal quando na verdade
tudo o que experienciamos é uma simples expectativa psicológica de que
após a causa virá o efeito. Como nossa expectativa é apenas de ordem
psicológica, ela não é racional, mas meramente emocional.
Sob a suposição de que todo o nosso conhecimento de questões de fato se baseia
em relações causais, o resultado ao qual Hume chegou é desalentadoramente
cético. Como não há necessidade causal, nossa convicção de que no futuro as
relações causais permanecerão as mesmas é destituída de qualquer fundamento
racional. Dizemos, por exemplo, que o fogo aquece e que a água apaga o fogo.
Essas são relações causais. Contudo, como não existe uma verdadeira necessidade
causal, nada garante que no futuro o fogo continuará a aquecer ou que a água
será capaz de apagá-lo. Nada no passado garante ou probabiliza coisa alguma no
futuro. Na formação de nossas expectativas sobre questões de fato, tanto do
senso comum quanto da ciência empírica, somos como insetos voando em direção à
luz, determinados apenas pela nossa natureza instintiva.
8
Entrincheiramento. Essas famosas conclusões céticas podem ser
problematizadas. Uma importante dificuldade na análise da causalidade como
regularidade feita por Hume, por ele mesmo notada, é que os critérios por ele
propostos não parecem suficientes. Eles não explicam por que regularidades
entre eventos contíguos que se dão por pura coincidência não são causais.
Considere, por exemplo, o caso de um ônibus que todos os dias às 12 horas para
diante de uma igreja e que logo a seguir os sinos começam a repicar. Há aqui
contiguidade espaço-temporal... Além disso há uma união constante: isso ocorre
todos os dias. Mesmo assim sabemos que não há relação causal alguma entre uma
coisa e outra. Outro exemplo é o do recorrente nascimento dos cabelos nos bebês
antes do crescimento dos dentes de leite. Ninguém estaria disposto a dizer que
o crescimento dos cabelos é a causa do nascimento dos dentes. Aparentemente,
aquilo que está faltando nesses exemplos é um nexo de necessidade entre causa e
efeito. O parar do ônibus não necessita o badalar dos sinos, nem o crescimento
dos cabelos necessita o nascimento dos dentes.
O problema não me parece tão desanimador. Tentando um caminho menos pessimista
para lidar com ele, gostaria de apelar para uma relação de necessidade mais
fraca do que a relação de necessidade lógica pressuposta por Hume e defendida
pelos racionalistas. Dizemos que alguém precisa ir à cidade comprar
mantimentos, que é necessário chover para que a pastagem cresça, que a insulina
é necessária ao diabético... mas essas não são necessidades lógicas. Ora, uma
maneira de entendermos a necessidade causal de maneira mais fraca parece ser a
de a identificarmos com o bom entrincheiramento (good
entrenchment) da regularidade dita causal.[20] Podemos definir o bom
entrincheiramento de uma regularidade causal como:
(i) sua
complementação com outros fatores causais do conjunto de fatores causais envolvidos[21] e
(ii) sua
complementação com as outras regularidades pressupostas pelo sistema de crenças
como um todo.
Não
há nenhum entrincheiramento conceitual envolvendo o parar do ônibus diante da
igreja e o bater dos sinos, muito diversamente do bom entrincheiramento que
existe entre o ponteiro do relógio da igreja a marcar 12 horas e o repicar dos
sinos logo a seguir. Afinal, tanto o ponteiro quanto o martelo do relógio que bate
no sino fazendo esse último tocar se encontram entrelaçados em um complexo
mecanismo causal que satisfaz a condição (i). Mas a parada do ônibus defronte à
Igreja não tem nada a ver com esse conjunto de interconexões causais. Além
disso, nosso sistema de crenças inclui leis físicas que nos fazem pressupor
correlações entre movimentos de objetos físicos contíguos devidamente ajustados
uns aos outros de modo a produzir o repicar dos sinos, satisfazendo a condição
(ii), enquanto a correlação entre o parar do ônibus em frente à igreja e o
repicar dos sinos não recebe nenhuma confirmação por parte de nosso sistema de
crenças. Quanto ao segundo exemplo dado, não há nenhum entrincheiramento entre
o crescimento dos cabelos e o nascimento dos dentes de uma criança, pois não
encontramos outros fatores causais associados, nem encontramos razões
biológicas pertencentes ao nosso sistema de crenças que justifiquem a
expectativa de que essas duas coisas precisem se relacionar da maneira
especificada.
A conclusão não se faz esperar: o que chamamos de necessitação causal nada
mais é do que o bom entrincheiramento entre os múltiplos fatores causais
envolvidos na relação ente causa e efeito e o sistema de crenças por nós aceito.
Além disso a relação é proporcional: quanto mais forte for o entrincheiramento,
mais forte nos parecerá a necessitação causal. E quanto mais bem entrincheirada
for a relação causal, mais provável ela nos parecerá. Segundo esse raciocínio,
o erro dos filósofos racionalistas estava em confundir uma necessidade empírica
– a do bom entrincheiramento – com uma necessidade lógico-conceitual. E o erro
de Hume teria sido o de não se ter dado conta da existência de uma necessitação
que fosse definida por um bom entrincheiramento conceitual,
tanto com os outros fatores envolvidos na relação causal quanto com nosso
sistema de crenças.
9
Indução.
O problema humiano da causalidade foi conjuntamente (e
de forma algo equívoca) aplicado a inferências ampliativas, o que gerou o
ominoso problema da indução. Inferências indutivas são aquelas que vão do
observado para o não observado, sendo capazes de ampliar nosso conhecimento.
Por exemplo: “O sol sempre nasceu a cada dia. Logo: o sol também nascerá
amanhã”. Como garantir tais inferências? Para Hume a solução também aqui parece
se encontrar na admissão de um princípio metafísico da regularidade ou
uniformidade da natureza.[22] Para o caso em questão, o princípio
pode ser formulado como:
PF:
O futuro será semelhante ao passado.
Admitindo-se
essa versão do princípio da uniformidade, o exemplo acima será justificado como
se segue:
O sol sempre nasceu a cada dia
O futuro será semelhante ao passado. (PF)
Logo: o sol nascerá amanhã.
À
primeira vista a solução parece convincente. O problema surge quando nos
perguntamos pela justificação de um princípio da uniformidade como PF. Afinal,
como sabemos que o futuro deve ser semelhante ao passado? Essa é uma verdade de
fato, pois ela não é garantida, podendo ser negada sem contradição. Não temos
como garantir princípios de uniformidade, dado que eles não são verdades da
razão.
Podemos
com efeito recorrer a um raciocínio assegurador de PF, que seria o seguinte:
Os futuros do passado sempre foram semelhantes aos
seus próprios passados.
Logo: o futuro (do presente) será semelhante ao (seu) passado.
O
problema é que esse argumento também é indutivo, o que apenas confirma a circularidade
da justificação: não faz sentido tentarmos justificar a indução através de uma
premissa que resulta ela própria de uma inferência indutiva.
O que daí resulta é que também no que concerne às inferências indutivas a
conclusão de Hume é extremamente pessimista: não temos como justificá-las. Mas
como a ciência empírica e mesmo o senso comum se fundamentam em inferências
indutivas, a conclusão é que não temos como justificar nosso conhecimento
empírico. O que nos faz crer que o sol nascerá amanhã resulta de uma cega fé
animal resultante de disposições psicológicas para a formação de hábitos.
10
Resposta.
Há uma variedade de tentativas de solucionar o
problema da indução, todas elas prenhas de dificuldades. A única salvação me
parece ser a de refinar os princípios de uniformidade de tal maneira que eles
se tornem claramente analíticos. Considere a seguinte formulação minimalista do
princípio:
PF1: Alguma coisa no futuro será
semelhante ao passado.
A
negação de PF1, “Nada no futuro será semelhante ao passado”, é incoerente. O
futuro, entendido como um todo, para ser o futuro de seu próprio passado,
precisa possuir alguma semelhança com ele. Considere o futuro Fw como o futuro
de um mundo possível w. Ele precisará ser distinguido do futuro de outros
mundos possíveis: w1, w2, w3... A única maneira pela qual isso pode acontecer é
no caso em que Fw é o futuro de seu passado Pw e não o futuro de Pw1, nem de Pw2,
nem de Pw3... Mas para que isso aconteça precisamos encontrar em Fw um mínimo
de semelhança com Pw. Essa versão minimalista de PF é obviamente insuficiente.
Mas já serve para tornar plausível a impossibilidade de se conceber um futuro
que (como um todo) seja completamente diverso de seu próprio passado. E serve
para tornar plausível que um princípio analítico condicionado a uma relação
entre qualquer futuro e seu próprio passado é possível. Essa relação é
conceitual, mas também serve à aplicação de seus conceitos tanto quanto, digamos,
sabendo que hoje é um dia já sei por razões analíticas, que hoje é o primeiro
dia do resto de minha vida.
Com base nisso uma versão mais adequada do
princípio de que o futuro será semelhante ao passado pode ser proposta. Aqui
está:
PF*: Quanto mais próximo estiver o futuro de seu
passado, mais tendencialmente semelhante a esse seu passado ele precisará ser,
tornando-se idêntico a ele no ponto de junção entre os dois, ou seja, no
presente.
Um
futuro, para ser o futuro se seu próprio passado, precisa ao menos tender a
assemelhar-se a ele na razão de sua proximidade dele, tornando-se ambos
inevitavelmente idênticos no momento presente.
Se considerarmos com suficiente atenção o que PF* nos diz, veremos que essa
versão do princípio é intuitiva e não resulta de nenhuma inferência indutiva.
Trata-se simplesmente de uma condição de possibilidade do conhecimento empírico.
Mas essa condição, diversamente de um juízo necessário sobre uma questão de
fato (um juízo sintético a priori), pode ser considerada uma relação de ideias
(analítica) que, além de ser intuitiva não pode ser negada sem incoerência.
Afinal, não faz sentido negar que na aproximação com o presente, futuro e
passado se tornem ao menos tendencialmente cada vez mais semelhantes. Se um
futuro pudesse não ser tendencialmente mais semelhante ao seu
passado, tornando-se idêntico a ele no ponto de junção – no presente – ele poderia
ser considerado como totalmente rompido com o seu passado. Mas nesse caso ele
não poderia ser reconhecido como sendo o futuro de seu próprio passado. Como já
havia percebido Leibniz, “a natureza não dá saltos” (natura non facit saltus).
A inevitabilidade de PF* pode ser
multiplamente exemplificada. Considere as mudanças resultantes do aquecimento
de um pedaço de cera a partir de T0. Primeiro temos a mudança do estado sólido
para o estado líquido em T1. Com maior aquecimento temos a mudança da cera
líquida para a cinza de carbono em T2. Se essa cinza for aquecida a muitos
milhões de graus Celsius teremos, enfim, a dissolução dos átomos de carbono e a
formação de um plasma de partículas subatômicas em T3. Eis um esquema mostrando
como as mudanças tipicamente pressupõem maior permanência quanto mais parciais
e mais breves elas forem:
Entidades
físicas:
Curso do tempo:
T0 T1: T2: T3:
Cera (sólida): XXXXXX
Cera (líquida): XXXXXXXXXX
Átomos de carbono (cinza): XXXXXXXXXXXXXXXX
Partículas subatômicas (plasma): XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Note-se
como as regularidades sincrônicas se perdem no curso do tempo. Do momento T0 ao
momento T1 pressupõe-se como permanente a cera e os seus constituintes
atômicos, que são átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio, além dos
constituintes subatômicos. Já do momento T1 ao momento T2 mantém-se como
pressuposto permanente apenas os átomos de carbono e seus constituintes
subatômicos. Finalmente, do momento T1 ao momento T3 tudo o que permanece são
certos constituintes subatômicos. A mudança é gradual aqui em sua perda de
regularidades.
Ainda um testemunho da versão analítica do princípio de que o futuro deverá ser
semelhante ao passado é o fato de que quanto mais distante for o futuro, menos
provável será a inferência indutiva. Por exemplo: a inferência indutiva de que
o sol também nascerá no próximo dia daqui a 5 bilhões de anos é refutada pela
cosmologia atual, uma vez que por essa época ele já terá se transformado em uma
gigante vermelha, engolindo a terra.[23]
11
Mundo
externo. Vejamos agora os argumentos
pelos quais Hume foi levado a rejeitar tanto o mundo externo independente
quanto um eu permanente. Para ele só existem três causas possíveis de
nossa crença na existência de coisas continuadas e distintas. Elas são os sentidos,
a razão e a imaginação. Contudo, os sentidos não
nos podem atestar nem a existência de uma substância entendida como um
substrato não-perceptível das ideias, nem a existência continuada das coisas
quando não percebidas, pois cessando a sensação os objetos deixariam de estar
presentes aos sentidos. Também a crença na existência continuada dos objetos
não pode ser produzida pela razão porque mesmo as crianças e os rudes tem essa
crença, apesar de não possuírem a faculdade da razão. A conclusão de Hume foi
que a nossa crença na existência de uma substância entendida como substrato
incognoscível das ideias, assim como nossa crença na existência continuada dos
objetos do mundo externo ao nosso redor, só pode ser resultado da imaginação.
Para ele o mesmo hábito psicológico que nos levou a crer na necessidade causal
é aquele que nos leva a imaginar que deva existir uma substância permanente
como se ela fosse observável. Eis seu argumento no Tratado:
Quando nos acostumamos a observar uma constância em
certas impressões, quando descobrimos, por exemplo, que nossa visão do sol e do
oceano retorna depois de um período de ausência ou aniquilação, com as mesmas
partes na mesma ordem que da primeira vez, não somos mais capazes de considerar
essas percepções interrompidas como distintas (como de fato o são), mas, pelo
contrário, as consideramos como individualmente as mesmas de modo a explicar
sua semelhança. Mas como a interrupção de sua existência é contrária à sua
perfeita identidade e isso nos faz julgar que a primeira impressão foi
aniquilada e que a segunda foi criada de novo, encontramo-nos algo perdidos,
envolvidos em uma espécie de contradição. Para nos livrarmos dessa dificuldade
disfarçamos tanto quanto possível a interrupção, antes removendo-a
inteiramente, supondo que essas percepções interrompidas sejam conectadas por
uma existência real, à qual somos insensíveis.[24]
Ou seja: nossa crença na existência continuada dos objetos externos
resulta apenas de nossa imaginação! Nós temos a propensão de cobrir os vazios
entre nossas percepções imaginando que eles sejam preenchidos, como se
existisse um sujeito percipiente acompanhando os objetos quando não os
percebemos. Assim, repetindo um exemplo de Barry Stroud,[25] suponha que eu esteja com os olhos
abertos observando uma mesa de jantar com tudo o que se encontra sobre ela.
Suponha agora que eu feche os olhos por uns três segundos, depois eu os abro de
novo por mais alguns segundos e que eu repita essa operação várias vezes. Chamando
de A à percepção que tenho com os olhos abertos e F a percepção com os olhos
fechados, o resultado no curso do tempo será, digamos:
AAAFFFAAAFFFAAA...
Para
Hume minha imaginação é levada, por um irresistível impulso, a cobrir os tempos
vazios, disso resultando a ideia de uma continuidade da existência do objeto
percebido, como se a percepção tivesse a forma de:
AAAAAAAAAAAAAAA...
A
conclusão a que ele chega é que nosso acesso objetivo é apenas às percepções e
nunca a um suposto mundo real externo.
12
Permanência
e perceptibilidade. Não é difícil
desenvolver uma estratégia de raciocínio contra a ideia humiana de que nós precisamos
preencher os vazios entre as percepções por imaginarmos que os objetos do mundo
externo permanecem existindo quando não os estamos observando. Aqui o problema
é com a ideia de permanência. A ideia que fazemos da permanência
dos objetos externos pode bem não ser a sugerida por Hume. Quando o homem de
Java ao voltar da caça observou que tanto a sua caverna, quanto sua mulher e
seus filhos, permaneceram onde se encontravam quando ele saiu para
caçar, ele não queria dizer que eles permaneceram lá por recurso à imaginação,
tal como Hume pretende. Ele queria dizer apenas que os encontrou no mesmo lugar
onde esperava encontrá-los. Se for mais refinado ele dirá que se ele ou
qualquer outra pessoa fossem postados nas circunstâncias adequadas, ou seja, à
frente da caverna, eles a veriam e poderiam entrar nela, encontrando então sua
mulher e filhos, e que esse experimento poderia em princípio ser feito em
qualquer tempo durante o período em que ele estava caçando. Ele poderia mesmo dizer
que se no tempo em que estava caçando um visitante estivesse o tempo todo
presente na caverna, ele observaria tanto a caverna quanto a sua família. A
objetividade empírica e permanência daquilo que não está sendo observado não
significa nada mais do que uma garantida possibilidade de observação
sob condições adequadas. Trata-se aqui, ao que parece, também da
verdadeira definição do que se constitui a permanência de algo
que não está sendo observado, a qual foi ignorada por Hume. Eis como podemos
definir o conceito de permanência que efetivamente usamos:
Um objeto permanece (Df.): quando sempre que
condições adequadas para a sua percepção por um sujeito perceptual forem dadas,
ele é percebido.
A
permanência é aqui definida como perceptibilidade experiencialmente
certa ou garantida (a qual se dá através da satisfação conjunta dos
critérios de realidade externa). Assim, não precisamos imaginar que o objeto se
encontra o tempo todo acessível aos sentidos para ser atestado como permanente,
uma vez que aquilo que entendemos por permanência é apenas a sua perceptibilidade
virtualmente interpessoal sob condições adequadas, o que
só alcançamos através da experiência. Dessa definição deduzimos que se existisse
um observador em condições adequadas disposto a observar o objeto por todo o
tempo de sua existência, ele seria por todo esse tempo observado. Mas isso não
nos faz exigir que a permanência do objeto dependa de que ele esteja sendo
sempre observado, como Hume sugere. O engano é proveniente do fato de que ele nos
induz a confundir a ideia da permanência do objeto com a ideia de seu
acompanhamento perceptual.
A permanência das coisas quando não observadas, entendida como a garantida
possibilidade de observação, é algo aprendido por inúmeras e variadas
inferências indutivas anteriores acerca das regularidades do mundo em que
vivemos. Eis porque não precisamos, como Hume, imaginar algo parecido com um
olho mágico invisível, que está permanentemente percebendo as coisas enquanto
não as percebemos, para com isso nos certificarmos de sua permanência.
13
Critérios
de realidade. Que dizer dos
argumentos de Hume contra nosso conhecimento de um mundo externo que possui
existência permanente, mesmo na independência de ser percebido por nós? Não
parece haver nada neles de tão decisivo que não mereça questionamento.
Consideremos o caso da existência de um mundo externo. Hume considerou os
critérios de realidade externa que ele mesmo expôs como sendo os da máxima
intensidade perceptual e coerência, como insuficientes. Já considerei esse
ponto brevemente ao examinar o ceticismo cartesiano e o argumento de Berkeley
contra a existência da substância material. Quero fazê-lo agora mais
detalhadamente. Como tenho insistido em dizer, os critérios de realidade
externa expostos por Hume e Berkeley só parecem insuficientes enquanto forem
considerados isoladamente. Mas se supormos que as impressões humianas satisfazem conjuntamente todos
os critérios de realidade externa apontados não só por Hume, mas também por
Berkeley e mesmo por outros filósofos que trataram do assunto, de Descartes a
Frege, então seremos forçados a admitir que estamos falando de um mundo de
coisas externas ao menos na exclusão dos cenários céticos (ver a distinção
entre os conceitos de realidade inerente e aderente introduzida no capítulo V,
sec. 4).
Para testar melhor essa hipótese, consideremos agora em maior detalhes os critérios
mais fundamentais:
1. Máxima intensidade perceptual: a
intensidade perceptual de uma percepção táctil ou auditiva ou visual é
incomparavelmente mais intensa do que a sua repetição pela memória ou pela
imaginação. Hume ofereceu como exemplo o caso de uma dor extrema, como algo
interno tão intenso quanto a percepção táctil ou visual. Mas esse seria um contraexemplo
enganoso. Primeiro porque a dor não é uma ideia, mas uma impressão. Depois
porque a dor pode ser considerada uma percepção externa, ainda que subjetiva
(não interpessoalmente acessível), dado que localizada no corpo físico de um
ser humano. O mesmo pode acontecer com a fome intensa ou com o desejo sexual.
2. Independência da vontade: posso fazer o
que quiser com os produtos de minha imaginação, mas o que pertence ao mundo
externo é independente do meu querer.
3. Intersubjetividade virtual do que é
apresentado à percepção. As percepções daquilo que é objetivamente real são
passíveis de acesso interpessoal. Se uma pessoa se encontra só em um quarto ela
sabe que os objetos ao seu redor são reais porque sabe, por experiência, que
qualquer outra pessoa que estivesse ali sob as mesmas condições teria as mesmas
percepções.
4. Seguimento de leis naturais. Quando
sonhamos, coisas absurdas podem acontecer: uma pedra pode rolar montanha acima.
Mas quando no mundo real soltamos um objeto pesado no ar ele certamente cairá.
5. Coerência com o contexto. Se uma pessoa
acorda todas as manhãs em seu aposento e vai para o trabalho, as coisas
acontecem ao seu redor de forma coerente, de acordo com as suas expectativas.
Os próprios objetos externos são reconhecíveis por suas propriedades e pelas
relações entre elas e outros objetos. (Imagine, lembrando uma estória contada
por Marco Polo, que uma pessoa sem saber toma uma poção que a faz dormir e
que ela é então levada para um jardim cheio de maravilhas, onde acorda por
alguns minutos até que tenha de beber algo que a faz dormir outra vez. Mais
tarde ela acorda onde se encontrava antes... Essa pessoa poderá ter dificuldade
em saber se o que vivenciou foi realidade ou se não estava apenas sonhando ou
delirando. A razão disso é a falta de continuidade e coerência daquela
experiência única com toda a sua história passada e presente.)
6. Co-sensorialidade. Em muitos casos não precisa
estar presente, mas é distintiva das qualidades primárias de Locke.
Retiro
essa lista da filosofia moderna, de Descartes a Kant, sem estabelecer conexões
entre seus itens. Contudo, é claro que os primeiros cinco critérios são fundamentais,
enquanto o último é meramente suplementar.
O importante é notar que individualmente
cada um desses critérios pode falhar sem que o mundo externo perca sua
realidade. Se tomarmos um ou dois desses critérios isoladamente isso não será
suficiente para considerarmos o que percebemos como pertencente a um mundo
externo. Quanto a (1) nós podemos conceber uma alucinação que pareça ao
indivíduo absolutamente real, como é relatado em casos de alucinose alcoólica.
Quanto a (2) há hoje meios pelos quais um tetraplégico pode aprender a
movimentar objetos externos pela simples ativação do córtex motor... Quanto a (3),
em um sonho vemo-nos por vezes conversando com outras pessoas cuja presença
deveria nos assegurar a realidade daquilo que estamos vivenciando. Quanto a
(4), existem sonhos realistas nos quais as leis naturais e expectativas
seguidas são perfeitamente possíveis. Quanto a (5), podemos imaginar um longo e
tedioso sonho que é perfeitamente coerente... (Me recordo de um sonho que eu
mesmo tive. Eu precisava acordar cedo, o despertador tocou, eu continuei
dormindo, mas sonhei que tinha ido ao banheiro, lavei o rosto e escovava os
dentes, até que percebi que na verdade continuava deitado. Aqui as expectativas
contextuais foram preservadas, mas nada era real.) O critério (6) de co-sensorialidade
é satisfeito facilmente nos sonhos.
A pergunta agora é a seguinte: podem todos esses critérios conjuntamente falhar
e mesmo assim o mundo que experienciamos como externo não ser real? Ou seja: a
questão é saber se, no caso em que todos esses critérios de realidade externa
estarem sendo completamente satisfeitos, ainda assim é possível que as coisas
que compõem a realidade externa não existam. A resposta, como veremos na
próxima seção é que o conceito de realidade que estivemos usando até agora é o de
realidade inerente (cap. V, sec. 4), que não se aplica na
explicação do que acontece em cenários céticos. O que os cenários céticos
exigem, como veremos, é o uso de um conceito aderente de realidade, que
é muito mais de ordem coerencial.
Note-se que a escolha da conjunção de todos os critérios acima é compatível com
a ideia de que a todos os nossos perceptos correspondem a sense-data que
ocorrem no cérebro. Experimentos como os de reconstrução de imagens cerebrais
usando fMRI e modelos computacionais não deixam margem para dúvida: eles
reconstituem imagens visuais (os sense data) que ocorrem no cérebro
do observador de modo a torná-las visíveis para outros e até mesmo, em
princípio, para o próprio observador! (Ver
cap. IX, sec. 8) Contudo, é bastante plausível pensar que a satisfação conjunta de
todos esses critérios de realidade externa é o que basta para definir o
conteúdo percebido como pertencente ao mundo externo real, conquanto se entenda
aqui a palavra ‘realidade’ em seu sentido inerente e não aderente,
o que exclui os cenários céticos como um caso à parte (ver próxima seção). O
conteúdo mental, os conteúdos sensíveis (sense-data), são aqui
interpretados projetivamente em suas relações, como
componentes do que chamamos de realidade externa, sendo então definidos como
a parte percebida dela, na medida em que conjuntamente satisfizerem os
critérios de realidade externa já exaustivamente expostos. Essa seria a versão
mais precisa da sugestão hobbesiana de que a mente tem a tendência a “projetar
para fora” o que lhe é dado na independência da vontade.
Ainda uma objeção poderia ser a de que os dados sensíveis, mesmo que
interpretados projetivamente como propriedades das coisas externas, continuam
sendo fenômenos de ordem mental, o que facilmente nos reconduz ao idealismo de
Berkeley ou ao ceticismo de Hume. Essa conclusão parece, porém, evitável. Considere
a comparação feita no capítulo anterior entre os dados sensíveis e a pequena
imagem projetada pela ocular de uma luneta. Se por um lado, o que é projetado
na retina é uma pequena imagem do disco lunar, por outro o que realmente vemos
é a própria superfície da Lua com seus mares e crateras. De modo similar, considere
o caso de um vaso de flores postado diante de um espelho. Quando olhamos para
sua imagem no espelho e a vemos como simples imagem, ela se encontra lá no
fundo do espelho, sua distância sendo duplicada; mas quando nós a interpretamos
projetivamente como aquilo que realmente vemos, o que antes era uma imagem é
agora visto como um conjunto de propriedades físicas que se encontram em frente
ao espelho. Não diremos nunca que as propriedades daquilo que vemos espelhado
não passam de imagens de espelho, assim como não diremos que a Lua é uma imagem
projetada por uma lente ocular. Ora, por que então nos recusaríamos a fazer uma
distinção similar com relação aos sense data que sabemos serem
dados em nosso sistema nervoso e sua reinterpretação projetiva em termos de
propriedades externamente observadas?
Resta ainda explicar o que nos faz supor que a ideia mental possa ser
considerada fenomenalmente similar à qualidade física externa,
cujo nome usual é “aparência física”. Afinal, meus sense data de
um círculo vermelho são subjetivos! Como é possível saber que o círculo vermelho
que apontamos em uma superfície seja correspondente e de algum modo similar aos
seus sense data? A resposta é que escolhemos dizer assim porque, como
foi notado no capítulo anterior, o conteúdo da percepção tanto
pode ser interpretado em termos de aparência física externa quanto em termos
de sense data, conquanto guardem a mesma estrutura. A imagem mental
do disco lunar repete estruturalmente as mesmas variações de luz e sombra do
disco lunar real. Uma pessoa poderia em princípio comparar a aparência física
de algo com a imagem dessa aparência produzida em seu cérebro como sense data e
reconstruída computacionalmente com auxílio de fMRI, de maneira a verificar
objetivamente e mesmo interpessoalmente que ambas são similares ponto a ponto.
Não podemos ao certo saber se outra pessoa que vê o círculo vermelho está tendo
a mesma experiência fenomenal que nós, mas podemos nos aproximar disso. É
verdade que seres vivos muito diversos tem acesso a qualidades
fenomenais diferentes. Mas suas relações, tanto internas (digamos,
diferentes tonalidades em uma mancha vermelha) quanto externas (as relações da
mancha com as outras coisas e com o observador), devem permanecer as mesmas
enquanto existirem. Outros seres vivos podem ter visão mais aguçada,
adicionando propriedades ao fenômeno, mas sem com isso alterar as propriedades
estruturais já mencionadas.
14
Ceticismo.
A satisfação conjunta dos critérios de realidade
externa recém apresentadas não é imune às assim chamadas hipóteses céticas,
como a de que a pessoa não passa de um cérebro na cuba ao qual é aplicado um
programa encenando a vida em um planeta inexistente chamado Terra...
Hipóteses céticas radicais são ao menos logicamente possíveis. Não é absurdo
pensar que eu possa certa noite acordar em um lugar estranho, rodeado por
pessoas com um aspecto bizarro com o qual não estou nem um pouco familiarizado,
meu próprio corpo sendo curiosamente semelhante ao delas. Elas me explicam em
bom português que eu havia sido até aqui um cérebro na cuba ligado a um
supercomputador no qual corria um programa intitulado “Professor de filosofia
no planeta terra”. Me informam que esse é um experimento comum no planeta
Ômega, feito para estimular diversidade mental entre seus habitantes, mas que
de agora em diante eu poderei viver entre eles com tudo o que aprendi em minha
vida no suposto planeta Terra. Afinal, meu cérebro foi implantado no saudável
corpo de um habitante de Ômega. Digamos que após algumas seções de psicoterapia
eu acabe me acostumando com a nova realidade, simplesmente pelo fato de ela
satisfazer todos os critérios de realidade externa acima explicitados. Nesse
caso, tanto agora quanto em minha vida anterior, os critérios de realidade
externa continuam sendo conjuntamente satisfeitos! Ambos os mundos, o do presente
e o do passado, são inerentemente reais. Mas acabou se tornando claro que a
única realidade externa verdadeiramente real é a do habitante do planeta Ômega,
enquanto a realidade externa anterior era puramente ficcional. Conclusão: em
cenários céticos os critérios usuais de realidade externa (inerentes) não são
suficientes para possibilitar a distinção entre o mundo atual e o mundo
ficcional.
A solução do problema não é difícil de ser encontrada e já foi indicada no
capítulo V (sec. 4). Basta distinguirmos entre os conceitos de realidade inerente e aderente.
Os critérios de realidade até agora expostos dizem respeito ao conceito de
realidade inerente. Nesse sentido, tanto a minha vida anterior como
cérebro na cuba quanto a minha vida atual como habitante do planeta Ômega são
perfeitamente reais, posto que ambas satisfazem conjuntamente os critérios de
realidade externa. Mas no sentido aderente do conceito de realidade
externa o mundo no qual eu era um cérebro na cuba não era real, pois real é meu
mundo em Ômega. Sou capaz de dizer isso porque o conceito de realidade aderente
só é aplicado em cenários céticos, quando precisamos comparar duas realidades
inerentes. Nesse caso, prefiro chamar de aderentemente real ao mundo que
inclui o outro como um produto ficcional de si mesmo. No caso em questão, o
mundo da terra, no qual vivi como cérebro na cuba pode ser explicado como tendo
sido claramente um produto ficcional do mundo no qual vivo agora. Como
consequência, o mundo no qual vivo agora é não só inerentemente real, mas
também aderentemente real, enquanto o mundo no qual eu pensava estar vivendo
como professor de filosofia no planeta terra não era aderentemente real, mesmo
que fosse inerentemente real.
O critério aderente de realidade externa é a coerência do mundo em
consideração com a hipótese cética. Enquanto nenhum cenário radicalmente
cético ocorre, nós assumimos que tanto o critério de realidade inerente quanto
o critério de realidade aderente estão sendo satisfeitos; trata-se aqui de uma postulação
semântica fundamental, que só admite questionamento na descoberta de um
cenário cético (cap. V, sec. 4). Assim, só no implausível caso do aparecimento
de cenários céticos seremos forçados a fazer a comparação e tomar uma decisão
quanto a qual dos mundos é aderentemente real.
15
O
sujeito empírico. A maneira como
Hume se libertou do eu dos racionalistas, entendido como uma substância
contínua, simples e sempre idêntica a si mesma (a “alma”), segue a mesma linha.
Para ele, quando voltamos para nós mesmos, tudo o que percebemos é:
...um feixe ou coleção de percepções diferentes, que
se sucedem com rapidez inconcebível e se encontram em perpétuo fluxo e
movimento. Nossos olhos não podem rodar em nossas órbitas sem variar nossas
percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão. E todos os
nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança; nem há na alma uma
única potência que permaneça invariavelmente a mesma, sequer por um instante.
(...) Não há propriamente nenhuma simplicidade em um dado tempo, nem identidade
em tempos diferentes, qualquer que seja nossa propensão natural em imaginar
essa simplicidade e identidade. (...) As percepções sucessivas são as únicas
que constituem a mente...[26]
Aqui
também é para ele a imaginação que produz a ideia de que deva haver um sujeito
contínuo e simples, identificável com a alma.
Hume também rejeitou a sugestão de Locke segundo a qual a identidade do eu
depende da memória. Ao contrário, a memória deve pressupor o eu de modo a poder
identificá-lo como sendo o mesmo, sem falar no fato de que não podemos ter
memória de cada instante vivido. (Pense, por exemplo, na ausência de memória
que temos de nós mesmos no tempo em que estávamos dormindo).
Note-se que Hume estava querendo refutar o eu tradicional de Descartes e da
maioria dos filósofos de fé religiosa, ou seja, uma alma simples, imutável e
eterna, demostrando que não temos acesso experiencial àquela espécie de
sujeito. Contudo, ele também esboçou uma concepção positiva do eu psicológico
que poucas vezes é lembrada. É quando ele camparou o eu a uma república ou
coletividade (republic or commonwealth)...
cujos diversos membros encontram-se unidos por laços
recíprocos de governo e subordinação, dando lugar a outras pessoas que propagam
a mesma república em incessante mudança das partes. E assim como a mesma
república individual pode mudar não só seus membros, mas suas leis e
constituição, da mesma maneira uma mesma pessoa pode mudar seu caráter e
disposição, tanto quanto suas impressões e ideias, sem perder sua identidade.[27]
Em
meu juízo essa passagem contém o insight fundamental sobre o que podemos em um
sentido verdadeiramente apropriado chamar de eu empírico. Chamá-lo-ei
de eu comunitário no sentido de que se trata de uma comunhão de estados
mentais geralmente disposicional. Ele será outra vez considerado quando
tratarmos do Eu transcendental de Kant e do Eu puro de Fichte, uma vez que ele
pode servir de base para o entendimento e refutação dessas estranhas entidades
metafísicas.
[1] A. J. Ayer: Hume (São Paulo: Loyola 1980), p.
11.
[2] A Treatise of Human Nature (1739-40). Trad. port. Tratado
da Natureza Humana (São Paulo: UNESP 2000).
[3] David Hume: My own Life (1766)
Econlib. Internet.
[4] Apud. A. J. Ayer: Hume (São
Paulo: Loyola 2003), p. 25.
[5] Tratado I, 1. 1. O algarismo romano indica o livro, o primeiro número indica
a parte e o segundo a seção.
[6] Tratado I, 1, 2.
[7] Tratado I, 1, 4.
[8] Tratado I, 1, 6.
[9] Tratado I, 1, 6, 3.
[10] Tratado Intr. sec. 12.
[11] Tratado I, 1, 7, 10.
[12] Tratado I, 1, 7.
[13] Frege: Philosophy
of Language (London: Duckworth) 1981, p. 229
[14] Ernst Tugendhat & Ursula
Wolff: Logische-Semantik Propädeutik (Stuttgart: Reclam 1983),
pp. 235-6.
[15] An Enquiry Concerning Human
Understanding (1748),
IV, I, 20. Trad. port. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os
princípios da moral (Unesp 2024).
[16] Investigação IV, I, 22
[17] Investigação IV, I, sec. 23.
[18] Em alguns casos dizemos que eventos
simultâneos são causalmente relacionados. Mas nós o fazemos em um sentido
derivado, quando eles podem ser desacoplados, como no caso da locomotiva que
empurra os vagões, causando seu movimento.
[19] Tratado: I, 3, 12, 9.
[20] Sobre o conceito geral de
entrincheiramento ver P. F. Strawson: Introduction to Logical
Theory (London: Methuen & Co. 1952), p. 245.
[21] A condição (i) busca resgatar o que se encontra
envolvido na condição INUS, segundo a qual o que escolhemos chamar de causa é
uma “insuficiente, mas necessária parte de uma desnecessária, mas suficiente
condição”. Essa importante condição foi introduzida por J. L. Mackie em The
Cement of Universe: A Study of Causation (Oxford: Oxford University
Press 1980), cap. 3.
[22] Tratado, I, 3, 6.
[23] Uma versão mais detalhada (e
ainda assim insuficiente) dessa solução foi apresentada no capítulo 5 de meu
livro intitulado Textos Esparsos de filosofia teórica e prática (Belo
Horizonte: Dialética 2002). A razão pela qual eu a apresento aqui é que outras
soluções são muito menos plausíveis. Cf. Richard Swinburne (ed.): The
Justification of Induction (Oxford: Oxford University Press 1974).
[24] Tratado I, 4, 2.
[25] Barry Stroud, Hume (London:
Routledge 1988), p. 101.
[26] Tratado I,
4, 6.
[27] Tratado I,
4, 6.
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