draft para o livro Introd. hist. fil.
III
ARISTÓTELES E A METAFÍSICA
Aristóteles (384-322 a.C.) teve uma vida mais difícil que a de Platão.
Ele nasceu em Estagira, na Macedônia, filho do médico da corte de Amintas III,
avô de Alexandre o Grande. Aos 18 anos foi para Atenas e passou os próximos vinte
anos estudando junto a Platão. Após a morte do último não lhe herdou o lugar na
academia, o que o fez deixar Atenas. Foi então para Assos, onde se converteu em
conselheiro e amigo do Tirano Hermias, casando-se mais tarde com sua sobrinha
Pítias. Três anos depois ele passou algum tempo na ilha de Mitilene, onde fez
observações sobre a vida de animais e plantas acompanhado de seu amigo Teofrasto,
um botânico. Só para dar um exemplo de suas pesquisas: foi ele quem teve a
ideia de fazer um furo no ovo fertilizado de uma galinha para observar o
coração do embrião batendo, descrevendo pela primeira vez a origem de uma
criatura viva. Seu conhecimento de história natural teve influência direta nos
conceitos que desenvolveu em sua metafísica, como os de potencialidade e
atualidade, matéria e forma. Depois disso foi chamado à Pela, onde viveu por
oito anos, tendo sido preceptor de Alexandre.
Depois vieram os anos de sorte.
Com a Conquista de toda a Grécia por Alexandre ele pôde voltar para Atenas e
fundar o Liceu, que se tornou o primeiro instituto científico da história,
recebendo consideráveis fundos do governo. Chegaram até a construir um
zoológico. Nos dez anos seguintes ele trabalhou como um mouro, desenvolvendo a
sua filosofia na forma pela qual hoje a conhecemos e tendo ainda encontrado
tempo para fazer dois filhos com Herphylis, a serva macedônia com a qual se
juntou após a morte de Pítias. Mesmo assim as coisas não parecem ter sido tão
fáceis. Conta-se que uma vez ele escreveu a Alexandre reclamando por este ter
condenado à morte um filósofo inocente. A resposta teria sido: “Eu também mato
filósofos”. Aristóteles deve ter engolido em seco.
Com a inesperada morte de Alexandre, vitimado pela
febre aos 32 anos, o céu veio abaixo. Livres do domínio macedônio, os
atenienses decidiram vingar-se de estrangeiros como Aristóteles. Como a Sócrates,
acusaram-no de impiedade (desconsideração pelos deuses), o que significava pena
de morte. Para salvar sua vida ele teve de exilar-se em Assos, adoecendo e
vindo a morrer meses depois aos 62 anos de idade. Platão morreu dormindo aos 80
anos.
Aristóteles escreveu uma obra
vasta opinando, certo ou errado, sobre quase tudo o que era investigado na
época. Foi o primeiro sistematizador da lógica através de sua teoria do
silogismo. Sua contribuição para a metafísica foi imensamente influente.
Platão dividiu as pessoas entre
os “amigos das ideias” e os “gigantes da terra”. Os amigos das ideias eram
pessoas razoáveis como ele mesmo, que buscavam um mundo de coisas perfeitas e
imutáveis: as ideias. Eram idealistas geralmente versados nas matemáticas. Já
os gigantes da terra eram barulhentos e só acreditavam naquilo que podiam ver e
tocar com as próprias mãos e até mesmo espremer... Para eles só é real aquilo
que conseguem manipular e que resiste ao toque.[1] Não creio que Platão tivesse
em mente Aristóteles ao escrever isso, mas o fato é que este último se
distinguia do mestre pelo naturalismo e por uma forte tendência empirista, mesmo
que com eventuais recaídas platônicas.[2]
1
Metafísica. A Metafísica é uma coleção de quatorze livros
que costumam tratar do que Aristóteles chamava de filosofia primeira ou ciência
buscada. Somente dois séculos e meio mais tarde Andrônico de Rhodes, que pela
primeira vez publicou as obras de Aristóteles em Roma, teve a ideia de chamar o
conjunto dos escritos relacionados à filosofia primeira de metafísica, o que significa
“depois da física” ou “para além da física”. A razão foi possivelmente casual:
na ordem dos escritos os manuscritos vinham depois da física, que Aristóteles
chamava de filosofia segunda. Mas foi um acaso feliz, uma vez que “meta” também
pode significar “além de”, “acima de”, e o objeto da filosofia primeira era para
Aristóteles superior ao de todas as outras ciências.
O que foi chamado de Metafísica
é na verdade uma barafunda confusa, anotações de aulas, textos especulativos, desconexos
e incoerentes, que não cessaram de quebrar as cabeças dos intérpretes nos
últimos dois mil anos, de sorte que não é possível fazer uma exposição não-controversa
desses escritos. É possível, contudo, encontrar um fio condutor nas
caracterizações que ele fez de sua filosofia primeira. Eis as quatro mais conhecidas:
1. A investigação do ser enquanto ser,
2. A investigação da substância,
3. A investigação da causas e
princípios primeiros,
4. A investigação de Deus e da
substância supra-sensível.
Essas definições se encontram inter-relacionadas: A investigação do ser
enquanto ser é primariamente a investigação na substância (a Arché
aristotélica). Substâncias supra-sensíveis como Deus são investigadas pela
teologia, as quais são também causas primeiras.
A substância, as causas e princípios primeiros
e Deus como substância supra-sensível são tópicos pertencentes ao estudo da
metafísica, de modo que dizer que a metafísica os investiga não constitui uma
definição do que ela seja. Assim, resta apenas (1): “A investigação do ser
enquanto ser.” Mas o que Aristóteles queria dizer com isso? Ser é aqui entidade
ou coisa, de modo que ao investigar o ser enquanto ser ele estava querendo
dizer que pretendia investigar as entidades enquanto elas mesmas, mais
especificamente, naqueles atributos que são comuns a todas elas. Ciências
especiais investigam entidades naqueles atributos que são comuns a apenas uma classe
delas, como a investigação das entidades como seres vivos (biologia) ou a
investigação de entidades enquanto relações numéricas (matemática). Como
Aristóteles escreve:
Há uma ciência que investiga o ser enquanto ser e os
atributos que convém a ele em virtude de sua própria natureza. Isso não é o
mesmo que qualquer uma das assim chamadas ciências especiais, pois nenhuma
delas lida de maneira geral com o ser enquanto ser – antes, cada uma recorta
uma parte do ser e investiga os atributos dessa parte. Isso, por exemplo, é o
que as matemáticas fazem.[3]
Ou seja: a metafísica investiga os atributos que convém às entidades em
geral de maneira “tópico-neutra”, ou seja, os atributos que convém, senão a
todas as classes de entidades, à grande maioria delas.
O ponto fica mais claro quanto
comparamos as sugestões de Aristóteles com as investigações feitas pela
metafísica contemporânea. Essa última trata daquilo que não é investigado por
nenhuma das ciências particulares, mas que é sempre pressuposto em suas
investigações, aparecendo sempre em suas terminologias sem ser questionado. São
questões que atravessam as ciências particulares. Isso nos permite dizer que as
questões metafísicas dizem respeito à moldura através da qual pensamos o
universo. Como bem definiu A. E. Taylor há mais de um século, a metafísica deve
expor os “princípios estruturantes universais sem os quais não poderia existir
nenhum sistema ordenado de objetos conhecíveis”.[4]
Essas caracterizações ficam
mais claras quando consideramos alguns exemplos de conceitos que a metafísica
contemporânea investiga:
Propriedade, causalidade, espaço e tempo, objetos materiais,
número, existência, necessidade, possibilidade, o todo e a parte, princípios
lógicos universais...
No vocabulário das ciências particulares falamos o tempo todo de
propriedades, existência, relações causais, etc. Considere o caso das
propriedades: tudo o que existe possui propriedades. São propriedades físicas,
químicas, biológicas, psicológicas e sociais. Além disso, todas as ciências
particulares empíricas tratam de relações causais entre os fenômenos por elas
estudados. Esses fenômenos ocorrem sempre no espaço e no tempo. Essas ciências
tratam de entidades que vão desde os átomos da física, passando pelas moléculas
da química, pelos estados mentais da psicologia, até as sociedades e seus
indivíduos. Finalmente, todas elas
consideram números de entidades, sejam elas físicas, químicas, biológicas ou sociais…
e também consideram a existência ou inexistências das entidades pertencentes
aos seus domínios... Fica claro que embora todas essas ciências apliquem
conceitos como os de propriedade, indivíduo, causalidade, existência –
conceitos pertencentes à metafísica – nenhuma delas se ocupa da investigação da
natureza e função desses conceitos ou das relações que eles possam ter entre si.
Esses conceitos são hoje geralmente considerados
como sendo empíricos, embora não pareçam ser tais pelo fato de que seu campo de
aplicação ser tão amplo que eles dizem respeito, senão a tudo o que existe, à
maior parte daquilo que existe.
Aristóteles merece o crédito de
ter sido a primeira pessoa a perceber que conceitos categoremáticos capazes de
pertencer a âmbitos de aplicação os mais diversos demandam uma investigação própria:
a de sua filosofia primeira. Como e o quão justificadamente ele desenvolveu a
sua metafísica é uma outra questão.
2
Substância. Comecemos, pois, considerando o conceito aristotélico
fundamental de substância (ousia). Como Aristóteles chegou até
ele? A resposta é que ele foi principalmente movido pelo exame da estrutura da
linguagem. Ele pressupôs que a estrutura da linguagem representativa fosse capaz
de refletir a estrutura última da realidade (um pressuposto que foi repetido no
início do século XX por Russell e Wittgenstein sob a inspiração da revolução na
análise lógica operada por Gottlob Frege).
Ora, a mais fundamental unidade do dizer em
nossa linguagem é a frase predicativa singular. Por exemplo: “Sócrates é calvo”,
“Veneza é uma bela cidade”, “Este cão é um caramelo”. Tais frases tem a forma Fa,
onde F é um predicado designando uma propriedade e a é um sujeito
que se refere a um indivíduo. Para Aristóteles o predicado se refere a um
atributo ou propriedade, como veremos mais tarde. Mas o sujeito se refere ao
que ele chamou de ousia, que significa ‘ser’: o que é ou existe no
sentido mais forte da palavra. Por vezes Aristóteles usou também a palavra
‘hypokeímenon’, que significa “o que está sob,” o que deu origem à enganosa
tradução latina de ousia como ‘substância’ (sub-stare = ‘estar sob’). Para
Aristóteles a substância (ousia) é o que há de mais fundamental porque
é o que existe sem precisar de outras coisas para existir. Essa
independência se demonstra linguisticamente pelo fato de que a substância pode
ser o repositório de muitos predicados, mas não pode ser predicada de nada.
Em um exemplo: Se digo que Sócrates é sábio, a sapiência de Sócrates precisa de
Sócrates para existir. Mas Sócrates não precisa ser sábio para existir. Mais
além, posso predicar de Sócrates muitas propriedades, mas não posso usar o
indivíduo Sócrates para predicar coisa alguma. Logo, parece que o indivíduo
Sócrates é a substância, a ousia, o existente primário.
O fato de a substância ser
aquilo que é referido pelo termo singular não é suficiente para que possamos
identificá-la de forma precisa. Uma frase como “O ócio é o humus do espírito”
tem como sujeito ‘o ócio’, mas ele não se refere a uma substância. Aristóteles
precisava, pois, descobrir critérios de identificação mais adequados para o que
ele queria entender como sendo aquilo que existe sem precisar de outra coisa
para existir. Há pelo menos dois momentos mais claramente distinguíveis no
desenvolvimento desses critérios: os de sua exposição nas Categorias e,
posteriormente, em sua Metafísica.
No texto inicial, que é o das Categorias,
Aristóteles distinguiu dois sentidos da palavra ‘substância.’ O sentido próprio
é o que ele chamou de (i) substância primeira. Trata-se aqui do indivíduo
espaço-temporalmente localizável, do particular concreto, como Sócrates ou
Bucéfalo. Quando digo “Sócrates é sábio” estou me referindo ao indivíduo de
nome Sócrates que em um certo momento se encontra em um lugar específico. Mas
há também um sentido complementar do termo substância, que Aristóteles chamou
de (ii) substância segunda. Trata-se da espécie de coisa à qual o
indivíduo referido essencialmente pertence. No caso de Sócrates trata-se do
fato de que ele é homem (no sentido de que é um ser humano). Assim, se digo
“Sócrates é um homem” estou através do predicado me referindo à substância
segunda.
No texto da Metafísica
Aristóteles revelou-se insatisfeito com a definição de substância apresentada
nas Categorias. A razão é que a partir de sua Física ele passou a
contrastar a identificação da substância primeira com o indivíduo particular
com a distinção por ele introduzida entre forma e matéria do indivíduo com o
objetivo de explicar a mudança. Sem entrar em detalhes podemos definir
provisoriamente a forma como aquilo que faz um indivíduo ser o que ele é,
enquanto a matéria é aquilo de que ele é composto, pois essas são as noções
intuitivas originárias, anteriores a Aristóteles. Com base nisso a pergunta que
Aristóteles se fez é se a substância é primariamente (a) a matéria do
indivíduo, (b) a sua forma (como espécie ou como gênero), ou (c) o composto
da forma e da matéria desse indivíduo.
Sobre a alternativa (a) uma
importante consideração prévia deve ser feita. A substância não pode ser a
matéria isoladamente, pois sempre que falamos da matéria temos de nos referir a
uma forma. Assim, uma esfera de cobre possui a forma esférica e sua matéria, o
cobre, que é aquilo de que a esfera é feita... Um ser humano possui uma matéria
de ossos, músculos, gordura... que o enformam. Além disso, sempre que
explicitamos algo da matéria referimo-nos outra vez a formas: o cobre é um
metal cuja matéria é o elemento de número atômico 29 e a matéria de ossos,
músculos e gordura que compõem o ser humano são também descritas como formas.
Um músculo, por exemplo, é a forma de uma matéria constituída por miofibrilas
proteicas. No livro VI Aristóteles fez uma interessante experiência em
pensamento, retirando uma a uma as propriedades de um indivíduo particular de
modo a tentar fazer restar só a matéria.[5] O resultado é que
simplesmente nada de dizível ou cognoscível restou! Como ele mesmo concluiu: “A
pura matéria destituída de qualquer forma é incognoscível”[6]. Se a substância fosse
apenas a pura matéria (chamada pelos antigos de ‘matéria prima’) ela seria
incognoscível. O resultado é que a alternativa (a) deixa de ser aprazível. O
problema de se definir a substância passa a ser então o de escolher entre (b) a
forma (ou formas), ou (c) o composto de forma e matéria.
Podemos chegar a uma resposta analisando uma passagem crucial da Metafísica,
na qual ele sugere dois sentidos fundamentais no entendimento do que é a
substância:
Segue-se que substância tem dois sentidos: (i) um substrato
último que não é mais predicado de coisa alguma. Uma substância é (ii) um esse tal-e-tal
(tode ti) separável – que por natureza é a feição ou forma de qualquer
coisa.[7]
Comecemos analisando a primeira frase da citação: “uma substância é um substrato
último que já não é mais predicado de coisa alguma.” Como substrato último a
substância é um indivíduo impredicável. Como tal ele não pode ser dito
de qualquer outra coisa, ou seja: por ser o repositório último das predicações
ele não pode ser predicado de coisa alguma. Contudo, o que pode ser objeto de
predicações, mas não pode ser predicado de mais nada é a pura matéria que não se
deixa explicitar pela linguagem. Por exemplo: Eu posso apontar para Sócrates e
dizer: “Sócrates é um homem.” Aqui eu predico de Sócrates uma forma
substancial, a sua essência, que é a de ser um ser humano. Assim, ser humano
não pode ser substância no sentido daquilo que é objeto último de predicações.
Mas que dizer da referência do nome próprio ‘Sócrates’? Imagine que Platão quer
apresentar Sócrates a um amigo e diz: “Esse é Sócrates”. Esse proferimento pode
ser explicitado como: “Isso tem as múltiplas propriedades com base nas quais
aplicamos-lhe o nome ‘Sócrates’.” Esse é um equivalente, creio, ao que W. V-O.
Quine parafraseou como “Isso socratiza”, onde o nome ‘Sócrates’ aparece como um
predicado que representa as múltiplas propriedades que o individuam. Mas nesse
caso sequer o nome ‘Sócrates’ serve para fazer referência à substância como o
indivíduo que é “sujeito último e que já não é dito de qualquer outra coisa.” Parece,
pois, que a única maneira de nos referirmos à substância primeira não
predicável é usando o pronome demonstrativo ‘esse’ que, com ajuda do um gesto
apenas indica uma certa região espaço-temporal. Com efeito, enquanto tal, o ‘esse’
não pode ser predicado de coisa alguma. Se aponto para algo e digo “Esse é esse”,
só posso estar dizendo que esse é o mesmo que esse, o que não transforma o ‘é esse’
em um predicado.
Essas constatações facilitam a
interpretação da segunda frase da citação de Aristóteles: “Uma substância é
aquilo que é um esse tal-e-tal e que também é separável”. Essa segunda
caracterização é a mais completa e abrange também a primeira, resolvendo para
Aristóteles o problema da definição da substância. Isso é possível porque o
demonstrativo “esse tal-e-tal” aponta para o que pode ser capturado pela
linguagem. Como? Ora, primeiro através da localização espaço-temporal obtida
pelo uso do demonstrativo ‘esse’; depois através do ‘tal-e-tal’, que está no
lugar de qualquer atribuição que seja acrescentada à referência do
demonstrativo, que passa a ser o que é o tal-e-tal. Assim, com o demonstrativo
‘esse’ nós nos referimos a um algo, a um indivíduo espaço-temporalmente
localizado, sem determiná-lo através de propriedades, algo sobre o que a única
coisa que sabemos é que é uma pura matéria espaço-temporalmente localizada.
Trata-se por isso realmente de algo de que podemos predicar outras coisas, mas
que não pode ser de nada predicado. É claro que se nós nos limitássemos a
definir a substância como qualquer coisa espaço-temporalmente localizável pelo
‘esse’, estaríamos condenados a deixá-la fora da linguagem. Contudo, podemos
acrescentar ao local indicado pelo demonstrativo ‘esse’ o tal-e-tal, a
predicação da essência da coisa, da forma substancial, que para
Aristóteles (como bom biólogo) era primordialmente a predicação de uma espécie
zoológica ou botânica.
Posso tornar esse ponto mais claro meio de um
exemplo. Suponha agora que nos encontremos diante de Sócrates dizendo: “Isso é
um homem”. Essa é uma frase do tipo “esse tal-e-tal.” Através dela nós
indicamos uma coisa que não pode ser predicação de coisa alguma e dela
predicamos a humanidade. Pois bem: uma substância no sentido mais próprio é uma
coisa qualquer localizada, à qual se atribui uma forma substancial, que
para Aristóteles nada mais é do que a espécie à qual o substrato
pertence. No exemplo dado essa espécie é a humana A substância torna-se assim capturada
pela linguagem como uma pura matéria localizada contendo uma forma que é uma
essência (toti ên einai), que Aristóteles entende como o que é
susceptível de definição. Afinal, Aristóteles definiu o ser humano como “um
animal racional.” Se digo “Isso é um homem”, estou dizendo o mesmo que “Isso...
é um animal racional”, ou seja, estou definindo o indivíduo designado pelo
demonstrativo ‘isso’ como sendo um animal racional. Como também é sabido, para
Aristóteles uma definição real seria aquela na qual distinguimos a diferença
específica de um gênero próximo. O gênero próximo é o da animalidade e a
diferença específica é a da racionalidade. A espécie natural, à qual pertence o
que é indicado pelo ‘isso’, é aqui a dos animais racionais.
Finalmente, faltou ser
considerada a segunda cláusula da segunda frase: a substância “também é separável”.
Ele quer dizer com isso que ela é ontologicamente fundamental no sentido de que
a substância como um todo apresenta uma unidade e independência intrínsecas.
Ela não é um mero agregado como no caso de um monte de lixo, nem é parte de
algo, como uma mão, nem é algo dependente, como a palidez de Sócrates... Espécies
naturais são modelos de substâncias enquanto forem separáveis.
Podemos agora concluir. A substância
aristotélica não é somente (a) a matéria do indivíduo, uma vez que a pura
matéria é em si mesma incognoscível e indizível. A substância deve ser (c) o composto
da matéria (indicada pelo demonstrativo ‘esse’) e da forma indicada pelo seu
complemento como sendo o ‘o tal-e-tal’, ou seja, a espécie como forma
substancial. Como a espécie pode ser dita de muitas coisas (por exemplo, dos
muitos homens que são seres humanos, e não apenas de Sócrates), a substância precisa
ser o composto, pois só assim a forma se individua na matéria. A interpretação
(c) é, afinal, a mais razoável.
Aristóteles não parece ter concordado plenamente
com isso, reservando um lugar privilegiado para a interpretação (b) da
substância como forma. A razão pode ter sido que ele queria reservar um lugar
especial para a forma como espécie substancial porque acreditava existirem
substâncias que são formas sem matéria, como é o caso de seu Deus, das esferas
celestes e da razão humana. Trata-se ao que parece de uma recaída no platonismo
com a qual não precisamos concordar.
3
Formas aristotélicas. A substância pode, pois, ser
analisada como uma combinação de matéria (hylê), exemplificada
como o referente do “isso”, e de forma (eidos ou morphê),
exemplificada pelo referente do “tal-e-tal”. A forma é aqui o remanescente da
ideia platônica. Assim como para Platão nós só podemos adquirir conhecimento do
mundo visível porque ele contém cópias imperfeitas das formas, Aristóteles irá
dizer que é pela forma que identificamos as coisas do mundo visível, mas sem
pretender que existam forma (ou ideias) separadas da matéria, como fazia
Platão. Diversamente de Platão, para Aristóteles a forma só existe no
particular, no indivíduo, mas de modo idêntico ao de Platão, para Aristóteles é
só a forma que torna o indivíduo inteligível. É a forma que permite
caracterizar a substância como possuindo uma unidade intrínseca, como sendo
algo determinado, algo que subsiste por si e separadamente das outras coisas. Assim,
a matéria de uma esfera de cobre é o conteúdo material do cobre. A matéria de
um corpo humano seria para Aristóteles formada de uma composição de terra,
água, fogo e ar, ou, para nós, de moléculas de água e da química do carbono. A
matéria do estado, segundo Aristóteles, é dada por sua população, enquanto a
sua forma é dada por sua constituição. Contudo, a matéria também pode ser vista
como forma e só nesse sentido ela é cognoscível. O conteúdo material da bola de
cobre é formado por moléculas de cobre. A água do corpo humano é formada por
moléculas. A população de um estado é formada por pessoas. Tudo isso são
formas, mas de modo mais homogêneo. Para tornar esse ponto mais claro,
considere as partículas subatômicas como a matéria, ou ainda, as microcordas,
supondo que a teoria das cordas seja correta. Nesse último caso todo o universo
pode ser visto como sendo composto de uma mesma matéria, que seriam as microcordas.
E o resultado seria uma grande homogeneidade. Por isso podemos dizer que o
responsável pela heterogeneidade das determinações específicas, pela
diversidade do que existe no mundo, é a forma.
4
Categorias. Aristóteles adicionou à predicação da forma
substancial mais nove gêneros supremos por ele chamadas categorias (katêgoria
= predicado), que ele teria já encontrado em Platão. As categorias são as
classes fundamentais do que pode ser predicado da substância primeira,
refletindo classes fundamentais de coisas existentes no universo. Considere, por
exemplo, a categoria aristotélica de qualidade: a cor vermelha pertence
à qualidade de cor; um círculo pertence à qualidade de forma; mas tanto a cor
quanto a forma pertencem à categoria geral de qualidade. Em conjunto as
categorias podem ser dispostas na seguinte tábua:
Substância Exemplo: “(esse) ser humano” (Sócrates).
Qualidade é sábio,
Quantidade tem 160 m de
altura,
Relação é Casado com
Xantipa,
Onde está na
Ágora,
Quando pelo meio-dia,
Posição de pé,
Ter segura um bastão,
Fazer está falando,
Ser afetado está respondendo a uma pergunta.
Para Aristóteles, tudo o que podemos dizer de mais genérico sobre a
substância está contido nesses predicados categoriais. Assim, apontando para Sócrates
(o indivíduo, a substância primeira das Categorias) eu posso proferir
uma frase do tipo “Esse tal-e-tal”, no caso “Esse é um homem”, indicando a substância
segunda, que é a substância como forma substancial do indivíduo, a qual é definível
(homemdf = animal racional). Mais além, eu posso dizer que esse
homem (Sócrates) é sábio (predicando-lhe uma qualidade), que ele tem um metro e
sessenta de altura ou que pesa 68 Kg. (quantidade), que é marido de Xantipa
(relação), que se encontra na Ágora (onde) na manhã do dia 23 de julho do ano
398 a.C. (quando), que está de pé (posição), que segura um bastão (ter), que
está falando (fazer) e que está respondendo a uma questão (está sendo afetado).[8]
Aqui podemos considerar uma
propriedade da substância que terá grande importância no sistema de
Aristóteles: o fato de que a substância serve de substrato para a mudança. Como
suporte para as outras categorias, a substância deve poder permanecer a mesma
no tempo enquanto as outras categorias se modificam. Por exemplo, esse ser
humano, Sócrates, é o mesmo e dele predicamos a sapiência. Mas não predicamos a
sapiência dele quando ele era criança, nem que ele tinha 160 cm de altura, nem que
era casado com Xantipa. Além disso, quando bebê ele não ficava de pé; ele
andava de gatinho e sequer sabia falar. Mesmo assim, o Sócrates criança é
certamente o mesmo Sócrates foi condenado a beber cicuta aos 70 anos.
5
Universais. Um problema que surge aqui é o quanto tem a ver a
forma aristotélica com as ideias de Platão. Seriam as formas substanciais aristotélicas
universais abstratos[9] ou coisas individuais?
Há evidências textuais a favor de ambas alternativas, o que tem dividido os
intérpretes. Segundo a primeira alternativa a forma aristotélica seria algo
comum a um número maior ou menor de indivíduos, ainda que, diversamente da
ideia platônica, sempre dependente deles para existir. Como ele escreveu na Metafísica:
O que resulta, enfim, é uma forma de determinada
espécie, realizada nessas carnes e ossos: por exemplo Cálias e Sócrates; e eles
são diferentes pela matéria (ela é diversa nos diversos indivíduos), mas são idênticos
pela forma (a forma é, de fato, indivisível).[10]
Essa passagem é consistente com a constatação de Aristóteles de que só
os universais são definíveis e nunca o indivíduo; por conseguinte, a forma
substancial não pode ser uma coisa individual. Isso justifica a observação de
que a diferença entre a ideia platônica e a forma aristotélica é que se o mundo
deixasse de existir as ideias platônicas continuariam a existir, enquanto as
formas aristotélicas desapareceriam. A forma aristotélica funciona aqui como um
lençol transparente, firmemente colado a todos os objetos que dela
compartilham. Contudo, caso adotada essa sugestão conduz Aristóteles a
problemas ainda maiores do que os considerados por Platão em a sua doutrina das
ideias. Como pode, afinal, a forma universal de Aristóteles permanecer a mesma
e ainda assim se dividir entre os diferentes objetos aos quais se aplica?
Aristóteles não é, porém,
consistente com essa sugestão. Na seção 13 do livro Z da Metafísica
ele oferece uma série de argumentos que parecem destrui-la. A alternativa
consiste em se admitir que a mesma forma substancial se repete em cada
indivíduo que dela é dito compartilhar. Filósofos medievais sugeriram que para
Aristóteles não existem universais nas coisas (in rebus), mas somente na
mente (post rem), após abstração. Entretanto, não parece que nossa mente,
que hoje entendemos como sendo finita, tenha lugar para o universal abstrato post
rem.
6
A mudança. Desde Heráclito tornou-se aceito que o mundo sensível
é caracterizado pela mudança, movimento, transformação. Para explicar o que é a
mudança Aristóteles lançou mão de uma nova dualidade conceptual: a distinção
entre potência (dunamis) e ato (energeia). A
potência é definida como a capacidade de vir a ser, enquanto o ato é
simplesmente a capacidade de ser. O melhor exemplo explicativo é o de uma
semente. Ela pode dar origem a uma laranjeira. Uma outra semente, quase igual à
primeira, pode dar origem a um limoeiro. Uma semente tem o potencial de se
transformar em uma coisa ou em outra. A semente da laranjeira é a laranjeira em
potência, que posteriormente se transforma na laranjeira em ato. Para
Aristóteles toda substância não só é constituída de matéria e forma, mas ela
própria é ao mesmo tempo sempre potência e ato. Mas há em toda substância uma correlação
entre o que dizemos ser matéria ou potência de um lado e o que dizemos ser forma
ou atualidade de outro. Uma substância possui não somente matéria e forma, mas
também potência e ato. Ela é ato na forma que presentemente possui. Mas ela é
também potência na capacidade que ela possui de atualizar-se em outra forma.
Por exemplo: uma semente tem a potencialidade de se transformar em uma árvore,
mas ela não é árvore em ato, mas apenas em potência. A árvore foi semente em
potência, mas agora é árvore em ato, ela adquiriu essa forma. Ademais, para
Aristóteles matéria e forma podem ser consideradas uma só coisa em diferentes
aspectos. A matéria é forma em potência, enquanto a forma é a matéria que se
atualizou. A matéria é atualizada pela forma, que por sua vez atualiza a
matéria.
A distinção entre ato e
potência permitiu a Aristóteles responder à afirmação de Parmênides de que o
ser é imutável, pois do não ser não pode advir o ser, caso contrário o não ser
seria, e do ser não pode advir o não ser, a menos que o ser não seja. Aristóteles
discordava. Sua resposta foi a seguinte: O ser pode advir do não ser porque o
não ser já é ser em potência, enquanto o não ser pode advir do ser porque o ser
já é não ser em potência. Por isso, pensava ele, a mudança é no final das
contas a passagem do ser para o ser: a passagem do ser em potência para
o ser em ato.[11]
Como complemento a sua
explicação da mudança, Aristóteles ainda adicionou a famosa teoria das quatro
causas, que tão facilmente se confunde com um arcaísmo filosófico. Talvez
porque a palavra causa seja aqui enganosa. Na verdade, trata-se de uma teoria
dos elementos envolvidos na explicação da mudança na medida em que ela tiver
caráter teleológico. Esses elementos são a causa material, a causa formal,
a causa eficiente e a causa final.
Para tornar isso claro, imagine
que um artífice pretenda esculpir uma estátua. Ele precisará primeiro de uma
pedra de mármore. Essa é a causa material. Além disso ele precisa ter uma ideia
do que irá fazer, por exemplo, uma estátua do deus Apolo. Essa é a causa
formal, a forma ainda não atualizada. Além disso o escultor precisará trabalhar
no bloco de mármore de modo a esculpir a estátua do deus Apolo. Essa é a causa
eficiente. Por fim, a estátua do deus Apolo deverá ser colocada no templo, de
modo a servir como objeto de adoração: essa é a assim chamada causa final, o
propósito de toda a ação.
A teoria das quatro causas não
serve apenas para explicar as ações humanas intencionais. Ela também serve à biologia
de Aristóteles. Assim, um pequeno arbusto para crescer e se transformar em uma
árvore precisa de uma matéria, a madeira da qual ela é constituída. Mas ele
também precisa de uma forma: o arbusto tem a finalidade inscrita em seu
material genético de se transformar em uma árvore. Para que isso aconteça
também são envolvidos elementos constitutivos da causa eficiente: é preciso
haver luz, água e elementos nutritivos adequados para que o arbusto se
transforme em árvore. Há, finalmente, a causa final: a árvore servirá para dar
frutos e dessa maneira permitir a continuação da espécie à qual ela pertence.
A teoria das quatro causas não
serve, obviamente, para explicar eventos causais no mundo físico. Se um asteroide
por acaso cai sobre o planeta Júpiter, a finalidade do asteroide não é a de
cair no planeta Júpiter, nem é o caso de que dessa maneira ele realize a sua
forma, digamos, a de aumentar minimamente a massa desse planeta gigante.
7
Teologia. Uma última questão diz respeito ao Deus aristotélico,
ou seja, à definição de metafísica como teologia e investigação das causas
últimas. O argumento se inicia com uma questão acerca do tempo. Teve o tempo um
início? A resposta é que se o tempo tivesse um início então faria sentido perguntarmos
o que havia antes do tempo. Mas ao usar a palavra ‘antes’ já estamos
pressupondo o tempo. O mesmo acontece se nos perguntarmos se o tempo teria um
fim. Nesse caso será possível perguntar o que acontecerá depois do tempo. Mas
ao usar o advérbio ‘depois’ nós também pressupomos o tempo. A conclusão é que o
tempo não tem nem início nem fim: o tempo é eterno. Contudo, Aristóteles também
percebeu que a passagem do tempo é intrinsecamente ligada à mudança, ao
movimento. Esse é um ponto passivo. Nós marcamos o tempo através de relógios
que se valem de mudanças cíclicas com idêntica duração. Era assim nos tempos
primevos, quando os homens contavam os dias e os anos. E é assim ainda hoje
quando podemos fazer uso de relógios atômicos. E quando percebemos o passar do
tempo é porque a natureza nos dotou de relógios biológicos internos. Daí segue
a conclusão de que em um mundo sem mudança o tempo deixaria de existir.
Tentando conceber um tempo sem
mudança, imagine que nosso universo inteiro se congele por um ano, permanecendo
durante todo esse tempo sem qualquer mudança. À primeira vista isso parece
possível. Mas quando imaginamos isso, nós nos imaginamos postados fora do
universo, de uma perspectiva sob a qual somos plenamente capazes de averiguar a
passagem do tempo, por exemplo, por possuirmos relógios capazes de medir a
passagem de um ano. Mas nesse caso não estamos considerando mais o universo
como um todo, pois nós e nossos relógios, que estamos fora, também devemos
pertencer a ele. A conclusão é que não faz sentido dizer que o universo, agora
entendido como absolutamente tudo o que existe (nós e nossos relógios incluídos)
possa ficar congelado por um ano, pois ele não poderia incluir relógios capazes
de marcar esse tempo. Parece que Aristóteles tinha razão.
Tendo concluído que o tempo e a
mudança são eternos, Aristóteles se pergunta sobre a causa última de todas as
mudanças, de todos os movimentos, que para ele não é mera causa eficiente, mas
causa final, um telos. Ele pensa que se o tempo-mudança é eterno, então
a causa do tempo-mudança precisa ser também eterna. Contudo, aquilo que gera as
sequências causais não pode ser algo temporal, pois a admissão disso implicaria
em uma causa dessa causa e em uma progressão infinita de causas finais. Ora, para
os gregos, a ideia de uma progressão infinita era absurda. Como conclusão, deve
existir uma causa que seja incausada, um movente imóvel, que Aristóteles chama
de Deus (theos). Se tempo e mudança se encontram intrinsecamente
ligados, a causa incausada é causa do próprio tempo. Essa causa incausada
precisa ter três características: ela precisa ser eterna, imóvel e
ato puro. Se não fosse eterna o tempo-mudança que ela causa não seria
eterno. Se fosse móvel ela seria causada e não seria mais a causa primeira, o
primo motor. Se contivesse matéria ela teria potência e seria capaz de mudança,
logo deve ser ato puro. Mas ela deve ser o motor imóvel do universo, sendo
através dela que Aristóteles oferece a razão última do mundo sensível.[12]
Mas então, como é possível que
o deus aristotélico movimente sem se movimentar? Ora, precisamente porque ele
não é causa eficiente, mas causa final. Para Aristóteles, da mesma forma que
somos atraídos pelo bem e pelo belo, somos atraídos por Deus. O primo motor
move o mundo da mesma forma que o objeto amado atrai o amante. É por algo que
ele chama metaforicamente de “amor” que o mundo se move em direção a Deus.
Quanto a esse Deus imaterial,
direcionador do universo, Aristóteles especula que ele deva ser puro
pensamento. Como esse pensamento deve ser perfeito, ele não pode pensar em
nada que seja inferior a si mesmo. Por conseguinte, ele deve ser o pensamento
que se pensa a si mesmo, pensamento do próprio pensamento.
Estamos aqui muito longe do Deus pessoal da cristandade,
que criou o mundo e responde aos clamores humanos, e mesmo das deidades
mitológicas, que intermediavam as ações humanas nos poemas épicos que os gregos
tanto prezavam. O deus aristotélico não se preocupa com o mundo. Somos nós que,
em nossa busca de perfeição, movemo-nos em direção a ele.
Como se tudo isso não bastasse.
Aristóteles adiciona que se Deus é pensamento então ele é vivo. Afinal,
pensamento e inteligência são inerentes à vida. Como ele escreve:
Se nessa feliz condição em que às vezes nos
encontramos Deus se encontra perenemente, isso nos enche de maravilha. E se ele
se encontra numa condição superior, é ainda mais maravilhoso. E ele se encontra
efetivamente nessa condição. E ele também é vida porque a atividade da
inteligência é vida. E ele é precisamente essa atividade. E essa atividade
subsistente por si é vida ótima e eterna.[13]
Diversamente do Deus cristão, o primo motor aristotélico não pode ser
onisciente nem onipotente, posto que ele nem pensa o mundo nem opera sobre ele.
Mas ele não é só eterno como também onipresente: Aristóteles afirma que o
primeiro movente imóvel está em todo o universo e tudo move e, sendo assim,
também se encontra dentro de nós, movendo-nos. Deus, como o pensamento do que
há de mais excelente (ele mesmo) é pura felicidade e em sua contemplação também
consiste a nossa maior felicidade.
Aristóteles queria saber quantas
substâncias imóveis existem na esfera celeste e foi perguntar a um amigo
astrônomo. Como o número de movimentos celestes rotatórios eternos é 55, o
número de substâncias imóveis deve ser o mesmo. Mas ele acreditava haver além
disso uma causa incausada superior às outras, que os ordenasse e que seria primo
motor. O cristianismo transformou o primo motor aristotélico em Deus
e as outras substâncias imóveis em inteligências angélicas.
Einstein acreditava que as ideias vêm de Deus.
Ingmar Bergman certa vez notou que Deus está no coração dos homens. Teóricos do
caos falam de organização espontânea e de atratores estranhos. C. S. Peirce
postulou uma evolução por amor criativo operando no cosmo (o agapismo). Apesar
de a terceira lei da termodinâmica prever a morte do universo pelo constante e
inevitável aumento da entropia, há princípios de organização, como o da criação
da vida, que concentram entropia, ainda que na função de aumentar a entropia do
sistema como um todo. Ainda assim, não é certo que o conceito aristotélico do
primo motor seja pura metáfora poética. Não é impossível que existam mais
coisas entre o céu e a terra do que nossa vã ciência nos permite admitir.
8
Aristóteles defendeu famosamente o princípio da não-contradição como
sendo o mais fundamental no livro IV da Metafísica. Em sua versão
ontológica o princípio diz que não é o caso que uma coisa seja ela mesma e
diferente dela mesma ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva.[14] Quem quiser negar esse
princípio, escreveu ele, deverá ficar mudo feito um tronco de árvore, pois não
poderá dizer coisa alguma, uma vez que afirmar algo será o mesmo que negá-lo.
Essa pessoa não conseguirá sequer negar o princípio, pois ao negá-lo, assumindo
sua falsidade, fará tanto quanto afirmá-lo. O princípio da não-contradição pode
ser linguisticamente expresso como dizendo que um enunciado não pode ser
verdadeiro e falso no mesmo sentido. Formalmente ele pode ser expresso como ~(A
& ~A).
O princípio da não-contradição é
complementado por outros dois: o princípio da identidade e o do meio excluído.
O princípio da identidade nos diz (ontologicamente) que uma coisa é ela mesma
ou (linguisticamente) que um enunciado é ou implica nele mesmo. Formalmente
podemos escrevê-lo como A = A ou A → A. Ele é apenas
uma outra maneira de se formular o princípio da não-contradição, pois dizer que
A = A é o mesmo que dizer que A não pode não ser A ou ~(A & ~A).
O princípio do meio excluído,
por sua vez, nos diz (ontologicamente) que ou uma coisa é ela mesma ou ela não
é ela mesma, não havendo uma terceira alternativa; ou ainda, ele nos diz
(linguisticamente) que um enunciado, no mesmo sentido, é verdadeiro ou falso,
não havendo meio termo. Ele pode ser formalmente apresentado como “A v ~A”. Os três princípios são
logicamente equivalentes, pois se uma coisa é ela mesma (ao mesmo tempo e sob a
mesma perspectiva), ou seja, se A → A, então não é
possível que ela seja e não seja ela mesma, formalmente: ~(A & ~A). E se
uma coisa é ela mesma, então ela não pode ser outra coisa senão ela mesma, ou
seja: A v ~A.[15]
Esses princípios se equivalem
e, para quem leva a sério a lógica clássica, é fácil demonstrar que essas
equivalências são verdades lógicas (tautologias). Contra a objeção de que
existem afinal inúmeras verdades lógicas é possível responder que os princípios
acima tem a prerrogativa de serem os mais simples, daí poderem funcionar como
as regras fundamentais sobre as quais se baseia o cálculo dos enunciados.[16]
Bem entendidos esses princípios
parecem irrecusáveis. Quero considerar apenas o mais disputado dentre eles, que
é o princípio do terceiro excluído: “A v ~A”. Pode-se argumentar que deve haver algo que não é
nem A nem não-A. Por exemplo, considere a frase “Está chovendo”. Pode ser que
seja noite e que exista algo como um sereno, com minúsculas gotículas de água
no ar que parecem estar descendo lentamente... mas não será apenas uma névoa?
Não, não há como decidir... Nesse caso se alguém disser “Está chovendo” não
haverá como dizer se a frase é verdadeira ou falsa. A situação é da fronteira
indefinida (blurred boundary). Não parece então que nesse caso
limítrofe o princípio do terceiro excluído foi rejeitado?
Em meu juízo uma consideração mais cuidadosa
do caso mostra que isso é incorreto, pois no contexto considerado a afirmação
“Está chovendo” deixa de fazer sentido, o mesmo acontecendo com sua negação,
pois em casos como esse nós não somos capazes de enunciar coisa alguma. Nós podemos
suspender esse juízo ou enunciado inverificável e considerar o que resta, que é
o proferimento vazio: “Está chovendo” que no contexto em questão possui um
sentido meramente gramatical. A lógica clássica trabalha com enunciados que por
natureza devem expor juízos afirmativos ou negativos e não com proferimentos
que possuem sentido gramatical, mas que são inverificáveis e portanto nada nos
dizem.
7
Nos tempos de Aristóteles não existia distinção entre ciência e
filosofia e ele fez uma detalhada divisão das ciências que não importa
considerar aqui. Sem se importar com os detalhes dessa divisão, é hoje usual e
útil nos apropriarmos de parte dela aqui, distinguindo em filosofia dois
domínios gerais: o da filosofia teórica e o da filosofia prática.
Podemos caracterizar a filosofia teórica como tendo a ver com o mundo e nosso
acesso ao mundo enquanto a filosofia prática como tendo a ver com nossa
resposta a esse acesso. Nesse sentido podemos dizer que a filosofia teórica tem
tradicionalmente, como ramos principais, a metafísica e a epistemologia. A
primeira investiga os constituintes últimos da realidade, enquanto a segunda
investiga nosso acesso cognitivo a esses constituintes e ao mundo em geral. Já
a filosofia prática tem a ver com a investigação da ação humana e de seus
produtos. Tradicionalmente, a ênfase na ação humana tem como objeto central a
ética, mas ela também inclui a filosofia política. Já no que diz respeito aos
produtos da ação humana, podemos incluir a filosofia da cultura, da arte, da
história, etc. A maior contribuição de Aristóteles depois de sua metafísica foi
para a ética.
Antes de dizer algo sobre a
contribuição de Aristóteles para a ética é importante fazer um mapeamento geral
das concepções morais. Existem três momentos da ação moral. O primeiro deles é
o da intenção: uma pessoa pode querer fazer o bem ou o mal. O segundo
deles é o da ação: a pessoa realiza uma boa ou má ação. O terceiro deles
é o da consequência da ação, que também pode ser boa ou má. Geralmente,
a boa intenção conduz a uma boa ação, a qual conduz a uma boa consequência. Mas
nem sempre é assim.
As éticas que colocam a origem do valor ético
na intenção do agente são chamadas de éticas da virtude. Esse foi o caso
das éticas gregas em geral, que não eram individualistas e tinham como fim
mostrar como o cidadão poderia melhor servir à polis. As éticas que
colocam a origem do valor ético na ação são as éticas ditas deontológicas.
Elas procuram estabelecer regras diferenciadoras da boa (ou má) ação, a exemplo
dos dez mandamentos cristãos. Finalmente, há as éticas que põem a origem do
valor na consequência da ação. Essas são as éticas consequencialistas.
Há também três tipos de consequencialismos: o egoísmo ético, que põe a
origem do valor moral no fazer bem a si mesmo (ex: uma sociedade de malfeitores).
O altruísmo ético, que põe a origem do valor moral no fazer bem aos
outros (ex: os Amishes), e o utilitarismo, que busca fazer bem tanto ao
agente quanto às outras pessoas que possam estar envolvidas.
Certamente, tanto a intenção
quanto a ação e a consequência têm importância moral. E é claro que quando
julgamos uma ação isolada o que mais nos importa avaliar é a intenção do
agente. Uma pessoa pode, com a melhor das boas intenções, realizar uma ação que,
contra todas as expectativas, se demonstra funesta! Nesse caso ela não poderá
ser considerada culpada. No caso individual a direção é da intenção para a ação
e da ação para o efeito. Mas o mesmo não acontece quando consideramos a fixação
dos valores ao longo do tempo. Do ponto de vista do que uma sociedade ao longo
do tempo acaba por ser estabelecido como possuindo valor moral, aquilo que
realmente importa são as consequências. Ou seja: as consequências geralmente
boas das diferentes espécies de ações humanas em uma sociedade são aquilo que
determina quais as regras que, uma vez seguidas, trazem boas consequências
tornando-as, portanto, boas. E também as consequências geralmente boas, elas
próprias geralmente resultantes do seguimento de boas regras, são o que em uma
sociedade acaba por determinar o que é para ser contado como virtude. Aqui a
direção é do efeito para a regra e da regra para a intenção. Um exemplo: Alasdair
MacIntyre observou que nos tempos homéricos a força física era considerada uma
virtude, uma vez que através dela a sociedade era protegida, enquanto nos
romances de Jane Austen a constância é uma virtude, uma vez que ajuda a
assegurar um casamento bem sucedido.[17] Nos pampas gaúchos a
coragem física era até há pouco considerada uma virtude cardeal; já em certos
lugares de cultura refinada essa mesma coragem pode ser sinal de
inflexibilidade.
A conclusão é que a origem – o
centro irradiador – do valor moral é para ser encontrada nas éticas
consequencialistas. Mas qual delas? O egoísmo ético tem a limitação de restringir
a felicidade social: quando cada qual age só pensando em seu próprio bem resta
pouco lugar para o amor, para a amizade, para o exercício do que há de bom na
natureza humana. O mal de algumas sociedades hoje economicamente muito desenvolvidas
é que as pessoas “vivem para si mesmas”, sendo o bem comum mediado por leis
impessoais, restando pouco espaço para uma natural interação altruísta. O
altruísmo ético, por sua vez, tem a desvantagem de limitar a liberdade
individual. Esse é o caso de sociedades quais vivencia-se um altruísmo coletivo
capaz de fazer bem a todos, mas sob o preço de um forte compartilhamento de
gostos e valores através do qual o desenvolvimento individual fica comprometido.
O melhor dos consequencialismos parece ser aquele que propõe um equilíbrio entre
o egoísmo e o altruísmo: o utilitarismo. Segundo o utilitarismo a boa
ação é aquela da qual resulta um bem maior para todos, inclusive para o agente.
Um bom utilitarismo seria capaz de determinar as melhores regras e as melhores
virtudes na melhor sociedade.[18] Desenvolver uma forma
adequada de utilitarismo é, contudo, uma tarefa mais complexa do que se possa
pensar. (Uma sugestão nesse sentido encontra-se na seção 6 do capítulo VI.)
Aristóteles via a função da
ética como a de maximizar a felicidade (eudaimonia) coletiva de modo a
possibilitar a boa vida na sociedade através de valores gerados no interior da polis.
Em vista disso ele inventou uma ética do justo meio.[19] A ação moralmente correta
é aquela feita por um agente que sabe escolher o justo meio entre o extremo do
excesso e o extremo da falta. Assim, uma pessoa corajosa é aquela que sabe
escolher o justo meio entre a temeridade e a covardia. Uma pessoa liberal é
aquela que sabe escolher o meio caminho entre a avareza e a prodigalidade. Uma
pessoa justa é a que é capaz de escolher o meio caminho entre os ganhos e as
perdas... Certamente, essas medidas devem variar de pessoa para pessoa e sob
diferentes circunstâncias sociais.[20]
Para Aristóteles o
comportamento virtuoso é algo que pode ser socialmente aprendido: é como
aprender a atirar os dardos no centro do alvo. Com efeito, é preciso exercício e
experiência junto às pessoas certas em uma sociedade suficientemente bem
ordenada para que alguém se torne capaz de escolher melhor o justo meio.
Uma
pergunta que surge é sobre quem decide qual é o justo meio. Um senhor de
escravos pode se comportar segundo o justo meio da sociedade em que vive. Ele
será considerado virtuoso pelos seus pares e talvez até mesmo pelos escravos,
mas nada do que fizer será considerado virtuoso pelos que consideram as regras
dessa sociedade perversas. A ética do justo meio encontra parece demandar aqui
considerações adicionais.
[1]
Platão: Sofista 246 a-e.
[2] A. E. Taylor notou que
Aristóteles não conseguiu desvencilhar-se de todo do idealismo de seu mestre.
Embora conhecesse história natural, nota ele, para outras ciências empíricas ele era mal preparado.
Diversamente de Platão, ele não acreditava no movimento da terra, rejeitava o
atomismo e a posição de médicos como Hipócrates, segundo a qual o cérebro e não
o coração é o centro do sistema nervoso. Ver A. E. Taylor, Aristotle
(New York: Dover 1955), pp. 61-62.)
[3] Aristóteles: Metafísica, livro III,
1003 a20-26.
[4] A. E. Taylor: Aristotle.
(New York: Dover 1956 (1916)), p. 42.
[5] Metafísica livro VII (Z), 1028b 10-25.
[6] Metafísica livro VII (Z), 1036a 8.
[7] Metafísica livro V (D) 8, 1017b 23-25.
[8] O número de categorias proposto por Aristóteles
variava. As últimas duas não aparecem em todas as exposições. Não parece que
ele tenha tido um critério próprio para sua escolha.
[9] O termo ‘universal’ (katholou) foi
cunhado por Aristóteles
querendo dizer “aquilo que por natureza é predicado de muitos.” Da
Interpretação, 17a 38.
[10] Metafísica 1034a 5-8.
[11] Aristóteles: Física I, sec. 8
[12] É preciso notar que a admissão de que Deus seja ato puro e de que
existam substâncias imateriais (Deus, as inteligências celestes, a razão
humana) contém uma grave inconsistência. Essas substâncias deveriam ser formas
sem matéria, em outras palavras, deveriam ser formas ou ideias universais
supostamente imutáveis, ou seja, ideias platônicas. Mas Aristóteles não prima
pela consistência quando se trata de introduzir elementos platônicos em seu
empirismo.
[13] Aristóteles: Metafísica XII (L), 7, 1072b 24-28.
[14] Metafísica 1005b 19.
[15] Para quem conhece um pouco de lógica simbólica, essa equivalência pode
ser demonstrada aplicando-se tabelas de verdade:
A (A → A)
≡ ~(A & ~A) ≡ (A
v ~A).
V v v v
F v v v
[16] Precisamos sustentar esses princípios para
construirmos tabelas-verdade, as quais definem os conectivos lógicos e as regras
do cálculo proposicional.
[17] Alasdair MacIntyre: Depois da virtude (Bauru:
EDUSC 2001).
[18] Ver “Razões para o utilitarismo (uma
introdução utilitarista à ética)”, em Claudio Costa: Arquiteturas Conceituais (Minas
Gerais: Dialética 2022)
[19] Aristóteles: Ética a Nicômano Livro
II, sec. 6.
[20] Aristóteles: Ética Eudêmica Livro II,
sec. 3.
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