Draft para o livro "Uma introdução histórica à filosofia"
VII
LEIBNIZ: IDEALISMO INFINITISTA
Difícil
encontrar duas personalidades tão opostas quanto as de Spinoza e Gottfried
Wilhelm Leibniz (1646-1716). O primeiro tornou-se uma pessoa privada e
moralmente impecável. O último, embora tenha sido um gentil e muito bem
intencionado humanista, foi também um homem do mundo que vivia sagazmente de
seus serviços prestados à nobreza. Filho de um professor, ele foi um grande
polímata, com uma imensa variedade de conhecimentos. Mas ele foi acima de tudo
filósofo e também um importante lógico e matemático, que juntamente com Newton
inventou o cálculo infinitesimal – um talento que influenciou decisivamente sua
maneira de filosofar. Leibniz publicou muito pouco, mas escreveu inúmeros
textos e milhares de cartas em várias línguas, o que representa um sério
problema para os intérpretes. No todo suas obras completas terão mais de 120
volumes. Devido à sua grande variedade de “distrações”, ele dificilmente
conseguia terminar alguma coisa. E ainda que sua filosofia contenha insights extraordinariamente
instigantes, ele nunca conseguiu formulá-la de modo suficientemente
sistemático. Na exposição introdutória que se segue precisarei ignorar os
inúmeros problemas advindo das variações especulativas e indecisões
argumentativas presentes na imensa obra de Leibniz.
O objetivo primordial da metafísica de Leibniz era conciliar a crença no
Deus cristão com a ciência e a cultura de sua época. Seu sistema aliava grande
profundidade e razoável coerência interna a uma extrema implausibilidade
factual, tendo sido considerado demasiado imaginativo e bizarro até mesmo pelos
seus contemporâneos. Mais além, por seu interesse em lógica e matemática ele
influenciou filósofos analíticos como Gottlob Frege, Bertrand Russell e mesmo
um filósofo mais recente como Saul Kripke.
Há uma convicção pessoal de Leibniz que merece ser lembrada. Ele acreditava que
no caso de haver duas posições filosóficas opostas, mas interessantes, o mais
provável seria que ambas tivessem algo de importante a dizer – algo que poderia
ser resgatado por uma posição que abrangesse seus pontos de maior interesse,
como ele mesmo tentou demonstrar em sua filosofia. O defeito mais comum, pensava
ele, é o do espírito sectário, em que as pessoas, ao rejeitarem as outras, se
apequenam... Ele tinha a consciência de que o pensamento de um filósofo não
deveria ser medido pelos seus erros flagrantes e inevitáveis, mas pelos seus
acertos prováveis.
1
Teoria
da verdade. Quero me ater aqui
apenas às partes centrais da filosofia teórica de Leibniz. Antes de começar
devo observar que para ele o enunciado fundamental é o predicativo singular, o que
tem a forma sujeito-predicado ou Fa, como o expresso pela frase
“Sócrates é sábio”. Precisa ser assim porque nesse enunciado o sujeito pode se
referir a uma substância e o predicado a uma propriedade, de modo que
substância e propriedade continuam sendo os constituintes metafísicos últimos
de toda a realidade.
Leibniz acreditava que enunciados com outras formas poderiam ser reduzidos a
enunciados predicativos. Assim, um enunciado condicional como “Se algo é um
cão, então esse algo é um animal” poderia ser reduzido a “O conceito de cão
contém o conceito de animal”. E o enunciado relacional “Paris ama Helena”, que
tem a forma aRb, poderia ser reduzido a “Paris ama e, por esse
mesmo fato, Helena é amada”. Mas essa última redução já não parece mais tão
convincente. Relações assimétricas são particularmente resistentes à tradução
em enunciados meramente predicativos.
Ao contrário do que Leibniz pensava, o mais comum é encontrarmos
enunciados aparentemente predicativos que, devidamente analisados, demonstram
ser enunciados relacionais. Por exemplo: “João é pai” parece predicativo.
Contudo, suficientemente analisado esse enunciado se revela relacional, por
exemplo: “João é pai de Maria, de José e de Carlos”. Afinal, ser pai significa
ser pai de uma, duas ou mais pessoas (uma proposição n-ádica).
Ignorando a objeção acima quero agora expor a teoria racionalista da verdade
proposta por Leibniz, que é fundamental para a compreensão de seu sistema. Para
ele uma frase predicativa é verdadeira quando o conceito de seu sujeito
contém o conceito de seu predicado.[1] Nesse caso temos o
que ele chamou de uma verdade da razão, que é um enunciado que
sabemos ser necessariamente verdadeiro e cuja negação implica em contradição.
Esse é claramente o caso de enunciados como, por exemplo: (1) “Sócrates é
Sócrates”, (2) “O triângulo tem três ângulos”, (3) “Meu irmão é do sexo
masculino” e (4) “2 + 2 = 4”. Eles podem ser considerados enunciados de
identidade, possuindo a forma A = A. Em outras palavras: eles seguem o
princípio da identidade e negá-los fere o princípio da não-contradição. Não
posso afirmar “A = A & ~(A = A)”.
No exemplo (1) já temos uma identidade e não precisamos recorrer à
análise para revelá-la. Mas nos outros exemplos sim. Para revelar a identidade
no enunciado (2) “O triângulo tem três lados” precisamos analisar o conceito de
triângulo, digamos, como “um polígono de três lados”. Podemos com isso
demonstrar a identidade envolvida substituindo o sujeito pela sua definição na
primeira frase. O resultado fica sendo: “O polígono de três lados... tem três
lados.” Mas isso é também uma frase de identidade, que pode ser formalizada
como “A(B) = A”. Para o enunciado (3) “Meu irmão é do sexo masculino”
precisamos substituir “meu irmão” por “o ser humano do sexo masculino filho do
mesmo pai que eu” na construção do enunciado “O ser humano filho do mesmo pai
que eu... é um ser humano”, que é também um enunciado de identidade.
Considere agora (4): “2 + 2 = 4”. Esse enunciado pode ser submetido à
seguinte versão da prova leibniziana de que 2 + 2 = 4. Para tal nós definimos 2
como 1 + 1 (Df.i), 3 como 2 + 1 (Df.ii) e 4 como 3 + 1 (Df.iii).
Depois fazemos a seguinte sequência de substituições:
1. 2 + 2 = 2 + 1 + 1 (Df.i)
2. 2 + 2 = 3 + 1 (Df.ii)
3. 2 + 2 = 4 (Df.iii)
Com
isso temos uma análise finita de “2 + 2 = 4” como sendo uma frase de
identidade. Vemos, pois, que todos os quatro enunciados acima são capazes de serem
entendidos como enunciados de identidade ou redutíveis a eles, demonstrando-se
verdades da razão.
A teoria da verdade de Leibniz parece encontrar sua óbvia limitação no que ele
chamava de verdades de fato. Essas verdades constituem-se em
enunciados verdadeiros nos quais o conceito do predicado não parece estar de
modo algum contido no conceito do sujeito. Exemplos são “Cabral descobriu o
Brasil”, “Júlio Cesar morreu em 44 a.C.”, “Adão comeu a maçã…” Esses enunciados
exprimem para Leibniz verdades de fato. Podemos negar verdades de fato sem
contradição. “Cabral não descobriu o Brasil” é uma frase falsa, mas não a vemos
como sendo contraditória, diversamente de “O triângulo não tem três ângulos”.
Elas não se baseiam no princípio da identidade. E nós não as vemos como
necessárias, mas como contingentes.
Leibniz então se perguntou: por que nas verdades de fato o conceito do sujeito
não parece conter o conceito do predicado? O bom senso responderia que isso não
acontece simplesmente porque a teoria da verdade de Leibniz é limitada,
aplicando-se apenas a verdades da razão e não a enunciados empíricos
contingentes. A teoria da verdade aplicável a verdades de fato seria a velha
teoria da correspondência já claramente proposta por Aquino, para quem a verdade
de um enunciado contingente consiste em sua adequação ao fato empírico ao qual
ele se refere (veritas adaequatio rei et intellectus)… Mas esse não pode
ser o caso para um racionalista tão extremado como Leibniz! Para ele tudo deve
poder ser de algum modo derivado da razão. O Deus de Leibniz é um ser
absolutamente racional e não poderia ter produzido nada que fosse desnecessário
ou supérfluo. Por isso, para ele tudo o que acontece no mundo precisa ter uma
“razão suficiente”. Mas se esse é o caso então tudo o que se predica
verdadeiramente de um sujeito precisa pertencer intrinsecamente a ele, de modo
a ser dele predicado com razão suficiente, ou seja, necessariamente. Mas como é
possível que verdades contingentes como “Cabral descobriu o Brasil” possam ser
vistas como satisfazendo sua definição de verdade? Leibniz tinha uma resposta
para isso. Do ponto de vista humano essa frase é contingente; mas do ponto de
vista divino ela é de algum modo necessária.
Como isso é possível? Leibniz encontrou uma maneira tão engenhosa quanto
inacreditável de generalizar sua teoria da verdade para as verdades de fato.
Sua resposta está na distinção que entre análise finita e
análise infinita. As verdades da razão demandam análises finitas.
Já as verdades de fato demandam análises infinitas nas quais absolutamente tudo
o que acontece com o objeto é explicitado. Uma frase como “Cabral descobriu o
Brasil” teria a forma A(BCD…) = A. Mas quem pode saber disso? Nós, certamente,
não. Para nós essa é uma verdade contingente, posto que a sua negação é
perfeitamente concebível. A resposta era para Leibniz óbvia: Deus é onisciente.
Por ser assim essa não é uma verdade percebida por Deus como contingente, mas
como necessária! Afinal, ele sempre soube que Cabral teria de descobrir o
Brasil. Ele sabe que pertence ao conceito de Cabral o fato de ele ter
descoberto o Brasil em 21 de abril de 1500 e tudo o mais que possa ter
acontecido com ele nos mais ínfimos detalhes. Assim, para Deus “Cabral
descobriu o Brasil” é um enunciado de identidade no qual o predicado pertence
ao sujeito, de modo que sua negação é contraditória.
Uma consequência é que para Leibniz aquilo que individua um
objeto deve ser simplesmente todas as suas propriedades, o que
inclui tudo o que lhe acontece. Assim, pertence necessariamente a Cabral ter
descoberto o Brasil em 21 de abril de 1500, pois se ele não tivesse descoberto
o Brasil ele não seria Cabral. Aqui importa sua distinção entre ter o conceito
e ter um conceito. Só Deus tem o conceito
completo de Cabral, pois conhece todas as suas propriedades. O que nós temos é
apenas um conceito de Cabral – um conceito incompleto,
perspectivo e mesmo variável.[2] Essa constatação é
importante porque se aquilo que individua cada objeto é tudo o que lhe acontece
e se nosso mundo obedece o paradigma racionalista de um determinismo absoluto,
a consequência disso parece ser a de que tudo no universo se encontra
interconectado, de onde advirá a ideia de que cada substância (mônada) de algum
modo deve ser capaz de espelhar em si mesma todo o universo.
Nesse contexto também uma importante distinção é a que Leibniz fez entre o ‘é’
da essência e o ‘é’ da existência. A teoria da
verdade de Leibniz não se encontra comprometida com a
afirmação de existência. Considere a frase “O Ciclope é um gigante de um olho
só”. Essa é uma verdade da razão, um enunciado necessário pertencente à
mitologia grega. Mas Ciclopes não existem. O ‘é’ em questão é um ‘é’ da
essência e não da existência, dizendo-nos que é essencial ao conceito de
Ciclope que eles sejam gigantes de um olho só.
Essa consideração tem implicações para a análise infinita. Deus é capaz de
conceber uma infinidade de mundos possíveis. Assim, há um mundo possível no
qual Adão se recusou a comer a maçã, outro no qual ele comeu uma pera, outro no
qual ele não foi tentado, pois Eva resistiu à sedução da serpente, outro no
qual Eva não existiu… Cada um desses Adãos é diferente, uma vez que eles
possuem diferentes condições de individuação. Todos eles existem na mente de
Deus, mas só um deles foi atualizado em nosso mundo, que foi o Adão que comeu a
maçã. Uma consequência é que o enunciado “Adão comeu a maçã” é não só
essencialmente verdadeiro, mas também existencialmente verdadeiro, dado que a
condição de ter comido a maçã foi atualizada em nosso mundo. Mas o enunciado “Adão
comeu a pera” é apenas essencialmente verdadeiro na mente de Deus, tanto quanto
“O Ciclope é um gigante de um olho só”, que é essencialmente verdadeiro na
mente de Deus, mas existencialmente falso, posto que seu conteúdo não se
encontra realizado em nosso mundo.
Fundamental para Leibniz é também o princípio do melhor. Deus,
sendo perfeito, não poderia ter escolhido realizar qualquer mundo possível. Por
isso ele decidiu realizar o melhor dos mundos possíveis, que é o nosso. Nele
existem coisas ruins como guerras e episódios infelizes, como o de Eva ter se
deixado seduzir pela serpente... Mesmo assim, embora só Deus seja capaz de
saber por que nosso mundo é o melhor, mundos melhores do que o nosso são
logicamente inconsistentes e a única coisa que Deus não é capaz de transgredir
são as leis da lógica (os únicos aos quais realmente é dado esse direito são
alguns lógicos contemporâneos). Por isso Deus não teve outra alternativa que
não fosse a de escolher realizar o Adão que cedeu ao capricho de Eva, comendo a
maçã da árvore proibida.
Uma objeção que poderia ser feita é que se Deus, por sua perfeição, criou o
melhor dos mundos possíveis, então ele teve de criar esse
mundo. Ele não foi livre ao fazer isso. A resposta de Leibniz é que ao criar
este mundo Deus foi forçado apenas por uma necessidade moral, mas
não por uma necessidade metafísica ou absoluta. É certo que a partir disso tudo
o mais se seguiu através de uma imensa cadeia de necessidades; mas esse ato
livre de criação serve como a justificação última para o caráter contingente
das verdades de fato.
As verdades de fato são o que são porque para que tudo o que se predica de um
sujeito deva pertencer a ele Deus precisava ter uma razão suficiente para
fazê-lo assim, mesmo que essa razão só seja compreendida por ele. Assim, a
teoria da verdade de Leibniz implica no princípio da razão suficiente. Deus
tinha em mente uma infinidade de Adãos, mas, movido pelo princípio do melhor
ele escolheu realizar um só deles, qual seja, o Adão que comeu a maçã. Deus
tinha em mente uma infinidade de Júlios Cesares, mas movido pelo princípio do
melhor escolheu realizar somente aquele que lutou na Gália, atravessou o
Rubicão em 49 a.C., derrotou Pompeu, sublevou o senado e foi assassinado em 44
a.C.
Afora isso, o princípio da razão suficiente implica para Leibniz em mais um
outro, que é o princípio da identidade dos indiscerníveis.[3] Nenhum objeto na
natureza pode ser completamente idêntico a outro, nenhuma folha pode ser
completamente idêntica a outra. E precisa ser assim, não só porque pelo
princípio de individuação tudo o que acontecesse a um objeto também teria de
acontecer a outro, mas também porque Deus não teria razão suficiente para criar
duas coisas absolutamente idênticas. Leibniz conta que se encontrava no jardim
da Mme. N. quando apareceu um senhor descrente, colocando em dúvida o princípio
da identidade dos indiscerníveis. Leibniz pediu ao homem para prová-lo
encontrando duas folhas idênticas no jardim. O pobre homem procurou, procurou,
mas nada conseguiu encontrar, acabando por render-se ao princípio.
2
Mônadas. Passemos agora à questão da substância. Influenciado
pela filosofia escolástica Leibniz via a substância como sendo aquilo que
realmente existe. Sua definição era aristotélica: a substância é aquilo que
pode ser sujeito de muitos predicados, mas que não pode ser predicado de
sujeito algum. Mas então, o que é a substância? Leibniz excluiu
a res extensa cartesiana pela seguinte razão. A substância, no
sentido mais próprio, precisa ser algo que não pode ser dependente de nada mais
para existir. A extensão, contudo, pode ser subdividida infinitamente. Assim,
se admitirmos que um corpo extenso é substância, ele dependerá de suas partes
para existir, as quais também serão substâncias e assim infinitamente. Mas a
substância, por definição, não pode depender de nada (exceto de Deus) para
existir. Se o mundo físico das coisas extensas não pode ser substancial, tudo o
que resta são as mentes. Afinal, as mentes (como o Deus e as almas dos
escolásticos) devem ser consideradas simples e, por isso
mesmo, indivisíveis, o que as faz independentes das suas partes. E as mentes
devem possuir, naturalmente, vida, tendo como características principais a
percepção e a apetição (vontade).
A essas substâncias simples de caráter mental Leibniz deu o nome de mônadas (do
grego monas, que significa unidades). Elas são simples, pontuais,
indivisíveis e por isso mesmo indestrutíveis. O universo é constituído de uma
infinidade de mônadas que possuem percepções, ou seja, “representações no
simples daquilo que é composto ou daquilo que lhe está fora”.[4] Tal como a substância
aristotélica, a mônada leibniziana possui um correspondente da forma, que se
encontra em seu aspecto mental, e um correspondente da matéria, que é sua
potencialidade, por ele chamada de matéria prima. (Para Leibniz a
mônada possui uma força ativa primitiva mental, que é atualidade, equivalendo à
forma substancial aristotélica, além de uma força primitiva passiva, que é sua
potencialidade, o equivalente à matéria aristotélica.)
Como só a substância mental é real, o espaço não pode ser por si mesmo real,
nem o tempo. Sendo Deus perfeito ele criou um número infinito de mônadas, as
quais, pelo princípio da identidade dos indiscerníveis, deveriam ser todas
diferentes umas das outras. O que chamamos de universo, como notei, nada mais é
do que uma infinidade de mônadas. Enquanto Spinoza era frugal e só aceitava uma
substância, Leibniz era esbanjador e admitia um número infinito de substâncias.
Mas se admitirmos que o universo é fundamentalmente constituído de mônadas,
então como explicar os objetos visíveis que constituem o mundo que nos cerca,
como uma pedra, uma árvore, uma pessoa? Também para isso Leibniz encontrou
respostas. Assim como uma infinita sequência de pontos infinitamente pequenos
permite a construção de uma linha reta extensa na geometria euclidiana, também
um número infinito de mônadas é capaz de produzir objetos possuidores de
extensão espacial. Para explicar como um número indeterminado de mônadas é
capaz de produzir a solidez de uma rocha ele fez uma comparação com o
arco-íris. As cores parecem existir, mas são meros reflexos de gotículas de
água. Assim, agregados infinitos de mônadas mentais produzem a impressão de
corpos físicos extensos como a rocha, que não passam de “fenômenos bem
fundados” (phaenomena bene fundata). Leibniz, como vemos, é um filósofo
idealista.
Há uma série de propriedades das mônadas que são sui generis. A
mais curiosa é que elas são “sem janelas”: elas não interagem umas com as
outras, mesmo que assim lhes pareça. Elas não podem interagir porque relações
não possuem a forma predicativa e já sabemos que para ele as relações são
ilusórias, não possuindo uma realidade própria. A conclusão de Leibniz é que
cada mônada, cada substância individual, já tem desde sempre a sua história
completamente determinada por Deus. Como consequência disso a causalidade
verdadeira é impossível: basta considerarmos que as relações causais são
originariamente temporais, a causa vindo antes de seu efeito, e entenderemos
que Leibniz tem razão ao desclassificá-la. A única exceção é Deus, que é
causa externa do mundo.
Uma outra propriedade impressionante que Leibniz descobre nas mônadas é a
capacidade que cada uma delas possui de espelhar o universo inteiro em todos os
seus detalhes e em todos os tempos. Como ele escreveu:
Ora, esse enlace, essa acomodação de todas as coisas
criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz cada substância simples
ter relações que exprimem todas as outras e ser, portanto, um espelho vivo e
perpétuo do universo.[5]
Esse
espelhamento do universo não pode ser feito por meio de relações, mas pelas
propriedades intrínsecas das mônadas. Assim, se a e b são mônadas, elas não se
associam na forma aRb, mas na forma Fa e Fb, onde os F substituem os R tomando
o lugar de propriedades fenomenais intrínsecas das mônadas.
Ainda outra propriedade das mônadas é que cada uma delas reflete o universo sob
um ponto de vista particular, caracterizado por Leibniz como
sendo a clareza e a distinção perceptual de aspectos das coisas, movida pela
apetição das mônadas. Explicando: cada mônada tem maior ou menor clareza e
distinção diferentemente distribuída para coisas diferentes. Isso é importante
porque se cada mônada reflete em si todo o universo então elas não parecem se
diferenciar entre si, o que fere o princípio da identidade dos indiscerníveis;
contudo, como cada uma reflete o universo sob um ponto de vista diferente, elas
se diferenciam entre si nesse aspecto. Mesmo entre diferentes mundos possíveis
não seria possível a existência de duas mônadas idênticas, pois como cada uma
reflete o universo inteiro e os mundos são diferentes, suas perspectivas teriam
de ser diferentes. É a diferença de ponto de vista que distingue cada
mônada de todas as demais.
3
Hierarquia. Há uma outra maneira pela qual as mônadas diferem, que
é pela sua posição na hierarquia das mônadas.
As mais inferiores são as mônadas nuas. Agregados harmônicos de
infinitas mônadas mais inferiores fazem derivar o que percebemos como sendo os
corpos físicos, o mundo vegetal, os corpos dos animais e nossos próprios. Essas
mônadas têm percepção completamente inconsciente, não possuindo memória. Cada
uma delas percebe o mundo infinitamente, mas de modo totalmente inconsciente. E
um objeto físico qualquer é fundado na atividade de um número infinito de
mônadas. A extensão, melhor dizendo, a impressão de extensão, era para Leibniz
resultado da repetida continuidade de uma força de resistência e
impenetrabilidade que constitui o que usualmente chamamos de matéria, que
quando tornada força ativa produz o movimento. Para além de Descartes, Leibniz
foi contemporâneo de Newton, preferindo tornar a extensão resultado da ação de forças
físicas, mesmo que de modo vago e obscuro.
O próximo nível é o das mônadas animais. Essas almas animais são capazes
de percepção e memória. Elas percebem o mundo sob perspectivas particulares,
mesmo assim confusas. Leibniz comparou a percepção confusa com o rugido das
ondas do mar, que não permite que se ouça cada som separadamente. Assim, o
corpo de um elefante é constituído de infinitas mônadas nuas, percebidas por
uma mônada mestra, que é a sua mente animal. Essa última mônada é dominante em
relação ao agregado de mônadas do qual se deriva o que é percebido como sendo o
corpo do animal. Essa é uma sugestão mais sensível que a de Descartes, segundo
o qual os animais não passavam de autômatos.
Em um terceiro nível temos as mônadas racionais. Espíritos racionais,
como as almas dos seres humanos, são capazes não só de perceber o mundo sob
pontos de vista particulares e de possuírem memória, mas são capazes de apercepção,
que é o termo que Leibniz tinha para a consciência, que ele distinguia
da mera percepção, que não precisava ser consciente.[6] Mesmo assim, embora
tenhamos percepção de todo o universo, quase todo esse conhecimento é
inconsciente.
No quarto nível chegamos finalmente à mônada-Deus, que possui percepção
absoluta do mundo inteiro sob todos os pontos de vista e absoluta apercepção.
Nós somos limitados em nossos julgamentos por nossas perspectivas limitadas,
que são sempre parciais. Só Deus é capaz de julgar sob todas as
perspectivas, com inteira imparcialidade e ilimitada sabedoria. Daí porque para
ele todo o universo é racionalmente justificado.
As mônadas tem apetição, movimento, aspiram à perfeição. Por essa razão o mundo
se move em direção a Deus. Em nosso melhor mundo possível, quando algo de muito
ruim ocorre (uma Guerra, uma catástrofe…) deve ser apenas para que algo melhor
venha a acontecer mais tarde.
Se as mônadas são sem janelas então por que elas parecem interagir umas com as
outras? Por que eu pareço ser capaz de mover as mônadas que constituem o meu
braço, ou me comunicar com outras mônadas-mentes de outras pessoas? A resposta
de Leibniz foi feita em oposição ao ocasionalismo de Nicholas Malebranche, que
fazia sucesso na época. Malebranche rejeitava com boas razões o interacionismo
de Descartes. Sua solução, porém, consistia na ideia de que Deus interfere a
cada momento, fazendo com que acontecimentos no mundo exterior ocorram e
fazendo com que logo a seguir a alma tome conhecimento deles e reaja, tendo a
impressão de que essa reação está produzindo um movimento corporal, que é outra
vez causado por Deus. O que Descartes entendia como interação passou a ser
entendido como uma ilusão de interação.
Leibniz não gostava dessa ideia, que fazia de Deus um trabalhador incansável. A
sua solução foi tão simples quanto fantástica. Trata-se de sua doutrina
da harmonia pré-estabelecida. Quando Deus criou o universo ele
determinou previamente tudo o que cada mônada faria e perceberia ad
aeternum. Deus fez isso como um perfeito relojoeiro, fazendo com que cada
mônada por toda a eternidade aparentasse se relacionar com as outras, assim
como relógios bem sincronizados são capazes de marcar a mesma hora. Não surpreende,
pois, que você tenha a impressão de estar interagindo com um mundo externo, que
a sua mônada-alma esteja agora tendo a impressão de estar lendo um texto
escrito por minha mônada-alma. Afinal, essa coincidência já havia sido
estabelecida por Deus no momento da criação.
4
Consciência
e o inconsciente. Com a noção
de apercepção Leibniz – e mais ainda Locke, com o conceito de reflexão –
estava antecipando teorias contemporâneas da consciência, especialmente as que
requerem estados mentais de ordem superior. Segundo David Armstrong, o primeiro
proponente das teorias de ordem superior, esses estados se tornaram necessários
para a regulação de sistemas cognitivos mais complexos.[7] Segundo essas teorias,
a consciência dos estados mentais de primeira ordem depende de sua cognição
por meio de estados mentais de segunda ordem. Para os defensores dessa teoria,
um estado mental se torna consciente quando é objeto de uma cognição
(percepção, para Armstrong, e pensamento para David Rosenthal) de nível
superior. Por exemplo: se sinto uma muito leve dor de dente durante o dia, eu
só me torno consciente dela quando penso nela. Esse pensar é uma cognição de
nível superior. A mesma coisa deve acontecer com outros estados mentais ditos
conscientes, como emoções e pensamentos. Mas a cognição de segunda ordem,
segundo Rosenthal,[8] não
é consciente, a menos que se torne objeto de uma cognição de terceira ordem e
assim por diante. O pensamento que está no topo, escreveu ele, nunca é
consciente, o que explica a impossibilidade de uma forma completa de
consciência e mesmo a dificuldade que muitos tem em aceitar a teoria.
Um outro conceito que Leibniz antecipou com a sua ideia de que quase a
totalidade da percepção das mônadas é confusa, tal como a imensa mistura de
sons que promove o rugido do mar, foi o de inconsciente. Tratam-se de petites
perceptions, incapazes de ultrapassar o limiar da consciência. Somente no
século XX graças à obra de Sigmund Freud, nas mais bem controladas circunstâncias
da experiência psicanalítica, o conceito de inconsciente foi muito mais
detalhadamente e profundamente explorado.
5
Espaço
e tempo. Um outro tópico
importante diz respeito à disputa com Newton em relação à física. Newton foi um
físico incomparável, mas Leibniz lhe era superior como filósofo. Leibniz
objetou contra a ação à distância implícita na ideia da força gravitacional de
Newton. Aqui Leibniz antecipou especulativamente um pressuposto que só foi
resgatado pela teoria da relatividade generalizada, qual seja, a ideia de que
não existe uma força gravitacional atuando à distância. O que existe,
sabemos hoje, é um encurvamento do espaço-tempo que aumenta na proximidade dos
corpos físicos e que faz com que eles caiam ou entrem em órbita, como acontece
com os planetas em relação ao sol.
Leibniz também parece ter tido razão contra Newton em suas objeções à concepção
absolutista do espaço e do tempo defendidas pelo último. Para Newton, espaço e
tempo são absolutos e infinitos. O espaço é como um container infinito dentro
do qual se encontram os objetos materiais, os eventos, as forças físicas… E com
o tempo se sucede a mesma coisa: os eventos ocorrem no tempo, mas o tempo é
absolutamente independente desses eventos. Espaço e tempo seriam para Newton
o sensorium dei, ou seja, o meio pelo qual Deus ganha consciência
do universo e se faz capaz de ordená-lo.
Leibniz respondeu apelando para o princípio da identidade dos indiscerníveis e
para o que hoje chamaríamos de um princípio da verificação. Esse princípio nos
diz que enunciados que por razões lógicas não podem ser tornados verdadeiros ou
falsos simplesmente não fazem sentido. Ele respondeu a Newton dizendo que se o
espaço fosse infinito, sendo o universo finito, então ele poderia estar situado
em uma outra região do espaço sem que pudéssemos saber qual. O universo poderia
até mesmo mover-se de uma região para outra do espaço infinito e não teríamos
meio algum de verificar essa mudança. Se o tempo, por sua vez, fosse algo
infinito dentro do qual os eventos se sucedem, o universo poderia ter se
iniciado antes ou depois no interior do tempo, o que também não poderia ser
verificado, pois diante da infinitude não teríamos como saber que antes ou
depois seriam esses. Afora isso, Deus não teria mais qualquer razão suficiente
para escolher situar o universo em uma região do espaço ou em um período do
tempo. Afora isso, uma região do espaço infinito seria idêntica a qualquer
outra região do espaço infinito, o que também fere o princípio da identidade
dos indiscerníveis.
O argumento contra Newton é forte. Ele seria menos convincente se Leibniz
não tivesse uma outra concepção do espaço e do tempo para concorrer com a
posição newtoniana: a teoria relacional que veremos a seguir.
Para Leibniz, espaço e tempo só existem porque existem corpos, eventos e forças
físicas. Para ele o espaço é uma ordem de coexistências, enquanto o
tempo é uma ordem de sucessões. Essa é a essência de sua teoria relacional
do espaço e do tempo. Eles são dependentes das coisas que constituem o
universo.
Sob essa perspectiva, o que chamamos de espaço resulta de corpos materiais e
eventos mais ou menos próximos, acima, abaixo, ao lado, com distâncias medidas
pela repetição de uma mesma relação espacial. O mesmo com o tempo: o antes, o
depois e a simultaneidade dependem das coisas que preexistem, pós-existem e
coexistem. Como diríamos hoje, o tempo depende de eventos físicos; o tempo
começou a ser medido pela repetição cíclica desses eventos, como os dias e as
estações dos anos, tendo mais tarde se tornado precisos pela invenção de
relógios, também eles cíclicos. Se corpos materiais, eventos e forças físicas
não existissem, espaço e tempo também não existiriam.
Ao admitir que espaço e tempo são relacionais e considerando que relações para
Leibniz não existem, espaço e tempo são para ele ideais no sentido de não
possuírem realidade autônoma. São, como ele escreveu, fenômenos bem fundados (phenomena
bene fundata), produzidos pelos variados pontos de vista das mônadas. Mas
como a monadologia é uma teoria só aceitável em meio às disputas teológicas da
época de Leibniz, fazemos bem em separá-la da teoria relacional do espaço e do
tempo. O próprio Leibniz fez isso ao apresentá-la em sua famosa discussão com
Clarke, um seguidor de Newton.
Um resultado da concepção relacional foi para Leibniz o horror ao vazio.
Ele discutiu a experiência de Torricelli, que encheu de mercúrio um tubo fino
de vidro com um lado fechado, mergulhando o lado aberto em uma cuba cheia de
mercúrio. Como o mercúrio é muito pesado, parte dele descia dentro do tubo
deixando um vácuo absoluto atrás de si. Leibniz respondeu que não se trata de
um verdadeiro espaço vazio, pois “o vidro tem poros muito sutis através dos
quais os raios de luz, os do imã e outras matérias muito finas podem passar”.[9] Não parece que ele
precisaria ir tão longe.
Seria interessante ver como a disputa entre espaço e tempo absolutos e
relacionais pode ser projetada na física contemporânea. Segundo a teoria da
relatividade restrita, medições de tempo precisam ser feitas sempre com relação
a um sistema dito inercial, no qual elas se baseiam, e isso vem de encontro à
concepção relacional de Leibniz. Um problema maior consistiria na comparação
com a teoria da relatividade generalizada. Talvez seja mesmo possível a um
defensor contemporâneo de Leibniz dizer que os corpos e eventos físicos se
relacionam espaço-temporalmente através da gravitação, de modo que o
espaço-tempo só pode existir até onde existir gravitação. Nesse caso, um espaço
completamente “fora” do universo não poderá existir, o mesmo podendo ser dito
do tempo.
6
Inatismo. Um último tópico a ser abordado diz respeito
à oposição entre o “ultra racionalista” Leibniz e seu contemporâneo, o “mega
empirista” John Locke, com respeito ao conhecimento inato.
Sendo um modelo de filósofo empirista, Locke rejeitou qualquer espécie de
conhecimento inato. Nossa mente, quando nascemos, é como uma folha de papel em
branco e todo nosso conhecimento é obtido a posteriori, através da experiência
indutiva. Vemos o sol nascer todos os dias e, por indução, concluímos que
ele também nascerá amanhã... Locke estendia o empirismo mesmo à matemática e a
lógica. Um exemplo é o princípio da não-contradição, considerado por
Aristóteles o mais fundamental da lógica. Segundo esse princípio “um mesmo
enunciado não pode ser verdadeiro e falso” (ver cap. III, sec. 8). Para
racionalistas como Leibniz, nós já nascemos com a disposição para
seguir esse princípio. Para Locke é diferente: nós aprendemos os conceitos de
branco, preto, quadrado, círculo, amarelo, doce, etc. para então percebermos
que o branco não pode ser preto, o quadrado não pode ser um círculo, o amarelo
não pode ser doce... Isso nos leva a concluir que um enunciado como “Isso é
branco” não pode ser verdadeiro e falso no mesmo sentido. No passo seguinte nós
generalizamos, concluindo que um mesmo enunciado não pode ser verdadeiro e
falso. É dessa maneira que ele acreditava ser até mesmo o princípio da
não-contradição extraído da experiência empírica![10]
Leibniz, pelo contrário, acreditava que nós nascemos com uma multidão de
inclinações, disposições, tendências ou virtualidades inatas, que incitadas
pela experiência se demonstraram conhecimento a priori, posto que
não dependem de experiência indutiva. A palavra hoje mais utilizada é
‘disposição’. Uma propriedade de algo é disposicional quando só aparece no caso
de serem dadas certas circunstâncias específicas, geralmente não presentes.
Esse é o caso do sal de cozinha. Ele tem a propriedade disposicional de se
dissolver se for misturado à água. Para Leibniz, o mesmo acontece com as assim
chamadas ideias inatas. A sua analogia, por oposição à de Locke, era a de um
bloco de mármore homogêneo com veios.[11] Tudo o que o
escultor – ou seja, a experiência – precisa fazer é escavar nos veios, o que
fará aparecer a estátua de Hércules – a ideia inata – que se encontrava oculta
no bloco de mármore. Uma vez exposta, a estátua pode ser polida – melhor
dizendo, a ideia inata pode ser colocada em palavras. É através de um apelo a
disposições inatas que um racionalista explicaria nossa capacidade para
aprender e explicitar linguisticamente coisas como a aritmética e a geometria
euclidiana, assim como nossa imediata compreensão de princípios lógicos.
Contudo, como justificar a verdade de nossa disposição inata para termos certas
ideias? A resposta de Leibniz é que, sendo feitos à imagem de Deus, possuímos
um entendimento semelhante ao dele, embora infinitamente inferior. Esse
entendimento se baseia no acesso disposicional a um conhecimento verdadeiro
e a priori, dado que mesmo pressupondo a experiência não é dela
originado. Se considerarmos o desenvolvimento contemporâneo da psicologia, por
exemplo, a psicologia genética de Jean Piaget, seremos levados a concluir que o
tempo deu razão a Leibniz com respeito à disposição inata para a formação de
conceitos e princípios, entre eles o princípio lógico da não contradição. Esse
último pode ser chamado de a priori no sentido de que embora
pressupondo a experiência para sua compreensão linguística, não se originou
dela. Mas o tempo não deu razão a Leibniz com respeito à verdade necessária de
toda e qualquer ideia ou princípio resultante de disposições ou virtualidades
inatas, ainda que isso possa valer para princípios lógicos fundamentais.
Se o
filósofo racionalista contemporâneo quiser manter que possuímos muitos
conceitos e princípios a priori, ele precisará enfraquecê-lo, abandonando a
condição de que ele deva ser necessário e universal.[12] Ou seja, o conhecimento a
priori deve passar a ser visto como sendo em geral falseável pela
experiência, ou seja, falível.[13] Aliás, a motivação mais
importante da defesa do empirismo por Locke era garantir a flexibilidade de
nosso entendimento, necessária ao desenvolvimento da ciência, por oposição ao
dogmatismo e ao autoritarismo. É aqui que entra em cena uma tese importante de
Karl Popper, um racionalista crítico contemporâneo (como Jean Piaget e Noam Chomsky),
que admite um inatismo disposicional sem deixar de preservar a flexibilidade do
conhecimento. Para Popper um filósofo como Locke defendia uma versão da teoria epistemológica
do “balde mental”, à qual ele opunha sua teoria do holofote do
conhecimento.[14] Para Locke a mente seria como um balde
que sob as torneiras da experiência vai aos poucos se enchendo de conhecimento.
Contra essa teoria Popper comparou nossas disposições inatas com o que acontece
com os animais no fenômeno chamado de imprintação. Um ganso tem o
que Popper chamou de uma “teoria” inata: a de que o primeiro objeto móvel que
ele encontrar diante de si após as primeiras horas do nascimento é “sua mãe”,
devendo ser seguido de uma vez para sempre. Geralmente essa teoria é
verdadeira: o objeto é realmente a sua mãe. Mas a teoria se demonstra falsa
quando, por exemplo, esse primeiro objeto móvel forem as botas do pesquisador.
Nesse caso, o pequeno animal irá seguir as botas do pesquisador durante todo o
seu crescimento, como se elas fossem a sua mãe, em um processo irreversível.
Popper comparou o caso da imprintação em animais com o que acontece com
os seres humanos. Para ele há uma diferença crucial: enquanto nós
compartilhamos com os animais de disposições inatas para formar teorias sobre o
mundo, nós somos flexíveis o suficiente para abandoná-las quando a experiência
as refuta. Procuramos então criar outras hipóteses teóricas capazes de resistir
à refutação pela experiência. As disposições inatas podem ser o começo de tudo,
mas não são para nós o fim de tudo. O fim de tudo se encontra no conhecimento
científico.
A última pergunta a ser respondida diz respeito à razão pela qual nossas
disposições inatas para o conhecimento são falíveis. A resposta é simples. Elas
são resultado da evolução natural. A seleção dos mais aptos faz com que
sobrevivam aqueles indivíduos que possuem uma disposição, digamos, a de seguir
o primeiro objeto móvel que se encontra diante deles, uma vez que esses
espécimes serão aqueles capazes de crescer e se reproduzir, passando essa
disposição para a sua prole. Com o tempo a maioria ou mesmo todos os membros da
espécie passam a possuir essa disposição.
Mas por que tais disposições herdadas podem gerar “teorias” que podem se
demonstrar falsas? A resposta é que também elas foram consequência de um
processo análogo ao indutivo. Na evolução, no curso do tempo, quando os novos
indivíduos são sempre expostos às mesmas circunstâncias, são selecionados
aqueles que possuem as disposições que lhes permitam sobreviver e se
multiplicar. Se essas disposições forem cognitivas, elas servirão de base para
a produção de um conhecimento a priori: uma “teoria” sobre como as
coisas são, a qual sempre tem sido confirmada pela experiência coletiva.
É
curioso notar que se esse processo seletivo for considerado sob o ponto de
vista lógico, ele se mostrará de natureza indutiva. Afinal, também é pela
repetição de eventos similares com consequências similares em situações as mais
diversas que no caso mais prototípico usual produzimos nossas inferências
indutivas enumerativas. Podemos ter a impressão de que um processo logicamente
idêntico não pode ocorrer na seleção natural apenas porque estamos acostumados
com induções feitas por sujeitos cognitivos como nós mesmos. Mas do ponto de
vista lógico isso não é necessário. Uma máquina é perfeitamente capaz de ser
programada de modo a realizar induções sem que isso se acompanhe de um processo
cognitivo. O mesmo se dá na formação de disposições através da evolução da
espécie. Chamo a isso de indução evolucionária ou indução
da espécie. Uma espécie pode ser tratada como se fosse um indivíduo que se
estende no tempo, assim como um formigueiro pode ser tratado como um indivíduo
estendido no espaço.[15] Do ponto de vista da
formação de disposições cognitivas, uma espécie se transforma e evolui através
da indução evolucionária. A conclusão epistemológica importante disso é que
temos uma explicação da falibilidade de muito daquilo que pode ser classificado
como sendo conhecimento a priori: como o mecanismo de formação das
disposições inatas é indutivo, e como todo o conhecimento que advém da indução
é falível, os resultados cognitivos dessas disposições podem ser em muitos
casos falseados por novas experiências. É claro que essa conclusão não pode ser
generalizada para conceitos metafísicos como o de existência e princípios
lógicos como o da não-contradição, uma vez que seus designata são comuns
tanto a qualquer pensamento quanto a qualquer coisa no mundo.[16] Mas eles são muito
poucos.
Uma última questão: estamos com a ideia de uma indução evolucionária esposando
uma forma radical de empirismo? Creio que não. Mesmo que as disposições inatas
sejam derivações indutivas da “experiência” da espécie, elas são mesmo assim
inatas, atuando de modo a constituir pontos de partida estruturantes e
direcionadores de nosso aprendizado. Seria mais correto dizer que estamos
preconizando uma espécie de naturalismo, o que nos faz recordar um
racionalista como Spinoza. Parece claro que a oposição histórica entre
racionalismo e empirismo está sendo hoje aos poucos superada.
7
Identidade. Como vimos, para Leibniz o critério de identificação
de um objeto consiste na totalidade de suas propriedades. O problema é que só o
Deus de Leibniz seria capaz de aplicá-lo. O critério de identificação de
objetos materiais a ser usado por nós mesmos deve muito diverso, pois precisam
ser suficientemente econômicos para caber em nossas mentes. Os dois maiores
candidatos ao papel de critério de identificação hoje considerados são, no caso
de objetos materiais, a localização espaço-temporal e as propriedades caracterizadoras.
Esse é o caso, digamos, do critério de identificação do Taj Mahal. Esse
monumento tem um critério de localização espaço-temporal: desde o término de
sua construção em 1653 ele se localiza junto à cidade de Agra no norte da
Índia. Mas ele também possui como critério de identificação propriedades caracterizadoras
(i.é., a razão pela qual aplicamos o nome), no caso, a de ser um belíssimo
mausoléu de mármore branco com formas bem conhecidas, construído pelo imperador
Shah Jahan para sua amada terceira esposa... A razão para privilegiarmos a
localização espaço-temporal e propriedades caracterizadoras como critérios é
intuitiva. O teste para demonstrar isso é trivial: basta recorrer à sabedoria
cumulativa das enciclopédias. Qualquer uma que tenha um artigo sobre o Taj
Mahal irá disponibilizar a localização espaço-temporal junto aos caracteres
essenciais como critérios fundamentais para sua identificação.[17]
Elementos espaço-temporalmente localizadores e essencialmente caracterizadores
são os que nos permitem identificar objetos materiais. Eles precisam se fazer
suficientemente presentes, mesmo que uma determinação mais precisa, capaz de
aclarar casos limítrofes, seja impossível. Tal determinação mais precisa,
felizmente, costuma ser desnecessária. Podemos, por certo, imaginar uma
situação contrafactual que torne incerta a aplicação dos critérios usuais.
Imagine que nosso mundo não existisse, mas em compensação tivesse existido um
mundo praticamente idêntico ao nosso, no qual um mausaléu chamado Daj Nahal muito
parecido com o nosso Taj Mahal fosse construído, mas não foi por Shah Jahan,
nem junto à Agra, mas por outra pessoa junto a Rishikesh no ano 1356 e não em
1653. Seria ele o nosso Taj Majal? Parece
que não, mas talvez sim! – Não sabemos. Importante é notar que nossos critérios
relativamente imprecisos de localização e caracterização são perfeitamente
aplicáveis em circunstâncias usuais. A existência de fronteiras indefinidas na
aplicação de um conceito não é razão para nos tornar céticos quanto à sua
aplicação.
Observações semelhantes valem para os critérios de identificação de pessoas.
Aqui deve ser considerado um critério espaço-temporal de continuidade física (que
não se resume à permanência do mesmo), sendo a isso adicionados critérios
psicológicos de permanência, como o da memória, o das disposições de caráter e
o das habilidades. Também aqui será impossível resolver casos limítrofes, o que
não quer dizer que os critérios usuais não sejam perfeitamente funcionais para
os casos ordinários.[18] A linguagem natural
é vaga e se desejarmos um maior nível de precisão bastará adotarmos por
convenção critérios de identificação mais precisos.
[1] “...em toda proposição afirmativa verdadeira,
necessária ou contingente, geral ou singular, a noção do predicado se encontra
de algum modo contida na noção do sujeito (o predicado está incluido no
sujeito).” Leibniz, Carta à Arnauld, 14 de Julho de 1686.
[2] G. W.
Leibniz: Discurso de Metafísica, sec. 8.
[3] Esse
princípio não deve ser confundido com o princípio da indiscernibilidade
dos idênticos, que nada tem de metafísico. Segundo esse último princípio,
se os nomes a e b se referem à mesma coisa então qualquer propriedade de
a também se será propriedade de b e vice-versa.
[4] G.
W. Leibniz: Princípios da
natureza e da graça, sec. 1.
[5] G. W. Lebniz: Monadologia, sec. 56.
[6] G. W. Leibniz: Monadologia, sec. 14.
[7] David
Armstrong: The Nature of Mind and Other Essays (Cornel
University Press 1981), cap. 4.
[8] David
Rosenthal: Consciousness and Mind (Clarendon Press 2005).
[9] G. W.
Leibniz: Correspondência com Clarke, sobre a sec. 7.
[10] Um ensaio
sobre o conhecimento humano I, II, 18-19.
[11] G.
W. Leibniz: New Essay on Human Understanding. Prefácio.
[12] Segundo Kant o conhecimento a priori é aquele que mesmo
dependendo da experiência não é proveniente dela, tendo como marcas a
necessidade e universalidade (ver cap. XII, sec. 2).
[13] Maurice
Bonjour aproxima-se disso ao admitir que a falibilidade da justificação a
priori. Ver “Is there a priori Knowledge?” in M. Steup e E. Sosa: Contemporary
Debates in Epistemology (Oxford: Blackwell 2005).
[14] Karl Popper: “O
balde e o holofote: duas teorias do conhecimento.” In: K. R. Popper: Conhecimento
objetivo. (São Paulo: Itatiaia Edusp, 1975) pp. 313-332. Outros ilustres
defensores do que chamo de racionalismo crítico foram Jean Piaget e Noam
Chomsky.
[15] M. T. Ghiselin, “A Radical Solution to the
Species Problem.” Systematic Zoology 23 (4), 1974, pp. 536-544.
[16] É comum se ouvir dizer que a física quântica refuta a
não-contradição e coisas do gênero. Mas isso dependerá da interpretação da
teoria que escolhermos, o que torna o assunto controverso.
[17] Claudio Ferreira-Costa: How
do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III. A
questão das fronteiras conceituais indefinidas foi especialmente considerada
pelo último Wittgenstein.
[18] Claudio Costa: “Definindo
identidade pessoal”. In Arquiteturas conceituais (Belo
Horizonte: Dialética 2022) cap. 20.
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