Quem sou eu

Minha foto
If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO

  DRAFT para um capítulo do livro a ser publicado com o título de "Introdução histórica à filosofia".

 

 

XX

A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO

 

Tem sido dito que vivemos uma época de escolasticismo filosófico que dificulta maiores desenvolvimentos.[1] Ao que me parece, nos últimos tempos esse escolasticismo tem sido vítima de uma brutal racionalização e burocratização do trabalho filosófico, que promove interpretações acuradas e desenvolvimentos pontuais, mas que paralisa a possibilidade de inovações verdadeiramente disruptivas. Segundo alguns isso tem acontecido não só com a filosofia, mas até mesmo com a própria ciência.[2] Nesse último capítulo, assumindo a justeza dessa constatação, quero tentar esclarecer um pouco as raízes do presente estado de coisas e mostrar alternativas viáveis.

 

1

 

Quero começar considerando um fenômeno sociocultural importante e pervasivo no curso do desenvolvimento da civilização, que Max Weber chamou de Entzauberung der Welt: a demagificação do mundo.[3] Embora Weber tenha se restringido ao exame de processos sociais posteriores à reforma protestante e ao desenvolvimento das economias capitalistas, sua origem foi bem mais remota. No início do processo civilizatório o mundo que nos rodeia costumava ser visto como algo vivo, capaz de possuir vontade e paixão e de responder aos apelos humanos. Como complemento, as práticas culturais que presidiam as comunidades humanas eram elas próprias organicamente construídas com base nas interações sociais do assim chamado mundo da vida (Lebenswelt) – o mundo do agir quotidiano. Assim era o mundo que pode ser descrito como “mágico”. Mesmo após a emergência do monoteísmo judaico-cristão, quando as comunidades eram administradas em associação com lideranças religiosas, quando ainda existiam santos e milagres, quando a vida humana ainda era controlada pela religião, o universo humano era repleto de magia.

   Contudo, com o desenvolvimento da economia capitalista no final do século XIX e com o desenvolvimento da ciência e tecnologia que a acompanhou, produziu-se um verdadeiro rompimento com a visão religiosa antes existente. Ainda que as religiões permaneçam existentes, elas hoje muito mais acompanham do que presidem a vida humana. O que vemos é a substituição do mundo animista por um mundo cada vez mais secular, cada vez mais “mundanizado”. O desenvolvimento da ciência fez com que a magia e a força institucional do mundo místico perdessem seu poder. O que ao nível social promoveu essa substituição foi a introdução do que Weber chamou de processos de racionalização e burocratização da sociedade, que tornaram a produção de bens muito mais eficaz, mas que se instalaram muitas vezes em detrimento da ação valorativa. Nesse meio o indivíduo passou a ser uma peça em um mecanismo que ele mesmo desconhece, ao mesmo tempo em que perdia seu enraizamento naturalmente construído a partir do mundo da vida. Isso produziu um aumento do individualismo acompanhado de um empobrecimento alienador do indivíduo em sua subjetividade reflexiva. Afinal, parece que no fim de tudo ainda valem as palavras do poeta Stefan George: “Só pela magia a vida continua desperta” (Nur durch dem Sauber bleibt das Leben wach).

   Hoje, quando a ciência e a técnica conquistam cada vez mais a vida humana, vivemos sob a égide dessa forma de demagificação. Como sumarizou Habermas: a patologia do mundo contemporâneo consiste na “colonização do mundo da vida pelo sistema” (entendendo-se por sistema as instituições sociais).[4] É assim porque os sistemas são autopoiéticos: uma vez estabelecidos, eles se auto-organizam de modo autônomo, ao menos enquanto deixados à revelia de um controle social suficientemente reflexivo para assegurar que eles permanecem vantajosos para a sociedade que os criou.

    Weber introduziu o conceito de demagificação influenciado por Nietzsche, o que nos faz pensar a ideia de niilismo. Como vimos, uma consequência da perda do papel fundacional da crença religiosa na sociedade pode ser o niilismo, que tanto pode levar à perda dos valores morais quanto a ideologias simplificadoras, como no caso de crenças substitutivas degeneradas como é acontece com seitas místicas de várias espécies, ou no caso de sistemas totalitários como comunismo marxista-leninista em sua versão estalinista ou do nazismo alemão. Trata-se nos dois últimos casos de patologias sociais profundamente perturbadoras, que sob outros nomes ainda hoje nos assediam.

   Embora Weber admitisse a inestimável importância social da racionalização e da burocratização na melhoria do desempenho da sociedade como um todo, ele também era um crítico enérgico de suas limitações e do risco de comportarem efeitos socialmente e culturalmente patológicos. Vale citar aqui a famosa passagem em que ele usa a metáfora da jaula de ferro para expor a possível perda da vida interior em um mundo cientificamente racionalizado e burocratizado:

 

Ninguém sabe quem irá viver nessa jaula no futuro, ou se no final desse tremendo desenvolvimento profetas inteiramente novos surgirão, ou se haverá um grande renascimento de velhas ideias e ideais, ou, se nada disso, petrificação mecanizada, embelezada por uma espécie convulsiva de auto importância. Para o “último homem” desse desenvolvimento cultural pode ser bem verdadeiramente dito: “Especialista sem espírito, sensualista sem coração; essa nulidade imagina que conquistou um nível de humanidade nunca antes alcançado”.[5]

 

O sistema econômico-institucional voltado para os fins (Zwecksorientiert) desfaz os modos de apreensão e domínio da realidade míticos, nascidos e elaborados organicamente por sobre formas de vida sociais passadas, substituindo-os por um sistema potencialmente alienador, que se apresenta na forma de instituições burocráticas que modelam os interesses dos seres humanos a elas pertencentes. Quando essas instituições se tornam alienadoras, os seres humanos passam cada vez mais a funcionar como pequenas peças que ambicionam se tornar peças maiores no interior de um imenso maquinismo dentro do qual, sem perceber, trilham o caminho que poderá conduzi-los à “noite polar de gélida escuridão”[6]. Esse diagnóstico só não é mais pessimista porque, como notei, Weber acreditava que a sociedade que produz as jaulas de ferro tem poder suficiente para corrigir e transformar as instituições por ela criadas.

   Meu ponto é que a racionalização e burocratização da sociedade das quais resulta a colonização do mundo da vida pelo sistema ajudam-nos a explicar as deficiências da filosofia em seu momento atual. Trata-se de apontar para o principal problema da filosofia contemporânea, que foi denunciado por filósofos como Wittgenstein, P. F. Strawson, Susan Haack e até mesmo Martin Heidegger: o cientismo.

 

3

 

Para melhor respondermos à questão, precisamos considerar três peculiaridades da prática filosófica.

   A primeira é que, a partir de uma perspectiva freudiana o pensamento filosófico resulta do que Freud chamava de processo primário (Primärvorgang). Como já vimos no capítulo XVI (sec. 1), nesse processo, comum à arte, às manifestações religiosas e à produção filosófica, as cargas afetivas (Besetzungen) não se encontram firmemente ligadas às representações que lhe são próprias, como acontece com o pensamento científico, que serve ao princípio da realidade (Realitätsprinzip). O processo primário está a serviço do princípio do prazer (Lustprinzip), que para Freud falha em distinguir suficientemente o imaginário do real. Isso significa que a filosofia pertence ao mundo mágico, um pouco como a arte e a religião. Como consequência disso, tanto quanto à arte e a religião, ela corre o risco de ser alienada como não só inútil, mas até mesmo contraprodutiva frente aos mecanismos de racionalização decorrente do processo de demagificação o mundo.

   A segunda peculiaridade, que já considerei no capítulo inicial desse livro, diz respeito à visão da filosofia como uma prática cultural derivada, a exemplo da ópera, que combina necessariamente canto, poesia e enredo. A filosofia resultaria de material, motivação e procedimentos derivados de três práticas culturais fundamentais, que são a religião, a arte e a ciência. Nas elaborações que Platão fez de sua doutrina das ideias, por exemplo, vemos um componente de elucidação mística compreensiva derivado de seu orfismo, um componente estético evidenciado no recurso inevitável a metáforas e  nas extraordinárias alegorias que compõem seus diálogos, e ainda um componente heurístico (protocientífico), de busca da verdade, visto, por exemplo, em sua tentativa de explicar como é possível dizer o mesmo de muitos ou em sua tentativa de definir o conhecimento como a opinião verdadeira completada por um logos.

   Como havia notado, o componente que chamei de místico seria responsável pela profundidade e abrangência de uma visão filosófica, o componente estético por seu veículo de expressão inevitavelmente metafórico e o componente heurístico pelos procedimentos argumentativos orientados pela busca da verdade. Filósofos como Hegel, Nietzsche e Locke estavam respectivamente inclinados aos extremos da religião, da arte e da ciência, embora inevitavelmente preservassem algo das outras duas dimensões, uma vez que as três parecem imprescindíveis para de algum modo qualificar a filosofia como filosofia. Mesmo tradições filosóficas inteiras, como também fiz notar, a alemã, a francesa e a anglo-americana, deixam-se perceber como respectivamente inclinadas aos extremos místico, artístico e científico.

   A terceira peculiaridade diz respeito à direção. A filosofia pode ser facilmente vista como uma protociência quando consideramos que todas as ciências particulares nasceram dela. A filosofia é o que pode ser feito antes que sejam encontradas as condições para a investigação verdadeiramente científica, motivando a indagação. Ela é o berçário das ciências, ocupando o lugar no qual caberá alguma ciência futura, conquanto se entenda a palavra ‘ciência’ de forma não-reducionista como simplesmente qualquer “conhecimento público consensualizável” (John Ziman) (cap. I, sec. 7)). Ora, como a filosofia é um produto inevitável do processo primário, como ela resulta de motivações místicas e formas estéticas, e como ela não pode tornar-se ciência sem deixar de ser filosófica, ela se encontra inevitavelmente enraizada no mundo da vida.

   Tendo as considerações acima em vista torna-se claro que em uma sociedade como a nossa, aceleradamente racionalizada e burocratizada em favor da ciência aplicada e da técnica, tanto o impulso místico quanto o estético e o filosófico, sejam submetidos a um processo de domesticação, quando não de anatematização. Afinal, a religião e a arte pertencem antes ao mundo da magia e, consequentemente, também a filosofia, na medida em que esta última deve ser, em alguma medida, impulsionada por motivações místicas e estéticas. Ora, se excluirmos os componentes totalizadores e artísticos da filosofia de modo a restarem apenas os procedimentos heurísticos, considerando que os últimos deveriam encontrar-se aqui inevitavelmente permeados pelos primeiros, o resultado parece ser inevitavelmente algo como o cientismo. Em vez de aproximações heurísticas feitas através do processo primário (ex.: os “átomos” de Demócrito), procura-se fantasiar uma filosofia científica, como se ela fosse resultante de processos secundários (ex.: a neurofilosofia no lugar da filosofia da mente).

   O maior preço pago pelo cientismo é o reducionismo puro e simples,[7] que consiste na exclusão de uma ou mais dimensões da investigação puramente filosófica. Pense, por exemplo, na inacreditável definição de Rudolph Carnap da filosofia como a lógica da ciência, excluindo todo o resto, ou na tese de Quine da indeterminação da referência, que deveria eliminar as teorias da referência da filosofia da linguagem, ou ainda na tentativa de Alvin Goldman de substituir a epistemologia tradicional pela ciência cognitiva.[8]

 

4

 

Passemos agora a examinar algumas maneiras pelas quais os atuais mecanismos de racionalização burocrática são capazes de militar contra a boa filosofia.

   Considere primeiro, por razões comparativas, o modo como a filosofia foi feita nos tempos de Locke e Hume, na Grã-Bretanha, ou nos de Kant e Hegel, na Alemanha. Ela sempre foi o resultado de um longo, persistente e imenso “trabalho sobre si mesmo... sobre o próprio modo de ver as coisas”, para usar as palavras de Wittgenstein.[9] Naqueles tempos, a filosofia era honrada por uma nobreza erudita e por uma classe letrada que valorizava a alta cultura em uma sociedade extremamente estratificada. Foi assim até a primeira metade do século XX. Nesse meio elitista no melhor dos sentidos a publicação poderia esperar. Nas revistas especializadas sobrava espaço para a publicação de artigos. Gilbert Ryle, um filósofo renomado, era editor da revista Mind. Foi assim até pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Um princípio ético seguido por pessoas como J. L. Austin, por exemplo, era o de só publicar no caso de se ter algo importante a dizer. Em outras palavras, a filosofia era obra de uma pequena casta de intelectuais com a liberdade de fazer o que quisessem, enquanto quisessem, se bem o quisessem. A velha premissa grega do “ócio contemplativo” (necessário à especulação) ainda estava sendo cumprida.

   Faço aqui um aparte para notar a curiosa importância da hierarquia acadêmica na produção do conhecimento. As universidades de língua alemã já foram as melhores do mundo. A universidade de Viena foi na década de 20 do século passado o grande centro de produção intelectual da Europa continental. Paris pode ter sido a capital da arte, mas Viena foi a capital da cultura. Mas a ascensão do nazismo mudou tudo isso. Os melhores pesquisadores, geralmente judeus, tiveram de exilar-se e foram substituídos por pesquisadores menos capazes. Curiosamente, depois da Segunda Guerra os membros da Universidade de Viena preferiram não os convidar a retornar, uma vez que seriam por eles outra vez eclipsados. O resultado é que a Universidade de Viena nunca mais se recuperou. Algo semelhante pode ser dito das universidades de língua alemã depois da Segunda Guerra. Nunca mais voltaram ao patamar inicial. O exemplo pode servir de admoestação para nós mesmos na época presente. Hierarquias intelectuais podem ser facilmente destruídas; reconstruí-las pode ser uma tarefa muito mais árdua. Quando uma esgotada hierarquia do saber é substituída por uma simples hierarquia do poder, o resultado é decadência.

   Susan Haack notou que o cenário começou a mudar para pior na segunda metade do século XX. Na primeira metade sobrava espaço nas grandes revistas para a publicação de artigos. Mas na segunda metade o número de artigos a serem publicados passou a aumentar para além de uma expectativa de avaliação razoável e a ética pragmática de publicar ou perecer começou a se universalizar. Em meio à crescente concorrência, pesquisadores acadêmicos começaram a se transformar, seguindo a analogia de Weber, em pequenas peças na engrenagem, cuja única ambição é a de se tornarem peças um pouco maiores. Agora, desde o início do século XXI, com o advento da Internet, o número de artigos acadêmicos cresceu tão exponencialmente, que sua avaliação e possível influência parece depender mais da reputação das instituições e das revistas do que de seus valores intrínsecos. Susan Haack, que estudou o problema, acrescenta a isso sintomas de corrupção intelectual como o carreirismo e o compadrio, junto com o que ela chamou de incentivos perversos.[10] Por exemplo: as universidades modernas são agora cada vez mais geridas por CEOs que enfatizam a produtividade e a necessidade de que todos sejam ativos na pesquisa. Um conselho para o sucesso, segundo entreouvidos, seria “publicar em maior quantidade possível e o mais rápido possível...” Uma tal competição selvagem pode talvez funcionar em alguns domínios da ciência aplicada. Mas é contraprodutiva em filosofia, já que impossibilita a aquisição de uma cultura mais ampla e mais diversificada, além do lento amadurecimento de ideias necessário a um trabalho filosófico original. Aqui a “habilidade computacional” do operário acadêmico toma o lugar da amplitude e profundidade do pensamento, uma vez que só a primeira admite formas de mensuração cada vez mais técnicas e mecânicas.[11] Afora isso, o autor de um artigo filosófico deve adequar seus objetivos às metas pré-estabelecidas por cada vez mais obscuros editores de revistas especializadas, desestimulando a verdadeira originalidade (por que razão uma pessoa com o intelecto de Ryle se dignaria hoje a ser editor de Mind?). Afinal, originalidade não pode ser planejada. E obras filosóficas profundamente originais devem criar seus próprios parâmetros de avaliação, ao invés de orientar-se pelos pré-existentes. Todas essas são exigências paralisadoras, senão corruptoras em relação à natureza própria da atividade filosófica. Onde todos devem ser filósofos, ninguém pode ser filósofo. E a filosofia, que era para ser a cabeça do animal, ameaça a transformar-se em um peru sem cabeça.

   É aqui que a filosofia cientificista demonstra seu poder de sedução. Embora tecnicamente exigente, ela não é filosoficamente exigente, o que atrai um número muito maior de pesquisadores: o especialista precisa conhecer apenas algum nicho de discussão junto a alguns dispositivos metodológicos e alguma ciência particular. Ou seja: o filósofo-especialista não precisa adquirir cultura geral, nem aprender história da filosofia e nem mesmo a história recente de seu domínio de investigação. Pessoalmente acho que isso pode ser produtivo em certos domínios periféricos ou servir de motivação para o cientista. Haack é mais pessimista. Ela considera esse estado de coisas desastroso.

 Uma consequência, particularmente evidente em domínios centrais da filosofia (incluindo metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem) tem sido a fragmentação. Geralmente ela é causada pelo advento de inovações científicas, formais ou não, às quais os filósofos tentam acomodar as problemáticas filosóficas já existentes sem conseguir resolvê-las, multiplicando as alternativas e com isso a discussão.

   Um problema mais sério, mas que no fundo depende do primeiro, é o que Haack chamou de especialização precoce. O mecanismo é o seguinte: adotando alguns pressupostos prima facie questionáveis, os teoristas desenvolvem alguma improvável hipótese curiosa com base neles. Essa hipótese curiosa certamente não irá levar a lugar algum. Mas possibilita a todos os participantes da seita entreterem discussões por alguns anos. Finalmente, escreve ela, o tédio se instala e os participantes abandonam o problema, procurando outra hipótese curiosa com a qual possam começar o jogo novamente[12]. A situação agrava-se ainda mais quando estes novos “campos” de especialização começam a subdividir-se em outros, sem um limite em vista.[13] O grande contraste com a discussão sustentada em um verdadeiramente novo campo de especialização científica é que esse último é bem fundamentado, permitindo desenvolvimentos internos seguros, enquanto a especialização filosófica é feita sobre bases hipotéticas instáveis e incertas que exigiriam um trabalho sério e profundo demais para serem seriamente questionadas. Haack nota que quando se trata dos diferentes grupos de teóricos que trabalham no mesmo problema, cada grupo se orientando segundo suas próprias hipóteses curiosas, esses grupos sequer discutem entre si. Há uma boa razão para isso: não se pode tentar avaliar uma improbabilidade através de outra. Como resultado eles formam o que Haack chamou de “panelinhas, nichos, cartéis e feudos”.[14]

   O exemplo que eu escolheria são as discussões entre os teóricos de referência na filosofia da linguagem atual, onde um grupo defende teorias metalinguísticas, outro predicativismos, outro semânticas bidimensionais, outro referencialismos e ainda outro neodescritivismos... Todos esses modismos teóricos devem estar no mínimo parcialmente errados se admitirmos ser possível construir alguma teoria abrangente capaz de resolver os problemas de uma vez por todas. No entanto, tentar fazer algo nessa direção e com tais dimensões seria embarcar em uma aventura difícil, perigosa e fora de qualquer grupo de interesse, a qual ninguém se submeteria em sã consciência. No entanto, é precisamente esse tipo de aventura que parece capaz de tornar possível o progresso filosófico.[15]

   A conclusão é que, ao menos em seus domínios centrais, a filosofia contemporânea encontra-se paralisada. E uma razão disso é que a atual racionalização e burocratização do sistema universitário é incapaz de lidar com algo essencial à filosofia, a saber, seu inevitável enraizamento no mundo da vida, tanto em seu componente de amplitude quanto em seu componente metafórico. Os componentes de abrangência especulativa e metafóricos (místico-estéticos em um sentido derivativo), indispensáveis à filosofia, sua natureza como produto do processo primário, resistem a ser substituídos por formas de fragmentação positivistas capazes de ser julgadas pelos modelos racionalizados de avaliação de sua prática a partir de resultados que pareçam avançar o domínio científico e técnico sobre a realidade. O resultado final desse processo é a imobilidade típica do escolasticismo. Se esse estado de coisas continuar, a filosofia, como observou Haack, acabará investigando quantos filósofos são capazes de dançar sobre a ponta de uma agulha.

 

5

 

Existe uma saída para essas atribulações? Também aqui Haack apresentou o que acredito ser a resposta certa: o que está faltando é uma filosofia mais propriamente abrangente. Wittgenstein escreveu sobre a necessidade de abrangência através de representações panorâmicas ou sinópticas (übersichtliche Dartellugen) de nossa gramática conceitual.[16] Ernst Tugendhat definiu a filosofia como a investigação das estruturas conceituais centrais responsáveis por nossa compreensão do mundo.[17]

   À abrangência Haack acrescenta um elemento heurístico que ela chamou de “busca por aproximações sucessivas”[18] a partir de uma vaga concepção inicial. Podemos comparar esse procedimento com a arte da pintura: começa-se com a concepção como um todo, uma vaga exibição de formas, cores, luzes e sombras... Gradualmente as formas são delineadas com mais precisão, erros são detectados e corrigidos, detalhes e tonalidades são adicionados e o que a princípio parecia um borrão incompreensível acaba sendo transformado em imagens claras e convincentes.

   Para justificar esse método Haack recorreu à noção de consiliência[19], que é o pressuposto heurístico, indispensável ao progresso da ciência, de que o mundo possui unidade. Se o mundo possui unidade, então as ideias científicas verdadeiras devem se entrelaçar. Isso significa que elas devem ser capazes de se reforçar umas às outras em sua relação com a verdade. Um exemplo clássico é o da genética molecular. Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que corroboram e são corroborados pela teoria da evolução natural, que é corroborada por dados geológicos, etc.

   Haack aplicou a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Wittgenstein observou isso recorrendo a uma hipérbole: a dificuldade da filosofia consiste no fato de que, para um problema filosófico ser resolvido, todos os outros problemas filosóficos também precisam ser resolvidos. De fato, na medida em que diferentes subáreas da filosofia se encontram interligadas entre si, as teorias desenvolvidas nessas subáreas precisam ser capazes de se reforçar heuristicamente. A própria ciência pode ser chamada para ajudar em alguns casos, mas não para substituir (ex: o que fiz a favor de Locke na seção 3 do capítulo IX). E a assunção da consiliência também demanda o procedimento por aproximações sucessivas, tornando os diferentes espaços do painel gradualmente mais coerentes entre si. É claro que não podemos fazer isso à maneira de Kant e Hegel. Mas não vejo como não possamos fazer isso hoje ao nosso próprio modo, considerando a imensa gama de conhecimento que a era da informática cada vez mais deixa à nossa disposição. O presente livro pode ser lido como um tímido e precário esforço nessa direção.

 



[1] D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental (Rio de Janeiro: Zahar 1990), Conclusão.

[2] A racionalização e burocratização também podem estar atingindo a própria pesquisa científica, promovendo o progresso tecnológico em detrimento da pesquisa de base. Ver Sabine Rosenfelder: “Is Science Dying?” (Youtube).

[3] Geralmente o termo é traduzido de forma menos literal como ‘desencantamento do mundo’. Ver Max Weber: Wissenschaft als Beruf.In Schriften 1894-1922. (Stuttgart: Alfred Kröner Verlag 2002), pp. 474-511. Embora o termo tenha sido introduzido naquele artigo, a problemática foi tratada também em outros textos de Weber.

[4] Jürgen Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns. (Berlin: Suhrkamp 1981m 1995), vol. 2, sec. 6.

[5] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo (Die protestantische Ethik und der „Geist“ des Kapitalismus). Trad. in Col. Os Pensadores n. 37 (São Paulo: Abril Cultural) p. 236.

[6] Max Weber. Political Writings. Ed. Peter Lassman (Cambridge: Cambridge University Press 1994), xvi.

[7]  Não quero com isso rejeitar o reducionismo in totum. Há pérolas de criatividade soltas por aí. Considero Saul Kripke reducionista com relação ao elemento cognitivista da linguagem, mas seu trabalho é de extrema importância.

[8] Todos os três são exemplos de cientismo apresentados por Susan Haack.

[9] Culture and Value (Oxford: Blackwell 1996), p. 18.

[10] “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 26.

[11] Não é assim só na filosofia. Há muitos anos ouvi de um sociólogo norte-americano a queixa de que não podemos mais produzir um Max Weber, porque não dispomos do tempo e liberdade quase ilimitados na aquisição de conhecimento dadas aos professores da universidade alemã do início do século XX.

[12] Susan Haack (2014). “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration,” in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 24.

[13] Scott Soames. Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. II. Princeton: Princeton University Press 2003, vol. II, epílogo.

[14] Susan Haack, “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 24.

[15] Para dizer a verdade creio ter realmente feito exatamente isso em um livro que dependeu de muitos anos de pesquisa chamado How do Proper Names Really Work? (De Gruyter 2023).

[16] Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (Oxford: Blackwell 2009), I, sec. 122.

[17] Tugendhat, Ernst (1990). „Die Philosophie unter dem Sprachanalytischen Sicht“, in Philosophische Aufätze 1967-1990.

[18] Ibid. 30.

[19] Susan Haack (2014). “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 15 ss.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário