DRAFT para um capítulo do livro a ser publicado com o título de "Introdução histórica à filosofia".
Draft de artigo
A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO
Resumo:
Nesse artigo procura-se explicar a
falta de inovações disruptivas na filosofia atual como resultado da racionalização
e burocratização dos sistemas acadêmicos de produção e avaliação da reflexão
filosófica. Esses sistemas utilizam parâmetros de avaliação próprios para a
pesquisa científica, mas que se aplicam limitadamente à filosofia, alimentando
a hiperespecialização e a fragmentação cientificista da pesquisa filosófica.
Summary
This article seeks to explain the
lack of disruptive innovations in current philosophy as a result of the hasty
rationalization and bureaucratization of academic systems for the production
and evaluation of philosophical reflection. These systems use evaluation
parameters specific to scientific research but do not always apply to
philosophy, unnecessarily feeding philosophical research's hyperspecialization
and scientific fragmentation.
Key-Words
Metaphilosophy, critical philosophy,
scientism, Max Weber, Susan Haack
Tem sido dito que vivemos uma época
de escolasticismo filosófico.[1]
Ao que parece, nos últimos anos esse escolasticismo tem sido vítima de uma
brutal racionalização e burocratização do trabalho filosófico, que promove
interpretações acuradas e desenvolvimentos pontuais, mas que se arrisca a
paralisar a possibilidade de inovações verdadeiramente disruptivas. Segundo
alguns isso está acontecendo não só com a filosofia, mas até mesmo com a
própria ciência.[2] Assumindo
a justeza dessa constatação quero tentar trazer algum esclarecimento sobre as raízes
últimas do problema, além de mostrar alternativas viáveis.
1
Quero
começar considerando um fenômeno sociocultural importante e pervasivo no curso
do desenvolvimento da civilização, que Max Weber chamou de Entzauberung der
Welt: a demagificação do mundo.[3] Embora Weber tenha se
restringido ao exame de processos sociais posteriores à reforma protestante e
ao desenvolvimento das economias capitalistas, sua origem foi bem mais remota.
No início do processo civilizatório o mundo que nos rodeia costumava ser visto
como algo vivo, capaz de possuir vontade e paixão e de responder aos apelos
humanos. Como complemento, as práticas culturais que presidiam as comunidades
humanas eram elas próprias organicamente construídas com base nas interações
sociais do assim chamado mundo da vida (Lebenswelt) – o mundo do agir
quotidiano. Assim era o mundo que pode ser descrito como “mágico”. Mesmo após a
emergência do monoteísmo judaico-cristão, quando as comunidades eram
administradas em associação com lideranças religiosas, quando ainda existiam
santos e milagres, quando a vida humana ainda era controlada pela religião e o
universo humano era repleto de magia.
Contudo, com o desenvolvimento da economia
capitalista no final do século XIX e com o desenvolvimento da ciência e
tecnologia que a acompanhou, produziu-se um verdadeiro rompimento com a visão
religiosa antes existente. Ainda que as religiões permaneçam existentes, elas
hoje muito mais acompanham do que presidem a vida humana. O que vemos é a
substituição do mundo animista por um mundo cada vez mais secular, cada vez
mais “mundanizado”. O desenvolvimento da ciência e da técnica faz com que a
magia e a força institucional do mundo místico percam seu poder. O que ao nível
da organização social promove essa substituição é a introdução do que Weber
chamou de processos de racionalização e burocratização da
sociedade, que tornam a produção de bens muito mais eficaz, mas que se instalam
muitas vezes em detrimento da ação valorativa. Nesse meio a alienação é
inevitável: o indivíduo passa a ser uma peça em um mecanismo que ele mesmo
desconhece, ao mesmo tempo em que perde seu enraizamento naturalmente
construído no mundo da vida. Isso produz um aumento do individualismo
acompanhado de um empobrecimento alienador do indivíduo em sua subjetividade
reflexiva.
Hoje, quando a ciência e a técnica
conquistam cada vez mais a vida humana, vivemos sob a égide dessa forma de
demagificação. Como sumarizou Jürgen Habermas: uma maior patologia da sociedade
contemporânea consiste na “colonização do mundo da vida pelo sistema”
(entendendo-se por sistema as instituições sociais econômicas e políticas).[4] É assim porque os sistemas
são, digamos assim, “autopoiéticos”: uma vez estabelecidos, eles tendem a
crescer de modo autônomo, ao menos enquanto deixados à revelia de um controle
social suficientemente reflexivo para assegurar que eles permanecem vantajosos
para a sociedade que os criou.
Weber introduziu o conceito de demagificação
sob influência de Nietzsche, o que nos faz pensar a ideia de niilismo.
Como vimos, uma consequência da perda do papel fundacional da crença religiosa
na sociedade pode ser o niilismo, que tanto pode levar à perda dos valores
morais quanto a ideologias simplificadoras, como no caso de seitas místicas
degeneradas ou de sistemas totalitários como comunismo marxista-leninista em
sua versão estalinista ou do nazifascismo. Trata-se nos dois últimos casos de
patologias sociais profundamente perturbadoras, que sob outros nomes ainda hoje
nos assediam.
Embora Weber admitisse a inestimável
importância social da racionalização e da burocratização na melhoria do
desempenho da sociedade como um todo, ele também foi um crítico enérgico de
suas limitações e do risco de comportarem efeitos socialmente e culturalmente
patológicos. Vale citar aqui a famosa passagem em que ele usou a metáfora da
jaula de ferro para expor a possível perda da vida interior em um mundo
cientificamente racionalizado e burocratizado:
Ninguém
sabe quem irá viver nessa jaula no futuro, ou se no final desse tremendo
desenvolvimento profetas inteiramente novos surgirão, ou se haverá um grande
renascimento de velhas ideias e ideais, ou, se nada disso, petrificação
mecanizada, embelezada por uma espécie convulsiva de auto importância. Para o
“último homem” desse desenvolvimento cultural pode ser bem verdadeiramente
dito: “Especialista sem espírito, sensualista sem coração; essa nulidade imagina que conquistou um nível de
humanidade nunca antes alcançado”.[5]
O
sistema econômico-institucional voltado para os fins (Zwecksorientiert)
desfaz os modos de apreensão e domínio da realidade míticos, nascidos e
elaborados organicamente por sobre formas de vida sociais passadas,
substituindo-os por um sistema potencialmente alienador, que se apresenta na
forma de instituições burocráticas que modelam os interesses dos seres humanos
a elas pertencentes. Quando essas instituições se tornam alienadoras, os seres
humanos passam cada vez mais a funcionar como pequenas peças cuja única ambição
é a de se tornarem peças maiores no interior de um imenso maquinismo dentro do
qual, sem perceber, trilham o caminho que poderá conduzi-los à “noite polar de
gélida escuridão”[6].
Esse diagnóstico só não é mais pessimista porque, como notei, Weber acreditava
que a sociedade que produz as jaulas de ferro tem poder suficiente para
corrigir e transformar as instituições por ela criadas.
Meu ponto é que a racionalização e
burocratização da sociedade ajudam-nos a explicar as deficiências da filosofia
em seu momento atual. Trata-se de apontar para o principal problema da
filosofia contemporânea, que já foi denunciado por filósofos como Wittgenstein,
P. F. Strawson, Susan Haack e até mesmo Martin Heidegger: o cientismo.
3
Para
melhor respondermos à questão, precisamos considerar três peculiaridades da
prática filosófica que a tornam intrinsecamente ligada à forma de vida.
A primeira é que, a partir de uma
perspectiva freudiana o pensamento filosófico resulta do que Freud chamava de processo
primário (Primärvorgang). Nesse processo, comum à arte, às
manifestações religiosas e à produção filosófica, as cargas afetivas (Besetzungen)
não se encontram firmemente ligadas às representações que lhe são próprias,
como acontece com o pensamento científico, que serve ao princípio da realidade
(Realitätsprinzip). O processo primário está a serviço do princípio do
prazer (Lustprinzip), que para Freud falha em distinguir suficientemente
o imaginário do real. Isso significa que a filosofia pertence ao mundo mágico,
um pouco como a arte e a religião. Como consequência disso, tanto quanto à arte
e a religião, ela corre o risco de ser alienada como não só inútil, mas até
mesmo contraprodutiva frente aos mecanismos de racionalização decorrente de um
processo de demagificação que a racionalização e burocratização promovem.
A segunda peculiaridade diz respeito à visão
da filosofia como uma prática cultural derivada, a exemplo da ópera, que
combina necessariamente canto, poesia e enredo. A filosofia resulta de
material, motivação e procedimentos derivados de três práticas culturais
fundamentais, que são a religião, a arte e a ciência. Nas
elaborações que Platão fez de sua doutrina das ideias, por exemplo, vemos um
componente de elucidação mística compreensiva derivado de seu orfismo, um
componente estético evidenciado no recurso inevitável a metáforas e nas
extraordinárias alegorias que compõem seus diálogos, e ainda, um componente
heurístico (protocientífico), de busca da verdade, visto, por exemplo, em sua
tentativa de explicar como é possível dizer o mesmo de muitos ou em sua
tentativa de definir o conhecimento como a opinião verdadeira completada por um
logos. O componente que chamei de místico seria responsável pelo caráter
totalizador, de profundidade e abrangência buscado pela visão
filosófica, o componente estético por seu veículo de expressão inevitavelmente
metafórico e o componente heurístico pelos procedimentos argumentativos
orientados pela busca da verdade. Filósofos como Hegel, Nietzsche e Locke
estavam respectivamente inclinados aos extremos da religião, da arte e da
ciência, embora inevitavelmente preservassem algo das outras duas dimensões,
uma vez que as três parecem imprescindíveis para de algum modo qualificar a
filosofia como filosofia. Como esses aspectos estético e místico da filosofia
pertencem à forma de vida eles não são considerados pelos mecanismos de
burocratização e racionalização do sistema.
A terceira peculiaridade diz respeito à
direção. A filosofia pode ser facilmente vista como uma protociência quando
consideramos que todas as ciências particulares nasceram dela. A filosofia é o
que pode ser feito antes que sejam encontradas as condições para a investigação
verdadeiramente científica, servindo ao menos para motivar a indagação. Ela é o
berçário das ciências, ocupando o lugar no qual caberá alguma ciência futura,
conquanto se entenda a palavra ‘ciência’ de forma não-reducionista como simplesmente
qualquer “conhecimento público consensualizável” (John Ziman). Ora, como a
filosofia é um produto inevitável do processo primário, como ela resulta de
motivações místicas e formas estéticas, e como ela não pode tornar-se ciência
sem deixar de ser filosófica, ela se encontra inevitavelmente enraizada no
mundo da vida.
Tendo as considerações acima em vista
torna-se claro que em uma sociedade como a nossa, aceleradamente racionalizada
e burocratizada em favor da ciência aplicada e da técnica, pode ser que tanto o
impulso de abrangência quanto o elemento metafórico, estejam sendo submetidos a
um processo de domesticação, quando não de anatematização. Afinal, a religião e
a arte pertencem antes ao mundo da magia e, consequentemente, também a
filosofia, na medida em que esta última deve ser, em alguma medida,
impulsionada por motivações totalizadoras (místicas) e recursos metafóricos (estéticos).
Ora, se excluirmos os componentes totalizadores e metafóricos da filosofia de
modo a restarem apenas os procedimentos heurísticos, considerando que os
últimos deveriam encontrar-se aqui inevitavelmente permeados pelos primeiros, o
resultado parece ser inevitavelmente algo como o cientismo. Em vez de
aproximações heurísticas feitas através do processo primário (ex.: os “átomos”
de Demócrito), procura-se fantasiar de modo reducionista uma filosofia
científica, como se ela pudesse resultar de processos secundários.
O maior preço pago pelo cientismo é o reducionismo
puro e simples,[7]
que consiste na exclusão de uma ou mais dimensões da investigação puramente
filosófica. Pense, por exemplo, na inacreditável definição de Rudolph Carnap da
filosofia como a lógica da ciência, excluindo todo o resto, ou na tese de Quine
da indeterminação da referência, que deveria eliminar da filosofia da linguagem
qualquer teoria da referência mais robusta, ou ainda na tentativa de Alvin
Goldman de substituir a epistemologia tradicional por uma ciência cognitiva.[8]
4
Passemos
agora a examinar algumas maneiras pelas quais os atuais mecanismos de
racionalização burocrática são capazes de militar contra a boa filosofia.
Considere primeiro, por razões comparativas,
o modo como a filosofia foi feita nos tempos de Locke e Hume, na Grã-Bretanha,
ou nos de Kant e Hegel, na Alemanha. Ela sempre foi o resultado de um longo,
persistente e imenso “trabalho sobre si mesmo... sobre o próprio modo de ver as
coisas”, para usar as palavras de Wittgenstein.[9] Naqueles tempos, a
filosofia era honrada por uma nobreza erudita e por uma classe letrada que
valorizava a alta cultura em uma sociedade que era (para o bem e para o mal)
extremamente estratificada. Foi assim até a primeira metade do século XX. Nesse
meio elitista no melhor dos sentidos a publicação poderia esperar. Foi assim
até pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Um princípio ético seguido por pessoas
como J. L. Austin, por exemplo, era o de só publicar no caso de se ter algo
importante a dizer. Em outras palavras, a filosofia era obra de uma pequena
casta de intelectuais com a liberdade de fazer o que quisessem, enquanto
quisessem, se bem o quisessem. A velha premissa grega do “ócio contemplativo”,
imprescindível à especulação descompromissada, ainda estava sendo cumprida.
Algum esclarecimento pode ser encontrado
quando comparamos a situação da cultura atual com momentos de explosão cultural
no passado. A verdadeira inovação, científica e cultural, é sempre subversiva.
Ela demanda um redimensionamento dos valores. Por isso a cultura só encontra
solo fértil para se desenvolver onde existem grandes conflitos capazes de
forçar grandes rupturas. Isso aconteceu na primeira metade do século XX. Era
imenso o sentimento de tensão e insegurança nos relatos dos que viveram aquela
época. As velhas instituições, como a monarquia, estavam em ruinas e os
conflitos sociais acumulados acabariam por desbocar na Segunda Guerra Mundial. Simplesmente
não se sabia o rumo seguir. Desse caos resultante de uma descrença generalizada
nos valores instituídos resultou uma renovação cultural que em suas dimensões
lembra o que aconteceu durante o Renascimento. Surgiram grandes artistas como
Picasso e Dali na pintura, James Joyce na literatura, Igor Strawinsky na
música, filósofos importantes como Wittgenstein, Russell e Husserl, um grande
analista da psicologia e da cultura como Freud, e ainda grandes revoluções na
ciência, como a criação da teoria da relatividade por Einstein e o aparecimento
da teoria quântica através do esforço conjunto de alguns físicos excepcionais.
Foi assim até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo voltou à ordem. Desde
então a filosofia foi absorvida por um cada vez mais amplo sistema
universitário e o terreno fértil para inovações disruptivas foi cada vez mais
cedendo lugar a uma normalidade que de início, ao menos, foi ainda bastante produtiva
em filosofia. Ainda assim, é curioso o fato de que os dois mais significativos
filósofos alemães da segunda metade do século XX, Jürgen Habermas e Ernst
Tugendhat, tenham nascido na primeira metade do século XX.
Faço aqui um aparte para notar a curiosa
importância da hierarquia acadêmica na produção do conhecimento. As
universidades de língua alemã já foram as melhores do mundo. A universidade de
Viena foi na década de 20 do século XX o grande centro de produção intelectual
da Europa continental. Paris pode ter sido a capital da arte, mas Viena foi a
capital da cultura. Contudo, a ascensão do nazismo mudou tudo isso. Os melhores
pesquisadores, geralmente judeus, tiveram de exilar-se e foram substituídos por
pesquisadores menos capazes. Curiosamente, depois da Segunda Guerra os membros
da Universidade de Viena preferiram não os convidar a retornar, uma vez que
seriam por eles outra vez eclipsados. O resultado é que a Universidade de Viena
nunca mais se recuperou. Algo semelhante pode ser dito das universidades de
língua alemã. Nunca mais voltaram ao patamar inicial. O exemplo pode servir de
admoestação para nós mesmos na época presente. Hierarquias intelectuais podem
ser facilmente destruídas; reconstruí-las pode ser uma tarefa muito mais árdua.
Por isso mesmo, quando uma já esgotada hierarquia do saber é substituída por
uma simples hierarquia do poder, o resultado é decadência.
Susan Haack notou que algumas mudanças
curiosas nas demandas intelectuais a partir da segunda metade do século XX. Na
primeira metade sobrava espaço nas grandes revistas para a publicação de
artigos. Mas na segunda metade o número de artigos a serem publicados passou a
aumentar para além de uma expectativa de avaliação razoável e a ética
pragmática de publicar ou perecer começou a se universalizar. Em meio à
crescente concorrência, pesquisadores acadêmicos começaram a se transformar de
uma maneira que lembra a analogia de Weber, em pequenas peças na engrenagem,
cuja única ambição é a de se tornarem peças um pouco maiores. Agora, desde o
início do século XXI, com o advento da Internet, o número de artigos acadêmicos
cresceu tão exponencialmente, que sua avaliação e possível influência parece
depender mais da reputação das instituições e das revistas do que de seus
valores intrínsecos. Susan Haack, que estudou o problema, acrescenta a isso
sintomas de corrupção intelectual como o carreirismo e o compadrio, junto com o
que ela chamou de incentivos perversos de vários tipos, incluindo bolsas
e premiações dentro de um escopo tão restrito quanto previsível.[10] Por exemplo: as
universidades modernas são agora cada vez mais geridas por CEOs que enfatizam a
produtividade e a necessidade de que todos sejam ativos na pesquisa. Um
conselho para o sucesso, segundo entreouvidos, seria “publicar em maior
quantidade possível e o mais rápido possível...” Uma tal competição selvagem
pode talvez funcionar em alguns domínios da ciência aplicada. Mas é
contraprodutiva em filosofia, já que impossibilita a aquisição de uma cultura
mais ampla e mais diversificada, além do lento amadurecimento de ideias
necessário a um trabalho filosófico original. Aqui a “habilidade computacional”
do operário acadêmico toma o lugar da amplitude e profundidade do pensamento,
uma vez que só a primeira admite formas de mensuração cada vez mais técnicas e
mecânicas.[11]
Afora isso, o autor de um artigo filosófico deve adequar seus objetivos às
metas pré-estabelecidas por cada vez mais obscuros editores de revistas
especializadas, desestimulando a verdadeira originalidade. Afinal,
originalidade não pode ser planejada. E obras filosóficas profundamente
originais devem criar seus próprios parâmetros de avaliação ao invés de
orientar-se pelos pré-existentes. Todas essas são exigências paralisadoras,
senão corruptoras em relação à natureza própria da atividade filosófica. Onde
todos devem ser filósofos, ninguém pode ser filósofo. E a
filosofia mesma, que era para ser a cabeça do animal, acaba por transformar-se
em um peru sem cabeça.
É aqui que a filosofia cientificista
demonstra seu poder de sedução. Embora tecnicamente exigente, ela não é
filosoficamente exigente, o que atrai um número muito maior de pesquisadores: o
especialista precisa conhecer apenas algum nicho de discussão junto a alguns
dispositivos metodológicos e alguma ciência particular. Ou seja: o
filósofo-especialista não precisa adquirir cultura geral, nem aprender história
da filosofia e nem mesmo a história recente de seu domínio de investigação.
Pessoalmente acho que isso pode ser produtivo em certos domínios periféricos ou
servir de motivação para o cientista. Haack é ainda mais pessimista. Ela
considera esse estado de coisas desastroso.
Uma consequência, particularmente evidente
em domínios centrais da filosofia (incluindo metafísica, epistemologia e
filosofia da linguagem) tem sido a fragmentação. Geralmente ela é
causada pelo advento de inovações científicas, formais ou não, às quais os
filósofos tentam acomodar as problemáticas filosóficas já existentes sem
conseguir resolvê-las, multiplicando as alternativas e com isso a discussão.
Um problema mais sério, mas que no fundo
depende do primeiro, é o que Haack chamou de especialização precoce. O
mecanismo é o seguinte: adotando alguns pressupostos prima facie
questionáveis, os teoristas desenvolvem alguma improvável hipótese engraçada
com base neles. Essa hipótese engraçada é suspeita e certamente não irá levar a
lugar algum. Mas isso pouco importa. Ela possibilita a todos os participantes
da seita entreterem discussões por certo número de anos. Finalmente, escreve
ela, o tédio se instala e os participantes abandonam o problema, procurando
outra hipótese engraçada com a qual possam começar o jogo novamente[12]. A situação agrava-se
ainda mais quando estes novos “campos” de especialização começam a
subdividir-se em outros, sem um limite em vista.[13] O grande contraste com a
discussão sustentada em um verdadeiramente novo campo de especialização
científica é que esse último é bem fundamentado, permitindo desenvolvimentos
internos seguros, enquanto a especialização filosófica é feita sobre bases hipotéticas
instáveis e incertas que exigiriam um trabalho sério e profundo capaz de
questioná-las seriamente. Haack nota que quando se trata dos diferentes grupos
de teóricos que trabalham na mesma problemática, cada grupo se
orientando segundo suas próprias hipóteses engraçadas, esses grupos sequer
discutem entre si. Isso não deveria surpreender. Afinal, não se pode tentar
avaliar uma improbabilidade através de outra. Como resultado esses grupos
formam o que Haack chamou de “panelinhas, nichos, cartéis e feudos”.[14]
O exemplo que eu escolheria são as
discussões entre os teóricos de referência na filosofia da linguagem atual,
onde um grupo defende teorias metalinguísticas, outro predicativismos, outro
semânticas bidimensionais, outro referencialismos e ainda outro
neodescritivismos... Todos esses modismos teóricos devem estar no mínimo
parcialmente errados se admitirmos ser possível construir alguma teoria
abrangente capaz de resolver os problemas de uma vez por todas. No entanto,
tentar fazer algo nessa direção e com tais dimensões seria embarcar em uma
aventura difícil, perigosa e fora de qualquer grupo de interesse, a qual
ninguém se submeteria em sã consciência. No entanto, é precisamente esse tipo
de aventura que parece capaz de tornar possível o progresso filosófico.
A conclusão é que, ao menos em seus domínios
centrais, a filosofia contemporânea encontra-se estagnada. E a principal razão
disso é que a atual racionalização e burocratização do sistema universitário é
incapaz de lidar com algo essencial à filosofia, a saber, seu inevitável
enraizamento no mundo da vida, tanto em seu componente de amplitude quanto em
seu componente metafórico. Os componentes de abrangência especulativa e
metafóricos (místico-estéticos em um sentido derivativo), indispensáveis à
filosofia, sua natureza como produto do processo primário, resistem a ser
substituídos por formas de fragmentação positivistas capazes de ser julgadas
pelos modelos racionalizados de avaliação de sua prática a partir de resultados
que pareçam avançar o domínio científico e técnico sobre a realidade. O
resultado final desse processo é a imobilidade típica do escolasticismo. Se
esse estado de coisas continuar, a filosofia, como observou Haack, acabará
investigando quantos filósofos são capazes de dançar sobre a ponta de uma
agulha.
5
Existe
uma saída para essas atribulações? Também aqui Haack apresentou o que acredito
ser a resposta certa: o que está faltando é uma filosofia mais propriamente
abrangente. Wittgenstein escreveu sobre a necessidade de abrangência
através de representações panorâmicas ou sinópticas (übersichtliche
Dartellugen) de nossa gramática conceitual.[15] Ernst Tugendhat definiu a
filosofia como a investigação das estruturas conceituais centrais responsáveis
por nossa compreensão do mundo.[16]
À abrangência Haack acrescenta um elemento
heurístico que ela chamou de “busca por aproximações sucessivas”[17] a partir de uma vaga
concepção inicial. Podemos comparar esse procedimento com a arte da pintura:
começa-se com a concepção como um todo, uma vaga exibição de formas, cores,
luzes e sombras... Gradualmente as formas são delineadas com mais precisão, erros
são detectados e corrigidos, detalhes e tonalidades são adicionados e o que a
princípio parecia um borrão incompreensível acaba sendo transformado em imagens
claras e convincentes. Admite-se aqui afrescos, colagens e até mesmo grandes
painéis, como tem sido o caso da obra de Habermas.
Para justificar esse método Haack recorreu à
noção de consiliência[18], que é o pressuposto
heurístico, indispensável ao progresso da ciência, de que o mundo possui
unidade. Se o mundo possui unidade, então as ideias científicas verdadeiras
devem se entrelaçar. Isso significa que elas devem ser capazes de se reforçar
umas às outras em sua relação com a verdade. Um exemplo clássico é o da
genética molecular. Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que
corroboram e são corroborados pela teoria da evolução natural, que é
corroborada por dados geológicos, etc.
Haack aplicou a ideia de consiliência às
teorias filosóficas. Wittgenstein percebeu isso recorrendo a uma hipérbole: a
dificuldade da filosofia consiste no fato de que, para um problema filosófico
ser resolvido todos os outros problemas filosóficos também precisam ser
resolvidos. De fato, na medida em que diferentes subáreas da filosofia se
encontram interligadas entre si, as teorias desenvolvidas nessas subáreas
precisam ser capazes de se reforçar heuristicamente. Isso pode significar que o
filósofo deva adquirir primeiro suficiente cultura, científica, humanista e
filosófica. A própria ciência pode ser chamada para ajudar em alguns casos, mas
não para substituir. E a assunção da consiliência também aqui demanda o
procedimento por aproximações sucessivas, tornando os diferentes espaços do
painel gradualmente mais coerentes entre si. É óbvio que não podemos fazer isso
à maneira de Kant e Hegel. Mas não vejo como não possamos fazer isso hoje ao
nosso próprio modo.
[1] D. W. Hamlyn: Uma
história da filosofia ocidental (Rio de Janeiro: Zahar 1990), p. 398. Isso
foi escrito em 1987.
[2] A racionalização
e burocratização também podem estar atingindo a própria pesquisa científica,
promovendo o progresso tecnológico em detrimento da pesquisa de base. Ver entrevista com Gregory Chaitin in Mindmatters.ai.
[3] Geralmente o
termo é traduzido de forma menos literal como ‘desencantamento do mundo’. Ver Max Weber: “Wissenschaft als Beruf.“ In Schriften 1894-1922. (Stuttgart: Alfred Kröner Verlag 2002), pp.
474-511. Embora
o termo tenha sido introduzido naquele artigo, a problemática foi tratada
também em outros textos de Weber.
[4] Habermas
(1986). „Entgegnung.“ A. Honnett, Joas H. (1986) Kommunikatives Handeln
Frankfurt/M.: Suhrkamp, pp. 327-417.
[5] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo (Die
protestantische Ethik und der „Geist“ des Kapitalismus). Trad. in Col.
Os Pensadores n. 37 (São Paulo: Abril Cultural) p. 236.
[6] Max Weber. Political Writings. Ed. Peter Lassman (Cambridge:
Cambridge University Press 1994), xvi.
[7] Não quero com isso rejeitar o reducionismo in
totum. Há pérolas de criatividade soltas por aí. Considero Saul Kripke
reducionista com relação ao elemento cognitivista da linguagem, mas seu
trabalho é de extrema importância.
[8] Todos os três são
exemplos de cientismo apresentados por Susan Haack.
[9] Culture and Value (Oxford:
Blackwell 1996), p. 18.
[10] “Scientistic philosophy, No;
scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15,
2021, pp. 4-35, 26.
[11] Não é assim só na
filosofia. Há muitos anos ouvi de um sociólogo norte-americano a queixa de que
não podemos mais produzir um Max Weber, porque não dispomos do tempo e
liberdade quase ilimitados na aquisição de conhecimento dadas aos professores
da universidade alemã do início do século XX.
[12] Susan Haack (2014). “The Fragmentation of
Philosophy, The Road to Reintegration,” in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016,
p. 24.
[13] Scott Soames. Philosophical
Analysis in the Twentieth Century, vol. II. Princeton: Princeton University
Press 2003, vol. II, epílogo.
[14] Susan Haack, “Scientistic
philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical
Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 24.
[15] Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (Oxford: Blackwell
2009), I, sec. 122.
[16] Tugendhat,
Ernst (1990). „Die Philosophie unter dem Sprachanalytischen Sicht“, in Philosophische
Aufätze 1967-1990.
[17] Ibid. 30.
[18] Susan Haack (2014). “The Fragmentation of Philosophy, The
Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016,
p. 15 ss.
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