DRAFT para um capítulo do livro a ser publicado com o título de "Introdução histórica à filosofia".
XX
A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO
Tem sido dito que vivemos uma época de
escolasticismo filosófico que dificulta maiores desenvolvimentos.[1] Ao que
me parece, nos últimos tempos esse escolasticismo tem sido vítima de uma brutal
racionalização e burocratização do trabalho filosófico, que promove interpretações
acuradas e desenvolvimentos pontuais, mas que paralisa a possibilidade de inovações
verdadeiramente disruptivas. Segundo alguns isso tem acontecido não só com a filosofia,
mas até mesmo com a própria ciência.[2] Nesse último capítulo, assumindo a justeza dessa constatação, quero tentar
esclarecer um pouco as raízes do presente estado de coisas e mostrar alternativas
viáveis.
1
Quero começar considerando um fenômeno sociocultural importante e pervasivo
no curso do desenvolvimento da civilização, que Max Weber chamou de Entzauberung
der Welt: a demagificação do mundo.[3] Embora Weber tenha se
restringido ao exame de processos sociais posteriores à reforma protestante e
ao desenvolvimento das economias capitalistas, sua origem foi bem mais remota.
No início do processo civilizatório o mundo que nos rodeia costumava ser visto
como algo vivo, capaz de possuir vontade e paixão e de responder aos apelos
humanos. Como complemento, as práticas culturais que presidiam as comunidades
humanas eram elas próprias organicamente construídas com base nas interações
sociais do assim chamado mundo da vida (Lebenswelt) – o mundo do agir quotidiano.
Assim era o mundo que pode ser descrito como “mágico”. Mesmo após a emergência
do monoteísmo judaico-cristão, quando as comunidades eram administradas em
associação com lideranças religiosas, quando ainda existiam santos e milagres,
quando a vida humana ainda era controlada pela religião, o universo humano era
repleto de magia.
Contudo, com o desenvolvimento da economia
capitalista no final do século XIX e com o desenvolvimento da ciência e tecnologia
que a acompanhou, produziu-se um verdadeiro rompimento com a visão religiosa
antes existente. Ainda que as religiões permaneçam existentes, elas hoje muito mais
acompanham do que presidem a vida humana. O que vemos é a substituição do mundo
animista por um mundo cada vez mais secular, cada vez mais “mundanizado”. O
desenvolvimento da ciência fez com que a magia e a força institucional do mundo
místico perdessem seu poder. O que ao nível social promoveu essa substituição
foi a introdução do que Weber chamou de processos de racionalização e burocratização
da sociedade, que tornaram a produção de bens muito mais eficaz, mas que se instalaram
muitas vezes em detrimento da ação valorativa. Nesse meio o indivíduo passou a
ser uma peça em um mecanismo que ele mesmo desconhece, ao mesmo tempo em que perdia
seu enraizamento naturalmente construído a partir do mundo da vida. Isso produziu
um aumento do individualismo acompanhado de um empobrecimento alienador do
indivíduo em sua subjetividade reflexiva. Afinal, parece que no fim de tudo ainda
valem as palavras do poeta Stefan George: “Só pela magia a vida continua
desperta” (Nur durch dem Sauber bleibt das Leben wach).
Hoje, quando a ciência e a técnica conquistam
cada vez mais a vida humana, vivemos sob a égide dessa forma de demagificação.
Como sumarizou Habermas: a patologia do mundo contemporâneo consiste na “colonização
do mundo da vida pelo sistema” (entendendo-se por sistema as instituições
sociais).[4] É assim porque os sistemas
são autopoiéticos: uma vez estabelecidos, eles se auto-organizam de modo
autônomo, ao menos enquanto deixados à revelia de um controle social
suficientemente reflexivo para assegurar que eles permanecem vantajosos para a
sociedade que os criou.
Weber introduziu o conceito de demagificação
influenciado por Nietzsche, o que nos faz pensar a ideia de niilismo. Como
vimos, uma consequência da perda do papel fundacional da crença religiosa na
sociedade pode ser o niilismo, que tanto pode levar à perda dos valores morais
quanto a ideologias simplificadoras, como no caso de crenças substitutivas
degeneradas como é acontece com seitas místicas de várias espécies, ou no caso
de sistemas totalitários como comunismo marxista-leninista em sua versão
estalinista ou do nazismo alemão. Trata-se nos dois últimos casos de patologias
sociais profundamente perturbadoras, que sob outros nomes ainda hoje nos
assediam.
Embora Weber admitisse a inestimável importância
social da racionalização e da burocratização na melhoria do desempenho da
sociedade como um todo, ele também era um crítico enérgico de suas limitações e
do risco de comportarem efeitos socialmente e culturalmente patológicos. Vale citar
aqui a famosa passagem em que ele usa a metáfora da jaula de ferro para expor a
possível perda da vida interior em um mundo cientificamente racionalizado e
burocratizado:
Ninguém sabe quem irá viver nessa jaula no futuro, ou
se no final desse tremendo desenvolvimento profetas inteiramente novos
surgirão, ou se haverá um grande renascimento de velhas ideias e ideais, ou, se
nada disso, petrificação mecanizada, embelezada por uma espécie convulsiva de auto
importância. Para o “último homem” desse desenvolvimento cultural pode ser bem
verdadeiramente dito: “Especialista sem espírito, sensualista sem coração; essa nulidade imagina que conquistou um nível de
humanidade nunca antes alcançado”.[5]
O sistema econômico-institucional voltado para os fins (Zwecksorientiert)
desfaz os modos de apreensão e domínio da realidade míticos, nascidos e
elaborados organicamente por sobre formas de vida sociais passadas,
substituindo-os por um sistema potencialmente alienador, que se apresenta na
forma de instituições burocráticas que modelam os interesses dos seres humanos
a elas pertencentes. Quando essas instituições se tornam alienadoras, os seres
humanos passam cada vez mais a funcionar como pequenas peças que ambicionam se
tornar peças maiores no interior de um imenso maquinismo dentro do qual, sem
perceber, trilham o caminho que poderá conduzi-los à “noite polar de gélida
escuridão”[6]. Esse diagnóstico só não é
mais pessimista porque, como notei, Weber acreditava que a sociedade que produz
as jaulas de ferro tem poder suficiente para corrigir e transformar as
instituições por ela criadas.
Meu ponto é que a racionalização
e burocratização da sociedade das quais resulta a colonização do mundo da vida
pelo sistema ajudam-nos a explicar as deficiências da filosofia em seu momento atual.
Trata-se de apontar para o principal problema da filosofia contemporânea, que
foi denunciado por filósofos como Wittgenstein, P. F. Strawson, Susan Haack e até
mesmo Martin Heidegger: o cientismo.
3
Para melhor respondermos à questão, precisamos considerar três
peculiaridades da prática filosófica.
A primeira é que, a partir de
uma perspectiva freudiana o pensamento filosófico resulta do que Freud chamava
de processo primário (Primärvorgang). Como já vimos no capítulo
XVI (sec. 1), nesse processo, comum à arte, às manifestações religiosas e à
produção filosófica, as cargas afetivas (Besetzungen) não se encontram
firmemente ligadas às representações que lhe são próprias, como acontece com o
pensamento científico, que serve ao princípio da realidade (Realitätsprinzip).
O processo primário está a serviço do princípio do prazer (Lustprinzip),
que para Freud falha em distinguir suficientemente o imaginário do real. Isso
significa que a filosofia pertence ao mundo mágico, um pouco como a arte e a
religião. Como consequência disso, tanto quanto à arte e a religião, ela corre
o risco de ser alienada como não só inútil, mas até mesmo contraprodutiva
frente aos mecanismos de racionalização decorrente do processo de demagificação
o mundo.
A segunda peculiaridade, que já considerei no
capítulo inicial desse livro, diz respeito à visão da filosofia como uma
prática cultural derivada, a exemplo da ópera, que combina necessariamente
canto, poesia e enredo. A filosofia resultaria de material, motivação e
procedimentos derivados de três práticas culturais fundamentais, que são a
religião, a arte e a ciência. Nas elaborações que Platão fez
de sua doutrina das ideias, por exemplo, vemos um componente de elucidação
mística compreensiva derivado de seu orfismo, um componente estético
evidenciado no recurso inevitável a metáforas e nas extraordinárias alegorias que compõem seus
diálogos, e ainda um componente heurístico (protocientífico), de busca da
verdade, visto, por exemplo, em sua tentativa de explicar como é possível dizer
o mesmo de muitos ou em sua tentativa de definir o conhecimento como a opinião
verdadeira completada por um logos.
Como havia notado, o componente que chamei de místico
seria responsável pela profundidade e abrangência de uma visão
filosófica, o componente estético por seu veículo de expressão inevitavelmente metafórico
e o componente heurístico pelos procedimentos argumentativos orientados pela
busca da verdade. Filósofos como Hegel, Nietzsche e Locke estavam
respectivamente inclinados aos extremos da religião, da arte e da ciência,
embora inevitavelmente preservassem algo das outras duas dimensões, uma vez que
as três parecem imprescindíveis para de algum modo qualificar a filosofia como
filosofia. Mesmo tradições filosóficas inteiras, como também fiz notar, a
alemã, a francesa e a anglo-americana, deixam-se perceber como respectivamente
inclinadas aos extremos místico, artístico e científico.
A terceira peculiaridade diz
respeito à direção. A filosofia pode ser facilmente vista como uma protociência
quando consideramos que todas as ciências particulares nasceram dela. A
filosofia é o que pode ser feito antes que sejam encontradas as condições para a
investigação verdadeiramente científica, motivando a indagação. Ela é o
berçário das ciências, ocupando o lugar no qual caberá alguma ciência futura,
conquanto se entenda a palavra ‘ciência’ de forma não-reducionista como
simplesmente qualquer “conhecimento público consensualizável” (John Ziman)
(cap. I, sec. 7)). Ora, como a filosofia é um produto inevitável do processo
primário, como ela resulta de motivações místicas e formas estéticas, e como
ela não pode tornar-se ciência sem deixar de ser filosófica, ela se encontra inevitavelmente
enraizada no mundo da vida.
Tendo as considerações acima em
vista torna-se claro que em uma sociedade como a nossa, aceleradamente racionalizada
e burocratizada em favor da ciência aplicada e da técnica, tanto o impulso
místico quanto o estético e o filosófico, sejam submetidos a um processo de
domesticação, quando não de anatematização. Afinal, a religião e a arte
pertencem antes ao mundo da magia e, consequentemente, também a filosofia, na
medida em que esta última deve ser, em alguma medida, impulsionada por
motivações místicas e estéticas. Ora, se excluirmos os componentes totalizadores
e artísticos da filosofia de modo a restarem apenas os procedimentos
heurísticos, considerando que os últimos deveriam encontrar-se aqui
inevitavelmente permeados pelos primeiros, o resultado parece ser inevitavelmente
algo como o cientismo. Em vez de aproximações heurísticas feitas através
do processo primário (ex.: os “átomos” de Demócrito), procura-se fantasiar uma
filosofia científica, como se ela fosse resultante de processos secundários
(ex.: a neurofilosofia no lugar da filosofia da mente).
O maior preço pago pelo cientismo
é o reducionismo puro e simples,[7] que consiste na exclusão
de uma ou mais dimensões da investigação puramente filosófica. Pense, por
exemplo, na inacreditável definição de Rudolph Carnap da filosofia como a
lógica da ciência, excluindo todo o resto, ou na tese de Quine da
indeterminação da referência, que deveria eliminar as teorias da referência da
filosofia da linguagem, ou ainda na tentativa de Alvin Goldman de substituir a
epistemologia tradicional pela ciência cognitiva.[8]
4
Passemos agora a examinar algumas maneiras pelas quais
os atuais mecanismos de racionalização burocrática são capazes de militar
contra a boa filosofia.
Considere primeiro, por razões
comparativas, o modo como a filosofia foi feita nos tempos de Locke e Hume, na
Grã-Bretanha, ou nos de Kant e Hegel, na Alemanha. Ela sempre foi o resultado
de um longo, persistente e imenso “trabalho sobre si mesmo... sobre o próprio
modo de ver as coisas”, para usar as palavras de Wittgenstein.[9] Naqueles tempos, a filosofia
era honrada por uma nobreza erudita e por uma classe letrada que valorizava a
alta cultura em uma sociedade extremamente estratificada. Foi assim até a
primeira metade do século XX. Nesse meio elitista no melhor dos sentidos a
publicação poderia esperar. Nas revistas especializadas sobrava espaço para a
publicação de artigos. Gilbert Ryle, um filósofo renomado, era editor da
revista Mind. Foi assim até pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Um
princípio ético seguido por pessoas como J. L. Austin, por exemplo, era o de só
publicar no caso de se ter algo importante a dizer. Em outras palavras, a
filosofia era obra de uma pequena casta de intelectuais com a liberdade de
fazer o que quisessem, enquanto quisessem, se bem o quisessem. A velha premissa
grega do “ócio contemplativo” (necessário à especulação) ainda estava sendo
cumprida.
Faço aqui um aparte para notar
a curiosa importância da hierarquia acadêmica na produção do conhecimento. As
universidades de língua alemã já foram as melhores do mundo. A universidade de
Viena foi na década de 20 do século passado o grande centro de produção
intelectual da Europa continental. Paris pode ter sido a capital da arte, mas
Viena foi a capital da cultura. Mas a ascensão do nazismo mudou tudo isso. Os
melhores pesquisadores, geralmente judeus, tiveram de exilar-se e foram
substituídos por pesquisadores menos capazes. Curiosamente, depois da Segunda
Guerra os membros da Universidade de Viena preferiram não os convidar a
retornar, uma vez que seriam por eles outra vez eclipsados. O resultado é que a
Universidade de Viena nunca mais se recuperou. Algo semelhante pode ser dito das
universidades de língua alemã depois da Segunda Guerra. Nunca mais voltaram ao
patamar inicial. O exemplo pode servir de admoestação para nós mesmos na época
presente. Hierarquias intelectuais podem ser facilmente destruídas;
reconstruí-las pode ser uma tarefa muito mais árdua. Quando uma esgotada hierarquia
do saber é substituída por uma simples hierarquia do poder, o resultado é
decadência.
Susan Haack notou que o cenário
começou a mudar para pior na segunda metade do século XX. Na primeira metade sobrava
espaço nas grandes revistas para a publicação de artigos. Mas na segunda metade
o número de artigos a serem publicados passou a aumentar para além de uma
expectativa de avaliação razoável e a ética pragmática de publicar ou perecer
começou a se universalizar. Em meio à crescente concorrência, pesquisadores acadêmicos
começaram a se transformar, seguindo a analogia de Weber, em pequenas peças na
engrenagem, cuja única ambição é a de se tornarem peças um pouco maiores.
Agora, desde o início do século XXI, com o advento da Internet, o número de
artigos acadêmicos cresceu tão exponencialmente, que sua avaliação e possível
influência parece depender mais da reputação das instituições e das revistas do
que de seus valores intrínsecos. Susan Haack, que estudou o problema,
acrescenta a isso sintomas de corrupção intelectual como o carreirismo e o compadrio,
junto com o que ela chamou de incentivos perversos.[10] Por exemplo: as
universidades modernas são agora cada vez mais geridas por CEOs que enfatizam a
produtividade e a necessidade de que todos sejam ativos na pesquisa. Um
conselho para o sucesso, segundo entreouvidos, seria “publicar em maior
quantidade possível e o mais rápido possível...” Uma tal competição selvagem
pode talvez funcionar em alguns domínios da ciência aplicada. Mas é contraprodutiva
em filosofia, já que impossibilita a aquisição de uma cultura mais ampla e mais
diversificada, além do lento amadurecimento de ideias necessário a um trabalho
filosófico original. Aqui a “habilidade computacional” do operário acadêmico
toma o lugar da amplitude e profundidade do pensamento, uma vez que só a
primeira admite formas de mensuração cada vez mais técnicas e mecânicas.[11] Afora isso, o autor de um
artigo filosófico deve adequar seus objetivos às metas pré-estabelecidas por cada
vez mais obscuros editores de revistas especializadas, desestimulando a
verdadeira originalidade (por que razão uma pessoa com o intelecto de Ryle se
dignaria hoje a ser editor de Mind?). Afinal, originalidade não pode ser
planejada. E obras filosóficas profundamente originais devem criar seus
próprios parâmetros de avaliação, ao invés de orientar-se pelos pré-existentes.
Todas essas são exigências paralisadoras, senão corruptoras em relação à
natureza própria da atividade filosófica. Onde todos devem ser
filósofos, ninguém pode ser filósofo. E a filosofia, que era para ser a
cabeça do animal, ameaça a transformar-se em um peru sem cabeça.
É aqui que a filosofia cientificista
demonstra seu poder de sedução. Embora tecnicamente exigente, ela não é filosoficamente
exigente, o que atrai um número muito maior de pesquisadores: o especialista precisa
conhecer apenas algum nicho de discussão junto a alguns dispositivos
metodológicos e alguma ciência particular. Ou seja: o filósofo-especialista não
precisa adquirir cultura geral, nem aprender história da filosofia e nem mesmo a
história recente de seu domínio de investigação. Pessoalmente acho que isso
pode ser produtivo em certos domínios periféricos ou servir de motivação para o
cientista. Haack é mais pessimista. Ela considera esse estado de coisas
desastroso.
Uma consequência, particularmente
evidente em domínios centrais da filosofia (incluindo metafísica, epistemologia
e filosofia da linguagem) tem sido a fragmentação. Geralmente ela é
causada pelo advento de inovações científicas, formais ou não, às quais os
filósofos tentam acomodar as problemáticas filosóficas já existentes sem conseguir
resolvê-las, multiplicando as alternativas e com isso a discussão.
Um problema mais sério, mas que no fundo depende
do primeiro, é o que Haack chamou de especialização precoce. O mecanismo
é o seguinte: adotando alguns pressupostos prima facie questionáveis, os
teoristas desenvolvem alguma improvável hipótese curiosa com base neles. Essa
hipótese curiosa certamente não irá levar a lugar algum. Mas possibilita a todos
os participantes da seita entreterem discussões por alguns anos. Finalmente, escreve
ela, o tédio se instala e os participantes abandonam o problema, procurando
outra hipótese curiosa com a qual possam começar o jogo novamente[12]. A situação agrava-se
ainda mais quando estes novos “campos” de especialização começam a
subdividir-se em outros, sem um limite em vista.[13] O grande contraste com a
discussão sustentada em um verdadeiramente novo campo de especialização
científica é que esse último é bem fundamentado, permitindo desenvolvimentos
internos seguros, enquanto a especialização filosófica é feita sobre bases hipotéticas
instáveis e incertas que exigiriam um trabalho sério e profundo demais para
serem seriamente questionadas. Haack nota que quando se trata dos diferentes
grupos de teóricos que trabalham no mesmo problema, cada grupo se orientando
segundo suas próprias hipóteses curiosas, esses grupos sequer discutem entre si.
Há uma boa razão para isso: não se pode tentar avaliar uma improbabilidade
através de outra. Como resultado eles formam o que Haack chamou de “panelinhas,
nichos, cartéis e feudos”.[14]
O exemplo que eu escolheria são as discussões entre
os teóricos de referência na filosofia da linguagem atual, onde um grupo
defende teorias metalinguísticas, outro predicativismos, outro semânticas
bidimensionais, outro referencialismos e ainda outro neodescritivismos... Todos
esses modismos teóricos devem estar no mínimo parcialmente errados se
admitirmos ser possível construir alguma teoria abrangente capaz de resolver os
problemas de uma vez por todas. No entanto, tentar fazer algo nessa direção e
com tais dimensões seria embarcar em uma aventura difícil, perigosa e fora de
qualquer grupo de interesse, a qual ninguém se submeteria em sã consciência. No
entanto, é precisamente esse tipo de aventura que parece capaz de tornar
possível o progresso filosófico.[15]
A conclusão é que, ao menos em
seus domínios centrais, a filosofia contemporânea encontra-se paralisada. E uma
razão disso é que a atual racionalização e burocratização do sistema
universitário é incapaz de lidar com algo essencial à filosofia, a saber, seu
inevitável enraizamento no mundo da vida, tanto em seu componente de amplitude
quanto em seu componente metafórico. Os componentes de abrangência especulativa
e metafóricos (místico-estéticos em um sentido derivativo), indispensáveis à
filosofia, sua natureza como produto do processo primário, resistem a ser
substituídos por formas de fragmentação positivistas capazes de ser julgadas
pelos modelos racionalizados de avaliação de sua prática a partir de resultados
que pareçam avançar o domínio científico e técnico sobre a realidade. O
resultado final desse processo é a imobilidade típica do escolasticismo. Se esse
estado de coisas continuar, a filosofia, como observou Haack, acabará
investigando quantos filósofos são capazes de dançar sobre a ponta de uma
agulha.
5
Existe
uma saída para essas atribulações? Também aqui Haack apresentou o que acredito
ser a resposta certa: o que está faltando é uma filosofia mais propriamente
abrangente. Wittgenstein escreveu sobre a necessidade de abrangência através
de representações panorâmicas ou sinópticas (übersichtliche
Dartellugen) de nossa
gramática conceitual.[16] Ernst Tugendhat definiu a
filosofia como a investigação das estruturas conceituais centrais responsáveis
por nossa compreensão do mundo.[17]
À abrangência Haack acrescenta um elemento
heurístico que ela chamou de “busca por aproximações sucessivas”[18] a partir de uma vaga
concepção inicial. Podemos comparar esse procedimento com a arte da pintura:
começa-se com a concepção como um todo, uma vaga exibição de formas, cores,
luzes e sombras... Gradualmente as formas são delineadas com mais precisão,
erros são detectados e corrigidos, detalhes e tonalidades são adicionados e o
que a princípio parecia um borrão incompreensível acaba sendo transformado em
imagens claras e convincentes.
Para justificar esse método Haack recorreu à noção de consiliência[19], que é o pressuposto
heurístico, indispensável ao progresso da ciência, de que o mundo possui
unidade. Se o mundo possui unidade, então as ideias científicas verdadeiras devem
se entrelaçar. Isso significa que elas devem ser capazes de se reforçar umas às
outras em sua relação com a verdade. Um exemplo clássico é o da genética
molecular. Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que corroboram e
são corroborados pela teoria da evolução natural, que é corroborada por dados
geológicos, etc.
Haack aplicou a ideia de consiliência às
teorias filosóficas. Wittgenstein observou isso recorrendo a uma hipérbole: a
dificuldade da filosofia consiste no fato de que, para um problema filosófico ser
resolvido, todos os outros problemas filosóficos também precisam ser
resolvidos. De fato, na medida em que diferentes subáreas da filosofia se
encontram interligadas entre si, as teorias desenvolvidas nessas subáreas
precisam ser capazes de se reforçar heuristicamente. A própria ciência pode ser
chamada para ajudar em alguns casos, mas não para substituir (ex: o que fiz a
favor de Locke na seção 3 do capítulo IX). E a assunção da consiliência também demanda
o procedimento por aproximações sucessivas, tornando os diferentes espaços do
painel gradualmente mais coerentes entre si. É claro que não podemos fazer isso
à maneira de Kant e Hegel. Mas não vejo como não possamos fazer isso hoje ao
nosso próprio modo, considerando a imensa gama de conhecimento que a era da
informática cada vez mais deixa à nossa disposição. O presente livro pode ser
lido como um tímido e precário esforço nessa direção.
[1] D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental (Rio
de Janeiro: Zahar 1990), Conclusão.
[2] A racionalização e burocratização também
podem estar atingindo a própria pesquisa científica, promovendo o progresso
tecnológico em detrimento da pesquisa de base. Ver Sabine Rosenfelder: “Is
Science Dying?” (Youtube).
[3] Geralmente o termo é traduzido
de forma menos literal como ‘desencantamento do mundo’. Ver Max Weber: “Wissenschaft als Beruf.“ In Schriften 1894-1922.
(Stuttgart: Alfred Kröner Verlag 2002), pp. 474-511. Embora o termo tenha sido
introduzido naquele artigo, a problemática foi tratada também em outros textos
de Weber.
[4] Jürgen Habermas, Theorie des
Kommunikativen Handelns. (Berlin: Suhrkamp 1981m 1995), vol. 2, sec. 6.
[5] Max Weber: A ética
protestante e o espírito do capitalismo (Die protestantische Ethik und
der „Geist“ des Kapitalismus). Trad. in Col. Os Pensadores n.
37 (São Paulo: Abril Cultural) p. 236.
[6] Max Weber. Political
Writings. Ed. Peter Lassman (Cambridge: Cambridge University Press 1994), xvi.
[7] Não quero com
isso rejeitar o reducionismo in totum. Há pérolas de criatividade soltas
por aí. Considero Saul Kripke reducionista com relação ao elemento cognitivista
da linguagem, mas seu trabalho é de extrema importância.
[8] Todos os três são exemplos de cientismo apresentados
por Susan Haack.
[9] Culture and Value (Oxford: Blackwell
1996), p. 18.
[10]
“Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021,
pp. 4-35, 26.
[11] Não é assim só na filosofia. Há muitos anos ouvi de um
sociólogo norte-americano a queixa de que não podemos mais produzir um Max
Weber, porque não dispomos do tempo e liberdade quase ilimitados na aquisição
de conhecimento dadas aos professores da universidade alemã do início do século
XX.
[12] Susan Haack (2014).
“The
Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration,” in Reintegrating
Philosophy. Ed.
J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 24.
[13] Scott
Soames. Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. II.
Princeton: Princeton University Press 2003, vol. II, epílogo.
[14] Susan
Haack, “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp.
4-35, 24.
[15] Para dizer a verdade creio
ter realmente feito exatamente isso em um livro que dependeu de muitos anos de
pesquisa chamado How do Proper Names Really Work? (De Gruyter 2023).
[16] Wittgenstein, Philosophische
Untersuchungen (Oxford: Blackwell 2009), I, sec. 122.
[17] Tugendhat, Ernst (1990). „Die Philosophie unter dem Sprachanalytischen
Sicht“, in Philosophische Aufätze 1967-1990.
[18] Ibid. 30.
[19] Susan Haack (2014). “The
Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration”, in Reintegrating
Philosophy. Ed.
J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 15 ss.
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