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sexta-feira, 23 de agosto de 2024

NIETZSCHE NU E CRU (XVI)

 Draft de capítulo do livro “Introdução histórica à filosofia” a ser publicado.

  

  

 

 

XVI

NIETZSCHE E O CRISTIANISMO

 

Eu trato de problemas profundos como quem decide nadar no frio: entro e saio rápido. Que dessa maneira não se vai ao fundo é uma superstição dos inimigos da água fria – eles falam sem experiência própria.

Nietzsche

 

 

Entre os filósofos do século XIX Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) tem sido junto a Marx o mais popular. Isso se deve em boa parte ao fato de ele ter sido um grande poeta-filósofo. Ele foi o autor de Assim falava Zaratustra,[1] um livro considerado por Bertold Brecht a maior obra lírica da literatura alemã.

   Alguns detalhes biográficos merecem ser considerados: Nietzsche pertencia a uma tradicional família de pastores protestantes conservadores, tendo recebido estrita educação religiosa. Ele era considerado o melhor aluno de história e línguas que passou pelo renomado colégio de Pförta, embora fosse fraco em matemática. Aos 12 anos ouviu estudantes do colégio duvidarem da história de Caio Múcio Cévola, o jovem patrício romano que, não tendo conseguido matar o rei dos etruscos que sitiavam Roma, decidiu diante do mesmo queimar a sua mão no fogo para castigá-la... Para provar que alguém é capaz disso Nietzsche decidiu repetir o feito. Colocou sobre a palma da mão um punhado de fósforos e ateou fogo, queimando a mão sem expressar nenhum protesto. Ele só foi salvo de não ter se queimado mais pela intervenção de um fiscal que, percebendo a gravidade da situação, o impediu de continuar a experiência.[2] Como lembrança do episódio Nietzsche ficou com uma grande cicatriz na mão pelo resto da vida. Essa estória mostra o tipo de caráter ferreamente determinado e descompromissado que ele demonstrou mais tarde, na imensa coragem com que decidiu abraçar sua vocação de filósofo. Ele perdeu a fé aos 20 anos de idade, quando se lhe tornou óbvio que a religião é uma ilusão.

   Aos 24 anos Nietzsche tornou-se professor de filologia em Basel, na Suíça. Ele foi pessoalmente influenciado por Richard Wagner, um crítico (um tanto imoral) da moralidade, com o qual compartilhava uma visão aristocrática do mundo. Mas a influência maior foi a de um livro escrito pelo filósofo pessimista Arthur Schopenhauer, que ele encontrou por acaso em uma livraria de usados: O mundo como vontade e representação.[3] Segundo Schopenhauer, a coisa em si kantiana deveria ser substituída pela Vontade (Wille), entendida como uma força metafísica cega, caótica e destrutiva, que rege o mundo. Em oposição a Hegel (considerado por ele um impostor) o real é irracional e o irracional é real. O ser humano, por sua vez, é um escravo da vontade, o que torna a sua vida inevitavelmente miserável. Por não possuir nem meta nem um Deus que a direcione, ela leva o homem ao ódio, à vingança, à crueldade, à destruição, às guerras e a todas as tragédias de sua desgraçada condição. Para Schopenhauer há só três meios de fazer frente ao domínio da Vontade: pelo consolo da arte, pelo consolo da compaixão e pelo consolo da ascese. O consolo da arte nos faz esquecer por algum tempo o jugo da Vontade. O consolo da compaixão nos liberta dos efeitos do egoísmo, que nos conduz a ações que geram um sentimento de culpa continuado e autodestrutivo. E o consolo da ascese nos permite renunciar a tudo aquilo a que as paixões nos ligam. (Uma renúncia um tanto improvável, dado que para que a vontade seja eliminada é preciso empregar a própria vontade.)

   Nietzsche acabou rompendo com ambos. Ele rompeu com Wagner basicamente por ter percebido seu oportunismo e falta de integridade.[4] E também rompeu com a filosofia de Shopenhauer por considerá-lo um niilista que buscava um substituto para a vida. Nietzsche concordava com a ideia de que a vontade rege o mundo, entendendo-a uma vontade para poder (Wille zur Macht). Mas discordava que a vontade devesse ser evitada. Pelo contrário, precisamos ter a coragem de “dizer sim a vida”, defrontando-nos abertamente com sua falta de sentido, com sua natureza cega, caótica e no final das contas sempre destrutiva, afirmando o destino, qualquer que ele seja! A plenitude da vida é para ele o valor fundamental, maior do que o do conhecimento, o que faz sentido, dado que a função última do conhecimento é possibilitar a sobrevivência dos organismos. A degeneração de sua época resultava para ele de terem colocado o conhecimento acima da vida. Mas as forças vitais terminarão inevitavelmente por vencer através de embates cataclísmicos. Como ele escreveu ao final de Ecce Homo:

 

...se a verdade entra em luta contra a mentira milenar haverá convulsões, terremotos, deslocamentos de montanhas e de vales, coisas que nunca se imaginaram nem mesmo em sonhos. Então o conceito de política se absorverá todo em uma luta de espíritos e todas as formações potenciais da antiga sociedade irão para os ares, porque todas se assentam na mentira: haverá guerras como nunca houve na terra. Somente depois de mim começará no mundo a grande política.[5]

 

Já se chegou a dizer que desse modo Nietzsche previu as grandes catástrofes sociais do século XX, como os totalitarismos e as guerras mundiais. Um exagero! Mas não se pode negar que havia presciência em seu pessimismo.

   Vale notar que não faltava em Nietzsche a coragem necessária para a realização de sua vontade para poder em estado cru. Uma vez, quando estudante, cruzou com um jovem desconhecido e o desafiou para um duelo. O desconhecido aceitou. Eles lutaram até que Nietzsche foi ferido no nariz. Concordaram então em encerrar a luta, talvez porque o outro tenha ficado com pena... De outra feita ele decidiu ir para a guerra. Infelizmente caiu de um cavalo e foi direto para o hospital onde passou dois meses. Mas não se deu por vencido. Quando estourou a Guerra Franco-Prussiana ele se alistou novamente e foi servir como enfermeiro. Infelizmente contraiu difteria dos pacientes e acabou outra vez no hospital, tendo desta feita por muito pouco sobrevivido. Na Suíça ele se apaixonou por Lou Andreas Salomé, uma jovem de 21 anos, bela, culta e altamente inteligente. Ela o rejeitou e, para livrar-se de seus assédios fugiu com seu amigo Paul Rée, deixando-o devastado. Nietzsche, orgulhoso como era, acumulava razões para odiar o mundo sem perceber que o problema estava nele mesmo.

   Em 1872, aos 28 anos, ele publicou seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia (1872). Esse livro já era essencialmente filosófico e foi muito mal recebido pelos filólogos. Ali ele introduziu, sob influência de Wagner, uma distinção importante entre duas tendências visíveis na arte grega: a apolínea e a dionisíaca. A arte apolínea era a que se exprimia na escultura e arquitetura, sendo guiada pela harmonia, organização e medida. A arte dionisíaca, por contraste, era cruel, encontrando sua via de expressão na música e na embriaguez dos festivais dionisíacos. A tragédia grega era uma conjunção do apolíneo com o dionisíaco. Mais tarde ele veio a enfatizar o elemento dionisíaco como indispensável à arte, vendo nele a expressão estética da vida.

   Após O nascimento da tragédia seguiram-se ainda dois livros: Meditações Intempestivas (1876) e Humano, demasiado humano (1878), ambos contendo reflexões sobre a filosofia da vida e da cultura. Em 1879, devido a sérios problemas de saúde, Nietzsche precisou renunciar ao seu posto como professor, passando a viver de uma pequena pensão. Foi nesse ponto, aos 35 anos, que ele passou a se dedicar totalmente ao ofício de escritor, vivendo solitariamente, os verões na Suíça e os invernos no norte da Itália. Nos dez anos que se seguiram escreveu um bom número de livros publicados por conta própria e praticamente sem recepção. Em ordem cronológica, os principais foram: Aurora (1881), Gaya Scientia (1884), Assim falava Zaratustra (1883-1885), Além do bem e do mal (1886), A genealogia da moral (1887), O anticristo (1888) e O crepúsculo dos ídolos (1888), além da obra póstuma intitulada Vontade para Poder (1901). Em seu último livro, uma curta e brilhante autobiografia intelectual intitulada Ecce Homo (1888), ele já dava mostras de delírio de grandeza. Em 1889, aos 45 anos, Nietzsche enlouqueceu, abraçando em lágrimas um cavalo que estava sendo vergastado em uma rua de Gênova. Ele viveu os próximos dez anos junto à sua mãe e irmã, sem recuperar a razão e com paralisia cerebral progressiva, provavelmente causada por sífilis.

   Nietzsche escreveu na forma de aforismos ou pequenos trechos de prosa, sem qualquer preocupação em organizar seu pensamento de forma sistemática. Ele foi muito mais um crítico do que um pensador construtivo. Ele sabia que a filosofia é experimento com aquilo que ainda não sabemos e, diversamente de outros, não tinha compromisso com nada além de sua própria consciência intelectual. Por isso em suas reflexões ele oscilava dialeticamente de forma tão violenta que se torna difícil retirar uma filosofia coerente de seus escritos. Mesmo assim é possível dizer que ele foi acima de tudo um filósofo da vida e um maximamente importante crítico da moral, da visão de mundo e da filosofia escapista por ele denominada “cristã.” No que se segue quero expor o que me parecem ser as vertentes principais de seu pensamento, ocupando-me também em criticar suas inevitáveis deficiências.[6]

 

1

 

Freud. Vale a pena abrir aqui um parêntese para notar o paralelo entre as formas de arte apolínea e dionisíaca de um lado e os mecanismos de deslocamento (Verschiebung) e condensação (Verdichtung) de outro. Esses mecanismos foram esclarecidos por Freud[7] como os dois mecanismos fundamentais do processo primário (Primärvorgang). Quero explicá-los de modo a mostrar como eles podem ajudar a esclarecer a distinção divisada por Nietzsche.

   Para Freud nossos processos de pensamento em geral, especialmente no pensamento cientifico, se dão através do que ele chamava de processo secundário de pensamento (Sekundärvorgang). Neles as cargas afetivas (Besetzungen) se ligam firmemente às suas representações (Vorstellungen) próprias. É pela pressão dessas cargas afetivas ou emocionais que as representações se tornam processos de pensamento conscientes. Mas o mesmo não acontece na produção dos sintomas neuróticos, dos sonhos, dos chistes, das obras de arte e mesmo da própria filosofia. Aqui vige o processo primário de pensamento. Nele as cargas afetivas passam livremente de uma representação para outra que lhe esteja de algum modo associada. É através disso que, durante o sono, com o afrouxamento da censura, as cargas associadas a representações reprimidas no inconsciente passam para a consciência. Elas se ligam a outras representações, similares ou associadas, as quais são capazes de burlar a censura e se tornar conscientes, disso resultando o sonho. Isso se dá pelos mecanismos de deslocamento e/ou condensação. Pelo deslocamento essa transferência se dá quando a carga de uma representação inconsciente é passada a outra representação associada, capaz de se tornar consciente (em um exemplo de Freud, uma paciente judia sonha dar o seu pente a um jovem não-judeu que ela ama no lugar de entregar-se amorosamente a ele). Já a passagem para a consciência se dá pela condensação quando mais de uma representação interligada cede sua carga a uma delas, que por sua vez alcança a consciência (esse seria o caso se a paciente sonhasse ter o jovem esquecido seu chapéu na casa dela, o chapéu estando no lugar da pessoa inteira). Freud notou que enquanto o deslocamento se dá com representações verdadeiramente inconscientes, que não podem passar a consciência devido à censura, a condensação acontece com representações pré-conscientes que somos facilmente capazes de tornar conscientes. Ora, aqui se concentra a chave para a diferença psicológica entre o apolíneo e o dionisíaco na arte. O apolíneo depende do deslocamento. Daí que o conteúdo representacional final se apresenta limpo, puro, sublime, sem traços aparentes de material proibido, como costuma ser o caso quando esse material é inconsciente. Mas na arte dionisíaca é diferente: aqui o inconsciente pode fluir livremente através de condensações para a consciência, resultando no caos, no êxtase, na violência crua que experienciamos, por exemplo, em uma tragédia como a de Medéia, que mata os filhos para vingar-se do marido. Pode parecer que não seja sempre assim, mas é que na obra de arte os processos são complexos e costumam se dar em uma diversidade de camadas e o sobre os mais diversos materiais.[8]

   Esse entendimento nos permite exemplificar para além de Nietzsche. Por exemplo, se compararmos as tragédias Hamlet e Macbeth, parece que na primeira predomina o apolíneo (deslocamento: conflitos inconscientes inibem as ações de Hamlet) enquanto que na segunda predomina o dionisíaco (condensação: Macbeth tem plena consciência de seu crime). Na pintura medieval Giotto parece apolíneo se comparado a Hieronymus Bosch, que é claramente dionisíaco. No renascimento as pinturas de Rafael Sanzio parecem ser as mais apolíneas (deslocamento), enquanto às de Caravaggio costumam ter algum elemento inevitavelmente dionisíaco (condensação). O movimento impressionista (vide Renoir e Claude Monet) tem muito de apolíneo (deslocamento) enquanto o expressionismo (de Van Gogh a Kokoschka, terminando com Francis Bacon) está muito mais para o conflito dionisíaco (condensação). Uma investigação detalhada da questão demandaria um estudo à parte.

 

2

 

Para compreendermos Nietzsche, a primeira coisa a notar é que se trata de um filósofo elitista. Ele acreditava, senão em uma aristocracia de sangue, ao menos em tipos humanos superiores. Por isso ele rejeitava com veemência tanto a democracia quanto o socialismo. Ele distinguia entre “homens superiores” (como Goethe, Júlio César e Napoleão) e “homens inferiores”, a grande maioria, os plebeus, o populacho, as moscas da praça pública. Como notou Russell, a distinção entre homens superiores e inferiores era para ele de cunho biológico[9], o que significa que seu elitismo era racial, ainda que ele admitisse que as raças se tenham misturado muito, que certas misturas possam ser fortalecedoras, que rejeitasse o antissemitismo e que considerasse os judeus superiores aos alemães... Sob a inelutável influência de seu tempo ele chegou mesmo a sugerir a existência passada de uma originária raça ariana como sendo constituída de homens superiores:

 

O latim malus (que eu relaciono a mélas [negro] poderia designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos (hic niger est), especialmente o autóctone pre-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos ruivos arianos (...) “o bom”, “o nobre”, “o puro”, significava antigamente “o de cabelos ruivos” em oposição ao nativo de cabelos negros (...) [Na Europa em geral] no essencial a raça [superior] submetida [pela inferior] terminou por adquirir predomínio na sua cor, na forma curta do crânio, talvez até mesmo nos instintos sociais e intelectuais (...).[10]

 

A admissão da existência dessas duas estirpes (ou raças) humanas originárias (que para ele incluíam guerreiros japoneses e árabes...) nos faz entender melhor a tese central em Nietzsche acerca da genealogia do que mais usualmente chamamos de moral, que ele via como uma perversa invenção humana. Para ele existem dois tipos de moral: a dos senhores (ou nobre) e a dos escravos (ou servil).[11] Essas duas formas de moral eram para ele claramente distinguíveis uma da outra, embora fossem capazes de conviver simultaneamente em um mesmo grupo humano e até em uma mesma pessoa, posto que as duas estirpes têm se misturado há mais de dois mil anos... Para ele, a moral ativa dos senhores era claramente distinguível nas tribos guerreiras da Grécia dos tempos homéricos.[12] Segundo ele:

 

Para a moral dos senhores ser bom é ter coisas associadas à felicidade, como nobreza, honestidade, bravura, autodomínio, coragem, força, saúde, riqueza e poder. Já ser mau é ser covarde, medroso, mesquinho, vingativo, inconfiável, pobre, fraco e doente, objeto de aversão mais do que de ódio.

 

Essa moral dos senhores tem pouco a ver com o que realmente chamamos de moralidade, justificando a epítome de imoralista que Nietzsche deu a si mesmo. Ele chegou a sugerir que uma oposição entre o bom (= nobre) e o mau (= desprezível), típica da nobreza, é anterior à nossa decadente oposição moral entre o bem e o mal.

   A moral no sentido em que geralmente usamos a palavra é a dos escravos ou plebeus, que por sua vez é reativa ao invés de ativa. Através dela, aquilo que na moralidade dos senhores seriam defeitos humanos, como a debilidade e a fraqueza de espírito, passam a ser considerados valores positivos. Assim, o orgulho, que era uma qualidade para a nobreza da antiga Grécia, não sendo uma qualidade dos escravos, passou a ser um defeito. A piedade, que antes era uma fraqueza, passou a ser vista como possuindo um grande valor, o mesmo acontecendo com a humildade, a simpatia, a benevolência, a renúncia, a abnegação, a obediência e mesmo a estupidez.[13]

   Para Nietzsche o que aconteceu historicamente foi que os escravos, com sua moral degenerada, venceram. Isso aconteceu graças à intromissão genial dos judeus que inventaram o cristianismo. Com a ascensão do cristianismo, tal como professado por Paulo de Tarso, uma grande mudança começou a ser sentida. Foi dada voz social à moralidade reativa dos escravos e plebeus, à moralidade cristã, à moralidade do rebanho. O grande suporte que o cristianismo veio a oferecer à moral do rebanho se encontrava na sedutora crença de que a justiça final só se faria após a morte, em um além-mundo no qual os que tivessem sido bons nesse mundo seriam recompensados com o paraíso e os maus castigados pelo fogo eterno... Como ele escreveu:

 

Inclinemo-nos ante o fato consumado: o povo venceu, “os escravos”, “o populacho”, “o rebanho”, chamai-o como quiserdes. (...) Foram abolidos os amos, triunfou a moral do povo. Se disserdes que foi um veneno (porque misturou as raças entre si) não digo o contrário, sem dúvida eles conseguiram esse envenenamento.[14]

 

Em Roma a moral dos escravos acabou se impondo sobre a moral dos homens superiores. Dessa maneira Nietzsche via a moralidade cristã como um sintoma da decadência, um adoecimento da cultura que cobriu os últimos dois mil anos da civilização ocidental. A moral dos escravos renega os valores nobres dos homens superiores na intenção de dominá-los e domesticá-los. Através dela busca-se transformar o lobo em cordeiro, quando é bem sabido que o ser humano não degenerado é um predador.

   É interessante ver a maneira como ele concebeu a raça superior. Ele a via sobretudo como ativa, lutadora e trabalhadora, nisso consistindo sua felicidade. Essa felicidade, notou ele, está em profunda contradição com a felicidade das raças inferiores:

 

...aos impotentes, aos obstruídos, aos de sentimentos hostis e venenosos, a felicidade aparece sob a forma de estupefação, de sonho, de repouso, de paz, de sábado, de descanso do espírito, de estender dos ossos, de passividade.[15]

 

Ainda assim parece plenamente possível conceber coisas como estupefação, sonho, repouso, paz de sábado e descanso do espírito sem associá-las à impotência e sentimentos e hostis e venenosos, o que nos faz perguntar o quanto de Nietzsche permaneceu determinado pelas aleatoriedades espartanas de sua própria educação.

   Para Nietzsche os senhores só precisavam ser civilizados entre si: em suas relações eles se mostravam engenhosos, senhoris, delicados, fiéis, cavalheirescos e bons amigos. Eles sentiam obrigações entre eles mesmos, mas não com a plebe. Por isso, fora de seu meio eram aptos a se tornarem animais selvagens:

 

...monstros alegres que saem de uma horrível série de assassínios, de incêndios e violações com tanto orgulho e serenidade de alma como se tratasse de uma brincadeira de estudantes e persuadidos de que deram aos poetas matéria para eles celebrarem e cantarem. No fundo dessas raças aristocráticas é impossível não reconhecer a besta-fera; a magnífica besta loira lubricamente errante em ávida busca de espólios e vitórias, este fundo de bestialidade mostra-se de quando em quando, necessita de descargas, o animal tem de surgir novamente, tem de voltar ao seu ambiente – nobreza germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos... Todas as raças nobres deixam vestígios de barbárie à sua passagem...[16]

Essa “audácia” das raças nobres, audácia louca, absurda, espontânea; a própria natureza de suas empresas imprevistas e inverossímeis; a sua indiferença e o seu desprezo da comodidade de seu corpo, do bem estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição; os prazeres excessivos da vitória e da crueldade; tudo isso, na imaginação das vítimas, se resumia na ideia de “bárbaro”, “maligno”, “godos”, “vândalos”.[17]

 

Essas citações são importantes porque expõem a conflituosa combinação de preconceito e insight que forma a base da crítica feita por Nietzsche à moralidade. Não é muito difícil separar uma coisa da outra. O que ele toma como sendo diferenças categoriais originárias entre diferentes raças humanas evidenciam-se muito mais como diferenças biológicas naturais e complementares que podem ser encontradas entre os membros de um mesmo grupamento humano. Elas sempre existiram. Por exemplo: entre os indígenas há o cacique, mas há também o caçador, o guerreiro, o feiticeiro, as mulheres, cada qual com sua vocação. Em sociedades bem ordenadas a função de cada tipo humano complementa a função dos outros de modo a maximizar o rendimento coletivo, o que se depende de variações genéticas resultantes da seleção natural, que favoreceram o aparecimento de diferenças complementares entre os membros das comunidades humanas (ver cap. VIII, sec. 3, 4). É claro que sob pressão de circunstâncias específicas, um ou outro desses tipos humanos pode passar a exercer um papel central que pode mesmo ser levado ao extremo.

   Mais além, uma consideração cuidadosa e hoje bastante incontroversa da história mostrará que a diferença que importava não era entre raças ou estirpes nobres e plebeias, mas principalmente entre povos que foram “amaciados” pela vida sedentária mais civilizada e povos guerreiros, endurecidos por situações de grande escassez e conflito.[18] Isso ajuda a explicar as invasões bárbaras a um império romano enfraquecido que adotou o cristianismo como maneira de suportar os piores ardores da vida.[19] O ponto é ilustrado pelas invasões dos Vikings na Alta Idade Média. Eles conseguiram chegar a Paris porque eram muito mais endurecidos e belicosos do que os povos sedentários que por ali habitavam. Que os invasores fossem loiros e tivessem vindo do Norte é pouco mais que um acidente histórico. A questão fica ainda mais clara quando comparamos o caso com a invasão do ocidente pelos mongóis nos séculos XIII. Gengis Kahn unificou as tribos nômades guerreiras, que normalmente lutavam entre si, formando assim exércitos que acabaram por conquistar grande parte do mundo, da Sibéria ao sul da China, da Coréia à Ucrânia, chegando à Polônia. Nem ele nem seus generais pareciam ter qualquer indicativo das raças nobres romanceadas por Nietzsche.[20]

   Se for retirado o elemento racial e forem considerados exemplos reais, o que Nietzsche descreveu como homem nobre, superior, violento, destrutivo não passava de um guerreiro selvagem desprezível, amargado pela escassez ao invés de adoçado pela civilização. Eram tribos guerreiras dispostas a qualquer coisa. Mas isso nos faz levantar a questão: o que intitula Nietzsche a considerá-los a forma insublimadas de homens superiores ou nobres? O simples fato de os guerreiros da antiga Grécia terem sido romanticamente elevados nos poemas de Homero é insuficiente. Se eles eram superiores apenas na força, na brutalidade e na estratégia, então não parece restar nada merecedor do nome. (Henry Miller não estava assim tão errado ao denunciar a Ilíada como uma carnificina.) Considere, buscando uma avaliação mais acurada, as características que segundo os dicionários se encontram ligadas à noção de nobreza moral:

 

Elevação moral, honra, orgulho, dignidade, integridade, retidão, grandeza de alma… altruísmo, tolerância, compaixão, gentileza, bondade, generosidade, magnanimidade, agir ou pensar desinteressado...

 

Essa caracterização demonstra que aquilo que geralmente entendemos com a palavra ‘nobreza’ é um misto de qualidades que Nietzsche imputou tanto ao senhor quanto ao escravo, as últimas por mim italicizadas! A conclusão é que ele não conseguiu dar um sentido suficientemente distinto para seu conceito de nobreza como atributo de uma estirpe superior de modo a estabelecer a existência de duas moralidades como coisas essencialmente e originariamente distintas.

   Em suma: o “homem superior” construído por Nietzsche, tal como exemplificado nos exemplos anteriores, não possui base real; ele é um Frankenstein que mescla traços advindos de uma suposta violência primitiva com traços de nobreza civilizada. O mesmo vale para as suas duas morais. A melhor solução, se quisermos preservar o que resta de verdadeiro, é considerarmos as duas morais nietzscheanas como aspectos de uma mesma moral – aspectos que podem ser culturalmente enfatizados e que historicamente de fato o foram. Assim, o que o cristianismo realmente conseguiu, com sua doutrina do pecado original e do castigo e redenção ultramundanas, foi enfatizar aspectos altruístas (e não somente reativos) do comportamento humano. Uma ênfase que deve ter sido útil à manutenção do equilíbrio social durante o entardecer do império romano e que no final acabou se tornando o meio de sobrevivência da civilização no mundo medieval. Mesmo com suas limitações, o cristianismo contribuiu para sublimar o comportamento humano ao introjetar nele novos valores.

   Para tentar explicar esse ponto devemos voltar à distinção entre pulsões (ou instintos) de sobrevivência do indivíduo e pulsões de sobrevivência da espécie, um ponto de maior importância se quisermos entender a diferença entre egoísmo e altruísmo (ver cap. VIII, sec. 3). As pulsões de sobrevivência da espécie se tornam claramente visíveis no caso do pai que morreu tentando salvar os filhos e em inúmeros outros casos que não importa considerar aqui. Elas são por definição altruístas, enquanto as pulsões voltadas para a sobrevivência do indivíduo são egoístas, sendo provável que nossas ações sejam em geral movidas pela combinação de ambas, dificultando a distinção. O problema com Nietzsche é que no afã de se opor ao altruísmo cristão, adicionado a sua hipervalorização “adleriana” do poder, ele exagerou seu caso de modo a se transformar em uma espécie de egoísta ético. Para ele o que nos move é a vontade para poder (Wille zur Macht). Em estado bruto esse seria o caso de seus monstros alegres... É verdade, porém, que ele preferia essa vontade sob a forma sublimada, na qual ela deveria aparecer como uma força criativa que impulsiona o ser humano a superar-se a si mesmo na busca de autoaperfeiçoamento – no que ele próprio poderia se ver como exemplo. Ainda assim, a vontade para poder continua tendo seu lugar inexplicado como motivação única e originária. Por que não vontade para influenciar, para beneficiar, para enriquecer, para viver? Ora, porque poder tem a ver com dominação, remetendo-nos à ideia de que o ser humano é por natureza e exclusivamente um animal predador. Se o poder tivesse um lugar derivado na economia das pulsões nada se teria a obstar – mas não é esse o caso. O resultado é que com sua redução de tudo a uma suposta vontade para poder, Nietzsche não tinha como dar conta do elemento altruísta contido na pulsão de sobrevivência da espécie, que ele via como sendo reativo, sem notar que a reatividade também pode consistir em uma excessiva e auto-destrutiva ênfase nas pulsões de sobrevivência do indivíduo. A sexualidade, inerentemente associada à sobrevivência da espécie, precisava ter nisso um papel menor. Não ocorria a ele que seres humanos pudessem sentir compaixão por tragédias humanas que ocorressem do outro lado do mundo, ou que, como notou Russell, sejam capazes de sentir amor universal.[21]

 

3

 

Contra a moral cristã. O que Nietzsche tinha de mais importante a dizer foi a sua crítica à moral cristã, principalmente em seu traço mais marcante, que ele chamou de o ideal ascético.[22] Esse ideal é o que produz a repressão dos desejos instintivos naturais em nome de sua ilusória realização sublimada, geralmente em um além-mundo sobrenatural. Para o crente cristão no ideal ascético a vida é purgação do pecado original. Estamos aqui para sofrer. Seguindo esse ideal devemos aliar-nos de forma masoquista à pobreza, à humildade, à castidade e a outras formas de autonegação, chegando em alguns casos à autoflagelação e ao auto-sacrifício, como formas de obter um prazer doentio e pervertido. A função do ideal ascético é dar sentido ao sofrimento humano, tornando-o suportável, dado que o sofrimento sem sentido é insuportável. Essa seria a explicação de atitudes aparentemente suicidas, mas que na verdade são formas veladas de se preservar a vida.[23]

   Devemos ainda distinguir entre o ascetismo imposto e o ascetismo escolhido.[24] Uma pessoa que acredita no que os religiosos ascéticos lhe aconselham e que por isso inflige a si mesma sofrimento está sendo vítima de um ascetismo imposto. Mas o ideal ascético também possui formas mais refinadas e positivas. Um cientista que dedica seus esforços à investigação – e mesmo um filósofo como o próprio Nietzsche – precisa encontrar-se investido de ascetismo de modo a realizar seu propósito, podendo fazer isso em plena consciência.

   Também é fato que o ascetismo cristão produziu um avanço civilizatório profundo na Europa, que separou de vez o mundo moderno do mundo antigo. Nietzsche não negava isso. O desaparecimento da escravidão na Europa foi um progresso civilizatório resultante da incorporação social de ideais ascéticos com forte apelo cristão. Usando um vocabulário freudiano podemos falar aqui de sublimação pulsional devida a uma introjeção coletiva de valores, a qual serviu à sobrevivência da sociedade como um todo, continuando ainda hoje para além de qualquer crença religiosa.

   Na Alemanha de Nietzsche o cristianismo já se encontrava em crise nos meios intelectuais. Daí seu diagnóstico da “morte de Deus”. Quando o cristão perde a fé em um mundo transcendente ele passa a sofrer daquilo que ele chamou de niilismo, a perda dos valores, uma anomia moral que pode se manifestar de diversas formas e mesmo pela invenção de valores substitutivos, muitas vezes frágeis e deturpados.[25] Um exemplo de niilismo pode ser encontrado em um personagem do romance Ponto e contraponto de Aldous Huxley. [26] Trata-se de um nobre inglês do início do século XX que, tendo perdido a fé, tornou-se um “cristão às avessas”, encontrando prazer em seduzir jovens mulheres e depois abandoná-las, fazendo questão de mostrar-se publicamente como uma pessoa imoral e terminando por se suicidar. Nietzsche também, quisesse ou não, tornou-se em última análise um niilista, uma vez que tendo abandonado a moral cristã jamais conseguiu encontrar o caminho para sua “transvaloração de todos os valores”, tornando-se em suas ideias mais o que ele mesmo chamou de um “imoralista”, a apostar no arremedo de moralidade que ele chamou de moral dos senhores.

 

4

 

Super-homem. Como já notei, não parece que ao distinguir entre moral dos senhores e moral dos escravos Nietzsche tenha feito mais do que distinguir dois aspectos de uma mesma moralidade e perceber que um desses aspectos ganhou ênfase na visão de mundo cristã, que emergiu talvez mais como efeito do que como causa da decadência do Império Romano.

   Afora isso, ainda mais incoerente do que o “homem superior” foi a sua pretensa superação pelo “super-homem”, um ser humano futuro, possuidor de todas as virtudes físicas e humanas, sem nenhum defeito ou limitação. Como ele escreveu:

 

Homem forte de elevada cultura, hábil em todas as realizações corporais, capaz de estar sempre em guarda, pleno de respeito por si mesmo e constituído de tal maneira a ser capaz de sacrificar todo o gozo de suas tendências naturais em sua rica profusão e ser suficientemente forte para tal isenção. Um homem de tolerância, não por fraqueza, mas por força, visto que sabe como tirar proveito de tudo o que arruinaria uma natureza medíocre, um homem para quem nada é proibido, a não ser a fraqueza, quer como defeito, quer como virtude.[27]

 

Para Nietzsche o super-homem seria aquele forte o suficiente para abandonar o cristianismo sem cair no niilismo, exemplificando a mais alta integração das faculdades intelectuais e volitivas. Ele reuniria alta cultura com habilidade na ação, liberdade absoluta, energia, tolerância e completa afirmação da vida. Ele seria uma união do Cesar Romano com a alma de Cristo, de Napoleão com Goethe.

   Um problema para nós hoje mais aparente é a implausibilidade biológica da existência da espécie de Frankenstein que Nietzsche chamou de “super-homem”. Como já notei, a antropologia social nos tem demonstrado que uma sociedade maximamente funcional deve fazer uso de sua neurodiversidade. Ela deve ser constituída por tipos humanos diferentes com qualidades complementares – uma qualidade geralmente demandando, como compensação, alguma espécie de limitação de alguma outra – o que exige de cada tipo humano uma função social apropriada de modo a reforçar a ação conjunta. Considere, para dar um exemplo, a coragem: dificilmente a coragem física vem acompanhada de coragem intelectual e talvez nunca na mesma intensidade. A razão é que a coragem física demanda um momentâneo bloqueio da imaginação para que o indivíduo passe a ação. Mas a coragem intelectual exige continuada atenção consciente para que seja exercida. As duas se opõem de tal modo que se torna quase impossível encontrá-las concentradas no mais alto grau em uma única pessoa (Nietzsche parece ter estado se aproximado disso, mas a um preço alto). Em suma: o que sabemos hoje sobre o comportamento humano desmente a visão nietzscheana do homem como o boxeador do universo. Marx, com a sua ideia do mundo ideal exemplificada em sociedades primitivas sem razões externas para se tornarem agressivas apontava para uma possibilidade mais razoável.

   Voltando à questão importante do surgimento e ascensão do cristianismo, há bons motivos para se desacreditar na revolta dos escravos sugerida por Nietzsche. Como já notei, a ascensão do cristianismo pode bem ter ocorrido mais como um pacto capaz de diminuir o ritmo da decadência das instituições que constituíam o império. Com a queda de Roma no século V e a divisão da Europa ocidental entre tribos bárbaras, o cristianismo teria tomado força como o intermediário capaz de permitir um melhor equacionamento das relações de poder. Afinal, as tribos bárbaras tanto sabiam conquistar quanto não sabiam governar e lutavam entre si. A nova moral monoteísta deontológica, apoiada em uma mitologia que motivava mais o altruísmo que o egoísmo, vinha a calhar. Ela fazia bem ao servo, que acreditava que Deus lhe daria compensação em uma justiça póstera. Ademais, ele tinha um senhor que, uma vez convertido, também era temente ao mesmo Deus, tendo por isso o dever de tratá-lo com alguma humanidade. Aí estava o princípio de um novo acordo, o que aos poucos se fez entre o príncipe e o servo da gleba, um acordo moralmente muito superior ao jugo forçado que existira antes entre os senhores romanos e escravos, os quais não possuíam direito algum. Assim, mesmo repousando em uma forte e primitiva ilusão do além-mundo, o cristianismo deve ter contribuído decisivamente na produção de um historicamente imenso progresso moral entre os povos ocidentais ao alimentar o altruísmo social e a irmanar todos os seres humanos diante de um mesmo pai celestial. A Europa medieval era pobre e fragmentada em pequenos burgos. Mas era mais civilizada do que a Europa do mundo antigo, deixando para trás a marca silenciosa e terrível da escravidão, comum às civilizações pré-cristãs.[28]

   Nietzsche viu claramente que o cristianismo estava chegando ao fim como uma influência intelectual predominante. Ele viu que o progresso moral do cristianismo cobrava seu preço através de uma forma de repressão pulsional rudimentar. As pessoas precisavam se conformar a regras deontológicas simplistas como os dez mandamentos, que deveriam valer para todos em situações as mais diversas – regras que por sua inflexibilidade facilmente aviltavam o ser humano, demandando formas irracionais de repressão instintiva e uma aceitação passiva do destino.

   A transvaloração (e suposta anulação) dos valores preconizada por Nietzsche tem se demonstrado improvável e desnecessária. Afinal, existem inúmeros ateus-agnósticos cujas atitudes preservam o que há de melhor nas atitudes cristãs. Ao que parece, a mitologia cristã, aliada ao progresso material, cultural, científico e técnico, acabou por criar as condições para emergência de uma moralidade superior, que se tornou ela mesma independente de suas origens cristãs. Ou seja, não é verdade que se Deus não existe então tudo é permitido, como pensou Dostoievsky. Seres morais não religiosos não precisam ser super-homens ou discípulos do Zaratustra nietzscheano e menos ainda precisam refletir a moralidade violenta da nobreza grega que lutou em Troia.

   Em meu juízo, o principal problema com Nietzsche é que ele era um ignorante em ética filosófica e estava muito longe de ser capaz de articular uma filosofia moral que substituísse a deontologia e a ética da virtude cristãs. Essa filosofia parece mais factível, como sugeri, através de uma forma adequada de utilitarismo que ainda hoje requer desenvolvimento (ver cap. VI, sec. 6), o que seria uma alternativa válida para nietzscheanos que pretendam se libertar da deontologia cristã. O resultado é que, na falta de opção, o próprio Nietzsche se tornou uma espécie de niilista moral. Como era um grande admirador dos textos homéricos, ele decidiu que a verdadeira moralidade deveria ser aristocrática, em sua origem semelhante à barbárie dos representantes da antiga nobreza helênica, artisticamente representada em épicos como a Ilíada.

   Mas como notei (recorrendo à autoridade dos dicionários), valores como o orgulho e honra, devidamente limitados, não precisam ser separados de valores cristãos como os da humildade e da piedade, razoavelmente consideradas. E a obediência às regras deve encontrar seu lugar no caso de elas serem justas em sua aplicação. Em suma, é bastante razoável pensar que uma moralidade pós-cristã seja capaz de incorporar dentro de si tanto o aceitável daquilo que Nietzsche chamava de moral do rebanho quanto aquilo que permanece sustentável em sua suposta moral dos senhores, evidenciando a contingência de sua dicotomia. Devido a essa contingência, não precisamos retirar dela as consequências extremamente conflitantes e até mesmo trágicas de sua filosofia.[29]

5

 

Metafilosofia. A crítica à moral cristã feita por Nietzsche tem consequências metafilosóficas assaz interessantes. Para ele os filósofos tendem a se tornar prisioneiros de uma pérfida ética do ressentimento (Kant), da má-consciência (Pascal) e principalmente do ideal ascético (Platão). A filosofia ocidental tornou-se prisioneira do ideal ascético antes mesmo do cristianismo. Em contraste com Heráclito, Demócrito e Protágoras, que Nietzsche curiosamente ainda levava a sério[30], Parmênides foi a primeira vítima do ideal ascético ao defender que toda a mudança é ilusória.[31] Mas onde Nietzsche esgrime a sua mais formidável retórica é na crítica às ideias platônicas e à distinção entre Ser e mera aparência sensível:

 

Tudo o que os filósofos se ocupam há milhares de anos são ideias – múmias. Nada de real saiu vivo de suas mãos. Esses senhores idólatras das ideias quando adoram, matam e empalham; tudo é posto em perigo de morte quando adoram. (...) Todos acreditam desesperadamente no Ser. Porém, como não podem apoderar-se dele, buscam as razões segundo as quais ele lhes escapa: “É forçoso que haja aí uma aparência, um engano através do qual não podemos perceber o Ser – onde está o impostor? Já o apanhamos – gritam alegremente – são os sentidos! Os sentidos que por outro lado são tão imorais. São os sentidos que nos enganam acerca do mundo verdadeiro![32]

 

Pouco adiante ele denuncia o Deus dos filósofos:

 

Outra coisa peculiar nos filósofos não é menos perigosa: consiste em confundir as coisas últimas com as primeiras. Põem no princípio o que é para vir no final (...) O mais elevado não pode proceder do mais baixo (...) A conclusão é que tudo o que é de primeira ordem deve ser causa sui. Essa é a maneira pela qual chegamos ao conceito de Deus. A coisa última, a mais tênue, a mais vazia, ocupa o primeiro lugar como coisa em si, como ens realissimum. Que a humanidade tenha sido induzida a levar a sério as dores de cabeça desses enfermos urdidores de teias de aranha! E que tenha pago tão caro![33]

 

É possível, sob a perspectiva nietzscheana, delinear uma história da filosofia fortemente influenciada pelo ideal ascético. Para ele Sócrates levou adiante a disposição ascética de Parmênides na forma de corrupção moral, infectando a filosofia de Platão.[34] Este último, influenciado pelo orfismo, chegou a dizer que a alma humana na terra é como um caramujo que precisa carregar a sua casa, o corpo, para onde quer que vá, só conseguindo libertar-se dele com a morte. Platão produziu a grande inversão escapista do senso comum denunciada por Nietzsche ao defender que o mundo real não é o mundo visível, mas um mundo inteligível, sobrenatural.[35] Também as doutrinas helenistas do epicurismo, do ceticismo e do estoicismo estavam para ele carregadas de ascetismo reativo. Os grandes filósofos cristãos, de Agostinho a Hegel, foram inevitavelmente afetados pelo ideal ascético, defendendo uma ética cristã que enfatizava a moral do rebanho, além de uma metafísica e ontologia que visavam complementar intelectualmente a forma cristã de religiosidade. Um exemplo particularmente marcante foi o de Plotino, um neoplatônico que entendia a vida em nosso mundo como degeneração e fracasso. Para Plotino o mal está na existência nesse mundo das aparências e todo o mal que a alma possui provém de seu mesclar com esse mundo[36]; como a alma foi feita para escapar do mal, nossa missão é a de evadir-nos do mundo. Como ele escreveu:

 

A alma em sua natureza ama a Deus e deseja ser una com ele no nobre amor de uma alma por seu nobre pai; mas sendo em seu nascimento humano seduzida pela corte dessa esfera, ela escolhe um outro amor, o mortal, abandona seu pai e cai... Mas um dia, vindo a odiar sua vergonha, ela rejeita o mal da terra e mais uma vez busca seu pai e encontra sua paz.[37]

 

A vida devia ser suficientemente difícil e incerta para que pessoas honestas, conscientes e inspiradas fossem capazes de negá-la a tal extremo. Segundo consta, Plotino sofria de hanseníase, o que lhe teria dado razões adicionais para se evadir do mundo corpóreo. A lista dos negadores do mundo tornou-se imensa durante a Idade Média e seria repetitivo expô-la aqui em detalhes.

   As condenações morais práticas do cristianismo foram sancionadas pelos filósofos de diversas épocas. Para Platão o ateu merecia prisão perpétua, senão pena capital, o que foi reafirmado por filósofos medievais como Tomás de Aquino.[38] E um filósofo como Kant (para Nietzsche “um pérfido”) condenava o suicídio (afinal, o que seria do dono das terras se, em uma situação de extrema carência, seus servos começassem a se suicidar?)

   Na metafísica o ascetismo teve a sua influência no dualismo cartesiano, no paralelismo de Leibniz e até mesmo (segundo Nietzsche) no ascetismo de Spinoza, assim como na necessidade da postulação de uma substância incognoscível por Locke, sem falar no imaterialismo de Berkeley, na “circularmente fundada” revolução copernicana,[39] na doutrina do dever pelo dever de Kant e no idealismo absoluto de Hegel.

   Só a partir de Hume, seguido mais tarde na Alemanha por intelectuais como Ludwig Feuerbach, Max Stirner, Marx e Shopenhauer, o ateísmo intelectualmente justificado começou a ganhar espaço na filosofia. Ainda assim, o ideal ascético permaneceu influente em filosofias importantes como demonstraram a fenomenologia de Edmund Husserl e até mesmo o irracionalismo antropológico de Heidegger, que Nietzsche veria como uma conversão escapista do cristianismo na cultuação do Ser. Ainda hoje, em um mundo no qual a maioria dos cientistas não costuma ser religiosa, a crença religiosa permanece influente entre filósofos. Ela serviu de estímulo ao esforço intelectual de um formalista genial como Saul Kripke, filho de um rabino. O mundo mais etéreo do formalismo, muito pouco exige de uma vivência crítica do mundo da vida, liberando a mente para construções metafísicas dialeticamente importantes por seus desafios, ainda que possam concorrer fortemente com o senso comum.

   Que dizer de tudo isso? Há uma verdade a ser considerada na concepção nietzscheana da história da filosofia. Um crítico de Parmênides poderia ver na apologia do “ser” eterno e indestrutível uma forma de evasão. Mas a metáfora universal do Ser serviu muito mais para introduzir o princípio da não-contradição, para de sugerir a necessária atemporalidade do portador da verdade, para apontar para a diferença essencial entre conhecimento e mera opinião... Além disso nem tudo na filosofia foi distorcido pelo ascetismo cristão. A definição de conhecimento como crença verdadeira justificada sugerida por Platão, por exemplo, não tem nada a ver com escatologias religiosas. E mesmo sob distorção ideológica, ideias filosóficas podem preservar um importante valor intrínseco. Um exemplo foi a própria contribuição de Platão para a ontologia. O reino das ideias pode ter servido como forma de evasão, mas as ideias também serviram ao esforço de explicar a unidade na diversidade, a predicação, a síntese. Além disso, o platonismo teve o mérito de sustentar o questionamento intelectual ontológico, não tendo até hoje sido desenvolvida nenhuma teoria alternativa capaz de substitui-lo por completo e de maneira plenamente satisfatória.

   Como veremos no último capítulo, existe hoje uma teoria ontológica que possui ao menos o potencial de preservar as conquistas do realismo de modo a tornar a opção platonista obsoleta. Trata-se, como veremos, da ontologia radicalmente naturalista proposta por Donald Williams sob o nome de ontologia dos tropos. Se de um lado o platonismo e as várias formas de realismo apoiadas no ideal ascético parecem ter sob a guarda do cristianismo retardado imensamente o aparecimento da teoria dos tropos, de outro essas ontologias forneceram o campo de discussão, além dos problemas e fórmulas argumentativas a serem encontradas no interior da ontologia proposta por Williams.

   Tanto quanto sua dicotomia moral, a metafilosofia de Nietzsche é unilateral, pois embora levando em conta um elemento de distorção ideológica que marca toda a filosofia cristã, não é suficiente para anatematizá-la. Ainda assim, naquilo que ela tinha de positivo sua crítica prestou um serviço inestimável à cultura.

 

6

 

Compatibilismo. Como se poderia esperar, Nietzsche também objetou contra o livre arbítrio, tendo em mente a concepção libertarista adotada pelo cristianismo, segundo a qual por sermos capazes de transcender o determinismo causal nós somos absolutamente livres. Para ele o livre arbítrio era mais uma maneira de domesticar os espíritos livres que ousassem desafiar os valores do status-quo estabelecidos pela moral dos escravos.[40]

   A reflexão sobre o a forma libertarista de livre-arbítrio nos oferece um caso de estudo acerca da contaminação da filosofia pelo ideal ascético, de Agostinho a Kant. Todavia, como logo veremos, há uma concepção de livre-arbítrio que é imune a objeções como a de Nietzsche e contra a qual ele certamente não teria nada a objetar.

   Há três concepções clássicas acerca do livre arbítrio: o determinismo, o libertarismo e o compatibilismo. Segundo o determinismo ou ceticismo o livre arbítrio não existe. Ele é uma ilusão originada de nossa falta de conhecimento das causas de nossas decisões e ações. Provavelmente um filósofo atomista como Demócrito, caso se manifestasse a respeito, seria determinista, pois ele achava que o acaso é uma ilusão decorrente da falta de conhecimento das causas.[41] Historicamente, muito poucos foram os filósofos que defenderam essa posição. Esse foi o caso de um ateísta como o barão D’Holbach durante o iluminismo francês. Esse também foi o caso de psicólogos como Sigmund Freud, B. F. Skinner e da maioria dos atuais neurocientistas. Se a consciência de nossas decisões depende de metacognições controladoras de nossos processos decisórios[42], considerando que não podemos tomar consciência dessas metacognições, parece que de um ponto de vista estrutural é sempre impossível tomarmos consciência de todos os fatores envolvidos em uma decisão.[43] Consequentemente, temos a impressão de que existe um elemento de indeterminação originador de um “sentimento de liberdade” que acompanha nossas decisões. Mas é esse sentimento mesmo que em última análise é ilusório.

   A posição oposta a essa é a do libertarismo, segundo a qual somos livres porque somos capazes de transcender o determinismo causal em nossas decisões. Vimos (cap. IV, sec. 1) que Epicuro acreditava que os átomos de nossas mentes são capazes de realizar desvios arbitrários (clínamen) responsáveis pela liberdade de nossas decisões. Os medievais, de Agostinho a Aquino, refinaram essa sugestão sugerindo que, tendo sidos feitos à imagem e semelhança de Deus nós somos como que primeiros motores, causas incausadas.[44] Essa maneira de ver tem sérias consequências morais já antecipadas por Nietzsche: Como determinantes últimos de nossas ações nós passamos a ser absolutamente responsáveis pelo que decidimos fazer. Essa doutrina foi usada para justificar a justiça retributiva sem matizes imposta pela religião cristã, segundo a qual o pecado mortal condena o pecador a ser castigado pelo fogo eterno após a morte... Essa forma primitiva de responsabilização moral justificou as penas impostas pela inquisição, assim como direitos especiais para aqueles que possuem poder decisório, conquanto se tenha o poder decisório sobre como interpretar os preceitos religiosos. Foi essa concepção que motivou Kant, um libertarista retributivista, a apresentar como exemplo de aplicação da lei moral uma ilha a ser abandonada pelos seus habitantes; para que a justiça seja feita, pensou ele, será necessário que antes de abandonarem a ilha os habitantes enforquem todos os assassinos condenados à morte, mesmo que isso não resulte em nenhum ganho para eles.[45]

   Felizmente há uma terceira posição sobre o livre arbítrio, que é o compatibilismo ou determinismo suave. O compatibilismo foi prenunciado por Spinoza e explicitamente anunciado por Thomas Hobbes, ainda que em uma versão rudimentar, sendo mais tarde adotado por Hume e outros filósofos ingleses. Ele parte da ideia de que o livre arbítrio não tem nada a ver com o determinismo, uma vez que sua definição é completamente diferente. Para o compatibilista, ser livre é simplesmente não ser restringido na decisão e na ação. Posso refinar essa ideia na seguinte fórmula:

 

Um agente é livre (Df.) = quando, tendo em vista um razoável leque de alternativas, ele não é restringido nem por limitação nem por coerção, nem externamente nem internamente, nem ao nível físico, nem ao nível volitivo e nem mesmo ao nível das razões. [46]

 

Essa fórmula explica-se como se segue. As pessoas possuem sempre um leque de alternativas razoáveis para suas decisões e ações. Assim, é razoável que eu decida ir à praia nesse domingo, pois moro perto de uma praia. Mas não é razoável que eu queira ir à Lua nesse domingo, pois isso está fora de meu leque de alternativas razoáveis.

   Afora isso, o leque de alternativas pode ser restringido de duas maneiras. Uma delas é por limitação, que é quando as alternativas são diminuídas: Se eu estiver com febre alta, por exemplo, não terei como ir à praia nesse domingo, o que limitará minha liberdade de decisão. A outra maneira pela qual minhas alternativas são restringidas é por imposição. Se ao sair na rua nesse domingo eu for sequestrado, a restrição de meu leque de alternativas se dará por uma forma de imposição chamada coerção: eu simplesmente terei de fazer o que meus sequestradores decidirem. A coerção não limita, mas força o agente a seguir uma alternativa definida.

    As restrições podem ser também externas ou internas. E isso pode acontecer em três níveis: um nível físico, outro volicional e outro racional. Por exemplo: um paraplégico tem suas possibilidades de movimento internamente limitadas. Mas uma pessoa amarrada em um poste é externamente forçada a se manter em uma posição específica. Essas são restrições físicas por limitação. Não é difícil imaginar casos nos quais uma pessoa possa ser ser externamente ou internamente coagida por causas puramente físicas a realizar certos movimentos...

   Mas uma pessoa também pode ser psicologicamente limitada ou coagida em sua vontade por fatores externos, como no caso da criança que por medo de castigo obedece a vontade dos pais ou no caso de uma pessoa que no ambiente de trabalho é pressionada a fazer algo que não considera correto. Já uma pessoa que sofre de depressão pode não realizar certas ações, sendo assim limitada por fatores psicológicos internos, enquanto um alcoólatra que se vê forçado a beber contra a sua vontade é coagido ao nível volitivo por fatores internos (o termo inglês free will conota a liberdade da vontade).

   Mais importante é a imposição externa ou interna ao nível das razões. Aqui temos o caso de uma pessoa que não bebe por razões religiosas, o que é uma limitação de origem externa, ou de um criminoso racista que concluiu que deve fazer mal a pessoas de outra cor, o que é uma coerção racional interna. Se ele chega ao seu fanatismo somente por influência do meio social no qual vive, trata-se por sua vez de uma coerção racional externa. Se ele for um pacifista e mesmo em uma situação na qual para outros avaliadores seria melhor que ele agisse para proteger outras pessoas, mas ele decide não fazer nada, ele poderá estar sendo limitado por razões internas ou talvez externas, no caso de ter sido convencido a não agir pelo grupo ao qual pertence. Em todos esses casos poderemos falar de restrição da liberdade de decisão racional (a expressão ‘livre arbítrio’ conota a arbitragem racional do agir).

   A restrição ao nível racional é particularmente importante devido ao que Robert Kane chamou de controle encoberto não-restritivo (covert non-constraining control)[47]: a pessoa cuja liberdade é diminuída ou obliterada geralmente não tem consciência disso por ser restringida de maneira encoberta. Um psicótico que se recusa a comer por acreditar que seu alimento está envenenado não se considera limitado em suas decisões. Um homem-bomba que realiza um atentado não acredita que esteja sendo coagido por razões externas a realizar tal ação.

   A instância neutra para o julgamento deve ser nesses casos externa: um grupo de avaliadores que possui as informações da pessoa que age, adicionadas a outras informações que ela desconhece, pode nos levar a concluir que a liberdade dessa pessoa está sendo prejudicada por intermédio de razões equivocadas.

   A aceitação do compatibilismo tem consequências importantes para a questão da responsabilidade moral. Para o compatibilista, que aceita que uma pessoa pode decidir livremente mesmo ao estar sendo causalmente determinada, a pessoa que faz o mal não o faz por uma vontade absolutamente livre, mas por contingências deterministas circunstanciais a serem encontradas em sua natureza, no meio social em que vive, em sua história, em sua educação... Isso não significa, naturalmente, que não deva haver punição, posto que a justiça retributiva deve ser aqui substituída por uma justiça restaurativa. Segundo essa última, a punição deve existir por duas razões maiores. A primeira é a de impedir que a pessoa realize o mal outra vez, ou por estar presa ou pela remodelação dos seus valores e comportamentos que a punição possa produzir. A segunda razão é a de dissuasão: a punição impede que outros com as mesmas disposições venham a realizar atos similares. O compatibilismo conduz a uma concepção de responsabilidade moral muito mais refinada e humana do que aquela resultante do libertarismo.

 

 



[1] Also Sprach Zaratustra: Ein Buch für Alle und Keinen (1883-1885). Trad. Port. Assim falava Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém (Vozes 2014).

[2] Dorian Astor: Nietzsche (São Paulo: LPM), 2013, p. 23.

[3] Arthur Shopenhauer: O mundo como vontade e representação (Editora Contraponto (1819) 2007).

[4] Cf. Walter Kaufmann, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist (Princeton: Princeton University Press 1974), pp. 36-41.

[5] Ecce Homo IV, sec. 2.

[6] Não desejo ridicularizar, mas desmistificar. Seres humanos são imperfeitos e filósofos são seres humanos. Daí que a maioria deles, junto a importantes ideias incidiu também em erros graves e inevitáveis. Esse é o caso de Nietzsche. Seus intérpretes são via de regra apologéticos, a exemplo do clássico de Walter Kaufmann: Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist (Princeton University Press 1950), que legitimou Nietzsche perante a academia norte-americana. Mas a unilateralidade pode nos impedir de decifrar o enigma nietzscheano. Espero nessa breve reconstrução ter me aproximado disso precisamente por ter separado o joio do trigo.

[7] Sigmund Freud: A interpretação dos sonhos (Imago 1996), cap. 6.

[8] Claudio Costa: “Processo primário e emoção estética”, in Arquiteturas Conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2022).

[9] Bertrand Russell: A History of Western Philosophy (New York: Simon & Schuster 1971) p. 771.

[10] Genealogia da Moral, Dissertação Primeira, seção 5. Na Alemanha do século XIX o racismo não poupava sequer os filósofos. Mas também nisso Nietzsche foi original: ele era racista ao seu próprio modo.

[11] Ibid. cap. 2. Além do bem e do mal, sec. 260.

[12] A civilização grega não era autóctone e Nietzsche sabia disso. Ela resultou de levas migratórias (jônios, aqueus, eólios e dórios), que dominaram a população autóctone, uma leva buscando subjugar a anterior.

[13] A meu ver o padre Friedrich Copleston estava certo ao notar que a verdadeira moralidade cristã nunca foi tão reativa e oposta aos valores nobres como Nietzsche a descreveu. Ver Copleston: Nietzsche: filósofo da cultura (Porto: Livraria Tavares Martins 1979) 

[14] Ibid., Dissertação Primeira, sec. 9.

[15] Ibid., Dissertação Primeira, sec. 10.

[16] A genealogia da moral, Dissertação Primeira, sec. 11.

[17] Ibid., 11. É verdade que Nietzsche prezava a ideia de auto-superação por sublimação e que a besta loira é apenas seu ideal de homem saudável em estado natural, incivilizado. (Cf. Kaufmann, cap. 7, sec. 2) Mas isso não altera sua concepção inadequada da natureza humana.

[18] Arnold Toyinbee: Um estudo da história (edição condensada e revisada por Arnold Toynbee e Jane Caplan). (São Paulo: Martins Fontes, Universidade e Brasília, 1982)

[19] Nietzsche pode bem ter sido influenciado por Edward Gibbon, que em sua monumental e muitíssimo conhecida história do declínio e queda do império romano (1776-1789) popularizou a ideia de que foi o cristianismo que enfraqueceu o império romano e apressou a sua queda. Todavia, é hoje razoável pensar que a ascensão do cristianismo possa ter sido mais efeito do que causa.

[20] O aumento da interação entre os povos tornou o racismo hoje derrisório. O melhor argumento contra o racismo encontra-se na plasticidade do cérebro, o que torna a mente humana acima de tudo um produto da educação e da cultura.

[21] Bertrand Russell: a.a.O., p. 767.

[22] A genealogia da moral, Dissertação segunda, sec. 11-12; Dissertação terceira, sec. 11

[23] Ver comentário de Brian Leiter em Nietzsche on Morality (London: Routledge 2002), caps. 6, 7 e 8

[24] Crepúsculo dos ídolos 5, sec. 5. A genealogia da moral, Dissertação terceira, sec. 13.

[25] Crepúsculo dos ídolos 9, sec. 34.

[26] Aldous Huxley: Point Counter Point (Vintage Books 2004 (1928)).

[27] Friedrich Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos p 125.

[28] As mudanças foram lentas e variadamente causadas, de modo que a escravidão na europa só acabou por volta do século XI, Por longo tempo a igreja justificou a obediência do escravizado como uma obrigação perante Deus, embora incentivasse um tratamento humano. Para detalhes ver Pierre Bonnassie: From Slavery to Feudalism in South-Western Europe (Cambridge: Cambridge University Press 1991).

[29] Esse é um ponto percebido e exagerado ao absurdo por Slavoj Zizek em Christian Atheism: How to be a Real Materialist (Blomsbury Academic 2024).

[30] Wille zur Macht (1901). Trad. port. Vontade de Poder (Petrópolis: Vozes 2011) sec. 233.

[31] Filosofia na época trágica dos gregos, sec. 9.

[32] O crepúsculo dos ídolos, A razão na filosofia, sec. 1

[33] O crepúsculo dos ídolos, A razão da filosofia, sec. 4

[34] Gaya Scientia, sec. 372.

[35] O crepúsculo dos ídolos. A razão na filosofia, sec. 6

[36] Plotino: Enéiades I, 2, 3.

[37] Plotinus: The Six Eneads (Chicago: Encyclopaedia Britannica 1952), VI, 9, 9.

[38] George Minois: História do ateísmo (Unesp 2023), pp. 51-52.

[39] Para Nietzsche a revolução copernicana faz tanto sentido quanto a afirmação de que o ópio faz dormir por causa de sua virtude dormitiva, só que através de muita “pompa, solenidade e bizarros floreados.” Além do bem e do mal, sec. 11.

[40] Ver Além do bem e do mal, cap. I.

[41] W. K. C. Guthrie: A History of Greek Philosophy II: The Presocratic Tradition from Parmenides to Democritus (Cambridge: Cambridge University Press 1965), pp. 418-19

[42] Ver, por exemplo, D. M. Armstrong: The Mind-Body Problem: An Opinionated Introduction (Boulder: Westview Press 1999), cap. 10 (10.3).

[43] Como escreveu D. C. Dennett: “qualquer tentativa de acompanhar o próprio processo de deliberação tendo em vista uma projeção acurada de sua trajetória deve ser autodestrutiva ameaçando um infinito regresso de auto-monitorização.” Elbow Room: The Varieties of Free Will Worth Wanting (Cambridge: MIT-Press 1984), p. 112.

[44] Ver R. M. Chisholm: “Human Freedom and the Self” (The Lindley Lecture, University of Kansas 1964).

[45] Kant: A metafísica dos costumes (Lisboa: Calouste Gulbenkian 2011), p. 211.

[46] Uma definição pretensamente positiva dependeria da autonomia, um conceito kantiano nunca satisfatoriamente definido. Para uma defesa sistemática da versão mais refinada do compatibilismo tradicional aqui resumida, ver meu artigo “Free Will and the Soft Constraints of Reason”, in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014), cap. 7.

[47] Robert Kane: The Significance of Free Will (Oxford: Oxford University Press 1988), p. 64 ss.



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