Draft de capítulo do livro “Introdução histórica à filosofia” a ser publicado.
XVI
NIETZSCHE E O CRISTIANISMO
Eu trato de problemas profundos como quem decide nadar no frio: entro e
saio rápido. Que dessa maneira não se vai ao fundo é uma superstição dos
inimigos da água fria – eles falam sem experiência própria.
Nietzsche
Entre os filósofos do século XIX Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900)
tem sido junto a Marx o mais popular. Isso se deve em boa parte ao fato de ele
ter sido um grande poeta-filósofo. Ele foi o autor de Assim falava
Zaratustra,[1]
um livro considerado por Bertold Brecht a maior obra lírica da literatura
alemã.
Alguns detalhes biográficos
merecem ser considerados: Nietzsche pertencia a uma tradicional família de
pastores protestantes conservadores, tendo recebido estrita educação religiosa.
Ele era considerado o melhor aluno de história e línguas que passou pelo
renomado colégio de Pförta, embora fosse fraco em matemática. Aos 12
anos ouviu estudantes do colégio duvidarem da história de Caio Múcio Cévola, o jovem
patrício romano que, não tendo conseguido matar o rei dos etruscos que sitiavam
Roma, decidiu diante do mesmo queimar a sua mão no fogo para castigá-la... Para
provar que alguém é capaz disso Nietzsche decidiu repetir o feito. Colocou
sobre a palma da mão um punhado de fósforos e ateou fogo, queimando a mão sem
expressar nenhum protesto. Ele só foi salvo de não ter se queimado mais pela
intervenção de um fiscal que, percebendo a gravidade da situação, o impediu de
continuar a experiência.[2] Como lembrança do episódio
Nietzsche ficou com uma grande cicatriz na mão pelo resto da vida. Essa estória
mostra o tipo de caráter ferreamente determinado e descompromissado que ele
demonstrou mais tarde, na imensa coragem com que decidiu abraçar sua vocação de
filósofo. Ele perdeu a fé aos 20 anos de idade, quando se lhe tornou óbvio que
a religião é uma ilusão.
Aos 24 anos Nietzsche tornou-se
professor de filologia em Basel, na Suíça. Ele foi pessoalmente influenciado
por Richard Wagner, um crítico (um tanto imoral) da moralidade, com o qual
compartilhava uma visão aristocrática do mundo. Mas a influência maior foi a de
um livro escrito pelo filósofo pessimista Arthur Schopenhauer, que ele
encontrou por acaso em uma livraria de usados: O mundo como vontade e
representação.[3]
Segundo Schopenhauer, a coisa em si kantiana deveria ser substituída pela Vontade
(Wille), entendida como uma força metafísica cega, caótica e destrutiva,
que rege o mundo. Em oposição a Hegel (considerado por ele um impostor) o real
é irracional e o irracional é real. O ser humano, por sua vez, é um escravo da vontade,
o que torna a sua vida inevitavelmente miserável. Por não possuir nem meta nem
um Deus que a direcione, ela leva o homem ao ódio, à vingança, à crueldade, à destruição,
às guerras e a todas as tragédias de sua desgraçada condição. Para Schopenhauer
há só três meios de fazer frente ao domínio da Vontade: pelo consolo da arte, pelo
consolo da compaixão e pelo consolo da ascese. O consolo da arte nos faz
esquecer por algum tempo o jugo da Vontade. O consolo da compaixão nos liberta
dos efeitos do egoísmo, que nos conduz a ações que geram um sentimento de culpa
continuado e autodestrutivo. E o consolo da ascese nos permite renunciar a tudo
aquilo a que as paixões nos ligam. (Uma renúncia um tanto improvável, dado que
para que a vontade seja eliminada é preciso empregar a própria vontade.)
Nietzsche acabou rompendo com ambos. Ele
rompeu com Wagner basicamente por ter percebido seu oportunismo e falta de
integridade.[4]
E também rompeu com a filosofia de Shopenhauer por considerá-lo um niilista que
buscava um substituto para a vida. Nietzsche concordava com a ideia de que a
vontade rege o mundo, entendendo-a uma vontade para poder (Wille zur
Macht). Mas discordava que a vontade devesse ser evitada. Pelo contrário,
precisamos ter a coragem de “dizer sim a vida”, defrontando-nos abertamente com
sua falta de sentido, com sua natureza cega, caótica e no final das contas
sempre destrutiva, afirmando o destino, qualquer que ele seja! A plenitude da
vida é para ele o valor fundamental, maior do que o do conhecimento, o que faz
sentido, dado que a função última do conhecimento é possibilitar a
sobrevivência dos organismos. A degeneração de sua época resultava para ele de
terem colocado o conhecimento acima da vida. Mas as forças vitais terminarão
inevitavelmente por vencer através de embates cataclísmicos. Como ele escreveu ao
final de Ecce Homo:
...se a verdade entra em luta contra a mentira milenar
haverá convulsões, terremotos, deslocamentos de montanhas e de vales, coisas
que nunca se imaginaram nem mesmo em sonhos. Então o conceito de política se
absorverá todo em uma luta de espíritos e todas as formações potenciais da
antiga sociedade irão para os ares, porque todas se assentam na mentira: haverá
guerras como nunca houve na terra. Somente depois de mim começará no mundo a
grande política.[5]
Já se chegou a dizer que desse modo Nietzsche previu
as grandes catástrofes sociais do século XX, como os totalitarismos e as
guerras mundiais. Um exagero! Mas não se pode negar que havia presciência em
seu pessimismo.
Vale notar
que não faltava em Nietzsche a coragem necessária para a realização de sua
vontade para poder em estado cru. Uma vez, quando estudante, cruzou com um
jovem desconhecido e o desafiou para um duelo. O desconhecido aceitou. Eles
lutaram até que Nietzsche foi ferido no nariz. Concordaram então em encerrar a
luta, talvez porque o outro tenha ficado com pena... De outra feita ele decidiu
ir para a guerra. Infelizmente caiu de um cavalo e foi direto para o hospital
onde passou dois meses. Mas não se deu por vencido. Quando estourou a Guerra Franco-Prussiana
ele se alistou novamente e foi servir como enfermeiro. Infelizmente contraiu
difteria dos pacientes e acabou outra vez no hospital, tendo desta feita por muito
pouco sobrevivido. Na Suíça ele se apaixonou por Lou Andreas Salomé, uma jovem
de 21 anos, bela, culta e altamente inteligente. Ela o rejeitou e, para
livrar-se de seus assédios fugiu com seu amigo Paul Rée, deixando-o devastado.
Nietzsche, orgulhoso como era, acumulava razões para odiar o mundo sem perceber
que o problema estava nele mesmo.
Em 1872, aos 28 anos, ele publicou
seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia (1872). Esse livro já era
essencialmente filosófico e foi muito mal recebido pelos filólogos. Ali ele
introduziu, sob influência de Wagner, uma distinção importante entre duas
tendências visíveis na arte grega: a apolínea e a dionisíaca. A
arte apolínea era a que se exprimia na escultura e arquitetura, sendo guiada
pela harmonia, organização e medida. A arte dionisíaca, por contraste, era
cruel, encontrando sua via de expressão na música e na embriaguez dos festivais
dionisíacos. A tragédia grega era uma conjunção do apolíneo com o dionisíaco.
Mais tarde ele veio a enfatizar o elemento dionisíaco como indispensável à
arte, vendo nele a expressão estética da vida.
Após O nascimento da
tragédia seguiram-se ainda dois livros: Meditações Intempestivas (1876)
e Humano, demasiado humano (1878), ambos contendo reflexões sobre a
filosofia da vida e da cultura. Em 1879, devido a sérios problemas de saúde,
Nietzsche precisou renunciar ao seu posto como professor, passando a viver de
uma pequena pensão. Foi nesse ponto, aos 35 anos, que ele passou a se dedicar
totalmente ao ofício de escritor, vivendo solitariamente, os verões na Suíça e
os invernos no norte da Itália. Nos dez anos que se seguiram escreveu um bom número
de livros publicados por conta própria e praticamente sem recepção. Em ordem
cronológica, os principais foram: Aurora (1881), Gaya Scientia
(1884), Assim falava Zaratustra (1883-1885), Além do bem e do mal (1886),
A genealogia da moral (1887), O anticristo (1888) e O crepúsculo
dos ídolos (1888), além da obra póstuma intitulada Vontade para Poder (1901).
Em seu último livro, uma curta e brilhante autobiografia intelectual intitulada
Ecce Homo (1888), ele já dava mostras de delírio de grandeza. Em 1889,
aos 45 anos, Nietzsche enlouqueceu, abraçando em lágrimas um cavalo que estava
sendo vergastado em uma rua de Gênova. Ele viveu os próximos dez anos junto à
sua mãe e irmã, sem recuperar a razão e com paralisia cerebral progressiva, provavelmente
causada por sífilis.
Nietzsche escreveu na forma de
aforismos ou pequenos trechos de prosa, sem qualquer preocupação em organizar
seu pensamento de forma sistemática. Ele foi muito mais um crítico do que um
pensador construtivo. Ele sabia que a filosofia é experimento com aquilo que
ainda não sabemos e, diversamente de outros, não tinha compromisso com nada
além de sua própria consciência intelectual. Por isso em suas reflexões ele oscilava
dialeticamente de forma tão violenta que se torna difícil retirar uma filosofia
coerente de seus escritos. Mesmo assim é possível dizer que ele foi acima de
tudo um filósofo da vida e um maximamente importante crítico da moral, da visão
de mundo e da filosofia escapista por ele denominada “cristã.” No que se segue quero
expor o que me parecem ser as vertentes principais de seu pensamento,
ocupando-me também em criticar suas inevitáveis deficiências.[6]
1
Freud. Vale a pena abrir aqui um parêntese para notar o
paralelo entre as formas de arte apolínea e dionisíaca de um lado e os
mecanismos de deslocamento (Verschiebung) e condensação (Verdichtung)
de outro. Esses mecanismos foram esclarecidos por Freud[7] como os dois mecanismos
fundamentais do processo primário (Primärvorgang). Quero
explicá-los de modo a mostrar como eles podem ajudar a esclarecer a distinção
divisada por Nietzsche.
Para Freud nossos processos de
pensamento em geral, especialmente no pensamento cientifico, se dão através do
que ele chamava de processo secundário de pensamento (Sekundärvorgang).
Neles as cargas afetivas (Besetzungen) se ligam firmemente às
suas representações (Vorstellungen) próprias. É pela pressão
dessas cargas afetivas ou emocionais que as representações se tornam processos
de pensamento conscientes. Mas o mesmo não acontece na produção dos sintomas
neuróticos, dos sonhos, dos chistes, das obras de arte e mesmo da própria
filosofia. Aqui vige o processo primário de pensamento. Nele as cargas afetivas
passam livremente de uma representação para outra que lhe esteja de algum modo
associada. É através disso que, durante o sono, com o afrouxamento da censura, as
cargas associadas a representações reprimidas no inconsciente passam para a
consciência. Elas se ligam a outras representações, similares ou associadas, as
quais são capazes de burlar a censura e se tornar conscientes, disso resultando
o sonho. Isso se dá pelos mecanismos de deslocamento e/ou condensação. Pelo
deslocamento essa transferência se dá quando a carga de uma representação
inconsciente é passada a outra representação associada, capaz de se tornar
consciente (em um exemplo de Freud, uma paciente judia sonha dar o seu pente a
um jovem não-judeu que ela ama no lugar de entregar-se amorosamente a ele). Já
a passagem para a consciência se dá pela condensação quando mais de uma
representação interligada cede sua carga a uma delas, que por sua vez alcança a
consciência (esse seria o caso se a paciente sonhasse ter o jovem esquecido seu
chapéu na casa dela, o chapéu estando no lugar da pessoa inteira). Freud notou
que enquanto o deslocamento se dá com representações verdadeiramente
inconscientes, que não podem passar a consciência devido à censura, a
condensação acontece com representações pré-conscientes que somos facilmente
capazes de tornar conscientes. Ora, aqui se concentra a chave para a diferença psicológica
entre o apolíneo e o dionisíaco na arte. O apolíneo depende do deslocamento.
Daí que o conteúdo representacional final se apresenta limpo, puro, sublime,
sem traços aparentes de material proibido, como costuma ser o caso quando esse
material é inconsciente. Mas na arte dionisíaca é diferente: aqui o
inconsciente pode fluir livremente através de condensações para a consciência,
resultando no caos, no êxtase, na violência crua que experienciamos, por
exemplo, em uma tragédia como a de Medéia, que mata os filhos para vingar-se do
marido. Pode parecer que não seja sempre assim, mas é que na obra de arte os
processos são complexos e costumam se dar em uma diversidade de camadas e o
sobre os mais diversos materiais.[8]
Esse entendimento nos permite
exemplificar para além de Nietzsche. Por exemplo, se compararmos as tragédias Hamlet
e Macbeth, parece que na primeira predomina o apolíneo (deslocamento:
conflitos inconscientes inibem as ações de Hamlet) enquanto que na segunda
predomina o dionisíaco (condensação: Macbeth tem plena consciência de seu crime).
Na pintura medieval Giotto parece apolíneo se comparado a Hieronymus Bosch, que
é claramente dionisíaco. No renascimento as pinturas de Rafael Sanzio parecem
ser as mais apolíneas (deslocamento), enquanto às de Caravaggio costumam ter algum
elemento inevitavelmente dionisíaco (condensação). O movimento impressionista
(vide Renoir e Claude Monet) tem muito de apolíneo (deslocamento) enquanto o
expressionismo (de Van Gogh a Kokoschka, terminando com Francis Bacon) está
muito mais para o conflito dionisíaco (condensação). Uma investigação detalhada
da questão demandaria um estudo à parte.
2
Para compreendermos Nietzsche, a primeira coisa a notar é que se trata
de um filósofo elitista. Ele acreditava, senão em uma aristocracia de
sangue, ao menos em tipos humanos superiores. Por isso ele rejeitava com
veemência tanto a democracia quanto o socialismo. Ele distinguia entre “homens
superiores” (como Goethe, Júlio César e Napoleão) e “homens inferiores”, a
grande maioria, os plebeus, o populacho, as moscas da praça pública. Como notou
Russell, a distinção entre homens superiores e inferiores era para ele de cunho
biológico[9], o que significa que seu
elitismo era racial, ainda que ele admitisse que as raças se tenham
misturado muito, que certas misturas possam ser fortalecedoras, que rejeitasse o
antissemitismo e que considerasse os judeus superiores aos alemães... Sob a inelutável
influência de seu tempo ele chegou mesmo a sugerir a existência passada de uma
originária raça ariana como sendo constituída de homens superiores:
O latim malus (que eu relaciono a mélas [negro]
poderia designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos (hic niger
est), especialmente o autóctone pre-ariano do solo itálico que se
distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos ruivos
arianos (...) “o bom”, “o nobre”, “o puro”, significava antigamente “o de
cabelos ruivos” em oposição ao nativo de cabelos negros (...) [Na Europa em
geral] no essencial a raça [superior] submetida [pela inferior] terminou por
adquirir predomínio na sua cor, na forma curta do crânio, talvez até mesmo nos
instintos sociais e intelectuais (...).[10]
A admissão da existência dessas duas estirpes (ou raças) humanas originárias
(que para ele incluíam guerreiros japoneses e árabes...) nos faz entender
melhor a tese central em Nietzsche acerca da genealogia do que mais usualmente
chamamos de moral, que ele via como uma perversa invenção humana. Para ele
existem dois tipos de moral: a dos senhores (ou nobre) e a dos
escravos (ou servil).[11] Essas duas formas de
moral eram para ele claramente distinguíveis uma da outra, embora fossem
capazes de conviver simultaneamente em um mesmo grupo humano e até em uma mesma
pessoa, posto que as duas estirpes têm se misturado há mais de dois mil anos...
Para ele, a moral ativa dos senhores era claramente distinguível nas tribos
guerreiras da Grécia dos tempos homéricos.[12] Segundo ele:
Para a moral dos senhores ser bom é ter coisas
associadas à felicidade, como nobreza, honestidade, bravura, autodomínio,
coragem, força, saúde, riqueza e poder. Já ser mau é ser covarde, medroso,
mesquinho, vingativo, inconfiável, pobre, fraco e doente, objeto de aversão
mais do que de ódio.
Essa moral dos senhores tem pouco a ver com o que realmente chamamos de
moralidade, justificando a epítome de imoralista que Nietzsche deu a si
mesmo. Ele chegou a sugerir que uma oposição entre o bom (= nobre) e o mau
(= desprezível), típica da nobreza, é anterior à nossa decadente oposição moral
entre o bem e o mal.
A moral no sentido em que
geralmente usamos a palavra é a dos escravos ou plebeus, que por sua vez é reativa
ao invés de ativa. Através dela, aquilo que na moralidade dos senhores seriam
defeitos humanos, como a debilidade e a fraqueza de espírito,
passam a ser considerados valores positivos. Assim, o orgulho, que era
uma qualidade para a nobreza da antiga Grécia, não sendo uma qualidade dos
escravos, passou a ser um defeito. A piedade, que antes era uma
fraqueza, passou a ser vista como possuindo um grande valor, o mesmo
acontecendo com a humildade, a simpatia, a benevolência, a
renúncia, a abnegação, a obediência e mesmo a estupidez.[13]
Para Nietzsche o que aconteceu
historicamente foi que os escravos, com sua moral degenerada, venceram. Isso
aconteceu graças à intromissão genial dos judeus que inventaram o cristianismo.
Com a ascensão do cristianismo, tal como professado por Paulo de Tarso, uma grande
mudança começou a ser sentida. Foi dada voz social à moralidade reativa dos
escravos e plebeus, à moralidade cristã, à moralidade do rebanho. O grande suporte
que o cristianismo veio a oferecer à moral do rebanho se encontrava na sedutora
crença de que a justiça final só se faria após a morte, em um além-mundo no
qual os que tivessem sido bons nesse mundo seriam recompensados com o paraíso e
os maus castigados pelo fogo eterno... Como ele escreveu:
Inclinemo-nos ante o fato consumado: o povo venceu,
“os escravos”, “o populacho”, “o rebanho”, chamai-o como quiserdes. (...) Foram
abolidos os amos, triunfou a moral do povo. Se disserdes que foi um veneno
(porque misturou as raças entre si) não digo o contrário, sem dúvida eles
conseguiram esse envenenamento.[14]
Em Roma a moral dos escravos acabou se impondo sobre a moral dos homens
superiores. Dessa maneira Nietzsche via a moralidade cristã como um sintoma da
decadência, um adoecimento da cultura que cobriu os últimos dois mil anos da
civilização ocidental. A moral dos escravos renega os valores nobres dos homens
superiores na intenção de dominá-los e domesticá-los. Através dela busca-se transformar
o lobo em cordeiro, quando é bem sabido que o ser humano não degenerado é um predador.
É interessante ver a maneira
como ele concebeu a raça superior. Ele a via sobretudo como ativa, lutadora e
trabalhadora, nisso consistindo sua felicidade. Essa felicidade, notou ele,
está em profunda contradição com a felicidade das raças inferiores:
...aos impotentes, aos obstruídos, aos de sentimentos
hostis e venenosos, a felicidade aparece sob a forma de estupefação, de sonho,
de repouso, de paz, de sábado, de descanso do espírito, de estender dos ossos,
de passividade.[15]
Ainda assim parece plenamente possível conceber coisas como estupefação,
sonho, repouso, paz de sábado e descanso do espírito sem associá-las à
impotência e sentimentos e hostis e venenosos, o que nos faz perguntar o quanto
de Nietzsche permaneceu determinado pelas aleatoriedades espartanas de sua
própria educação.
Para Nietzsche os senhores só precisavam
ser civilizados entre si: em suas relações eles se mostravam engenhosos,
senhoris, delicados, fiéis, cavalheirescos e bons amigos. Eles sentiam
obrigações entre eles mesmos, mas não com a plebe. Por isso, fora de seu meio eram
aptos a se tornarem animais selvagens:
...monstros alegres que saem de uma horrível série de
assassínios, de incêndios e violações com tanto orgulho e serenidade de alma
como se tratasse de uma brincadeira de estudantes e persuadidos de que deram
aos poetas matéria para eles celebrarem e cantarem. No fundo dessas raças
aristocráticas é impossível não reconhecer a besta-fera; a magnífica besta
loira lubricamente errante em ávida busca de espólios e vitórias, este fundo de
bestialidade mostra-se de quando em quando, necessita de descargas, o animal
tem de surgir novamente, tem de voltar ao seu ambiente – nobreza germânica,
japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos... Todas as raças nobres
deixam vestígios de barbárie à sua passagem...[16]
Essa “audácia” das raças nobres, audácia louca,
absurda, espontânea; a própria natureza de suas empresas imprevistas e
inverossímeis; a sua indiferença e o seu desprezo da comodidade de seu corpo,
do bem estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição; os
prazeres excessivos da vitória e da crueldade; tudo isso, na imaginação das
vítimas, se resumia na ideia de “bárbaro”, “maligno”, “godos”, “vândalos”.[17]
Essas citações são importantes porque expõem a conflituosa combinação de
preconceito e insight que forma a base da crítica feita por Nietzsche à
moralidade. Não é muito difícil separar uma coisa da outra. O que ele toma como
sendo diferenças categoriais originárias entre diferentes raças humanas evidenciam-se
muito mais como diferenças biológicas naturais e complementares que podem
ser encontradas entre os membros de um mesmo grupamento humano. Elas sempre
existiram. Por exemplo: entre os indígenas há o cacique, mas há também o
caçador, o guerreiro, o feiticeiro, as mulheres, cada qual com sua vocação. Em
sociedades bem ordenadas a função de cada tipo humano complementa a função dos
outros de modo a maximizar o rendimento coletivo, o que se depende de variações
genéticas resultantes da seleção natural, que favoreceram o aparecimento de diferenças
complementares entre os membros das comunidades humanas (ver cap. VIII, sec. 3,
4). É claro que sob pressão de circunstâncias específicas, um ou outro desses
tipos humanos pode passar a exercer um papel central que pode mesmo ser levado
ao extremo.
Mais além, uma consideração cuidadosa e hoje bastante
incontroversa da história mostrará que a diferença que importava não era entre
raças ou estirpes nobres e plebeias, mas principalmente entre povos que foram “amaciados”
pela vida sedentária mais civilizada e povos guerreiros, endurecidos por
situações de grande escassez e conflito.[18] Isso ajuda a explicar as
invasões bárbaras a um império romano enfraquecido que adotou o cristianismo como
maneira de suportar os piores ardores da vida.[19] O ponto é ilustrado pelas
invasões dos Vikings na Alta Idade Média. Eles conseguiram chegar a Paris
porque eram muito mais endurecidos e belicosos do que os povos sedentários que
por ali habitavam. Que os invasores fossem loiros e tivessem vindo do Norte é pouco
mais que um acidente histórico. A questão fica ainda mais clara quando
comparamos o caso com a invasão do ocidente pelos mongóis nos séculos XIII. Gengis
Kahn unificou as tribos nômades guerreiras, que normalmente lutavam entre si,
formando assim exércitos que acabaram por conquistar grande parte do mundo, da
Sibéria ao sul da China, da Coréia à Ucrânia, chegando à Polônia. Nem ele nem
seus generais pareciam ter qualquer indicativo das raças nobres romanceadas por
Nietzsche.[20]
Se for retirado o elemento racial e forem
considerados exemplos reais, o que Nietzsche descreveu como homem nobre,
superior, violento, destrutivo não passava de um guerreiro selvagem desprezível,
amargado pela escassez ao invés de adoçado pela civilização. Eram tribos
guerreiras dispostas a qualquer coisa. Mas isso nos faz levantar a questão: o
que intitula Nietzsche a considerá-los a forma insublimadas de homens superiores
ou nobres? O simples fato de os guerreiros da antiga Grécia terem sido romanticamente
elevados nos poemas de Homero é insuficiente. Se eles eram superiores apenas na
força, na brutalidade e na estratégia, então não parece restar nada merecedor
do nome. (Henry Miller não estava assim tão errado ao denunciar a Ilíada como
uma carnificina.) Considere, buscando uma avaliação mais acurada, as
características que segundo os dicionários se encontram ligadas à noção de
nobreza moral:
Elevação moral, honra, orgulho, dignidade, integridade, retidão, grandeza
de alma… altruísmo, tolerância, compaixão, gentileza, bondade, generosidade,
magnanimidade, agir ou pensar desinteressado...
Essa caracterização demonstra que aquilo que geralmente entendemos com a
palavra ‘nobreza’ é um misto de qualidades que Nietzsche imputou tanto ao
senhor quanto ao escravo, as últimas por mim italicizadas! A conclusão é que ele
não conseguiu dar um sentido suficientemente distinto para seu conceito de
nobreza como atributo de uma estirpe superior de modo a estabelecer a
existência de duas moralidades como coisas essencialmente e originariamente distintas.
Em suma: o “homem superior” construído
por Nietzsche, tal como exemplificado nos exemplos anteriores, não possui base
real; ele é um Frankenstein que mescla traços advindos de uma suposta violência
primitiva com traços de nobreza civilizada. O mesmo vale para as suas duas
morais. A melhor solução, se quisermos preservar o que resta de verdadeiro, é
considerarmos as duas morais nietzscheanas como aspectos de uma mesma
moral – aspectos que podem ser culturalmente enfatizados e que
historicamente de fato o foram. Assim, o que o cristianismo realmente conseguiu,
com sua doutrina do pecado original e do castigo e redenção ultramundanas, foi enfatizar
aspectos altruístas (e não somente reativos) do comportamento humano.
Uma ênfase que deve ter sido útil à manutenção do equilíbrio social durante o
entardecer do império romano e que no final acabou se tornando o meio de sobrevivência
da civilização no mundo medieval. Mesmo com suas limitações, o cristianismo contribuiu
para sublimar o comportamento humano ao introjetar nele novos valores.
Para tentar explicar esse ponto
devemos voltar à distinção entre pulsões (ou instintos) de sobrevivência do
indivíduo e pulsões de sobrevivência da espécie, um ponto de maior importância
se quisermos entender a diferença entre egoísmo e altruísmo (ver cap. VIII,
sec. 3). As pulsões de sobrevivência da espécie se tornam claramente visíveis
no caso do pai que morreu tentando salvar os filhos e em inúmeros outros casos
que não importa considerar aqui. Elas são por definição altruístas, enquanto as
pulsões voltadas para a sobrevivência do indivíduo são egoístas, sendo provável
que nossas ações sejam em geral movidas pela combinação de ambas, dificultando
a distinção. O problema com Nietzsche é que no afã de se opor ao altruísmo
cristão, adicionado a sua hipervalorização “adleriana” do poder, ele exagerou
seu caso de modo a se transformar em uma espécie de egoísta ético. Para ele o
que nos move é a vontade para poder (Wille zur Macht). Em estado
bruto esse seria o caso de seus monstros alegres... É verdade, porém, que ele preferia
essa vontade sob a forma sublimada, na qual ela deveria aparecer como
uma força criativa que impulsiona o ser humano a superar-se a si mesmo na busca
de autoaperfeiçoamento – no que ele próprio poderia se ver como exemplo. Ainda
assim, a vontade para poder continua tendo seu lugar inexplicado como motivação
única e originária. Por que não vontade para influenciar, para beneficiar, para
enriquecer, para viver? Ora, porque poder tem a ver com dominação,
remetendo-nos à ideia de que o ser humano é por natureza e exclusivamente um
animal predador. Se o poder tivesse um lugar derivado na economia das pulsões
nada se teria a obstar – mas não é esse o caso. O resultado é que com sua
redução de tudo a uma suposta vontade para poder, Nietzsche não tinha como dar
conta do elemento altruísta contido na pulsão de sobrevivência da espécie, que
ele via como sendo reativo, sem notar que a reatividade também pode consistir
em uma excessiva e auto-destrutiva ênfase nas pulsões de sobrevivência do
indivíduo. A sexualidade, inerentemente associada à sobrevivência da espécie, precisava
ter nisso um papel menor. Não ocorria a ele que seres humanos pudessem sentir
compaixão por tragédias humanas que ocorressem do outro lado do mundo, ou que,
como notou Russell, sejam capazes de sentir amor universal.[21]
3
Contra a moral cristã. O que Nietzsche tinha
de mais importante a dizer foi a sua crítica à moral cristã, principalmente em
seu traço mais marcante, que ele chamou de o ideal ascético.[22] Esse ideal é o que produz
a repressão dos desejos instintivos naturais em nome de sua ilusória realização
sublimada, geralmente em um além-mundo sobrenatural. Para o crente cristão no
ideal ascético a vida é purgação do pecado original. Estamos aqui para sofrer.
Seguindo esse ideal devemos aliar-nos de forma masoquista à pobreza, à
humildade, à castidade e a outras formas de autonegação, chegando em alguns
casos à autoflagelação e ao auto-sacrifício, como formas de obter um prazer
doentio e pervertido. A função do ideal ascético é dar sentido ao sofrimento
humano, tornando-o suportável, dado que o sofrimento sem sentido é
insuportável. Essa seria a explicação de atitudes aparentemente suicidas, mas
que na verdade são formas veladas de se preservar a vida.[23]
Devemos ainda distinguir entre
o ascetismo imposto e o ascetismo escolhido.[24] Uma pessoa que acredita
no que os religiosos ascéticos lhe aconselham e que por isso inflige a si mesma
sofrimento está sendo vítima de um ascetismo imposto. Mas o ideal ascético
também possui formas mais refinadas e positivas. Um cientista que dedica seus
esforços à investigação – e mesmo um filósofo como o próprio Nietzsche –
precisa encontrar-se investido de ascetismo de modo a realizar seu propósito, podendo
fazer isso em plena consciência.
Também é fato que o ascetismo cristão produziu
um avanço civilizatório profundo na Europa, que separou de vez o mundo moderno
do mundo antigo. Nietzsche não negava isso. O desaparecimento da escravidão na
Europa foi um progresso civilizatório resultante da incorporação social de
ideais ascéticos com forte apelo cristão. Usando um vocabulário freudiano
podemos falar aqui de sublimação pulsional devida a uma introjeção coletiva de
valores, a qual serviu à sobrevivência da sociedade como um todo, continuando
ainda hoje para além de qualquer crença religiosa.
Na Alemanha de Nietzsche o
cristianismo já se encontrava em crise nos meios intelectuais. Daí seu
diagnóstico da “morte de Deus”. Quando o cristão perde a fé em um mundo
transcendente ele passa a sofrer daquilo que ele chamou de niilismo, a perda
dos valores, uma anomia moral que pode se manifestar de diversas formas e mesmo
pela invenção de valores substitutivos, muitas vezes frágeis e deturpados.[25] Um exemplo de niilismo pode
ser encontrado em um personagem do romance Ponto e contraponto de Aldous
Huxley. [26]
Trata-se de um nobre inglês do início do século XX que, tendo perdido a fé, tornou-se
um “cristão às avessas”, encontrando prazer em seduzir jovens mulheres e depois
abandoná-las, fazendo questão de mostrar-se publicamente como uma pessoa imoral
e terminando por se suicidar. Nietzsche também, quisesse ou não, tornou-se em
última análise um niilista, uma vez que tendo abandonado a moral cristã jamais
conseguiu encontrar o caminho para sua “transvaloração de todos os valores”,
tornando-se em suas ideias mais o que ele mesmo chamou de um “imoralista”, a
apostar no arremedo de moralidade que ele chamou de moral dos senhores.
4
Super-homem. Como já notei, não parece que ao distinguir entre
moral dos senhores e moral dos escravos Nietzsche tenha feito mais do que
distinguir dois aspectos de uma mesma moralidade e perceber que um
desses aspectos ganhou ênfase na visão de mundo cristã, que emergiu talvez mais
como efeito do que como causa da decadência do Império Romano.
Afora isso, ainda mais
incoerente do que o “homem superior” foi a sua pretensa superação pelo “super-homem”,
um ser humano futuro, possuidor de todas as virtudes físicas e humanas, sem
nenhum defeito ou limitação. Como ele escreveu:
Homem forte de elevada cultura, hábil em todas as
realizações corporais, capaz de estar sempre em guarda, pleno de respeito por
si mesmo e constituído de tal maneira a ser capaz de sacrificar todo o gozo de
suas tendências naturais em sua rica profusão e ser suficientemente forte para
tal isenção. Um homem de tolerância, não por fraqueza, mas por força, visto que
sabe como tirar proveito de tudo o que arruinaria uma natureza medíocre, um
homem para quem nada é proibido, a não ser a fraqueza, quer como defeito, quer
como virtude.[27]
Para Nietzsche o super-homem seria aquele forte o suficiente para
abandonar o cristianismo sem cair no niilismo, exemplificando a mais alta
integração das faculdades intelectuais e volitivas. Ele reuniria alta cultura
com habilidade na ação, liberdade absoluta, energia, tolerância e completa
afirmação da vida. Ele seria uma união do Cesar Romano com a alma de Cristo, de
Napoleão com Goethe.
Um problema para nós hoje mais aparente é a implausibilidade
biológica da existência da espécie de Frankenstein que Nietzsche chamou de “super-homem”.
Como já notei, a antropologia social nos tem demonstrado que uma sociedade
maximamente funcional deve fazer uso de sua neurodiversidade. Ela deve ser
constituída por tipos humanos diferentes com qualidades complementares – uma qualidade
geralmente demandando, como compensação, alguma espécie de limitação de alguma
outra – o que exige de cada tipo humano uma função social apropriada de modo a
reforçar a ação conjunta. Considere, para dar um exemplo, a coragem:
dificilmente a coragem física vem acompanhada de coragem intelectual e talvez nunca
na mesma intensidade. A razão é que a coragem física demanda um momentâneo
bloqueio da imaginação para que o indivíduo passe a ação. Mas a coragem intelectual
exige continuada atenção consciente para que seja exercida. As duas se opõem de
tal modo que se torna quase impossível encontrá-las concentradas no mais alto
grau em uma única pessoa (Nietzsche parece ter estado se aproximado disso, mas
a um preço alto). Em suma: o que sabemos hoje sobre o comportamento humano desmente
a visão nietzscheana do homem como o boxeador do universo. Marx, com a sua
ideia do mundo ideal exemplificada em sociedades primitivas sem razões externas
para se tornarem agressivas apontava para uma possibilidade mais razoável.
Voltando à questão importante
do surgimento e ascensão do cristianismo, há bons motivos para se desacreditar
na revolta dos escravos sugerida por Nietzsche. Como já notei, a ascensão do
cristianismo pode bem ter ocorrido mais como um pacto capaz de diminuir o ritmo
da decadência das instituições que constituíam o império. Com a queda de Roma
no século V e a divisão da Europa ocidental entre tribos bárbaras, o
cristianismo teria tomado força como o intermediário capaz de permitir um
melhor equacionamento das relações de poder. Afinal, as tribos bárbaras tanto sabiam
conquistar quanto não sabiam governar e lutavam entre si. A nova moral monoteísta
deontológica, apoiada em uma mitologia que motivava mais o altruísmo que o
egoísmo, vinha a calhar. Ela fazia bem ao servo, que acreditava que Deus lhe
daria compensação em uma justiça póstera. Ademais, ele tinha um senhor que, uma
vez convertido, também era temente ao mesmo Deus, tendo por isso o dever de tratá-lo
com alguma humanidade. Aí estava o princípio de um novo acordo, o que aos
poucos se fez entre o príncipe e o servo da gleba, um acordo moralmente muito superior
ao jugo forçado que existira antes entre os senhores romanos e escravos, os
quais não possuíam direito algum. Assim, mesmo repousando em uma forte e
primitiva ilusão do além-mundo, o cristianismo deve ter contribuído
decisivamente na produção de um historicamente imenso progresso moral entre os
povos ocidentais ao alimentar o altruísmo social e a irmanar todos os seres
humanos diante de um mesmo pai celestial. A Europa medieval era pobre e
fragmentada em pequenos burgos. Mas era mais civilizada do que a Europa do
mundo antigo, deixando para trás a marca silenciosa e terrível da escravidão,
comum às civilizações pré-cristãs.[28]
Nietzsche viu claramente que o cristianismo
estava chegando ao fim como uma influência intelectual predominante. Ele viu
que o progresso moral do cristianismo cobrava seu preço através de uma forma de
repressão pulsional rudimentar. As pessoas precisavam se conformar a regras deontológicas
simplistas como os dez mandamentos, que deveriam valer para todos em situações
as mais diversas – regras que por sua inflexibilidade facilmente aviltavam o
ser humano, demandando formas irracionais de repressão instintiva e uma aceitação
passiva do destino.
A transvaloração (e suposta anulação) dos
valores preconizada por Nietzsche tem se demonstrado improvável e
desnecessária. Afinal, existem inúmeros ateus-agnósticos cujas atitudes
preservam o que há de melhor nas atitudes cristãs. Ao que parece, a mitologia
cristã, aliada ao progresso material, cultural, científico e técnico, acabou
por criar as condições para emergência de uma moralidade superior, que se
tornou ela mesma independente de suas origens cristãs. Ou seja, não é verdade
que se Deus não existe então tudo é permitido, como pensou Dostoievsky. Seres
morais não religiosos não precisam ser super-homens ou discípulos do Zaratustra
nietzscheano e menos ainda precisam refletir a moralidade violenta da nobreza
grega que lutou em Troia.
Em meu juízo, o principal problema com Nietzsche
é que ele era um ignorante em ética filosófica e estava muito longe de ser
capaz de articular uma filosofia moral que substituísse a deontologia e a ética
da virtude cristãs. Essa filosofia parece mais factível, como sugeri, através
de uma forma adequada de utilitarismo que ainda hoje requer desenvolvimento
(ver cap. VI, sec. 6), o que seria uma alternativa válida para nietzscheanos
que pretendam se libertar da deontologia cristã. O resultado é que, na falta de
opção, o próprio Nietzsche se tornou uma espécie de niilista moral. Como era um
grande admirador dos textos homéricos, ele decidiu que a verdadeira moralidade
deveria ser aristocrática, em sua origem semelhante à barbárie dos
representantes da antiga nobreza helênica, artisticamente representada em
épicos como a Ilíada.
Mas como notei (recorrendo à autoridade dos
dicionários), valores como o orgulho e honra, devidamente limitados, não
precisam ser separados de valores cristãos como os da humildade e da piedade, razoavelmente
consideradas. E a obediência às regras deve encontrar seu lugar no caso de elas
serem justas em sua aplicação. Em suma, é bastante razoável pensar que uma
moralidade pós-cristã seja capaz de incorporar dentro de si tanto o aceitável
daquilo que Nietzsche chamava de moral do rebanho quanto aquilo que permanece
sustentável em sua suposta moral dos senhores, evidenciando a contingência de
sua dicotomia. Devido a essa contingência, não precisamos retirar dela as
consequências extremamente conflitantes e até mesmo trágicas de sua filosofia.[29]
5
Metafilosofia. A crítica à moral cristã feita por Nietzsche tem
consequências metafilosóficas assaz interessantes. Para ele os filósofos tendem
a se tornar prisioneiros de uma pérfida ética do ressentimento (Kant),
da má-consciência (Pascal) e principalmente do ideal ascético
(Platão). A filosofia ocidental tornou-se prisioneira do ideal ascético antes
mesmo do cristianismo. Em contraste com Heráclito, Demócrito e Protágoras, que
Nietzsche curiosamente ainda levava a sério[30], Parmênides foi a
primeira vítima do ideal ascético ao defender que toda a mudança é ilusória.[31] Mas onde Nietzsche esgrime
a sua mais formidável retórica é na crítica às ideias platônicas e à distinção
entre Ser e mera aparência sensível:
Tudo o que os filósofos se ocupam há milhares de anos
são ideias – múmias. Nada de real saiu vivo de suas mãos. Esses senhores
idólatras das ideias quando adoram, matam e empalham; tudo é posto em perigo de
morte quando adoram. (...) Todos acreditam desesperadamente no Ser. Porém, como
não podem apoderar-se dele, buscam as razões segundo as quais ele lhes escapa:
“É forçoso que haja aí uma aparência, um engano através do qual não podemos
perceber o Ser – onde está o impostor? Já o apanhamos – gritam alegremente –
são os sentidos! Os sentidos que por outro lado são tão imorais. São os
sentidos que nos enganam acerca do mundo verdadeiro![32]
Pouco adiante ele denuncia o Deus dos filósofos:
Outra coisa peculiar nos filósofos não é menos
perigosa: consiste em confundir as coisas últimas com as primeiras. Põem no
princípio o que é para vir no final (...) O mais elevado não pode proceder do
mais baixo (...) A conclusão é que tudo o que é de primeira ordem deve ser causa
sui. Essa é a maneira pela qual chegamos ao conceito de Deus. A coisa
última, a mais tênue, a mais vazia, ocupa o primeiro lugar como coisa em si,
como ens realissimum. Que a humanidade tenha sido induzida a levar a
sério as dores de cabeça desses enfermos urdidores de teias de aranha! E que
tenha pago tão caro![33]
É possível, sob a perspectiva nietzscheana, delinear uma história da
filosofia fortemente influenciada pelo ideal ascético. Para ele Sócrates levou
adiante a disposição ascética de Parmênides na forma de corrupção moral,
infectando a filosofia de Platão.[34] Este último, influenciado
pelo orfismo, chegou a dizer que a alma humana na terra é como um caramujo que
precisa carregar a sua casa, o corpo, para onde quer que vá, só conseguindo
libertar-se dele com a morte. Platão produziu a grande inversão escapista do
senso comum denunciada por Nietzsche ao defender que o mundo real não é o mundo
visível, mas um mundo inteligível, sobrenatural.[35] Também as doutrinas
helenistas do epicurismo, do ceticismo e do estoicismo estavam para ele carregadas
de ascetismo reativo. Os grandes filósofos cristãos, de Agostinho a Hegel, foram
inevitavelmente afetados pelo ideal ascético, defendendo uma ética cristã que
enfatizava a moral do rebanho, além de uma metafísica e ontologia que visavam complementar
intelectualmente a forma cristã de religiosidade. Um exemplo particularmente
marcante foi o de Plotino, um neoplatônico que entendia a vida em nosso mundo
como degeneração e fracasso. Para Plotino o mal está na existência nesse mundo
das aparências e todo o mal que a alma possui provém de seu mesclar com esse
mundo[36]; como a alma foi feita
para escapar do mal, nossa missão é a de evadir-nos do mundo. Como ele
escreveu:
A alma em sua natureza ama a Deus e deseja ser una com
ele no nobre amor de uma alma por seu nobre pai; mas sendo em seu nascimento
humano seduzida pela corte dessa esfera, ela escolhe um outro amor, o mortal,
abandona seu pai e cai... Mas um dia, vindo a odiar sua vergonha, ela rejeita o
mal da terra e mais uma vez busca seu pai e encontra sua paz.[37]
A vida devia ser suficientemente difícil e incerta para que pessoas honestas,
conscientes e inspiradas fossem capazes de negá-la a tal extremo. Segundo consta,
Plotino sofria de hanseníase, o que lhe teria dado razões adicionais para se evadir
do mundo corpóreo. A lista dos negadores do mundo tornou-se imensa durante a
Idade Média e seria repetitivo expô-la aqui em detalhes.
As condenações morais práticas do cristianismo
foram sancionadas pelos filósofos de diversas épocas. Para Platão o ateu
merecia prisão perpétua, senão pena capital, o que foi reafirmado por filósofos
medievais como Tomás de Aquino.[38] E um filósofo como Kant (para
Nietzsche “um pérfido”) condenava o suicídio (afinal, o que seria do dono das
terras se, em uma situação de extrema carência, seus servos começassem a se
suicidar?)
Na metafísica o ascetismo teve a sua
influência no dualismo cartesiano, no paralelismo de Leibniz e até mesmo
(segundo Nietzsche) no ascetismo de Spinoza, assim como na necessidade da
postulação de uma substância incognoscível por Locke, sem falar no
imaterialismo de Berkeley, na “circularmente fundada” revolução copernicana,[39] na doutrina do dever pelo
dever de Kant e no idealismo absoluto de Hegel.
Só a partir de Hume, seguido mais tarde na
Alemanha por intelectuais como Ludwig Feuerbach, Max Stirner, Marx e
Shopenhauer, o ateísmo intelectualmente justificado começou a ganhar espaço na
filosofia. Ainda assim, o ideal ascético permaneceu influente em filosofias
importantes como demonstraram a fenomenologia de Edmund Husserl e até mesmo o
irracionalismo antropológico de Heidegger, que Nietzsche veria como uma
conversão escapista do cristianismo na cultuação do Ser. Ainda hoje, em um
mundo no qual a maioria dos cientistas não costuma ser religiosa, a crença
religiosa permanece influente entre filósofos. Ela serviu de estímulo ao
esforço intelectual de um formalista genial como Saul Kripke, filho de um
rabino. O mundo mais etéreo do formalismo, muito pouco exige de uma vivência
crítica do mundo da vida, liberando a mente para construções metafísicas dialeticamente
importantes por seus desafios, ainda que possam concorrer fortemente com o
senso comum.
Que dizer de tudo isso? Há uma verdade
a ser considerada na concepção nietzscheana da história da filosofia. Um
crítico de Parmênides poderia ver na apologia do “ser” eterno e indestrutível
uma forma de evasão. Mas a metáfora universal do Ser serviu muito mais para
introduzir o princípio da não-contradição, para de sugerir a necessária
atemporalidade do portador da verdade, para apontar para a diferença essencial
entre conhecimento e mera opinião... Além disso nem tudo na filosofia foi
distorcido pelo ascetismo cristão. A definição de conhecimento como crença
verdadeira justificada sugerida por Platão, por exemplo, não tem nada a ver com
escatologias religiosas. E mesmo sob distorção ideológica, ideias filosóficas
podem preservar um importante valor intrínseco. Um exemplo foi a própria contribuição
de Platão para a ontologia. O reino das ideias pode ter servido como forma de
evasão, mas as ideias também serviram ao esforço de explicar a unidade na
diversidade, a predicação, a síntese. Além disso, o platonismo teve o mérito de
sustentar o questionamento intelectual ontológico, não tendo até hoje sido
desenvolvida nenhuma teoria alternativa capaz de substitui-lo por completo e de
maneira plenamente satisfatória.
Como veremos no último
capítulo, existe hoje uma teoria ontológica que possui ao menos o potencial de
preservar as conquistas do realismo de modo a tornar a opção platonista
obsoleta. Trata-se, como veremos, da ontologia radicalmente naturalista
proposta por Donald Williams sob o nome de ontologia dos tropos. Se de um lado
o platonismo e as várias formas de realismo apoiadas no ideal ascético parecem
ter sob a guarda do cristianismo retardado imensamente o aparecimento da teoria
dos tropos, de outro essas ontologias forneceram o campo de discussão, além dos
problemas e fórmulas argumentativas a serem encontradas no interior da
ontologia proposta por Williams.
Tanto quanto sua dicotomia
moral, a metafilosofia de Nietzsche é unilateral, pois embora levando em conta
um elemento de distorção ideológica que marca toda a filosofia cristã, não é
suficiente para anatematizá-la. Ainda assim, naquilo que ela tinha de positivo sua
crítica prestou um serviço inestimável à cultura.
6
Compatibilismo. Como se poderia esperar,
Nietzsche também objetou contra o livre arbítrio, tendo em mente a concepção
libertarista adotada pelo cristianismo, segundo a qual por sermos capazes de
transcender o determinismo causal nós somos absolutamente livres. Para ele o
livre arbítrio era mais uma maneira de domesticar os espíritos livres que
ousassem desafiar os valores do status-quo estabelecidos pela moral dos
escravos.[40]
A reflexão sobre o a forma libertarista de livre-arbítrio
nos oferece um caso de estudo acerca da contaminação da filosofia pelo ideal
ascético, de Agostinho a Kant. Todavia, como logo veremos, há uma concepção de
livre-arbítrio que é imune a objeções como a de Nietzsche e contra a qual ele
certamente não teria nada a objetar.
Há três concepções clássicas
acerca do livre arbítrio: o determinismo, o libertarismo e o compatibilismo.
Segundo o determinismo ou ceticismo o livre arbítrio não existe. Ele é uma
ilusão originada de nossa falta de conhecimento das causas de nossas decisões e
ações. Provavelmente um filósofo atomista como Demócrito, caso se manifestasse
a respeito, seria determinista, pois ele achava que o acaso é uma ilusão
decorrente da falta de conhecimento das causas.[41] Historicamente, muito
poucos foram os filósofos que defenderam essa posição. Esse foi o caso de um
ateísta como o barão D’Holbach durante o iluminismo francês. Esse também foi o
caso de psicólogos como Sigmund Freud, B. F. Skinner e da maioria dos atuais
neurocientistas. Se a consciência de nossas decisões depende de metacognições
controladoras de nossos processos decisórios[42], considerando que não podemos
tomar consciência dessas metacognições, parece que de um ponto de vista
estrutural é sempre impossível tomarmos consciência de todos os fatores
envolvidos em uma decisão.[43] Consequentemente, temos a
impressão de que existe um elemento de indeterminação originador de um
“sentimento de liberdade” que acompanha nossas decisões. Mas é esse sentimento mesmo
que em última análise é ilusório.
A posição oposta a essa é a do libertarismo,
segundo a qual somos livres porque somos capazes de transcender o determinismo
causal em nossas decisões. Vimos (cap. IV, sec. 1) que Epicuro acreditava que
os átomos de nossas mentes são capazes de realizar desvios arbitrários (clínamen)
responsáveis pela liberdade de nossas decisões. Os medievais, de Agostinho a
Aquino, refinaram essa sugestão sugerindo que, tendo sidos feitos à imagem e
semelhança de Deus nós somos como que primeiros motores, causas incausadas.[44] Essa maneira de ver tem
sérias consequências morais já antecipadas por Nietzsche: Como determinantes
últimos de nossas ações nós passamos a ser absolutamente responsáveis pelo que
decidimos fazer. Essa doutrina foi usada para justificar a justiça retributiva
sem matizes imposta pela religião cristã, segundo a qual o pecado mortal condena
o pecador a ser castigado pelo fogo eterno após a morte... Essa forma primitiva
de responsabilização moral justificou as penas impostas pela inquisição, assim
como direitos especiais para aqueles que possuem poder decisório, conquanto se tenha
o poder decisório sobre como interpretar os preceitos religiosos. Foi essa
concepção que motivou Kant, um libertarista retributivista, a apresentar como
exemplo de aplicação da lei moral uma ilha a ser abandonada pelos seus
habitantes; para que a justiça seja feita, pensou ele, será necessário que
antes de abandonarem a ilha os habitantes enforquem todos os assassinos
condenados à morte, mesmo que isso não resulte em nenhum ganho para eles.[45]
Felizmente há uma terceira
posição sobre o livre arbítrio, que é o compatibilismo ou determinismo
suave. O compatibilismo foi prenunciado por Spinoza e explicitamente anunciado
por Thomas Hobbes, ainda que em uma versão rudimentar, sendo mais tarde adotado
por Hume e outros filósofos ingleses. Ele parte da ideia de que o livre
arbítrio não tem nada a ver com o determinismo, uma vez que sua definição é
completamente diferente. Para o compatibilista, ser livre é simplesmente não
ser restringido na decisão e na ação. Posso refinar essa ideia na seguinte
fórmula:
Um agente é livre (Df.) = quando, tendo em vista
um razoável leque de alternativas, ele não é restringido nem por limitação nem
por coerção, nem externamente nem internamente, nem ao nível físico, nem ao
nível volitivo e nem mesmo ao nível das razões. [46]
Essa fórmula explica-se como se segue. As pessoas possuem sempre um
leque de alternativas razoáveis para suas decisões e ações. Assim, é razoável
que eu decida ir à praia nesse domingo, pois moro perto de uma praia. Mas não é
razoável que eu queira ir à Lua nesse domingo, pois isso está fora de meu leque
de alternativas razoáveis.
Afora isso, o leque de
alternativas pode ser restringido de duas maneiras. Uma delas é por limitação,
que é quando as alternativas são diminuídas: Se eu estiver com febre alta, por
exemplo, não terei como ir à praia nesse domingo, o que limitará minha
liberdade de decisão. A outra maneira pela qual minhas alternativas são restringidas
é por imposição. Se ao sair na rua nesse domingo eu for sequestrado, a
restrição de meu leque de alternativas se dará por uma forma de imposição
chamada coerção: eu simplesmente terei de fazer o que meus
sequestradores decidirem. A coerção não limita, mas força o agente a seguir uma
alternativa definida.
As restrições podem ser também externas
ou internas. E isso pode acontecer em três níveis: um nível físico,
outro volicional e outro racional. Por exemplo: um paraplégico
tem suas possibilidades de movimento internamente limitadas. Mas uma pessoa
amarrada em um poste é externamente forçada a se manter em uma posição
específica. Essas são restrições físicas por limitação. Não é difícil imaginar
casos nos quais uma pessoa possa ser ser externamente ou internamente coagida
por causas puramente físicas a realizar certos movimentos...
Mas uma pessoa também pode ser psicologicamente
limitada ou coagida em sua vontade por fatores externos, como no caso da
criança que por medo de castigo obedece a vontade dos pais ou no caso de uma
pessoa que no ambiente de trabalho é pressionada a fazer algo que não considera
correto. Já uma pessoa que sofre de depressão pode não realizar certas ações,
sendo assim limitada por fatores psicológicos internos, enquanto um alcoólatra
que se vê forçado a beber contra a sua vontade é coagido ao nível volitivo por
fatores internos (o termo inglês free will conota a liberdade da
vontade).
Mais importante é a imposição externa ou
interna ao nível das razões. Aqui temos o caso de uma pessoa que não bebe por
razões religiosas, o que é uma limitação de origem externa, ou de um criminoso
racista que concluiu que deve fazer mal a pessoas de outra cor, o que é uma
coerção racional interna. Se ele chega ao seu fanatismo somente por influência
do meio social no qual vive, trata-se por sua vez de uma coerção racional
externa. Se ele for um pacifista e mesmo em uma situação na qual para outros
avaliadores seria melhor que ele agisse para proteger outras pessoas, mas ele decide
não fazer nada, ele poderá estar sendo limitado por razões internas ou talvez
externas, no caso de ter sido convencido a não agir pelo grupo ao qual
pertence. Em todos esses casos poderemos falar de restrição da liberdade de
decisão racional (a expressão ‘livre arbítrio’ conota a arbitragem racional do
agir).
A restrição ao nível racional é
particularmente importante devido ao que Robert Kane chamou de controle
encoberto não-restritivo (covert non-constraining control)[47]: a pessoa cuja liberdade
é diminuída ou obliterada geralmente não tem consciência disso por ser
restringida de maneira encoberta. Um psicótico que se recusa a comer por
acreditar que seu alimento está envenenado não se considera limitado em suas
decisões. Um homem-bomba que realiza um atentado não acredita que esteja sendo
coagido por razões externas a realizar tal ação.
A instância neutra para o
julgamento deve ser nesses casos externa: um grupo de avaliadores que possui as
informações da pessoa que age, adicionadas a outras informações que ela
desconhece, pode nos levar a concluir que a liberdade dessa pessoa está sendo
prejudicada por intermédio de razões equivocadas.
A aceitação do compatibilismo
tem consequências importantes para a questão da responsabilidade moral. Para o
compatibilista, que aceita que uma pessoa pode decidir livremente mesmo ao
estar sendo causalmente determinada, a pessoa que faz o mal não o faz por uma
vontade absolutamente livre, mas por contingências deterministas
circunstanciais a serem encontradas em sua natureza, no meio social em que vive,
em sua história, em sua educação... Isso não significa, naturalmente, que não
deva haver punição, posto que a justiça retributiva deve ser aqui substituída
por uma justiça restaurativa. Segundo essa última, a punição deve
existir por duas razões maiores. A primeira é a de impedir que a pessoa realize
o mal outra vez, ou por estar presa ou pela remodelação dos seus valores e
comportamentos que a punição possa produzir. A segunda razão é a de dissuasão:
a punição impede que outros com as mesmas disposições venham a realizar atos
similares. O compatibilismo conduz a uma concepção de responsabilidade moral
muito mais refinada e humana do que aquela resultante do libertarismo.
[1] Also Sprach Zaratustra: Ein Buch
für Alle und Keinen (1883-1885). Trad. Port. Assim falava Zaratustra: Um
livro para todos e para ninguém (Vozes 2014).
[2] Dorian Astor: Nietzsche (São
Paulo: LPM), 2013, p. 23.
[3] Arthur Shopenhauer: O mundo
como vontade e representação (Editora Contraponto (1819) 2007).
[4] Cf. Walter Kaufmann, Nietzsche: Philosopher,
Psychologist, Antichrist (Princeton: Princeton University Press 1974), pp.
36-41.
[5] Ecce Homo IV, sec. 2.
[6] Não desejo ridicularizar, mas desmistificar.
Seres humanos são imperfeitos e filósofos são seres humanos. Daí que a maioria deles,
junto a importantes ideias incidiu também em erros graves e inevitáveis. Esse é
o caso de Nietzsche. Seus intérpretes são via de regra apologéticos, a exemplo
do clássico de Walter Kaufmann: Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist
(Princeton University Press 1950), que legitimou Nietzsche perante a academia
norte-americana. Mas a unilateralidade pode nos impedir de decifrar o enigma
nietzscheano. Espero nessa breve reconstrução ter me aproximado disso precisamente
por ter separado o joio do trigo.
[7] Sigmund
Freud: A interpretação dos sonhos (Imago 1996), cap. 6.
[8] Claudio Costa: “Processo primário e emoção estética”,
in Arquiteturas Conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2022).
[9] Bertrand Russell: A
History of Western Philosophy (New York: Simon & Schuster 1971) p.
771.
[10] Genealogia da Moral, Dissertação Primeira, seção
5. Na Alemanha do século XIX o racismo não poupava sequer os filósofos. Mas
também nisso Nietzsche foi original: ele era racista ao seu próprio modo.
[11] Ibid. cap. 2. Além do bem e do mal, sec. 260.
[12] A civilização grega não era
autóctone e Nietzsche sabia disso. Ela resultou de levas migratórias (jônios,
aqueus, eólios e dórios), que dominaram a população autóctone, uma leva buscando
subjugar a anterior.
[13] A meu ver o padre Friedrich Copleston estava certo ao notar que
a verdadeira moralidade cristã nunca foi tão reativa e oposta aos valores
nobres como Nietzsche a descreveu. Ver Copleston: Nietzsche: filósofo da
cultura (Porto: Livraria Tavares Martins 1979)
[14] Ibid., Dissertação Primeira, sec. 9.
[15] Ibid., Dissertação Primeira, sec.
10.
[16] A genealogia da moral, Dissertação Primeira, sec. 11.
[17] Ibid., 11. É verdade que
Nietzsche prezava a ideia de auto-superação por sublimação e que a besta loira
é apenas seu ideal de homem saudável em estado natural, incivilizado. (Cf.
Kaufmann, cap. 7, sec. 2) Mas isso não altera sua concepção inadequada da
natureza humana.
[18] Arnold Toyinbee: Um estudo da história (edição
condensada e revisada por Arnold Toynbee e Jane Caplan). (São Paulo:
Martins Fontes, Universidade e Brasília, 1982)
[19] Nietzsche pode bem ter sido influenciado por Edward
Gibbon, que em sua monumental e muitíssimo conhecida história do declínio e
queda do império romano (1776-1789) popularizou a ideia de que foi o
cristianismo que enfraqueceu o império romano e apressou a sua queda. Todavia,
é hoje razoável pensar que a ascensão do cristianismo possa ter sido mais
efeito do que causa.
[20] O aumento da interação entre os povos tornou o racismo
hoje derrisório. O melhor argumento contra o racismo encontra-se na
plasticidade do cérebro, o que torna a mente humana acima de tudo um produto da
educação e da cultura.
[21] Bertrand Russell: a.a.O.,
p. 767.
[22] A genealogia da moral, Dissertação segunda, sec. 11-12;
Dissertação terceira, sec. 11
[23] Ver comentário de Brian Leiter em Nietzsche
on Morality (London: Routledge 2002), caps. 6, 7 e 8
[24] Crepúsculo dos ídolos 5, sec. 5. A genealogia da
moral, Dissertação terceira, sec. 13.
[25] Crepúsculo dos ídolos 9, sec. 34.
[26] Aldous Huxley: Point Counter
Point (Vintage Books 2004 (1928)).
[27] Friedrich Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos p 125.
[28] As mudanças foram lentas e variadamente
causadas, de modo que a escravidão na europa só acabou por volta do século XI,
Por longo tempo a igreja justificou a obediência do escravizado como uma
obrigação perante Deus, embora incentivasse um tratamento humano. Para detalhes
ver Pierre
Bonnassie: From Slavery to Feudalism in South-Western Europe (Cambridge:
Cambridge University Press 1991).
[29] Esse é um ponto percebido e exagerado ao
absurdo por Slavoj
Zizek em Christian Atheism: How to be a Real Materialist (Blomsbury
Academic 2024).
[30] Wille zur Macht (1901). Trad. port. Vontade
de Poder (Petrópolis: Vozes 2011) sec. 233.
[31] Filosofia na época trágica dos gregos, sec. 9.
[32] O crepúsculo dos ídolos, A razão na filosofia, sec. 1
[33] O crepúsculo dos ídolos, A razão da filosofia, sec. 4
[34] Gaya Scientia, sec. 372.
[35] O crepúsculo dos ídolos. A razão na filosofia, sec. 6
[36] Plotino: Enéiades I,
2, 3.
[37] Plotinus: The Six Eneads (Chicago:
Encyclopaedia Britannica 1952), VI, 9, 9.
[38] George Minois: História do ateísmo (Unesp
2023), pp. 51-52.
[39] Para Nietzsche a revolução copernicana faz
tanto sentido quanto a afirmação de que o ópio faz dormir por causa de sua
virtude dormitiva, só que através de muita “pompa, solenidade e bizarros
floreados.” Além do bem e do mal, sec. 11.
[40] Ver Além do bem e do mal,
cap. I.
[41] W. K. C. Guthrie: A History of Greek Philosophy II: The
Presocratic Tradition from Parmenides to Democritus (Cambridge: Cambridge
University Press 1965), pp. 418-19
[42] Ver, por exemplo, D. M. Armstrong: The
Mind-Body Problem: An Opinionated Introduction (Boulder: Westview Press
1999), cap. 10 (10.3).
[43] Como escreveu D. C. Dennett: “qualquer tentativa de
acompanhar o próprio processo de deliberação tendo em vista uma projeção
acurada de sua trajetória deve ser autodestrutiva ameaçando um infinito
regresso de auto-monitorização.” Elbow Room: The Varieties of Free Will
Worth Wanting (Cambridge: MIT-Press 1984), p. 112.
[44] Ver R. M. Chisholm: “Human Freedom and the Self” (The
Lindley Lecture, University of Kansas 1964).
[45] Kant: A metafísica dos costumes (Lisboa:
Calouste Gulbenkian 2011), p. 211.
[46] Uma definição pretensamente positiva
dependeria da autonomia, um conceito kantiano nunca satisfatoriamente
definido. Para uma defesa sistemática da versão mais refinada do compatibilismo
tradicional aqui resumida, ver meu artigo “Free Will and the Soft Constraints of Reason”, in
Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon
Tyne: CSP 2014), cap. 7.
[47] Robert Kane: The Significance of Free Will
(Oxford: Oxford University Press 1988), p. 64 ss.
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