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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O ESSENCIAL SOBRE MARX

 DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”.

 

 

 

 

XV

MARX: MATERIALISMO DIALÉTICO

 

Os despojos do pensamento de Hegel foram disputados entre as assim chamadas direita e esquerda hegeliana. A direita enfatizou os elementos conservadores do pensamento de Hegel, como a religiosidade e o culto ao estado, tendo sido a maior responsável pelo esquecimento de seu pensamento na Alemanha da segunda metade do século XIX. Já a esquerda hegeliana, rejeitando esses elementos, foi original, encontrando seu maior expoente na figura do grande filósofo social que foi Karl Marx (1818-1876). Ao invés de colocar o espírito acima de tudo, Marx decidiu virar Hegel de cabeça para baixo, colocando a matéria em primeiro lugar. Seu pensamento, chamado de materialismo histórico, baseou-se em uma dialética materialista através da qual ele tentou explicar o progresso histórico-social.

   O pensamento de Marx foi profundamente influenciado pelo que ele viu acontecer durante a revolução industrial. Essa revolução aconteceu de 1760 a 1870. Ela incluiu a transformação de métodos de produção artesanais em produção através de máquinas, novos produtos químicos, novos processos de produção de ferro, o uso crescente de energia a vapor, do carvão, a formação de redes ferroviárias com a introdução de locomotivas a vapor, a substituição dos navios a vela por navios a vapor. Ela começou na Inglaterra, mas logo se expandiu para os Estados Unidos e para as regiões desenvolvidas da Europa. A revolução industrial mudou por completo a forma de vida humana, só podendo ser comparada à domesticação dos animais e à introdução da agricultura no período neolítico. Mas ela cobrou um preço alto no que dizia respeito às condições de vida dos trabalhadores nas fábricas e minas de carvão, que eram duramente explorados sob um regime de trabalho que podia chegar a mais de quinze horas por dia, o que se aplicava até mesmo a crianças pequenas. Essas circunstâncias produziram a indignação de intelectuais ativistas como Marx, Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph Proudhon, tendo levado a revoltas sangrentas por parte dos trabalhadores. A pior dessas revoltas foi a comuna de Paris de 1841, que precisou ser silenciada pela ação conjunta dos governos da França e da Prússia, levando à morte de mais de vinte mil trabalhadores.

   Marx escreveu por reação ao momento histórico único no qual viveu. Considerando as graves tensões entre a classe dirigente e a classe proletária durante a revolução industrial, parecia que a Europa estava se encaminhando para uma nova revolução. Intelectuais ativistas como Marx estavam se preparando para a possibilidade de estar à frente dela.

   Marx era filho de um livre pensador judeu bem sucedido e foi sempre um inconformado, o que tornou a sua vida nem um pouco mais fácil. Apesar de se ter doutorado em filosofia, ele não poderia ser aceito em um cargo público como o de professor na Alemanha devido a suas ideias radicais. Acabou trabalhando para revistas e jornais. Não pôde permanecer na Alemanha conservadora de seu tempo, foi expulso de Paris e da Bélgica, acabando por ter de se estabelecer na mais liberal Inglaterra, onde viveu com a esposa e as duas filhas sob condições econômicas de início muito precárias os últimos 34 anos de sua vida. Ele se sustentava do que escrevia para jornais e pela ajuda de seu grande amigo Friedrich Engels.

 

1

 

Ideologia. Marx compartilhava com Hegel a ideia de que a história tem uma finalidade que é a da emancipação do ser humano. Contudo, a dialética aceita por Marx é materialista. Pois enquanto para Hegel é o espírito que produz as alterações no mundo material, para Marx é o trabalho humano sobre a matéria que é capaz de produz alterações na consciência humana. Para tornar isso mais claro Marx distinguiu entre forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas são as coisas usadas para produzir, como a matéria prima, as máquinas e, principalmente, a força de trabalho humana. As relações de produção são as que vigem entre as pessoas e as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Essas relações são para Marx dependentes das forças produtivas. Assim, em uma sociedade feudal a força produtiva da moenda manual gera relações de produção que são diferentes das relações de produção geradas pela moenda a vapor na sociedade capitalista industrial. A essa ideia Marx adicionou a mais importante distinção entre as bases econômicas e a superestrutura ideológica.[1] As bases econômicas são o conjunto das relações de produção apoiadas pelas forças produtivas, as últimas determinando as primeiras. Já a superestrutura ideológica é formada por um aparato ideológico: uma estrutura legal, política, estética, filosófica... à qual se adiciona uma religião e uma moralidade específicas. Por exemplo: na Alemanha do tempo de Hegel a religião era autoritária e complementada por uma moral baseada nas ideias de obediência aos superiores, lealdade e cumprimento dos deveres para com o estado. A própria filosofia de Hegel pode ser entendida como partícipe da superestrutura ideológica de sua época. Eis como Marx resumiu o processo de produção da superestrutura ideológica a partir das relações de produção:

 

O modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas sua existência social que determina a sua consciência.[2]

 

Ou seja: em suporte às relações de produção, as bases econômicas determinam a superestrutura ideológica e desse modo a forma da própria consciência humana.

   A pergunta que geralmente aqui se faz é se o contrário não é possível, ou seja, se a superestrutura ideológica não teria também efeito sobre as bases econômicas. Afinal, a máquina a vapor, uma força produtiva essencial à revolução industrial, foi inventada por alguém, e essa invenção produziu alterações nas bases econômicas. De fato, como Engels não deixou de enfatizar, existe uma inter-relação entre a superestrutura ideológica e a base econômica.[3]

   Ainda assim, Marx estava essencialmente certo, posto que as bases econômicas é que constituem o determinante primário. Afinal, se a base econômica permanecer imutável é muito difícil que a superestrutura ideológica se altere (ex: a estagnação econômica na Europa medieval); mas se a base econômica se altera (ex: a Europa nos tempos de Marx) parece quase inevitável que a superestrutura ideológica venha a se alterar. Em outras palavras: a relação entre as forças produtivas, relações de produção e superestrutura ideológica é a de um todo orgânico no qual as bases econômicas (constituídas pelas relações de produção apoiadas pelas forças produtivas) determinam as superestruturas ideológicas (leis, organização política, religião, moral, arte...), que por sua vez subdeterminam as bases econômicas.

 

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Alienação Para explicar o que acontecia com o trabalhador submetido às ingerências da superestrutura ideológica, Marx tomou de empréstimo de Hegel o conceito de alienação, aplicando-o principalmente à relação do ser humano com o trabalho. Para Marx a alienação é o estranhamento do homem de sua própria essência pela ruptura de sua relação natural com os seres humanos e as coisas. Esse estranhamento faz com que ele perca sua humanidade essencial.

   A revolução industrial é para Marx alienadora tanto da classe burguesa quanto da classe proletária, pois cada qual é desumanizada à sua maneira. A competição, a ganância, o fetichismo com relação ao dinheiro, ao poder e à posse de coisas, não pelo que valem (pelo seu valor de uso), mas pelo que custam (pelo seu valor de troca), são próprias da alienação das classes dominantes. Para ilustrar o fetichismo da mercadoria vale lembrar a estória de um pensador medieval chamado Mullah Nasreddin, que ninguém sabe se era um sábio ou um tonto. Um dia Nasreddin entrou num mercado e saiu de lá com um saco de pimenta malagueta. Ele se sentou em um banco e começou a comer as pimentas. Ao fazer isso ele sofria muito, sua boca ardia, seu rosto estava vermelho, ele suava frio. Alguém passou e lhe perguntou: “Por que fazes isso Nasreddin, não vês que estás comendo pimenta?” Ao que Nasreddin respondeu: “Mas não estou comendo pimenta. O que estou comendo é todo o dinheiro que gastei para comprá-las”. Essa resposta exemplifica dramaticamente o fetichismo da mercadoria: Nasreddin confundia o valor de troca da pimenta com o seu valor de uso.

   Passando agora a um caso real: as pessoas não estão muito longe de Nasreddin quando vão ao Louvre para contemplar o original da Mona Lisa. Muito poucos ficariam satisfeitos em ver apenas uma cópia perfeita desse tedioso quadro. E mesmo que a cópia seja exatamente igual ao original, o valor de troca do original é imensamente superior. O preço imenso das obras de arte compradas em grandes galerias exemplifica a força do fetichismo da mercadoria no mundo real. Em seu estudo sobre a alienação Marx anteviu um fenômeno que se encontra tão presente em nossa sociedade de consumo que passa praticamente desapercebido.

   O que realmente interessava a Marx era a alienação da classe proletária. A superestrutura ideológica é alienadora ao infundir no trabalhador ideias que lhe façam aceitar sua condição. Dela resulta a crença na boa justificação de leis impostas pela classe superior, a crença nos valores morais vindos de cima, a crença em uma religião que defende a legalidade do status quo e que prega uma recompensa pela miséria da vida presente através de uma vida abençoada após a morte... Como ele famosamente notou, “a religião é o ópio do povo”.[4] Afora isso, a revolução industrial é para Marx alienadora do trabalhador também de outras maneiras. Ela aliena o trabalhador do produto de seu trabalho, pois ele não pode mais completá-lo como acontece com o artesão. O artesão produzia um objeto do começo ao fim e se identificava com ele como sendo o inteiro produto de seu trabalho; ele o vendia em um meio social conhecido no qual os outros valorizavam o que ele fazia e onde se sentia em casa. Mas o trabalhador que passa o dia atento a uma mesma e monótona tarefa repetitiva é apenas uma peça em um sistema produtivo, não tendo mais nenhuma relação com aquilo que ajuda a produzir, o que é intelectualmente debilitante. O trabalhador é por esses meios alienado de sua própria natureza. Ele se torna alienado do que Marx viu como a capacidade que o ser humano tem de tomar consciência de si mesmo como integrante da espécie humana da qual ele é membro. Enquanto Feuerbach via o homem como como espelho imperfeito de uma divindade ideologicamente produzida, Marx ia além. Baseado na antropologia da época ele via o homem não alienado um pouco à maneira do indígena antes da civilização. Foi a civilização que, facilitando a vida humana cobrou como preço a alienação dos seres humanos.

   Entre os dois casos de alienação recém descritos há uma diferença decisiva. Enquanto a classe burguesa se sente bem na alienação, a classe trabalhadora se sente devastada.[5] Por essa mesma razão, ela é para Marx a única que tem condições de se libertar de sua alienação e alcançar a consciência plena de sua condição. Essa consciência é a de que o capitalismo consiste em um sistema no qual uma classe social, a dos proprietários dos meios de produção, oprime e explora a outra, a classe dos proletários.

 

3

 

Teoria da história. É nesse ponto que entra a ideia fundamental do materialismo dialético. Como vimos, as bases econômicas são aquilo que essencialmente determina a superestrutura ideológica. Ora, num determinado estágio do desenvolvimento de uma sociedade as forças de produção material se alteram de tal maneira que entram em conflito com a estrutura ideológica, o que acaba por conduzir a uma transformação social, seja por uma revolução, seja pela ruina comum das velhas oposições sociais. Mais além, segundo a dialética materialista, a própria história é a história da exploração social de uma classe por outra. “A história da humanidade’, escreveram Marx e Engels, “é a história da luta de classes”.[6]  Eles viam isso como uma constatação factual. Eis uma sequência de exemplos de lutas entre classes que, segundo eles, se transformaram segundo a dialética materialista em formas mais elaboradas de oposição:

 (1) na sociedade escravista da antiguidade o dono do escravo tinha a posse sobre ele como um instrumento de trabalho, enquanto a classe dos escravos lutava contra a classe dos homens livres.

(2) Também os plebeus romanos lutavam contra os patrícios que os dominavam. Essas oposições acabaram por ser dissolvidas com a ascensão do cristianismo.

(3) Na Idade Média outra oposição entre classes surgiu, que foi entre os servos da gleba e os senhores feudais. Os servos oprimidos trabalhavam para sustentar os príncipes, os quais possuíam a terra e indiretamente os possuíam.

(4) O aparecimento da burguesia com a classe manufatureira na modernidade dissolveu a oposição que existia no feudalismo, ao menos nos países mais desenvolvidos da Europa, embora preservando profundas diferenças sociais.

(5) Finalmente, a revolução industrial capitalista dos tempos de Marx também se baseou na exploração. O trabalhador ganhava do capitalista apenas o suficiente para sobreviver e para ser capaz de se reproduzir de modo a lhe prover de mais mão de obra.

   Ao longo do curso da história humana, escreveram eles:

 

(...) opressores e oprimidos, em constante oposição, tem vivido em uma luta ininterrupta, ora dissimulada, ora declarada; uma luta que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das classes em conflito.[7]

 

4

 

Escatologia. Foi sob essa impressão deixada pelos conflitos sociais de sua época que Marx, ajudado por Engels, produziu a sua própria escatologia. Para eles as relações sociais vigentes no capitalismo não precisam durar para sempre, embora possa parecer que sim. Afinal, as relações sociais vigentes no sistema feudal, assim como as de outras épocas, não duraram para sempre, embora possa ter parecido que sim aos espectadores de suas épocas. As pessoas que produziriam a revolução seriam, para Marx, os trabalhadores. Uma vez que eram eles que sofriam a opressão, eles tinham condições de ganhar o que Marx chamou de uma consciência de classe, a percepção de seu papel no sistema produtivo e de como eram explorados pelos seus senhores e manipulados pela superestrutura ideológica, principalmente através da religião, na aceitação de uma moral de renúncia e submissão.

   Como notamos, na metade do século XIX, Marx e outros intelectuais politicamente engajados acreditavam que uma nova revolução estava se aproximando. Mas ele não via essa revolução com uma entre outras mais. Ele a via como a última e a maior delas, após a qual a história, como a conhecemos, encontrará seu fim. Após a grande revolução não haverá mais luta de classes porque não existirão mais classes. Depois dela todos se tornarão iguais, não havendo mais nem exploradores nem explorados. O estado será abolido, a propriedade privada será abolida e os meios de produção pertencerão a todos. A economia será racionalmente planejada, diversamente do que pregam as teorias econômicas ideologicamente comprometidas com o capitalismo. A grande revolução começará nos países mais desenvolvidos, como a Inglaterra, estendendo-se então ao mundo inteiro. Após a grande revolução socialista o ser humano não precisará mais buscar o paraíso fora da terra porque ele será a própria terra. Como escreveu Marx em uma descrição cuja força é essencialmente metafórica:

 

Ninguém seria limitado a uma esfera de atividade. Todo indivíduo poderia se aperfeiçoar no que quisesse. A própria sociedade poderia regular sua produção e seria possível lidar com uma coisa hoje e com outra amanhã. Posso caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado ao anoitecer e apresentar minhas próprias opiniões críticas após o jantar. Posso fazer tudo isso dependendo de como me sinta, sem jamais ter de me tornar um caçador, um pescador, um criador de gado ou um crítico.[8]

 

Nessa sociedade utópica, aquilo que move o mundo capitalista, a ambição, o egoísmo e a inveja, serão varridos da vida humana. A competição será substituída pela colaboração. As pessoas trabalharão o mínimo necessário, passando o resto do tempo a se entreter com atividades intelectuais ou estéticas, como a leitura de Homero. Não haverá mais distinção entre os interesses do indivíduo e o interesse do estado. A moralidade deixará de servir aos interesses dominantes para se tornar uma moralidade realmente humana. E quanto à distribuição do dinheiro a regra será: “De cada um segundo suas habilidades; a cada um segundo suas necessidades”. (Marx não era um igualitarista: ele achava que um engenheiro merecia ganhar mais, dado que teria sido investido mais trabalho em sua formação.)

   Para que o paraíso na terra venha a existir é necessária a satisfação de certos pressupostos. Um deles consistirá na criação de uma consciência de classe por parte do proletariado. Por meio da instrução recebida da parte de intelectuais como o próprio Marx os trabalhadores se libertarão dos grilhões da alienação e se emanciparão, pois terão tomado plena consciência de que estão sendo explorados e de que precisam se revoltar.

   Além disso, com base em seus estudos econômicos Marx acreditava que a opressão vista na época da revolução industrial iria aumentar sempre mais e que crises econômicas seriam cada vez maiores, levando inevitavelmente à eclosão da revolução proletária. Essa revolução teria para ele dois momentos. O primeiro será inevitavelmente totalitário. Nele os proletários, libertos de suas amarras, tomarão o poder e destituirão os opressores capitalistas. Esse será o momento do socialismo. Como os proletários possuem a consciência do que é a exploração, só eles serão capazes de produzir a sociedade ideal, sem classes. Por isso será possível instaurar o segundo momento, o do comunismo, que será uma sociedade finalmente justa, sem classes, sem opressão, inteiramente democrática, em que os seres humanos emancipados de suas ilusões ideológicas se tornarão finalmente livres para realizar o que possuem de melhor.

 

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Problemas. A implausibilidade das previsões feitas por Marx foi notada desde o começo. Como Mikhail Bakunin escreveu em um texto profético acerca da assim chamada consciência de classe dos líderes da revolução:

 

(...) tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, eles cessarão de ser operários e, pondo-se a observar o mundo proletário dos pináculos do Estado não mais representarão o povo, mas a si mesmos e as suas próprias ambições de governar. Quem duvida disso não entende nada da natureza humana.[9]

 

Muitos anos mais tarde Sigmund Freud fez observação semelhante. Para o criador da psicanálise, Marx tinha uma visão demasiado otimista da natureza humana. As revoluções que mais tarde ocorreram em seu nome deram razão a Bakunin e a Freud.

   Um outro crítico de Marx, Bertrand Russell, sugeriu que a escatologia revolucionária de Marx foi plagiada da Bíblia. Basta trocar os nomes: no lugar da Bíblia temos a obra O Capital; no lugar de Jesus temos o próprio Marx; no lugar do Juízo Final temos a Revolução; no lugar dos bons que serão salvos temos a classe trabalhadora, enquanto no lugar dos maus, a serem condenados, temos os burgueses capitalistas. Finalmente, no lugar do paraíso celeste temos o paraíso terrestre: o paraíso comunista.

   Apesar disso ainda resta o que se dizer a favor da escatologia marxista. Marx foi inspirado pela ideia de uma essência humana tomada de Feuerbach, caracterizada por este último como uma constituição inalienável de razão, vontade e coração que seria a mesma até mesmo em seres pensantes porventura encontrados em outros corpos celestes.[10]

   Sob a perspectiva antropológica assumida pelo próprio Feuerbach, a essência humana poderia ser mais puramente distinguida nas sociedades pré-históricas sobreviventes, nas quais não existem classes sociais, mas apenas diversidades de funções. Essas sociedades seriam capazes de espelhar mais aproximadamente a natureza humana. Não é difícil, aliás, encontrarmos culturas primitivas anteriores à civilização que pareçam realizar certos ideais marxistas. O exemplo que encontro é o da tribo Zoé. Ela habita a floresta amazônica no norte do Brasil. Os Zoé são pacíficos e poderiam se candidatar ao protótipo do bom selvagem. Eles formam hoje um grupo de cerca de 250 pessoas. São doces e gentis, não batem nos filhos e não brigam entre si. Não tem um Deus, mas consideram muitas coisas sagradas. Não possuem hierarquia de poder, chefes guerreiros ou coisa semelhante. Tudo é dividido igualmente. Gostam de nadar nos rios. Cuidam dos mais velhos aos quais dão animais de estimação. Um homem pode ter quatro esposas, mas em compensação uma mulher pode ter três esposos.[11] E essa sabedoria comunitária pode bem ser devida à relação privilegiada que eles têm com a essência não alienada da natureza humana. Os Zoé são felizes. São marxistas pré-históricos que vivem em harmonia com a sabedoria da espécie. Nós somos há tanto tempo e de tal modo alienados de nossa própria natureza que nada temos a lhes ensinar.

  Quando consideramos o modo de vida dos Zoé sem preconceitos etnocêntricos somos tomados de uma certa nostalgia de algo que nossa civilização parece ter perdido. Somos então levados a nos perguntar se em uma sociedade livre, igual, sem escassez, na qual as pessoas teriam diferentes funções, mas sem uma alienadora hierarquia de classes, não poderia existir em nosso próprio mundo algo equivalente ao que pode ser exemplificado por povos pré-históricos como os Zoé. Nesse caso, mesmo que Marx tenha colocado o seu paraíso na terra de forma inadequada no final de uma revolução improvável, podemos nos perguntar se não haveria uma verdade oculta refletida na escatologia marxista. Afinal, parece bem plausível que o ser humano possa ter perdido algo com a civilização (como as qualidades da tribo Zoé o sugerem), algo capaz de ser recuperado ao final de um processo civilizatório, na visão naturalista de Marx sobre como deveria ser um mundo e uma humanidade ideais.

 

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Desastres. Na última tese sobre Feuerbach Marx escreveu que tudo o que as filosofias fizeram foi interpretar o mundo de diversas maneiras, quando aquilo que lhes cabe agora fazer é transformá-lo.[12] Ao dizer isso ele parece ter esquecido o quão especulativo o trabalho filosófico inevitavelmente foi durante toda a sua história. Esse foi seu maior engano. E o destino do marxismo nos mostra quão ilusória foi sua pretensão.

   Após a morte de Marx países que se industrializaram como a Inglaterra e a França, a revolta dos trabalhadores se amainou devido a melhora das condições de trabalho e ao surgimento de sindicatos e de leis que os protegiam. O resultado foi que as previsões de Marx de uma revolução mundial foram completamente refutadas. Não obstante, no século XX ocorreram no mundo um grande número de revoluções, muitas de esquerda, essas últimas quase sempre sob uma divisa marxista. Mas elas não foram na Inglaterra, nem mesmo nos países mais desenvolvidos, como ele pensava. Pior do que isso, essas revoluções na prática não superaram o capitalismo, nem promoveram a liberdade, nem trouxeram a esperada emancipação do ser humano. O que aconteceu foi que os seus mentores se apropriaram das ideias de Marx de modo a oferecer uma justificação teórica para aquilo que estavam fazendo. E o que fizeram não foi bom. Vejamos alguns casos.

   A primeira e maior revolução com ideias marxistas foi a soviética de outubro de 1917. A teoria da revolução era a do marxismo-leninismo, uma forma de marxismo adaptada por Lenin para um país essencialmente agrário que mal havia saído do modelo medieval de servidão! Uma vez no poder os bolcheviques trataram de eliminar a oposição menos radical (os mencheviques[13]) e estabeleceram um governo totalitário em substituição ao governo dos Czares. O resultado foi algo que tinha mais a ver com a revolução francesa dos sans culottes do que com os ideais marxistas. E como em um estado totalitário aqueles que são mais violentos e destituídos de inibições morais tendem a alcançar o poder, Stalin acabou por substituir Lenin, instaurando uma ditadura totalmente centralizada em suas ambições pessoais e no culto a sua personalidade.

   O que Stalin instaurou na Rússia foi criticamente identificado com um capitalismo de estado.[14] Através dele o estado soviético tornou-se uma grande indústria autocrática e coercitiva, na qual a classe opressora foi apenas substituída por outra, uma classe burocrática dentro de um regime infinitamente mais brutal do que o dos capitalistas ingleses, instaurando um inaudito domínio do terror. Longe de desaparecer, o estado formou uma classe burocrática privilegiada por oposição à classe trabalhadora, no intento de satisfazer a ambição pessoal de Stalin de tornar a União Soviética um país industrializado através de planos quinquenais. Como resultado da repressão stalinista mais de 20 milhões de pessoas perderam suas vidas.

   O resultado não foi nada prometedor. O comunismo soviético acabou caindo de podre. Como o povo russo nunca teve a experiência da democracia, o resultado acabou sendo o surgimento de uma forma extemporânea de czarismo em pleno século XXI nas mãos de Putin. Ao invés de emancipação, o comunismo soviético gerou retrocesso.

   Para um crítico de Marx como Karl Popper o debacle do comunismo soviético foi uma prova de que Marx estava errado.[15] Mas isso não chega a ser correto. Na opinião de Allen Wood, um especialista em Marx, a dissolução do nefasto comunismo soviético é uma prova de que Marx estava certo.[16] Se essa forma de comunismo tivesse sido bem sucedida – a instauração do comunismo em um país semifeudal – isso teria provado que Marx estava errado.

   O segundo exemplo de revolução supostamente marxista aconteceu na China, tendo como resultado também a implantação de um capitalismo de estado. Mao Zedong, o líder totalitário que governou a China com mãos de ferro, tentou forçar a industrialização do país e desenvolver a agricultura através da força e por meios completamente inadequados. O resultado foi uma epidemia de fome que matou cerca de 20 milhões de camponeses no início da década de 60. Segundo consta, camponeses desesperados chegaram a trocar seus filhos moribundos com os dos vizinhos para que eles pudessem ser comidos sem tanta culpa.[17]

   Após a morte de Mao, seu sucessor Deng Xiaoping teve a brilhante ideia de reintroduzir a economia de mercado, mantendo o partido comunista no poder. A introdução desse capitalismo menos centralizado, permitindo a livre concorrência, ainda que sob supervisão estatal, permitiu impulsionar imensamente o país, mas sob o custo de este ter perdido quase qualquer semelhança com o modelo supostamente marxista. Como o fascismo se define como um totalitarismo no qual o livre mercado é mantido, mesmo que sob supervisão do estado, o atual estado chinês tem mais proximidade com um estado fascista do que com o comunismo marxista-leninista e muito menos com a escatologia marxista.

  Há, por fim, exemplos de revoluções que resultaram em estados fracassados como o criminoso sistema comunista implantado na Coréia do Norte, a insanidade do Khmer Vermelho no Camboja e a ditadura cubana. Fidel Castro chegou ao poder dando ao povo a expectativa de uma democracia comunista. Ao invés disso ele implantou uma ditadura feroz, dentro da qual mais de dez mil suspeitos (e mesmo insuspeitos) foram fuzilados. O resultado é que Cuba é hoje um país pobre e doente, com uma economia planejada que não funciona: uma espécie de fazenda de escravos dominada pela família Castro, tendo como feitores os membros do partido. Considerando que Cuba antes da revolução era um país quase rico, apesar de profundamente desigual, o resultado do comunismo cubano pode ser considerado desastroso.

   A questão a ser considerada é: o que tem Marx a ver com essas revoluções? A resposta é que ele teve na verdade muito pouco a ver com elas. Em alguns aspectos sim, como em sua insistência na abolição da propriedade privada e na admissão de um momento totalitário pós-revolucionário. Nisso elas se inspiraram em Marx. Mas em sua essência elas não tiveram nada a ver com a grande revolução pós-capitalista por ele imaginada. Elas foram, na verdade, revoluções pré-capitalistas. Elas ocorreram em países pobres, geralmente na tentativa de alcançar pela força uma revolução industrial que já havia acontecido há muito tempo nos países economicamente mais desenvolvidos. No caso da União soviética essa revolução industrial em alguma medida aconteceu, mas a um preço insano. Nas China ela só aconteceu depois que o comunismo foi substituído por um sistema capitalista sob o controle de um estado totalitário, o que o aproxima do fascismo. E em lugares como a Coréia do Norte e Cuba tudo o que se conseguiu foi produzir um permanente desastre socioeconômico.

   Uma conclusão é que há uma boa dose de engano em fazer como Karl Popper, que tentou responsabilizar Marx por terem usado seu nome em vão nessas deturpações e desastres. Para os líderes dessas revoluções, se Marx não tivesse existido teria sido preciso inventá-lo. Ou seja: é possível que se ele não tivesse existido as revoluções pré-capitalistas na Rússia, China, Coréia do Norte, Cuba e outros países teriam ocorrido de qualquer maneira, inspiradas por outros teóricos que também defenderam ou que acabariam por defender ideias que as justificassem.[18] Teorizações pertencentes à superestrutura ideológica são capazes de nascer e crescer tão facilmente quanto capim do mato.

   O que Marx fez pode ser melhor visto como um imenso esforço especulativo e visionário, forjado como uma reação humanista ao contexto socioeconômico profundamente injusto do momento histórico no qual viveu. Um trabalho que em suas previsões factuais se demonstrou falso, mas que nem por isso deixa de denunciar uma variedade de problemas ainda hoje presentes.

 

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Crítica. Quero agora expor algumas bem conhecidas críticas ao marxismo que merecem ser lembradas.

   Uma primeira vem de economistas, especialmente os da Escola Austríaca.[19] Eles notaram que Marx tinha uma ideia ricardiana do valor da mercadoria, segundo a qual seu valor de troca deve ser medido pelo trabalho investido em sua produção. Para ele, na economia capitalista o trabalhador equivale a uma mercadoria que se paga a si mesma nas horas investidas em seu trabalho. Mas como esse trabalho é potencializado com o auxílio de máquinas e da divisão de trabalho, o valor do trabalhador como mercadoria é aumentado, sem que isso retorne a ele como salário. O valor que fica nas mãos do capitalista e que está além daquilo que ele deveria pagar para o trabalhador foi chamado por Marx de mais-valia. O acúmulo da mais-valia, acreditava Marx, conduziria a um excesso de produção seguido de crises econômicas e de uma extorsão cada vez maior dos trabalhadores, que acabariam por se revoltar produzindo uma revolução que levaria ao debacle final do capitalismo.

   O que os economistas posteriores notaram é que a teoria da mais-valia além de confusa, é mal fundamentada. O valor de uma mercadoria não é estabelecido pelo trabalho nela investido, mas pelo que o consumidor está disposto a pagar por ela. Assim, em um exemplo, uma pessoa pode passar trinta anos trabalhando na invenção de uma máquina e no final não encontrar ninguém que esteja disposto a pagar pela sua invenção.[20] Enquanto isso não ocorrer ela não terá valor algum.

   Além do mais, assumindo-se que o valor da mercadoria depende do que as pessoas estão dispostas a pagar por ela, isso gera um grande problema para qualquer economia centralmente planejada, uma vez que um governo totalitário que tenha abolido o livre mercado não tem como prever como milhões de agentes econômicos irão precificar as mercadorias produzidas. Isso explica um problema encontrado com a economia planejada na União Soviética: a produção de mercadorias nunca correspondia às necessidades das pessoas, havendo sempre excesso ou falta de produtos. Só uma economia suficientemente baseada no mercado é capaz de dar conta disso. O resultado é o que no final das contas a economia soviética acabou sobrevivendo com o auxílio de um imenso mercado negro que o governo fazia de conta não existir.

   Desde Adam Smith (pace Marx) é um lugar comum o fato de que a economia constitui um sistema orgânico autorregulador que precisa ser deixado ao menos suficientemente livre para poder se desenvolver. Mesmo em economias modernas exemplares, como a que vige nas assim chamadas social-democracias nórdicas, a livre competição própria de uma economia de mercado é conservada, fundada no estado democrático de direito e na propriedade privada, mas sustentando o estado do bem estar social pela intermediação do governo. Embora nesses casos o estado tenha uma imprescindível função redistributiva visando promover uma suficiente “desconcentração” do capital, isso só tem sido possível na medida em que ele é sustentado por uma sólida economia de mercado onde vige a liberdade econômica e a espécie de competição preconizada por Adam Smith.[21] A ideia-chave de Smith, não custa lembrar, é que a base do enriquecimento das nações é uma competição imparcial (sem monopólios) entre agentes econômicos que buscam cada qual satisfazer seu próprio interesse. Isso faz com que aqueles que forem mais inventivos em produzir o melhor pelo menor preço se fortaleçam tomando o lugar de outros e gerando um enriquecimento comum, geralmente maior do que seria se fossem movidos apenas por interesses puramente altruístas.[22]

 

8

 

Acordos. Quero aqui fazer uma correção à interpretação que me parece indispensável à interpretação que Marx e Engels fizeram da história. Para eles os diferentes períodos da história foram resultados dialéticos da luta de classes: “a história da humanidade é a história da luta de classes”.[23] Só que não foi bem assim. Muito mais do que isso, na maior parte do tempo a história tem sido a história dos acordos implícitos ou explícitos entre as classes. Esses acordos, que podem durar muitos séculos, são capazes de, por obra do progresso material, ou seja, de mudanças na estrutura econômica, produzir tensões insustentáveis, levando a dissoluções superadoras que podem tomar a forma de revoluções. Apesar desses acordos e conflitos os resultados ainda assim preservam algo da dialética marxista: com o desenvolvimento e alteração das forças produtivas os acordos podem se demonstrar demasiado onerosos, o que conduz a conflitos dos quais resulta a superação de acordos já existentes e sua substituição por novos acordos, mais satisfatórios e justos.

   Nem sempre essa superação dos acordos anteriores aconteceu através de revoluções sangrentas como a francesa. Considere, por exemplo, o caso da revolução gloriosa na Inglaterra, que foi uma espécie de golpe de estado ocorrido 100 anos antes da revolução francesa e que resultou em uma vitória do parlamentarismo sobre o poder absoluto do rei. Antes disso, nos tempos elisabetanos, o poder absoluto do rei era considerado, tanto pela nobreza quanto pelo povo, como bem justificado e não como um sistema baseado na injustiça social, como deveria ser se a história fosse realmente uma história da luta de classes.

   Devemos aqui distinguir entre nossos conceitos ideais e circunstanciais ou factuais ou concretos e justiça social. Os primeiros são aqueles que só podem ser satisfeitos sob condições ideias, como no suposto paraíso comunista de Marx. Mas nossos conceitos factuais de justiça e injustiça social variam de acordo com a sociedade, um ponto no qual Hegel estava certo, uma vez que para ele quem deve estabelecer o que é socialmente justo e injusto é a própria sociedade em seu todo, no tempo de sua existência. O marxismo só é capaz de sustentar seu conceito de história como história da luta de classes por meio de uma projeção maniqueísta através da qual ele colapsa o conceito de justiça social relativizado pelas condições históricas concretas em um conceito idealizado de justiça social perfeita, válido em princípio, que deve ser sempre buscado, mas que historicamente nunca pôde ser concretizado. Ignorar esse ponto nos faz imaginar que as classes inferiores sempre se encontraram em uma surda e continuada luta por sua emancipação, por oposição à classe dominante. Com isso se desconsidera a relatividade histórica da justiça social concreta, que se encontra na diferença entre uma injustiça que é sanável (e que vale a pena discutir) e outra que é irremissível, a justiça ideal (que por isso se encontra aceita pelas partes como impossível de ser realizada em seu momento histórico e geralmente além de seu horizonte de discussão).

   O que acabei de dizer pode ser melhor esclarecido se considerarmos o caso da escravidão. Em termos ideais, sob um standard suficientemente alto de justiça, qualquer forma de escravidão é obviamente injusta, pois ela resulta de fatores inexpressivos ou arbitrários como melhor preparo, força, violência e sorte. Mas se considerada sob a perspectiva de uma certa época e região, a escravidão é considerada como justificada na medida em que não houver outra maneira factível de fazer sobreviver uma sociedade. Esse foi em geral o caso das civilizações pré-cristãs. Um estado sem escravos era na antiguidade algo impensável, pois não sobreviveria muito tempo sem que outros o escravizassem.

    Considere, para exemplificar, uma revolta de escravos como a liderada por Spartacus contra o governo romano. Eles se revoltaram contra o mau tratamento. O ponto curioso é que nunca lhes passou pela cabeça a ideia de abolir a escravidão. O que eles queriam era alcançar a liberdade fugindo das garras do império para a Gália e, como tentaram fazer no final, para a Sicília. Acabaram encurralados, sem poder cruzar o estreito. Depois de os vencerem, os romanos crucificaram 6.000 revoltosos na Via Ápia de modo a aterrorizar qualquer um que pensasse em fazer o mesmo. Os escravos liderados por Spartacus agiram por puro desespero. Se pudessem teriam escravizado os romanos. Isso significa que existia na época um acordo implícito entre as classes, um acordo que admitia a escravidão como um justo entrevero no qual alguns ganham e outros perdem, sendo uma questão de destino a quem iria competir o papel de senhor ou de escravo. Não há aqui qualquer sentido em se falar de luta de classes, a menos que por uma falsa projeção de standards morais ideais incompatíveis com as vicissitudes históricas.

   Contra isso um defensor do marxismo poderia objetar que os escravos não percebiam os seus direitos devido à alienação. Mas essa não seria uma boa réplica. Considerando as estruturas socioeconômicas e culturais dos povos europeus da época e as relações que vigoravam entre eles, não havia outra opção fora de um natural aceite da escravidão. E a dura consciência dessa falta de opção nada tinha a ver com alienação.

   A constatação acima invalida ilusões como a de uma “injustiça milenar”, mas não invalida o essencial da dialética materialista. Afinal, se as novas bases econômicas tornam possível acordos mais civilizados, menos determinados por fatores inexpressivos, então a transformação das relações de produção e da superestrutura ideológica se torna um imperativo moral: a luta de classes pode tornar-se justificada e até mesmo capaz de demandar ações violentas.

   Um segundo exemplo comprovando minha tese diz respeito à situação dos camponeses pouco antes da revolução industrial. Com o objetivo de refutar Marx, Ludwig von Mises notou que essa situação não era melhor do que a situação posterior como operários nas fábricas. Mises descreveu a situação de forma impressiva:

 

A verdade é que as condições no período que antecedeu à Revolução Industrial eram bastante insatisfatórias.  O sistema social tradicional não era suficientemente elástico para atender às necessidades de uma população em contínuo crescimento. (...) O número de pessoas à margem do rígido sistema paternalista de tutela governamental cresceu rapidamente; eram virtualmente párias.  A maior parte delas vivia, apática e miseravelmente, das migalhas que caíam das mesas das castas privilegiadas. (...) Milhares dos mais vigorosos jovens desse estrato social alistavam-se no exército ou na marinha de Sua Majestade; muitos deles morriam ou voltavam mutilados dos combates; muitos mais morriam, sem glória, em virtude da dureza de uma disciplina bárbara, de doenças tropicais e de sífilis.[24]

 

Mesmo sendo verdadeiro o que Mises descreveu, ele não alcançou seu objetivo. Afinal, se considerarmos o que foi dito sobre acordos e crises, o que ele diz de pouco serve como crítica à afirmação de Marx de que os trabalhadores das fábricas estavam sendo duramente explorados. É que antes da revolução industrial a situação de carência não permitia uma mudança e os camponeses eram idealmente, mas não factualmente explorados. Mas com a mudança da estrutura econômica essas pessoas, na condição de trabalhadores, passaram a ser também factualmente explorados, dado que as condições concretas para a emancipação de sua classe passaram a ser dadas.[25]

   As considerações acima acerca de uma variação entre tempos de acordo e tempos de conflito entre as classes sociais nos força a considerar um sério erro de Marx e Engels tenham dado a entender que a história tenha sido uma contínua luta de classes, deixando de distinguir entre um conceito ideal e o conceito circunstancial e concreto de justiça social. Afinal, foi a aplicação irrefletida dessa ideia por parte de ideólogos marxistas está na origem dos erros que envolveram esses pensadores nos maiores desastres sociais do século XX.

 

9

 

Teoria da ferradura. Hoje em dia a mais próspera explicação do espectro político é a que vem da teoria da ferradura, uma teoria óbvia demais para os que desejam buscar pelos em casca de ovo. Os extremos da ferradura, embora separados, estão bem próximos um do outro. Esse é o caso da esquerda radical (ex.: o socialismo marxista-leninista) e da direita radical (ex.: o nazifascismo), também chamadas de direita e esquerda carnívoras. Eles são dois extremos que se excluem, mas que se encontram bastante próximos por suas posições totalitárias e intolerantes. A principal diferença é que no marxismo-leninismo não existe propriedade privada, tudo sendo (em teoria) controlado pelo estado, enquanto no nazifascismo o estado permite a existência da propriedade privada e do livre comércio, mesmo que de forma controlada. O meio da ferradura é o centro elitista que só tem lugar nas democracias. O mais importante são as partes da ferradura que se encontram próximas ao seu meio. Elas representam o progresso civilizatório: a esquerda e a direita tolerantes, também chamadas de vegetarianas. Elas se tornaram possíveis como resultado do desenvolvimento humano e econômico. Elas rejeitam o totalitarismo e se dispõem a dialogar entre si. Semelhante esquerda democrática pode ser melhor chamada de progressivista, pois busca desenvolver meios de equalizar as diferenças sem diminuir as liberdades, coisas que tem a ver com o progresso da civilização e que dependem da melhoria das bases econômicas para se instituírem. Afinal, sem desenvolvimento econômico o progresso, que envolve essencialmente a superestrutura ideológica, dificilmente irá se instaurar. Já a direita democrática é melhor chamada de conservadorista, buscando assegurar valores e instituições que o tempo demonstrou serem úteis e que podem merecer resistir à transformação das bases econômicas. Por exemplo, os valores familiares, tradições, instituições, a herança cultural e até mesmo um elemento religioso podem encontrar aqui em nossas sociedades seu lugar.

   Se admitirmos que o desenvolvimento das bases econômicas é aquilo que torna possível a evolução da superestrutura ideológica, então podemos esperar, sob o pressuposto de uma economia em desenvolvimento em um estado suficientemente democrático, uma oscilação dialética entre a esquerda e a direita, uma espécie de diálogo frutífero entre o progressivismo o conservadorismo. Ou seja: sempre que o desenvolvimento econômico permite alterações ideológicas, podemos esperar acomodações na superestrutura ideológica que foi útil durante certo tempo em direção a um aperfeiçoamento emancipador. Mas as ideias emancipatórias podem ser excessivamente idealizadas revelando-se contraproducentes, o que pode implicar em uma correção conservadora.

   Essa ideia pode ser exemplificada naquilo que John Searle uma vez chamou de a sabedoria do bipartidarismo norte-americano. Considere as oscilações entre o partido republicano (conservador) e o partido democrata (progressista), cujos papéis ideológicos também podem se intercambiar. Em 1993 o partido democrata elegeu como presidente Bill Clinton. Ele assinou vários acordos de livre comércio, entre eles o NAFTA, tendo contribuído para a melhoria do welfare, embora a desregulamentação econômica por ele introduzida tenha contribuído para a crise econômica futura. Por oposição ao liberalismo de Clinton, George W. Bush ganhou as eleições em 2001 como o candidato republicano defensor do capitalismo do livre mercado. Como reação ao ataque terrorista às Torres Gêmeas Bush cometeu o erro de invadir o Iraque sob a falsa justificativa de que o país estaria desenvolvendo armas de destruição em massa. O resultado, como especialistas já previam, foi desastroso: uma longa ocupação de um país altamente instável, que provocou a morte de mais de 100 mil civis e de cerca de dez mil soldados norte-americanos.[26] Bush foi sucedido em 2009 por um liberal, Barack Obama, do partido democrata. Ele buscou diminuir os custos dos planos de saúde para a população mais carente através da Obamacare, evitando conflitos externos maiores. Mas o Obamacare parece ter sido demasiado caro. Depois dele veio Donald Trump, outra vez do partido republicano, eleito em 2017. Trump diminuiu impostos e defendeu políticas conservadoras nacionalistas, como a da diminuição do auxílio americano à NATO e o aumento da exportação de petróleo. Joe Biden, seu sucessor do partido democrata a partir de 2021, defendeu a introdução de energias limpas, além de apoiar a Ucrânia contra Putin...

   O que se nota é que no caso em questão cada partido que se alça ao poder, além de implementar novas ideias, tenta corrigir os erros do outro, geralmente (mas nem sempre) o partido democrata defendendo mudanças progressistas, enquanto o partido republicano corrige exageros na economia e na política. Ora, esse saudável zig-zag da política não deixa de ter a natureza de uma progressão dialética, o contribui para corroborar a tese de que a intencionalidade coletiva, assim como seus produtos, reflete uma dialética cuja raiz originadora é uma intencionalidade individual e dialógica.

 

 

 



[1] Karl Marx: Uma contribuição à crítica da economia política, prefácio (1859).

[2] Karl Marx: Uma contribuição para a crítica da economia política, prefácio (1859).

[3] Friedrich Engels: “Carta a Joseph Bloch” (21-22 setembro 1890).

[4] Contribuição para a crítica da filosofia do direito de Hegel; introdução (1843).

[5] Peter Singer,

[6] Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto do partido comunista, p. 1

[7] Karl Marx e Friedrich Engels Ibid., sec. 1.

[8] Karl Marx: A ideologia alemã (ed. Grijalbo 1977) p. 46.

[9] Mikhail Bakunin: Estatismo e anarquia (Ícone 2003), estatismo e dominação.

[10] Ludwig Feuerbach: A essência do cristianismo (Petrópolis: Ed. Vozes 2007), Introdução, Capítulo I, pp. 43, 52.

[11] Seria preconceituoso pensar aqui em promiscuidade. O ser humano é naturalmente polígamo (Quinsey). A moralidade da civilização, especialmente a judaico-cristã, mudou essa condição, mas parece que a custo de distorções como a infidelidade, a pornografia, etc.

[12] Tese número 11: Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kömmt drauf an sie zu verändern“.

[13] Os mencheviques estavam mais próximos de Marx, uma vez que acreditavam que sendo a Rússia um país ainda semifeudal, ela deveria passar primeiro por um longo período de desenvolvimento capitalista liberal, para só então partir para um modelo de socialismo marxista.

[14] No capitalismo de estado o governo passa a possuir o monopólio dos meios de produção, extraindo a mais-valia do trabalhador de modo a reinvesti-la no próprio desenvolvimento e a redistribui-la entre burocratas privilegiados que formam a nova burguesia.

[15] Karl Popper: The Open Society and its Enemies (Princeton: Princeton University Press 2013), vol. II, 343-402 (Marx’s Prophecy).

[16] Allen Wood: Karl Marx (London: Routledge 2004)

[17]  Stéphane Courtois et all: O livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão. (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2019), p. 58.

[18] Ver The Open Society and its Enemies, a.a.O., parte II

[19] Ver Ludwig Von Mises: “Economic Calculation in a Socialist Commonwealth”. (Auburn: Mises Institute 1990 (1921))

[20] Murray N. Rotbarth: The Essential von Mises (Auburn: Mises Institute 2009), p, 7.

[21] Países nórdicos estão entre os de maior liberdade econômica no mundo, diversamente de um país como o Brasil ocupa o 124 lugar, junto à Guiné Bissau e à Nigéria (The Heritage Foundation 2024)

[22] Adam Smith The Wealth of Nations (New York: Ixia Press 2019), p. 508.

[23] Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto comunista (São Paulo: Boitempo 2010), p. 40.

[24] Ludwig Von Mises: “Fatos e mitos sobre a revolução industrial”. Mises Brasil 2013 (https://mises.org.br//article/1056/fatos-e-mitos-sobre-a-revolucao-industrial).

[25]    Essa constatação nos faz perguntar se não devemos repensar o conceito de alienação como sendo muitas vezes também positivo. Quando o acordo entre as classes era ainda a melhor solução, por exemplo, logo antes da revolução industrial, ou entre os servos e nobres na Idade Média, a alienação religiosa deve ter tido uma função positiva organizando e facilitando a vida social das pessoas. Em nossa presente sociedade, fragmentada por arregimentações e compartimentalizações as mais diversas, é quase impossível ao ser humano viver socialmente sem assumir algum conjunto de crenças alienador de pelo menos alguns aspectos da realidade.

[26] O número estimado de fatalidades civis varia de 100 a 600 mil (fonte: BBC-News).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

A REVOLUÇÃO CARTESIANA

  Draft para Introção histórica à filosofia...

 

V

A REVOLUÇÃO CARTESIANA

 

Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria analítica, que permite representar figuras da geometria plana através de fórmulas algébricas. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é tido como o fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a chamada revolução cartesiana, que mudou o eixo de investigação em filosofia teórica da metafísica para a epistemologia.

   As filosofias helenista, romana e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles, que punha a metafísica no centro da filosofia. O ponto de partida da filosofia teórica era a investigação metafísica dos constituintes últimos da realidade, do ser enquanto ser. Só secundariamente era desenvolvida uma investigação epistemológica sobre os a natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas. O vetor da filosofia teórica vinha do ser para o pensamento. Com Descartes isso se inverteu. Ele já era ciente do quanto nossa capacidade de fazer investigações metafísicas dependia de nossa capacidade de conhecer, o que tornou razoável que começasse por investigar nossas capacidades cognitivas. Ele começou se perguntando pelo que somos capazes de saber com certeza, para só então, com mais segurança, chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de mais fundamental. O resultado foi a construção de um edifício filosófico completamente novo, muito diferente daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro. Com isso ele deslocou o vetor da filosofia teórica do pensamento para o ser. E aqui também a filosofia se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no crepúsculo do renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos renascentistas com o homem uma parte essencial do programa da filosofia.

 

1

 

O cogito. O culprit do desenvolvimento da filosofia cartesiana foi a disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo o ceticismo pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio do ceticismo é o de quedo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado, então também os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o ceticismo colocar em questão a sobrevivência da alma ou até mesmo a existência de Deus... Descartes era um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La Flèxe, o mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado por amigos a fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do ceticismo. O resultado terminou sendo a grande obra de argumentação filosófica e requinte estilístico chamada de Meditações de filosofia primeira (Meditationes de Prima Philosophia).

   O objetivo de Descartes nas Meditações era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e, como veremos, com base nela ele de fato erigiu toda a sua filosofia. Para chegar a essa certeza ele começou por estabelecer um método, o da dúvida. Segundo esse método, tudo o que puder ser duvidado deve ser considerado como se fosse falso. Assim, Descartes começou por aplicar esse método a coisas vistas à distância. Claro, podemos nos enganar quanto a elas. Uma árvore vista na neblina à distância é por vezes confundida com um ser humano. Mas não parece que possamos nos enganar quanto a coisas que se encontram muito próximas de nós. Descartes apresentou então o argumento do sonho. Já aconteceu, notou ele, de eu estar aqui diante dessa lareira sonhando que o fogo está a crepitar quando na verdade ele já havia se apagado há algum tempo. Nada nos garante que a vida não seja um sonho e que as coisas ao nosso redor na verdade não existam. Se é possível que eu esteja sonhando, posso descartar o mundo sensível ao meu redor como objeto de certeza. Para magnificar seu raciocínio ele desenvolveu então a dúvida hiperbólica, que é a dúvida estendida a regiões acima de qualquer suspeita. Para aplicá-la ele imaginou um gênio maligno imensamente poderoso, que empregaria toda a sua astúcia para o enganar. O gênio maligno produziria em Descartes a alucinação de ser um filósofo vivendo na França no século XVII, quando na verdade ele poderia não passar de uma alma flutuando isolada no espaço vazio e sendo constantemente confundida. O gênio seria tão malevolente que até mesmo em seu pensamento matemático Descartes estaria sendo enganado. Ao somar 3 + 2 o gênio o levaria a concluir que o resultado é 5, quando na verdade todos sabem que é 6 (se você discorda, prezado leitor, pode bem ser que também esteja sendo confundido pelo gênio maligno).

   Contudo, imediatamente após isso Descartes descobriu algo capaz de resistir às mais incríveis artimanhas do gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que alguém se engane, fazer com que esse alguém não exista. Afinal, para alguém ser enganado é preciso que exista e mesmo que pense (como escreveu Agostinho: “Si fallor sum”). Se alguém pensar que 3 + 2 = 7, esse alguém está obviamente enganado, mas não é possível que ao cometer esse erro de cálculo ele não exista ou não esteja pensando. Descartes resume sua grande descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito ergo sum) em seu Discurso do Método,[1] e no enunciado “Eu sou, eu existo” nas Meditações.[2] Ao menos no presente, enquanto estou pensando, não é possível duvidar de que eu existo como ser que pensa. Trata-se de algo que não pode ser falso, a certeza indevassável de que eu sou uma coisa que pensa (enquanto penso). Intérpretes contemporâneos identificaram o cogito com uma verdade “autoverificável” (Hintikka) ou “necessária a posteriori” (Harry Frankfurt). Veremos que para Descartes, tal como o ponto fixo da alavanca, que permitiria a Arquimedes levantar o mundo, a certeza do cogito é o que lhe permitirá erigir seu sistema metafísico.

   Nos passos seguintes de seu argumento Descartes cuida de construir seu sistema. Vou resumir. Uma vez que ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de pensar algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui, pois, uma ideia inata de Deus. Mas como ele é um ser humano limitado, ele não seria capaz de pensar Deus, algo infinitamente superior a si mesmo, a menos que existisse esse ser infinitamente superior e que ele tivesse posto em sua na mente a ideia de si mesmo, a ideia de Deus. Por conseguinte, Deus existe. Além disso Descartes apresenta sua versão própria da prova ontológica da existência de Deus de Anselmo: já que concebemos Deus como um ser com infinitas perfeições, ele deve possuir a perfeição da existência, caso contrário não seríamos capazes de concebê-lo. Deus, possuindo infinitas perfeições, precisa também ser infinitamente bom. Ora, sendo Deus infinitamente bom, ele não permitiria o engano sistemático, nem a existência do gênio maligno a nos fazer alucinar um mundo externo que na verdade não existe, ou a nos enganar na mais simples operação aritmética. Eis porque podemos estar certos de que o mundo externo existe e de que ideias claras e distintas como 3 + 2 = 5 são verdadeiras.

 

2

 

Elvino. A muitos também parece intuitivo que nada daquilo que é conhecimento empírico deve ser totalmente imune ao erro. O conhecimento do cogito é empírico. Cabe então a pergunta: seria possível imaginar uma situação na qual ele é falso? Talvez sim, por uma identificação enganosa. Para tornar esse ponto compreensível, imagine que um senhor idoso e um pouco caduco chamado Elvino desapareça nas mãos de um cientista do mal. Esse cientista substitui Elvino por um androide extremamente sofisticado e perfeitamente idêntico a Elvino, que fala e age como ele, mas que não tem nada na cabeça, a não ser um mecanismo implantado que faz com que seu comportamento seja inteiramente controlado à distância pelo cientista. Os familiares de Elvino não conseguem explicar seu súbito desaparecimento. Mas um certo dia o androide do Elvino bate à porta de sua casa. Quando lhe abrem ele se apresenta dizendo: “Sou eu mesmo, o Elvino; e fiquem sabendo que eu ainda existo como um ser pensante”. Todos ficam felizes por o terem de volta... Mas o proferimento “eu... existo como um ser pensante” é agora falso, pois Elvino já não existe mais e não há nenhuma consciência pensante ocupando o autômato... Logo, o cogito falso é possível!

   A isso o defensor de Descartes poderá responder que o proferimento “Eu existo como ser pensante” continua sendo verdadeiro, mas com relação ao cientista maligno que controla o androide e que é o verdadeiro autor desse pensamento, precisando ser apenas reinterpretado.

   Mas aqui surge um problema. Se o cientista maligno estivesse se referindo a si mesmo, o “Eu existo como ser pensante” por ele pensado seria verdadeiro. Mas o seu objetivo é precisamente o de enganar as pessoas, pondo essas palavras na boca do androide e fazendo com que o pronome pessoal ‘eu’ se refira a uma cópia mecânica de Elvino e não ao próprio Elvino, de modo que é errado dizer que com esse pronome pessoal o cientista do mal está se referindo a si mesmo. Ele se refere ao eu que ele tem em mente e quer que os outros tenham em mente, ou seja, a uma pessoa que não existe e que está sendo apenas mimetizado pelo androide. Por conseguinte, esse continua sendo um caso no qual o proferimento “Eu penso, eu existo” é simplesmente falso.

   Contra essa conclusão o defensor de Descartes poderá ainda objetar que a função do pronome pessoal ‘eu’ é sempre a de se referir àquele que fala no momento em que fala, ou seja, ao emissor do som, seja ele o que for. Como no exemplo de Elvino quem emite o som é um autômato, o ‘eu’ de “Eu existo” se refere ao autômato que de fato existe, e não a Elvino, o que torna o proferimento outra vez verdadeiro.

    Aqui surge um novo problema. É que ao usar o pronome pessoal ‘eu’ Descartes tinha em mente um sentido rico da palavra, no qual ele se referia a uma consciência ou mente pensante, e não a algo que seria satisfeito por um autômato ou um papagaio ou por um autofalante que proferisse os sons “Eu existo”. Ou seja: se, no proferimento do autômato for coerentemente preservado o sentido cartesiano da palavra ‘eu’, o “Eu existo” por ele referido ou não se refere a mais nada ou continuará sendo expressão do pensamento do cientista maligno que, por sua vez, está se referindo a uma pessoa que não existe, o que o torna de um ou de outro modo falso. Assim, se o autômato dissesse “Penso, logo existo”, isso seria falso, pois a pessoa tomada por Elvino nem pensa nem existe. Será essa conclusão correta? Deixo a resposta por conta do leitor.[3]

 

3

 

Interacionismo. É importante em Descartes a defesa do dualismo interacionista quanto ao que é hoje chamado de problema da relação mente-corpo. Para ele existem duas substâncias, (i) a substância extensa (res extensa) e (ii) a substância pensante (res cogitans). A substância extensa constitui o que hoje chamamos de mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera o atributo da extensão como sendo o mais distintivo do mundo físico, uma vez que podemos ter uma ideia clara e distinta da extensão. Já a substância pensante é constituída pelas mentes e por seus conteúdos, incluindo não só pensamentos, mas também emoções e sensações. A substância pensante pode ser de dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que são nossas almas e as substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante infinita, que é simplesmente Deus.

   Descartes tinha uma prova do dualismo de substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o contexto opaco introduzido por verbos de atitude proposicional como ‘duvidar’, ‘acreditar’, ‘ordenar’. Considere o seguinte argumento plenamente válido:

 

          (1)

O objeto a tem a propriedade F.

a = b.

O objeto b tem a propriedade F.

 

Compare esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar, que é um verbo de atitude proposicional:

 

          (2)

Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.

Zorro = Dom Diego.

Maria duvida que Dom Diego existe.

 

O problema é que, como é sabido, ninguém sabe que Zorro é Dom Diego, nem mesmo a Maria. O uso do verbo de crença proposicional introduz um contexto opaco que torna a conclusão falaciosa. O mesmo acontece no argumento:

 

          (3)

Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.

Corpo = mente

Descartes pode duvidar da existência de sua mente.

 

Como a conclusão é obviamente falsa, Descartes concluiu que a segunda premissa precisa é que precisa ser falsa: a alma tem de ser algo diverso do corpo. Mas seu raciocínio é enganoso por assimilar a forma do argumento (3) à forma do argumento (1), quando na verdade sua forma é idêntica a (2). O argumento (3) é tornado inválido pelo fato de conter um verbo de atitude proposicional que introduz um contexto opaco.

   Um outro problema é a maneira como Descartes soluciona o assim chamado problema mente-corpo, o problema da relação entre a res cogitans e a res extensa. Ele acreditava que a mente se relaciona com o corpo através de uma interação causal. Assim, se eu piso em um caco de vidro isso causa um evento mental, que é a sensação de dor. Essa sensação desagradável me faz levantar o pé, pensar no que fazer e, em seguida, me pôr a fazer um curativo. O problema que aqui surge é o de explicar como é possível a interação entre algo que não ocupa espaço, o pensamento, e o mundo extenso, físico. A brilhante princesa Elisabeth da Bohemia colocou a questão em uma carta a Descartes:

 

(...) parece que toda determinação do movimento se dá por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por aquela que a move, ou bem, pela qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas primeiras condições e a extensão pela terceira. [4]

 

Frente a essa objeção Descartes não conseguiu ir muito além do reconhecimento de que há coisas que precisam ser aceitas como um mistério.

 

4

 

Ceticismo. Um outro ponto de ligação entre a filosofia de Descartes e a discussão contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o mundo externo. A hipótese do gênio maligno é o que hoje chamamos de uma hipótese cética. Há outras hipóteses céticas globais com o mesmo efeito, como a do mundo como sonho ou uma alucinação coerente. A versão preferida hoje é, aliás, a de que a pessoa seja um cérebro em uma cuba com os nervos aferentes e eferentes ligados a um supercomputador que lhe faz alucinar uma realidade virtual... com o mesmo efeito. Com base em qualquer uma dessas hipóteses céticas (escolho aqui a do gênio maligno) o seguinte argumento cético pode ser construído:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho duas mãos.

 

Esse argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas mãos” pode ser aqui substituído por qualquer outro enunciado trivial: eu não sei se estou sentado, eu não sei se estou escrevendo, eu não sei se a terra é realmente redonda... O ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não saber que a hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma sobre o mundo externo.

   A contraposição do argumento cético é o argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial qualquer, digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a hipótese cética assim:

 

Eu sei que tenho duas mãos.

Se eu sei que tenho duas mãos então sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

O argumento anticético prova tanto quanto o argumento cético. A questão fica sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Ainda assim, a inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto direito de estar certo quanto o anticético.

   Tenho uma maneira de refutar o argumento cético que é reminiscente da distinção feita por Rudolph Carnap entre questões internas e externas de existência, embora sem os seus defeitos.[5] Trata-se da introdução de uma distinção entre dois conceitos de realidade externa: inerente e aderente.[6] Vou explicá-la.

   A realidade inerente do mundo externo tem a ver com o fato de que o aparecimento e a ordem de nossa experiência sensível não dependem de nossas mentes. A atribuição de realidade externa depende minimamente de critérios herdados da tradição, os principais deles sendo;

 

(i)             Critério de intensidade: máxima intensidade sensorial,

(ii)           Critério de independência: independência da vontade,

(iii)         Critério de intersubjetividade: possibilidade de comprovação por acesso interpessoal,

(iv)         Critério de regularidade: seguimento de leis da natureza e regularidades...

               (para maiores detalhes ver cap. XI, sec. 14).

Minha proposta é que se esses critérios forem satisfeitos conjuntamente por uma dada entidade e pelo contexto no qual ela se encontra, então essa entidade pode ser afirmada como sendo externamente real no sentido inerente, que é o sentido normalmente aplicado por nós no dia a dia. Tais são os critérios que implicitamente temos em mente ao dizermos que as coisas ao nosso redor são “reais”. Podemos, aliás, sem muita dificuldade estender esses critérios para coisas indiretamente acessíveis, como eventos passados ou objetos microscópicos ou ainda coisas testemunhadas por outros, na medida em que seja possível produzir evidências sensíveis com as propriedades acima descritas (nisso se baseia o realismo científico).

   É fundamental notar que esses critérios precisam ser conjuntamente satisfeitos. Em uma alucinação realista, como a que se dá na alucinose alcóolica, a pessoa vê um cavalo branco com a máxima intensidade sensorial, essa visão é independente de sua vontade, o animal pode mesmo se comportar como é esperado de um cavalo, mas ele não será interpessoalmente acessível: outras pessoas lhe dirão que não existe cavalo algum. E só isso basta para evidenciar a alucinação.

   O sentido aderente do conceito de realidade externa, por sua vez, é o que diz respeito a cenários céticos de maior ou menor extensão, obedecendo critérios muito diversos. Se eu for uma alma vagando no espaço e enganada por um gênio maligno, os critérios de (i) a (iv) estarão sendo satisfeitos em toda a sua intensidade, independência, intersubjetividade e regularidade. Mas em princípio eu posso vir a saber disso por comparação, se essa alma deixar de ser enganada e as outras almas me convencerem que eu havia vivido minha vida inteira sob a sistemática alucinação de ser um habitante do planeta terra... O critério de realidade externa é aqui comparativo e coerencial, bem diferente dos critérios inerentes encontrados acima.

   De posse dessa distinção podemos agora refazer os argumentos cético e anticético demonstrando que eles são ambos equívocos, uma vez que os significados de suas sentenças não mantêm identidade. Chamando a realidade aderente de realidade(A) e realidade inerente de realidade(I), eis como fica o argumento cético:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho realmente(A) duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho realmente(I) duas mãos.

 

Eis como fica agora o argumento anticético:

 

Eu sei que tenho realmente(A) duas mãos.

Se eu sei que tenho realmente(I) duas mãos então não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

Ambos os argumentos são equívocos e, portanto, falaciosos. A conclusão é que podemos demonstrar que nosso mundo é inerentemente real. Mas não podemos demonstrar que ele é real em um sentido absoluto, pois isso implicaria em demonstrar sua realidade aderente. O que fazemos, uma vez que não temos qualquer razão para admitir que nosso mundo não seja aderentemente irreal, é tomar como uma postulação semântica do mundo, segundo a qual ele é não só inerentemente, mas também aderentemente real. Essa postulação só poderá ser contestada se encontrarmos razões para colocá-la em dúvida. Isso acontecerá no caso de termos evidências de que a hipótese cética é verdadeira. Mas esse não é o caso. Voltaremos à questão quando tratarmos da filosofia de David Hume.

   Foi Wittgenstein desenvolveu um rationale que torna aceitável o que chamo de postulação semântica do mundo em um manuscrito inusitado intitulado Sobre a Certeza (Über Gewissheit). Ele defendeu que a dúvida só pode existir sob um fundo de certezas que é dado pelo sistema de crenças socialmente instituído em uma forma de vida; caso contrário a dúvida não faz sentido. Em nosso caso isso significa que uma hipótese cética só se justifica se houver alguma razão que a justifique, por exemplo, alguma evidência de que sejamos almas enganadas pelo gênio maligno ou cérebros em cubas. Como isso não acontece, a postulação semântica de que nosso mundo é também aderentemente real deve ser aceita como certa.

 

 

5

 

Racionalismo. Não quis entrar em detalhes sobre o sistema de Descartes aqui sinopticamente resumido. Quero apenas assinalar a importância de sua filosofia para a libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele destampou a garrafa da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade, cada qual criando uma concepção de mundo própria.

   Os filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas. Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento matemático herdado da axiomatização da geometria por Euclides. Esse foi o caso dos filósofos continentais, como Spinoza, Leibniz e do próprio Descartes. Os empiristas, por sua vez, foram os que puseram ênfase na experiência empírica como a fonte principal (senão a única) do conhecimento humano, minimizando a participação da razão, quando não a excluindo. Eles importavam para a filosofia o modo de pensar de cientistas empíricos, como Galileu e Newton. Esse foi o caso dos filósofos britânicos como Locke, Berkeley, Hume e Stuart Mill. Kant foi quem tentou a grande síntese entre racionalismo e empirismo, fechando assim o ciclo iniciado por Descartes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Discurso do Método, Quarta Parte 4.

[2] Meditações Metafísicas, Meditação Segunda, sec. 4.

[3] Uma resposta seria a de que o cogito não precisa ser proferido: o androide poderia ser capaz de ser levado a pensar “eu sou, eu existo”. Mas se ele está se pensando como sendo o Elvino isso é falso, dado que Elvino nem existe nem pensa.

[4] Tradução de Rafael Teruel Coelho para a Revista Instauratio Magna, da Universidade Federal do ABC, v. 1, n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” – 6/16 Mai 1643. In Oeuv. Res. De Descartes, vol III, Correspondance. Org. Charles Adam & Paul Tannery, Paris: Libraria Philosophique, J. Vrin, pp. 660-2, 1996.

[5] Ver Rudolph Carnap: “Empiricism, Semantics, and Ontology,” publicado como suplemento a Meaning and Necessity (Chicago: The University of Chicago Press 1958).

[6] A forma mais desenvolvida desse argumento encontra-se em meu artigo “The Sceptical Deal with our Concept of External Reality,” in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014), cap. 6. Há muitas tentativas de solucionar o problema, mas creio que a minha é de fato a mais plausível.