DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”.
XV
MARX:
MATERIALISMO DIALÉTICO
Os despojos do pensamento
de Hegel foram disputados entre as assim chamadas direita e esquerda hegeliana.
A direita enfatizou os elementos conservadores do pensamento de Hegel, como a
religiosidade e o culto ao estado, tendo sido a maior responsável pelo
esquecimento de seu pensamento na Alemanha da segunda metade do século XIX. Já
a esquerda hegeliana, rejeitando esses elementos, foi original, encontrando seu
maior expoente na figura do grande filósofo social que foi Karl Marx
(1818-1876). Ao invés de colocar o espírito acima de tudo, Marx decidiu virar
Hegel de cabeça para baixo, colocando a matéria em primeiro lugar. Seu
pensamento, chamado de materialismo histórico, baseou-se em uma dialética
materialista através da qual ele tentou explicar o progresso histórico-social.
O pensamento de Marx foi profundamente
influenciado pelo que ele viu acontecer durante a revolução industrial. Essa
revolução aconteceu de 1760 a 1870. Ela incluiu a transformação de métodos de
produção artesanais em produção através de máquinas, novos produtos químicos,
novos processos de produção de ferro, o uso crescente de energia a vapor, do
carvão, a formação de redes ferroviárias com a introdução de locomotivas a
vapor, a substituição dos navios a vela por navios a vapor. Ela começou na
Inglaterra, mas logo se expandiu para os Estados Unidos e para as regiões
desenvolvidas da Europa. A revolução industrial mudou por completo a forma de
vida humana, só podendo ser comparada à domesticação dos animais e à introdução
da agricultura no período neolítico. Mas ela cobrou um preço alto no que dizia
respeito às condições de vida dos trabalhadores nas fábricas e minas de carvão,
que eram duramente explorados sob um regime de trabalho que podia chegar a mais
de quinze horas por dia, o que se aplicava até mesmo a crianças pequenas. Essas
circunstâncias produziram a indignação de intelectuais ativistas como Marx,
Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph Proudhon, tendo levado a revoltas sangrentas
por parte dos trabalhadores. A pior dessas revoltas foi a comuna de Paris de
1841, que precisou ser silenciada pela ação conjunta dos governos da França e
da Prússia, levando à morte de mais de vinte mil trabalhadores.
Marx escreveu por reação ao momento
histórico único no qual viveu. Considerando as graves tensões entre a classe
dirigente e a classe proletária durante a revolução industrial, parecia que a
Europa estava se encaminhando para uma nova revolução. Intelectuais ativistas
como Marx estavam se preparando para a possibilidade de estar à frente dela.
Marx era filho de um livre pensador judeu
bem sucedido e foi sempre um inconformado, o que tornou a sua vida nem um pouco
mais fácil. Apesar de se ter doutorado em filosofia, ele não poderia ser aceito
em um cargo público como o de professor na Alemanha devido a suas ideias
radicais. Acabou trabalhando para revistas e jornais. Não pôde permanecer na
Alemanha conservadora de seu tempo, foi expulso de Paris e da Bélgica, acabando
por ter de se estabelecer na mais liberal Inglaterra, onde viveu com a esposa e
as duas filhas sob condições econômicas de início muito precárias os últimos 34
anos de sua vida. Ele se sustentava do que escrevia para jornais e pela ajuda
de seu grande amigo Friedrich Engels.
1
Ideologia.
Marx compartilhava com Hegel a ideia de que a história tem uma finalidade
que é a da emancipação do ser humano. Contudo, a dialética aceita por Marx é
materialista. Pois enquanto para Hegel é o espírito que produz as alterações no
mundo material, para Marx é o trabalho humano sobre a matéria que é capaz de
produz alterações na consciência humana. Para tornar isso mais claro Marx
distinguiu entre forças produtivas e relações de produção. As
forças produtivas são as coisas usadas para produzir, como a matéria prima, as
máquinas e, principalmente, a força de trabalho humana. As relações de produção
são as que vigem entre as pessoas e as pessoas e entre as pessoas e as coisas.
Essas relações são para Marx dependentes das forças produtivas. Assim, em uma
sociedade feudal a força produtiva da moenda manual gera relações de produção
que são diferentes das relações de produção geradas pela moenda a vapor na
sociedade capitalista industrial. A essa ideia Marx adicionou a mais importante
distinção entre as bases econômicas e a superestrutura ideológica.[1] As bases
econômicas são o conjunto das relações de produção apoiadas pelas forças
produtivas, as últimas determinando as primeiras. Já a superestrutura
ideológica é formada por um aparato ideológico: uma estrutura legal,
política, estética, filosófica... à qual se adiciona uma religião e uma
moralidade específicas. Por exemplo: na Alemanha do tempo de Hegel a religião
era autoritária e complementada por uma moral baseada nas ideias de obediência
aos superiores, lealdade e cumprimento dos deveres para com o estado. A própria
filosofia de Hegel pode ser entendida como partícipe da superestrutura
ideológica de sua época. Eis como Marx resumiu o processo de produção da
superestrutura ideológica a partir das relações de produção:
O
modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social,
política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua
existência, mas sua existência social que determina a sua consciência.[2]
Ou seja: em suporte às
relações de produção, as bases econômicas determinam a superestrutura
ideológica e desse modo a forma da própria consciência humana.
A pergunta que geralmente aqui se faz é se o
contrário não é possível, ou seja, se a superestrutura ideológica não teria
também efeito sobre as bases econômicas. Afinal, a máquina a vapor, uma força
produtiva essencial à revolução industrial, foi inventada por alguém, e essa
invenção produziu alterações nas bases econômicas. De fato, como Engels não
deixou de enfatizar, existe uma inter-relação entre a superestrutura ideológica
e a base econômica.[3]
Ainda assim, Marx estava essencialmente
certo, posto que as bases econômicas é que constituem o determinante primário.
Afinal, se a base econômica permanecer imutável é muito difícil que a
superestrutura ideológica se altere (ex: a estagnação econômica na Europa
medieval); mas se a base econômica se altera (ex: a Europa nos tempos de Marx)
parece quase inevitável que a superestrutura ideológica venha a se alterar. Em
outras palavras: a relação entre as forças produtivas, relações de produção e
superestrutura ideológica é a de um todo orgânico no qual as bases econômicas
(constituídas pelas relações de produção apoiadas pelas forças produtivas) determinam
as superestruturas ideológicas (leis, organização política, religião, moral,
arte...), que por sua vez subdeterminam as bases econômicas.
2
Alienação Para
explicar o que acontecia com o trabalhador submetido às ingerências da
superestrutura ideológica, Marx tomou de empréstimo de Hegel o conceito de alienação,
aplicando-o principalmente à relação do ser humano com o trabalho. Para Marx a
alienação é o estranhamento do homem de sua própria essência pela ruptura de
sua relação natural com os seres humanos e as coisas. Esse estranhamento
faz com que ele perca sua humanidade essencial.
A revolução industrial é para Marx
alienadora tanto da classe burguesa quanto da classe proletária, pois cada qual
é desumanizada à sua maneira. A competição, a ganância, o fetichismo com
relação ao dinheiro, ao poder e à posse de coisas, não pelo que valem (pelo seu
valor de uso), mas pelo que custam (pelo seu valor de troca), são próprias da
alienação das classes dominantes. Para ilustrar o fetichismo da mercadoria vale
lembrar a estória de um pensador medieval chamado Mullah Nasreddin, que ninguém
sabe se era um sábio ou um tonto. Um dia Nasreddin entrou num mercado e saiu de
lá com um saco de pimenta malagueta. Ele se sentou em um banco e começou a
comer as pimentas. Ao fazer isso ele sofria muito, sua boca ardia, seu rosto
estava vermelho, ele suava frio. Alguém passou e lhe perguntou: “Por que fazes
isso Nasreddin, não vês que estás comendo pimenta?” Ao que Nasreddin respondeu:
“Mas não estou comendo pimenta. O que estou comendo é todo o dinheiro que
gastei para comprá-las”. Essa resposta exemplifica dramaticamente o fetichismo
da mercadoria: Nasreddin confundia o valor de troca da pimenta com o seu valor
de uso.
Passando agora a um caso real: as pessoas
não estão muito longe de Nasreddin quando vão ao Louvre para contemplar o
original da Mona Lisa. Muito poucos ficariam satisfeitos em ver apenas
uma cópia perfeita desse tedioso quadro. E mesmo que a cópia seja exatamente
igual ao original, o valor de troca do original é imensamente superior. O preço
imenso das obras de arte compradas em grandes galerias exemplifica a força do
fetichismo da mercadoria no mundo real. Em seu estudo sobre a alienação Marx
anteviu um fenômeno que se encontra tão presente em nossa sociedade de consumo
que passa praticamente desapercebido.
O que realmente interessava a Marx era a
alienação da classe proletária. A superestrutura ideológica é alienadora ao
infundir no trabalhador ideias que lhe façam aceitar sua condição. Dela resulta
a crença na boa justificação de leis impostas pela classe superior, a crença
nos valores morais vindos de cima, a crença em uma religião que defende a
legalidade do status quo e que prega uma recompensa pela miséria da vida
presente através de uma vida abençoada após a morte... Como ele famosamente
notou, “a religião é o ópio do povo”.[4]
Afora isso, a revolução industrial é para Marx alienadora do trabalhador também
de outras maneiras. Ela aliena o trabalhador do produto de seu trabalho, pois
ele não pode mais completá-lo como acontece com o artesão. O artesão produzia
um objeto do começo ao fim e se identificava com ele como sendo o inteiro
produto de seu trabalho; ele o vendia em um meio social conhecido no qual os
outros valorizavam o que ele fazia e onde se sentia em casa. Mas o trabalhador
que passa o dia atento a uma mesma e monótona tarefa repetitiva é apenas uma
peça em um sistema produtivo, não tendo mais nenhuma relação com aquilo que
ajuda a produzir, o que é intelectualmente debilitante. O trabalhador é por
esses meios alienado de sua própria natureza. Ele se torna alienado do que Marx
viu como a capacidade que o ser humano tem de tomar consciência de si mesmo
como integrante da espécie humana da qual ele é membro. Enquanto
Feuerbach via o homem como como espelho imperfeito de uma divindade
ideologicamente produzida, Marx ia além. Baseado na antropologia da época ele
via o homem não alienado um pouco à maneira do indígena antes da civilização.
Foi a civilização que, facilitando a vida humana cobrou como preço a alienação
dos seres humanos.
Entre os dois casos de alienação recém
descritos há uma diferença decisiva. Enquanto a classe burguesa se sente bem na
alienação, a classe trabalhadora se sente devastada.[5]
Por essa mesma razão, ela é para Marx a única que tem condições de se libertar
de sua alienação e alcançar a consciência plena de sua condição. Essa
consciência é a de que o capitalismo consiste em um sistema no qual uma classe
social, a dos proprietários dos meios de produção, oprime e explora a outra, a
classe dos proletários.
3
Teoria da história.
É nesse ponto que entra a ideia fundamental do materialismo dialético. Como
vimos, as bases econômicas são aquilo que essencialmente determina a
superestrutura ideológica. Ora, num determinado estágio do desenvolvimento de
uma sociedade as forças de produção material se alteram de tal maneira que
entram em conflito com a estrutura ideológica, o que acaba por conduzir a uma
transformação social, seja por uma revolução, seja pela ruina comum das velhas
oposições sociais. Mais além, segundo a dialética materialista, a própria
história é a história da exploração social de uma classe por outra. “A história
da humanidade’, escreveram Marx e Engels, “é a história da luta de classes”.[6] Eles viam isso como uma constatação factual.
Eis uma sequência de exemplos de lutas entre classes que, segundo eles, se
transformaram segundo a dialética materialista em formas mais elaboradas de
oposição:
(1) na sociedade escravista da antiguidade o
dono do escravo tinha a posse sobre ele como um instrumento de trabalho,
enquanto a classe dos escravos lutava contra a classe dos homens livres.
(2) Também os plebeus
romanos lutavam contra os patrícios que os dominavam. Essas oposições acabaram
por ser dissolvidas com a ascensão do cristianismo.
(3) Na Idade Média outra
oposição entre classes surgiu, que foi entre os servos da gleba e os senhores
feudais. Os servos oprimidos trabalhavam para sustentar os príncipes, os quais
possuíam a terra e indiretamente os possuíam.
(4) O aparecimento da
burguesia com a classe manufatureira na modernidade dissolveu a oposição que
existia no feudalismo, ao menos nos países mais desenvolvidos da Europa, embora
preservando profundas diferenças sociais.
(5) Finalmente, a
revolução industrial capitalista dos tempos de Marx também se baseou na
exploração. O trabalhador ganhava do capitalista apenas o suficiente para
sobreviver e para ser capaz de se reproduzir de modo a lhe prover de mais mão
de obra.
Ao longo do curso da história humana,
escreveram eles:
(...) opressores e
oprimidos, em constante oposição, tem vivido em uma luta ininterrupta, ora
dissimulada, ora declarada; uma luta que terminou sempre, ou por uma
transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das
classes em conflito.[7]
4
Escatologia. Foi
sob essa impressão deixada pelos conflitos sociais de sua época que Marx,
ajudado por Engels, produziu a sua própria escatologia. Para eles as relações
sociais vigentes no capitalismo não precisam durar para sempre, embora possa
parecer que sim. Afinal, as relações sociais vigentes no sistema feudal, assim
como as de outras épocas, não duraram para sempre, embora possa ter parecido
que sim aos espectadores de suas épocas. As pessoas que produziriam a revolução
seriam, para Marx, os trabalhadores. Uma vez que eram eles que sofriam a
opressão, eles tinham condições de ganhar o que Marx chamou de uma consciência
de classe, a percepção de seu papel no sistema produtivo e de como eram
explorados pelos seus senhores e manipulados pela superestrutura ideológica,
principalmente através da religião, na aceitação de uma moral de renúncia e
submissão.
Como notamos, na metade do século XIX, Marx
e outros intelectuais politicamente engajados acreditavam que uma nova
revolução estava se aproximando. Mas ele não via essa revolução com uma entre
outras mais. Ele a via como a última e a maior delas, após a qual a história,
como a conhecemos, encontrará seu fim. Após a grande revolução não haverá mais
luta de classes porque não existirão mais classes. Depois dela todos se
tornarão iguais, não havendo mais nem exploradores nem explorados. O estado
será abolido, a propriedade privada será abolida e os meios de produção
pertencerão a todos. A economia será racionalmente planejada, diversamente do
que pregam as teorias econômicas ideologicamente comprometidas com o
capitalismo. A grande revolução começará nos países mais desenvolvidos, como a
Inglaterra, estendendo-se então ao mundo inteiro. Após a grande revolução
socialista o ser humano não precisará mais buscar o paraíso fora da terra
porque ele será a própria terra. Como escreveu Marx em uma descrição cuja força
é essencialmente metafórica:
Ninguém
seria limitado a uma esfera de atividade. Todo indivíduo poderia se aperfeiçoar
no que quisesse. A própria sociedade poderia regular sua produção e seria
possível lidar com uma coisa hoje e com outra amanhã. Posso caçar de manhã,
pescar à tarde, criar gado ao anoitecer e apresentar minhas próprias opiniões
críticas após o jantar. Posso fazer tudo isso dependendo de como me sinta, sem
jamais ter de me tornar um caçador, um pescador, um criador de gado ou um
crítico.[8]
Nessa sociedade utópica,
aquilo que move o mundo capitalista, a ambição, o egoísmo e a inveja, serão
varridos da vida humana. A competição será substituída pela colaboração. As
pessoas trabalharão o mínimo necessário, passando o resto do tempo a se entreter
com atividades intelectuais ou estéticas, como a leitura de Homero. Não haverá
mais distinção entre os interesses do indivíduo e o interesse do estado. A
moralidade deixará de servir aos interesses dominantes para se tornar uma
moralidade realmente humana. E quanto à distribuição do dinheiro a regra será:
“De cada um segundo suas habilidades; a cada um segundo suas necessidades”.
(Marx não era um igualitarista: ele achava que um engenheiro merecia ganhar
mais, dado que teria sido investido mais trabalho em sua formação.)
Para que o paraíso na terra venha a existir
é necessária a satisfação de certos pressupostos. Um deles consistirá na
criação de uma consciência de classe por parte do proletariado. Por meio da
instrução recebida da parte de intelectuais como o próprio Marx os
trabalhadores se libertarão dos grilhões da alienação e se emanciparão, pois
terão tomado plena consciência de que estão sendo explorados e de que precisam
se revoltar.
Além disso, com base em seus estudos
econômicos Marx acreditava que a opressão vista na época da revolução
industrial iria aumentar sempre mais e que crises econômicas seriam cada vez
maiores, levando inevitavelmente à eclosão da revolução proletária. Essa
revolução teria para ele dois momentos. O primeiro será inevitavelmente
totalitário. Nele os proletários, libertos de suas amarras, tomarão o poder e
destituirão os opressores capitalistas. Esse será o momento do socialismo. Como
os proletários possuem a consciência do que é a exploração, só eles serão
capazes de produzir a sociedade ideal, sem classes. Por isso será possível
instaurar o segundo momento, o do comunismo, que será uma sociedade finalmente
justa, sem classes, sem opressão, inteiramente democrática, em que os seres
humanos emancipados de suas ilusões ideológicas se tornarão finalmente livres
para realizar o que possuem de melhor.
5
Problemas. A
implausibilidade das previsões feitas por Marx foi notada desde o começo. Como
Mikhail Bakunin escreveu em um texto profético acerca da assim chamada
consciência de classe dos líderes da revolução:
(...)
tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, eles cessarão de ser
operários e, pondo-se a observar o mundo proletário dos pináculos do Estado não
mais representarão o povo, mas a si mesmos e as suas próprias ambições de
governar. Quem duvida disso não entende nada da natureza humana.[9]
Muitos anos mais tarde
Sigmund Freud fez observação semelhante. Para o criador da psicanálise, Marx
tinha uma visão demasiado otimista da natureza humana. As revoluções que mais
tarde ocorreram em seu nome deram razão a Bakunin e a Freud.
Um outro crítico de Marx, Bertrand Russell,
sugeriu que a escatologia revolucionária de Marx foi plagiada da Bíblia. Basta
trocar os nomes: no lugar da Bíblia temos a obra O Capital; no lugar de
Jesus temos o próprio Marx; no lugar do Juízo Final temos a Revolução; no lugar
dos bons que serão salvos temos a classe trabalhadora, enquanto no lugar dos
maus, a serem condenados, temos os burgueses capitalistas. Finalmente, no lugar
do paraíso celeste temos o paraíso terrestre: o paraíso comunista.
Apesar disso ainda resta o que se dizer a
favor da escatologia marxista. Marx foi inspirado pela ideia de uma essência
humana tomada de Feuerbach, caracterizada por este último como uma
constituição inalienável de razão, vontade e coração que seria a mesma até
mesmo em seres pensantes porventura encontrados em outros corpos celestes.[10]
Sob a perspectiva antropológica assumida
pelo próprio Feuerbach, a essência humana poderia ser mais puramente
distinguida nas sociedades pré-históricas sobreviventes, nas quais não existem
classes sociais, mas apenas diversidades de funções. Essas sociedades seriam
capazes de espelhar mais aproximadamente a natureza humana. Não é difícil,
aliás, encontrarmos culturas primitivas anteriores à civilização que pareçam
realizar certos ideais marxistas. O exemplo que encontro é o da tribo Zoé. Ela
habita a floresta amazônica no norte do Brasil. Os Zoé são pacíficos e poderiam
se candidatar ao protótipo do bom selvagem. Eles formam hoje um grupo de cerca
de 250 pessoas. São doces e gentis, não batem nos filhos e não brigam entre si.
Não tem um Deus, mas consideram muitas coisas sagradas. Não possuem hierarquia
de poder, chefes guerreiros ou coisa semelhante. Tudo é dividido igualmente.
Gostam de nadar nos rios. Cuidam dos mais velhos aos quais dão animais de
estimação. Um homem pode ter quatro esposas, mas em compensação uma mulher pode
ter três esposos.[11] E essa
sabedoria comunitária pode bem ser devida à relação privilegiada que eles têm
com a essência não alienada da natureza humana. Os Zoé são felizes. São
marxistas pré-históricos que vivem em harmonia com a sabedoria da espécie. Nós
somos há tanto tempo e de tal modo alienados de nossa própria natureza que nada
temos a lhes ensinar.
Quando consideramos o modo de vida dos Zoé
sem preconceitos etnocêntricos somos tomados de uma certa nostalgia de algo que
nossa civilização parece ter perdido. Somos então levados a nos perguntar se em
uma sociedade livre, igual, sem escassez, na qual as pessoas teriam diferentes
funções, mas sem uma alienadora hierarquia de classes, não poderia existir em
nosso próprio mundo algo equivalente ao que pode ser exemplificado por povos
pré-históricos como os Zoé. Nesse caso, mesmo que Marx tenha colocado o seu
paraíso na terra de forma inadequada no final de uma revolução improvável,
podemos nos perguntar se não haveria uma verdade oculta refletida na
escatologia marxista. Afinal, parece bem plausível que o ser humano possa ter
perdido algo com a civilização (como as qualidades da tribo Zoé o sugerem),
algo capaz de ser recuperado ao final de um processo civilizatório, na visão
naturalista de Marx sobre como deveria ser um mundo e uma humanidade ideais.
6
Desastres. Na
última tese sobre Feuerbach Marx escreveu que tudo o que as filosofias fizeram
foi interpretar o mundo de diversas maneiras, quando aquilo que lhes cabe agora
fazer é transformá-lo.[12] Ao dizer
isso ele parece ter esquecido o quão especulativo o trabalho filosófico
inevitavelmente foi durante toda a sua história. Esse foi seu maior engano. E o
destino do marxismo nos mostra quão ilusória foi sua pretensão.
Após a morte de Marx países que se
industrializaram como a Inglaterra e a França, a revolta dos trabalhadores se
amainou devido a melhora das condições de trabalho e ao surgimento de
sindicatos e de leis que os protegiam. O resultado foi que as previsões de Marx
de uma revolução mundial foram completamente refutadas. Não obstante, no século
XX ocorreram no mundo um grande número de revoluções, muitas de esquerda, essas
últimas quase sempre sob uma divisa marxista. Mas elas não foram na Inglaterra,
nem mesmo nos países mais desenvolvidos, como ele pensava. Pior do que isso,
essas revoluções na prática não superaram o capitalismo, nem promoveram a
liberdade, nem trouxeram a esperada emancipação do ser humano. O que aconteceu
foi que os seus mentores se apropriaram das ideias de Marx de modo a oferecer
uma justificação teórica para aquilo que estavam fazendo. E o que fizeram não
foi bom. Vejamos alguns casos.
A primeira e maior revolução com ideias
marxistas foi a soviética de outubro de 1917. A teoria da revolução era a do
marxismo-leninismo, uma forma de marxismo adaptada por Lenin para um país
essencialmente agrário que mal havia saído do modelo medieval de servidão! Uma
vez no poder os bolcheviques trataram de eliminar a oposição menos radical (os
mencheviques[13]) e
estabeleceram um governo totalitário em substituição ao governo dos Czares. O
resultado foi algo que tinha mais a ver com a revolução francesa dos sans
culottes do que com os ideais marxistas. E como em um estado totalitário
aqueles que são mais violentos e destituídos de inibições morais tendem a
alcançar o poder, Stalin acabou por substituir Lenin, instaurando uma ditadura
totalmente centralizada em suas ambições pessoais e no culto a sua
personalidade.
O que Stalin instaurou na Rússia foi
criticamente identificado com um capitalismo de estado.[14] Através
dele o estado soviético tornou-se uma grande indústria autocrática e
coercitiva, na qual a classe opressora foi apenas substituída por outra, uma
classe burocrática dentro de um regime infinitamente mais brutal do que o dos
capitalistas ingleses, instaurando um inaudito domínio do terror. Longe de
desaparecer, o estado formou uma classe burocrática privilegiada por oposição à
classe trabalhadora, no intento de satisfazer a ambição pessoal de Stalin de
tornar a União Soviética um país industrializado através de planos quinquenais.
Como resultado da repressão stalinista mais de 20 milhões de pessoas perderam
suas vidas.
O resultado não foi nada prometedor. O
comunismo soviético acabou caindo de podre. Como o povo russo nunca teve a
experiência da democracia, o resultado acabou sendo o surgimento de uma forma
extemporânea de czarismo em pleno século XXI nas mãos de Putin. Ao invés de
emancipação, o comunismo soviético gerou retrocesso.
Para um crítico de Marx como Karl Popper o
debacle do comunismo soviético foi uma prova de que Marx estava errado.[15] Mas isso
não chega a ser correto. Na opinião de Allen Wood, um especialista em Marx, a
dissolução do nefasto comunismo soviético é uma prova de que Marx estava certo.[16] Se essa
forma de comunismo tivesse sido bem sucedida – a instauração do comunismo em um
país semifeudal – isso teria provado que Marx estava errado.
O segundo exemplo de revolução supostamente
marxista aconteceu na China, tendo como resultado também a implantação de um
capitalismo de estado. Mao Zedong, o líder totalitário que governou a China com
mãos de ferro, tentou forçar a industrialização do país e desenvolver a
agricultura através da força e por meios completamente inadequados. O resultado
foi uma epidemia de fome que matou cerca de 20 milhões de camponeses no início
da década de 60. Segundo consta, camponeses desesperados chegaram a trocar seus
filhos moribundos com os dos vizinhos para que eles pudessem ser comidos sem
tanta culpa.[17]
Após a morte de Mao, seu sucessor Deng
Xiaoping teve a brilhante ideia de reintroduzir a economia de mercado, mantendo
o partido comunista no poder. A introdução desse capitalismo menos
centralizado, permitindo a livre concorrência, ainda que sob supervisão
estatal, permitiu impulsionar imensamente o país, mas sob o custo de este ter
perdido quase qualquer semelhança com o modelo supostamente marxista. Como o
fascismo se define como um totalitarismo no qual o livre mercado é mantido,
mesmo que sob supervisão do estado, o atual estado chinês tem mais proximidade
com um estado fascista do que com o comunismo marxista-leninista e muito menos
com a escatologia marxista.
Há, por fim, exemplos de revoluções que
resultaram em estados fracassados como o criminoso sistema comunista implantado
na Coréia do Norte, a insanidade do Khmer Vermelho no Camboja e a ditadura
cubana. Fidel Castro chegou ao poder dando ao povo a expectativa de uma
democracia comunista. Ao invés disso ele implantou uma ditadura feroz, dentro
da qual mais de dez mil suspeitos (e mesmo insuspeitos) foram fuzilados. O
resultado é que Cuba é hoje um país pobre e doente, com uma economia planejada
que não funciona: uma espécie de fazenda de escravos dominada pela família
Castro, tendo como feitores os membros do partido. Considerando que Cuba antes
da revolução era um país quase rico, apesar de profundamente desigual, o
resultado do comunismo cubano pode ser considerado desastroso.
A questão a ser considerada é: o que tem
Marx a ver com essas revoluções? A resposta é que ele teve na verdade muito
pouco a ver com elas. Em alguns aspectos sim, como em sua insistência na
abolição da propriedade privada e na admissão de um momento totalitário
pós-revolucionário. Nisso elas se inspiraram em Marx. Mas em sua essência elas
não tiveram nada a ver com a grande revolução pós-capitalista por ele
imaginada. Elas foram, na verdade, revoluções pré-capitalistas. Elas ocorreram
em países pobres, geralmente na tentativa de alcançar pela força uma revolução
industrial que já havia acontecido há muito tempo nos países economicamente
mais desenvolvidos. No caso da União soviética essa revolução industrial em
alguma medida aconteceu, mas a um preço insano. Nas China ela só aconteceu
depois que o comunismo foi substituído por um sistema capitalista sob o
controle de um estado totalitário, o que o aproxima do fascismo. E em lugares
como a Coréia do Norte e Cuba tudo o que se conseguiu foi produzir um permanente
desastre socioeconômico.
Uma conclusão é que há uma boa dose de
engano em fazer como Karl Popper, que tentou responsabilizar Marx por terem
usado seu nome em vão nessas deturpações e desastres. Para os líderes dessas
revoluções, se Marx não tivesse existido teria sido preciso inventá-lo. Ou
seja: é possível que se ele não tivesse existido as revoluções pré-capitalistas
na Rússia, China, Coréia do Norte, Cuba e outros países teriam ocorrido de
qualquer maneira, inspiradas por outros teóricos que também defenderam ou que
acabariam por defender ideias que as justificassem.[18]
Teorizações pertencentes à superestrutura ideológica são capazes de nascer e
crescer tão facilmente quanto capim do mato.
O que Marx fez pode ser melhor visto como um
imenso esforço especulativo e visionário, forjado como uma reação humanista ao
contexto socioeconômico profundamente injusto do momento histórico no qual
viveu. Um trabalho que em suas previsões factuais se demonstrou falso, mas que
nem por isso deixa de denunciar uma variedade de problemas ainda hoje
presentes.
7
Crítica. Quero
agora expor algumas bem conhecidas críticas ao marxismo que merecem ser
lembradas.
Uma primeira vem de economistas,
especialmente os da Escola Austríaca.[19]
Eles notaram que Marx tinha uma ideia ricardiana do valor da mercadoria,
segundo a qual seu valor de troca deve ser medido pelo trabalho investido em
sua produção. Para ele, na economia capitalista o trabalhador equivale a uma
mercadoria que se paga a si mesma nas horas investidas em seu trabalho. Mas
como esse trabalho é potencializado com o auxílio de máquinas e da divisão de
trabalho, o valor do trabalhador como mercadoria é aumentado, sem que isso
retorne a ele como salário. O valor que fica nas mãos do capitalista e que está
além daquilo que ele deveria pagar para o trabalhador foi chamado por Marx de mais-valia.
O acúmulo da mais-valia, acreditava Marx, conduziria a um excesso de produção
seguido de crises econômicas e de uma extorsão cada vez maior dos
trabalhadores, que acabariam por se revoltar produzindo uma revolução que
levaria ao debacle final do capitalismo.
O que os economistas posteriores notaram é
que a teoria da mais-valia além de confusa, é mal fundamentada. O valor de uma
mercadoria não é estabelecido pelo trabalho nela investido, mas pelo que o
consumidor está disposto a pagar por ela. Assim, em um exemplo, uma pessoa pode
passar trinta anos trabalhando na invenção de uma máquina e no final não
encontrar ninguém que esteja disposto a pagar pela sua invenção.[20] Enquanto
isso não ocorrer ela não terá valor algum.
Além do mais, assumindo-se que o valor da
mercadoria depende do que as pessoas estão dispostas a pagar por ela, isso gera
um grande problema para qualquer economia centralmente planejada, uma vez que
um governo totalitário que tenha abolido o livre mercado não tem como prever
como milhões de agentes econômicos irão precificar as mercadorias produzidas.
Isso explica um problema encontrado com a economia planejada na União
Soviética: a produção de mercadorias nunca correspondia às necessidades das
pessoas, havendo sempre excesso ou falta de produtos. Só uma economia
suficientemente baseada no mercado é capaz de dar conta disso. O resultado é o
que no final das contas a economia soviética acabou sobrevivendo com o auxílio
de um imenso mercado negro que o governo fazia de conta não existir.
Desde Adam Smith (pace Marx) é um
lugar comum o fato de que a economia constitui um sistema orgânico
autorregulador que precisa ser deixado ao menos suficientemente livre para
poder se desenvolver. Mesmo em economias modernas exemplares, como a que vige
nas assim chamadas social-democracias nórdicas, a livre competição própria de
uma economia de mercado é conservada, fundada no estado democrático de direito
e na propriedade privada, mas sustentando o estado do bem estar social pela
intermediação do governo. Embora nesses casos o estado tenha uma imprescindível
função redistributiva visando promover uma suficiente “desconcentração”
do capital, isso só tem sido possível na medida em que ele é sustentado por uma
sólida economia de mercado onde vige a liberdade econômica e a espécie de
competição preconizada por Adam Smith.[21]
A ideia-chave de Smith, não custa lembrar, é que a base do enriquecimento das
nações é uma competição
imparcial (sem monopólios) entre agentes econômicos que buscam cada qual
satisfazer seu próprio interesse. Isso faz com que aqueles que forem mais
inventivos em produzir o melhor pelo menor preço se fortaleçam tomando o lugar
de outros e gerando um enriquecimento comum, geralmente maior do que seria se
fossem movidos apenas por interesses puramente altruístas.[22]
8
Acordos. Quero
aqui fazer uma correção à interpretação que me parece indispensável à
interpretação que Marx e Engels fizeram da história. Para eles os diferentes
períodos da história foram resultados dialéticos da luta de classes: “a
história da humanidade é a história da luta de classes”.[23]
Só que não foi bem assim. Muito mais do que isso, na maior parte do tempo a
história tem sido a história dos acordos implícitos ou explícitos entre as
classes. Esses acordos, que podem durar muitos séculos, são capazes de, por
obra do progresso material, ou seja, de mudanças na estrutura econômica,
produzir tensões insustentáveis, levando a dissoluções superadoras que podem
tomar a forma de revoluções. Apesar desses acordos e conflitos os resultados
ainda assim preservam algo da dialética marxista: com o desenvolvimento e
alteração das forças produtivas os acordos podem se demonstrar demasiado
onerosos, o que conduz a conflitos dos quais resulta a superação de acordos já
existentes e sua substituição por novos acordos, mais satisfatórios e justos.
Nem sempre essa superação dos acordos
anteriores aconteceu através de revoluções sangrentas como a francesa.
Considere, por exemplo, o caso da revolução gloriosa na Inglaterra, que foi uma
espécie de golpe de estado ocorrido 100 anos antes da revolução francesa e que
resultou em uma vitória do parlamentarismo sobre o poder absoluto do rei. Antes
disso, nos tempos elisabetanos, o poder absoluto do rei era considerado, tanto
pela nobreza quanto pelo povo, como bem justificado e não como um
sistema baseado na injustiça social, como deveria ser se a história fosse
realmente uma história da luta de classes.
Devemos aqui distinguir entre nossos
conceitos ideais e circunstanciais ou factuais ou concretos
e justiça social. Os primeiros são aqueles que só podem ser satisfeitos sob
condições ideias, como no suposto paraíso comunista de Marx. Mas nossos
conceitos factuais de justiça e injustiça social variam de acordo com a
sociedade, um ponto no qual Hegel estava certo, uma vez que para ele quem deve
estabelecer o que é socialmente justo e injusto é a própria sociedade em seu
todo, no tempo de sua existência. O marxismo só é capaz de sustentar seu
conceito de história como história da luta de classes por meio de uma projeção
maniqueísta através da qual ele colapsa o conceito de justiça social
relativizado pelas condições históricas concretas em um conceito idealizado de
justiça social perfeita, válido em princípio, que deve ser sempre buscado, mas
que historicamente nunca pôde ser concretizado. Ignorar esse ponto nos faz
imaginar que as classes inferiores sempre se encontraram em uma surda e
continuada luta por sua emancipação, por oposição à classe dominante. Com isso
se desconsidera a relatividade histórica da justiça social concreta, que se
encontra na diferença entre uma injustiça que é sanável (e que vale a pena
discutir) e outra que é irremissível, a justiça ideal (que por isso se encontra
aceita pelas partes como impossível de ser realizada em seu momento histórico e
geralmente além de seu horizonte de discussão).
O que acabei de dizer pode ser melhor
esclarecido se considerarmos o caso da escravidão. Em termos ideais, sob um
standard suficientemente alto de justiça, qualquer forma de escravidão é
obviamente injusta, pois ela resulta de fatores inexpressivos ou arbitrários
como melhor preparo, força, violência e sorte. Mas se considerada sob a
perspectiva de uma certa época e região, a escravidão é considerada como
justificada na medida em que não houver outra maneira factível de fazer
sobreviver uma sociedade. Esse foi em geral o caso das civilizações
pré-cristãs. Um estado sem escravos era na antiguidade algo impensável, pois
não sobreviveria muito tempo sem que outros o escravizassem.
Considere, para exemplificar, uma revolta
de escravos como a liderada por Spartacus contra o governo romano. Eles se
revoltaram contra o mau tratamento. O ponto curioso é que nunca lhes passou
pela cabeça a ideia de abolir a escravidão. O que eles queriam era alcançar a
liberdade fugindo das garras do império para a Gália e, como tentaram fazer no
final, para a Sicília. Acabaram encurralados, sem poder cruzar o estreito.
Depois de os vencerem, os romanos crucificaram 6.000 revoltosos na Via Ápia de
modo a aterrorizar qualquer um que pensasse em fazer o mesmo. Os escravos
liderados por Spartacus agiram por puro desespero. Se pudessem teriam
escravizado os romanos. Isso significa que existia na época um acordo implícito
entre as classes, um acordo que admitia a escravidão como um justo entrevero no
qual alguns ganham e outros perdem, sendo uma questão de destino a quem iria
competir o papel de senhor ou de escravo. Não há aqui qualquer sentido em se
falar de luta de classes, a menos que por uma falsa projeção de standards
morais ideais incompatíveis com as vicissitudes históricas.
Contra isso um defensor do marxismo poderia
objetar que os escravos não percebiam os seus direitos devido à alienação. Mas
essa não seria uma boa réplica. Considerando as estruturas socioeconômicas e
culturais dos povos europeus da época e as relações que vigoravam entre eles,
não havia outra opção fora de um natural aceite da escravidão. E a dura
consciência dessa falta de opção nada tinha a ver com alienação.
A constatação acima invalida ilusões como a
de uma “injustiça milenar”, mas não invalida o essencial da dialética
materialista. Afinal, se as novas bases econômicas tornam possível acordos mais
civilizados, menos determinados por fatores inexpressivos, então a
transformação das relações de produção e da superestrutura ideológica se torna
um imperativo moral: a luta de classes pode tornar-se justificada e até mesmo
capaz de demandar ações violentas.
Um segundo exemplo comprovando minha tese
diz respeito à situação dos camponeses pouco antes da revolução industrial. Com
o objetivo de refutar Marx, Ludwig von Mises notou que essa situação não era
melhor do que a situação posterior como operários nas fábricas. Mises descreveu
a situação de forma impressiva:
A
verdade é que as condições no período que antecedeu à Revolução Industrial eram
bastante insatisfatórias. O sistema social tradicional não era
suficientemente elástico para atender às necessidades de uma população em
contínuo crescimento. (...) O número de pessoas à margem do rígido sistema
paternalista de tutela governamental cresceu rapidamente; eram virtualmente
párias. A maior parte delas vivia, apática e miseravelmente, das migalhas
que caíam das mesas das castas privilegiadas. (...) Milhares dos mais vigorosos
jovens desse estrato social alistavam-se no exército ou na marinha de Sua
Majestade; muitos deles morriam ou voltavam mutilados dos combates; muitos mais
morriam, sem glória, em virtude da dureza de uma disciplina bárbara, de doenças
tropicais e de sífilis.[24]
Mesmo sendo verdadeiro o
que Mises descreveu, ele não alcançou seu objetivo. Afinal, se considerarmos o
que foi dito sobre acordos e crises, o que ele diz de pouco serve como crítica
à afirmação de Marx de que os trabalhadores das fábricas estavam sendo duramente
explorados. É que antes da revolução industrial a situação de carência não
permitia uma mudança e os camponeses eram idealmente, mas não factualmente
explorados. Mas com a mudança da estrutura econômica essas pessoas, na condição
de trabalhadores, passaram a ser também factualmente explorados, dado que as
condições concretas para a emancipação de sua classe passaram a ser dadas.[25]
As considerações acima acerca de uma
variação entre tempos de acordo e tempos de conflito entre as classes sociais
nos força a considerar um sério erro de Marx e Engels tenham dado a entender
que a história tenha sido uma contínua luta de classes, deixando de distinguir
entre um conceito ideal e o conceito circunstancial e concreto de justiça
social. Afinal, foi a aplicação irrefletida dessa ideia por parte de ideólogos
marxistas está na origem dos erros que envolveram esses pensadores nos maiores
desastres sociais do século XX.
9
Teoria da ferradura. Hoje
em dia a mais próspera explicação do espectro político é a que vem da teoria
da ferradura, uma teoria óbvia demais para os que desejam buscar pelos em
casca de ovo. Os extremos da ferradura, embora separados, estão bem próximos um
do outro. Esse é o caso da esquerda radical (ex.: o socialismo
marxista-leninista) e da direita radical (ex.: o nazifascismo), também chamadas
de direita e esquerda carnívoras. Eles são dois extremos que se excluem, mas
que se encontram bastante próximos por suas posições totalitárias e
intolerantes. A principal diferença é que no marxismo-leninismo não existe
propriedade privada, tudo sendo (em teoria) controlado pelo estado, enquanto no
nazifascismo o estado permite a existência da propriedade privada e do livre
comércio, mesmo que de forma controlada. O meio da ferradura é o centro
elitista que só tem lugar nas democracias. O mais importante são as partes da
ferradura que se encontram próximas ao seu meio. Elas representam o progresso
civilizatório: a esquerda e a direita tolerantes, também chamadas de
vegetarianas. Elas se tornaram possíveis como resultado do desenvolvimento
humano e econômico. Elas rejeitam o totalitarismo e se dispõem a dialogar entre
si. Semelhante esquerda democrática pode ser melhor chamada de progressivista,
pois busca desenvolver meios de equalizar as diferenças sem diminuir as
liberdades, coisas que tem a ver com o progresso da civilização e que dependem
da melhoria das bases econômicas para se instituírem. Afinal, sem
desenvolvimento econômico o progresso, que envolve essencialmente a
superestrutura ideológica, dificilmente irá se instaurar. Já a direita
democrática é melhor chamada de conservadorista, buscando assegurar
valores e instituições que o tempo demonstrou serem úteis e que podem merecer
resistir à transformação das bases econômicas. Por exemplo, os valores
familiares, tradições, instituições, a herança cultural e até mesmo um elemento
religioso podem encontrar aqui em nossas sociedades seu lugar.
Se admitirmos que o desenvolvimento das
bases econômicas é aquilo que torna possível a evolução da superestrutura
ideológica, então podemos esperar, sob o pressuposto de uma economia em
desenvolvimento em um estado suficientemente democrático, uma oscilação
dialética entre a esquerda e a direita, uma espécie de diálogo frutífero entre
o progressivismo o conservadorismo. Ou seja: sempre que o desenvolvimento
econômico permite alterações ideológicas, podemos esperar acomodações na
superestrutura ideológica que foi útil durante certo tempo em direção a um
aperfeiçoamento emancipador. Mas as ideias emancipatórias podem ser
excessivamente idealizadas revelando-se contraproducentes, o que pode implicar
em uma correção conservadora.
Essa ideia pode ser exemplificada naquilo
que John Searle uma vez chamou de a sabedoria do bipartidarismo
norte-americano. Considere as oscilações entre o partido republicano
(conservador) e o partido democrata (progressista), cujos papéis ideológicos
também podem se intercambiar. Em 1993 o partido democrata elegeu como
presidente Bill Clinton. Ele assinou vários acordos de livre comércio, entre
eles o NAFTA, tendo contribuído para a melhoria do welfare, embora a
desregulamentação econômica por ele introduzida tenha contribuído para a crise
econômica futura. Por oposição ao liberalismo de Clinton, George W. Bush ganhou
as eleições em 2001 como o candidato republicano defensor do capitalismo do
livre mercado. Como reação ao ataque terrorista às Torres Gêmeas Bush cometeu o
erro de invadir o Iraque sob a falsa justificativa de que o país estaria
desenvolvendo armas de destruição em massa. O resultado, como especialistas já
previam, foi desastroso: uma longa ocupação de um país altamente instável, que
provocou a morte de mais de 100 mil civis e de cerca de dez mil soldados
norte-americanos.[26] Bush foi
sucedido em 2009 por um liberal, Barack Obama, do partido democrata. Ele buscou
diminuir os custos dos planos de saúde para a população mais carente através da
Obamacare, evitando conflitos externos maiores. Mas o Obamacare parece ter sido
demasiado caro. Depois dele veio Donald Trump, outra vez do partido
republicano, eleito em 2017. Trump diminuiu impostos e defendeu políticas
conservadoras nacionalistas, como a da diminuição do auxílio americano à NATO e
o aumento da exportação de petróleo. Joe Biden, seu sucessor do partido
democrata a partir de 2021, defendeu a introdução de energias limpas, além de
apoiar a Ucrânia contra Putin...
O que se nota é que no caso em questão cada
partido que se alça ao poder, além de implementar novas ideias, tenta corrigir
os erros do outro, geralmente (mas nem sempre) o partido democrata defendendo
mudanças progressistas, enquanto o partido republicano corrige exageros na
economia e na política. Ora, esse saudável zig-zag da política não deixa de ter
a natureza de uma progressão dialética, o contribui para corroborar a tese de
que a intencionalidade coletiva, assim como seus produtos, reflete uma dialética
cuja raiz originadora é uma intencionalidade individual e dialógica.
[1] Karl Marx: Uma contribuição à crítica da economia
política, prefácio (1859).
[2] Karl Marx: Uma contribuição para a crítica da
economia política, prefácio (1859).
[3] Friedrich Engels: “Carta a Joseph Bloch” (21-22
setembro 1890).
[4] Contribuição para a crítica da filosofia do
direito de Hegel; introdução (1843).
[5]
Peter Singer,
[6] Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto do partido
comunista, p. 1
[7] Karl Marx e Friedrich
Engels Ibid., sec. 1.
[8] Karl Marx: A ideologia alemã (ed. Grijalbo
1977) p. 46.
[9] Mikhail Bakunin: Estatismo e anarquia (Ícone
2003), estatismo e dominação.
[10] Ludwig Feuerbach: A essência do cristianismo (Petrópolis:
Ed. Vozes 2007), Introdução, Capítulo I, pp. 43, 52.
[11] Seria preconceituoso pensar aqui em promiscuidade. O
ser humano é naturalmente polígamo (Quinsey). A moralidade da civilização,
especialmente a judaico-cristã, mudou essa condição, mas parece que a custo de
distorções como a infidelidade, a pornografia, etc.
[12] Tese número 11: “Die Philosophen haben die Welt nur
verschieden interpretiert, es kömmt drauf an sie zu verändern“.
[13] Os mencheviques estavam mais próximos de Marx, uma
vez que acreditavam que sendo a Rússia um país ainda semifeudal, ela deveria
passar primeiro por um longo período de desenvolvimento capitalista liberal,
para só então partir para um modelo de socialismo marxista.
[14] No capitalismo de estado o governo passa a possuir o
monopólio dos meios de produção, extraindo a mais-valia do trabalhador de modo
a reinvesti-la no próprio desenvolvimento e a redistribui-la entre burocratas
privilegiados que formam a nova burguesia.
[15] Karl Popper: The
Open Society and its Enemies (Princeton: Princeton University Press 2013),
vol. II, 343-402 (Marx’s Prophecy).
[16] Allen Wood: Karl
Marx (London: Routledge 2004)
[17] Stéphane Courtois et all: O livro negro do
comunismo: crimes, terror e repressão. (Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil 2019), p. 58.
[18] Ver The Open
Society and its Enemies, a.a.O., parte II
[19] Ver Ludwig Von
Mises: “Economic Calculation in a Socialist Commonwealth”. (Auburn: Mises
Institute 1990 (1921))
[20] Murray N.
Rotbarth: The Essential von Mises (Auburn: Mises Institute 2009), p, 7.
[21] Países nórdicos estão entre os de maior liberdade
econômica no mundo, diversamente de um país como o Brasil ocupa o 124 lugar,
junto à Guiné Bissau e à Nigéria (The Heritage Foundation 2024)
[22] Adam Smith The Wealth of Nations (New York:
Ixia Press 2019), p. 508.
[23] Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto comunista (São
Paulo: Boitempo 2010), p. 40.
[24] Ludwig Von Mises: “Fatos e mitos sobre a revolução
industrial”. Mises Brasil 2013
(https://mises.org.br//article/1056/fatos-e-mitos-sobre-a-revolucao-industrial).
[25] Essa constatação nos faz perguntar se não
devemos repensar o conceito de alienação como sendo muitas vezes também positivo.
Quando o acordo entre as classes era ainda a melhor solução, por exemplo, logo
antes da revolução industrial, ou entre os servos e nobres na Idade Média, a
alienação religiosa deve ter tido uma função positiva organizando e facilitando
a vida social das pessoas. Em nossa presente sociedade, fragmentada por
arregimentações e compartimentalizações as mais diversas, é quase impossível ao
ser humano viver socialmente sem assumir algum conjunto de crenças alienador de
pelo menos alguns aspectos da realidade.
[26] O número estimado de fatalidades civis varia de 100 a
600 mil (fonte: BBC-News).