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CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES
Quero começar mapeando brevemente o território a ser explorado ao expor
a classificação tradicional dos termos singulares.
Tipos de termos singulares
Um termo singular é aquele que é usado para identificar um único
objeto (um particular, um indivíduo), ao distingui-lo de uma
multiplicidade de outros objetos.[1] Nas
línguas europeias, o termo singular costuma ser claramente divisível em indexical, descrição definida e
nome próprio.
Comecemos com os assim chamados termos indexicais.[2] Eles são
termos singulares cuja referência costuma variar a cada diferente contexto de
proferimento. Indexicais costumam ser introduzidos através de exemplos. Eles são
pronomes demonstrativos, como ‘este’, ‘isso’, ‘aquele’, ‘aquilo’, pronomes pessoais,
como ‘eu’, ‘tu’, ‘ele’, ‘ela’, pronomes possessivos como ‘meu’, ‘teu’, ‘dela’, advérbios
como ‘aqui’, ‘agora’, ‘hoje’, ‘ontem’, ‘amanhã’, e ainda adjetivos como ‘atual’
e ‘presente’.
Podemos distinguir, como David
Kaplan o fez, entre indexicais demonstrativos e puros.[3] Os primeiros
são basicamente pronomes demonstrativos e possessivos como ‘este’, ‘esta’, ‘isto’,
‘aquilo’, ‘ele’, ‘ela’, ‘meu’ ‘seu’, ‘sua’.[4] Eles precisam
vir acompanhados de algo mais para poderem selecionar seus objetos de referência.
Esse algo mais, além de ser interiormente uma intenção referencial, deve ser
exteriormente algo que a demonstra, que pode ser um gesto de ostensão (ex: aponta-se
para um objeto), quando não algum pressuposto contextual (ex: um raio visível da
janela cai em uma região próxima) ou algum elemento descritivo complementar desambiguador,
geralmente um sortal, capaz de esclarecer o que o falante intenciona referir,
produzindo o que é chamado de um indexical complexo, (ex.: expressões como ‘essa bola’ ou ‘aquele
livro de capa azul na estante’). Já os indexicais puros são aqueles cuja
referência é automática, não dependendo nem de ações, nem de intenções. Eles se
exemplificam basicamente pelo pronome pessoal ‘eu’ e por advérbios como ‘aqui’,
‘agora’, ‘hoje’, ‘amanhã’...
Há muitas outras expressões cujo conteúdo, em maior ou menor medida, depende
do contexto. Como John Searle observou, é até mesmo razoável pensar que todos
os nossos enunciados empíricos possuem algum grau de indexicalidade.[5] Considere,
por exemplo, o enunciado singular “Galileu foi o primeiro a expor claramente a
lei da inércia” e o enunciado universal “Todos os corpos materiais possuem força
gravitacional”. Parece claro que com o enunciado sobre a descoberta da lei da inércia
estamos nos referindo indexicalmente a um acontecimento no planeta Terra no
século XVII. Se em algum outro planeta habitado de outra galáxia alguém descobriu
a lei da inércia há milhões de anos, isso não afetará a verdade desse enunciado,
uma vez que ele foi indexado à história do desenvolvimento científico em nosso
planeta. Quanto ao enunciado sobre a universalidade da “força” gravitacional, ele
é considerado verdadeiro em relação ao nosso universo. Se existir um universo
paralelo cujos corpos massivos não curvam o espaço-tempo ao seu redor de modo a
produzir o que chamamos de gravidade, o enunciado não deixará por isso de ser
verdadeiro, posto que a universalidade em questão é indexada ao nosso universo.
Não obstante, mesmo que a
maioria de nossos enunciados considerados não-indexicais contenha um elemento indexical
oculto em seu pano de fundo contextual, isso não destrói nosso entendimento dos
indexicais, pois ao falarmos de termos indexicais no sentido próprio estamos
fazendo um uso muito mais restritivo da ideia em questão. Nós queremos nos limitar
às expressões que, embora variem suas referências com a variação do contexto de
proferimento, fazem isso com a função prescípua
de designar referentes em sua relação espaciotemporal interna ao contexto do
proferimento (exs.: ‘isso’, ‘aquilo’, ‘eu’, ‘tu’, ‘agora’) ou ao menos proximamente associada a ele
(exs: ‘acolá’, ‘amanhã’, ‘depois-de-amanhã’, ‘ontem’, ‘antes-de-ontem’, ‘na semana
passada’...). Quando a relação espaciotemporal se encontra muito distante desse
“aqui e agora” do proferimento do falante, o esperado é que deixe de ser
intuitiva a consideração do proferimento como propriamente indexical. Considere
os proferimentos: “A Próxima do Centauro está a 4243 anos-luz de distância de
nós” e “Os estromatólitos viveram há 3,45 bilhões de anos”. Expressões como ‘a
4243 anos-luz de distância de nós’ e ‘há 3,45 bilhões de anos” não são, pela caracterização
acima, indexicais como ‘lá’ e ‘ontem’, posto que seus referentes se encontram respectivamente,
no espaço e no tempo, demasiado distantes do contexto do proferimento (limites
são aqui inevitavelmente indeterminados).
Passemos agora às descrições definidas. Elas são complexos nominais geralmente
iniciados com um artigo definido no singular. Exemplos são ‘a dama das camélias’,
‘a cidade luz’, ‘a Estrela D’alva’. Embora estandartizáveis sob essa forma, as
descrições definidas nem sempre se apresentam assim: ao invés de ‘a avó que eu
tenho’ costumo dizer ‘minha avó’. O que caracteriza as descrições definidas mais
propriamente é que elas sejam capazes de representar ou conotar, através de seu
sentido, propriedades distintivas do objeto ao qual se referem. Assim, a descrição
‘o pai do filósofo Aristóteles’ é referencial por representar uma propriedade distintiva
de uma pessoa de ser o pai de Aristóteles. Algo assim se aplica a outras
descrições definidas listadas acima, capazes de conotar respectivamente as propriedades
distintivas de gostar de camélias, de ser uma cidade extraordinariamente bela,
de ser um planeta (Vênus) que brilha na alvorada. Por outro lado, uma expressão
como ‘O Sacro Império Romano’ (o qual, como notou Voltaire, não era nem sacro, nem
império nem romano) não é uma descrição definida, mas um nome próprio (recebendo
por isso iniciais maiúsculas), posto que não conota propriedades do objeto referido.
As
descrições definidas fazem contraste com as descrições
indefinidas, que costumam começar com
artigo indefinido como, por exemplo, ‘uma mulher’, ‘um terno azul’. Essas
últimas nos permitem apenas falar de algum objeto qualquer pertencente a uma
classe de objetos, mas sem demandar sua identificação. Por serem incapazes de identificar
um único objeto específico distinto de uma multiplicidade de outros, elas não são
termos singulares.
Os nomes próprios, por fim, são expressões geralmente
destituídas de complexidade sintática, ainda assim mantendo a função de
designar um certo objeto singular na independência do contexto do proferimento.[6] Diversamente
das descrições definidas, nomes próprios não exprimem sentidos claramente distinguiveis, que os relacionam à
identificação da referência. Por isso o filósofo J. S. Mill sugeriu que eles não
conotam propriedades específicas do objeto referido; eles simplesmente o denotam.
Mesmo quando eles possuem alguma complexidade sintática, como é o caso do nome ‘Touro
Sentado’, ela geralmente de nada serve à referência.
Nomes próprios são classificados nos livros escolares
como nomes de pessoas, objetos ou lugares. Mas essa é uma classificação simplificadora
se considerarmos a grande variedade de objetos particulares que podem ser
referidos por eles. Além de nomes de pessoas e animais, há nomes de construções
humanas como cidades, de objetos geológicos como montanhas e rios, de objetos
astronômicos como planetas e nebulosas, de fenômenos naturais como furacões e
vulcões, de regiões geográficas e de instituições financeiras, além de nomes de
objetos abstratos, como é o caso dos números em matemática.
Relações entre os tipos de termos singulares
Faz parte da concepção essencialmente cognitivista-descritivista a ser defendida
nesse livro a sugestão de que não deve haver uma fronteira nítida a separar os indexicais
de descrições definidas e essas últimas dos nomes próprios. Uma descrição
definida como ‘o homem que está discursando naquele palanque’, por exemplo, é
conotativa, mas contém o demonstrativo ‘naquele’ com função indexical. Nesse sentido
ela não é uma descrição definida tão exclusiva quanto, digamos, ‘o sapo barbudo’.
Considere agora um termo singular como ‘o Cristo Redentor’. Vindo antecedido de
artigo definido, ele conota descritivamente a propriedade identificadora da
estátua, que é a de ser uma homenagem ao Deus cristão. Ele contém, pois, elementos
de descrição definida. Contudo, ele também possui alguns traços de nome próprio,
na medida em que ao usá-lo não costumamos ter em mente apenas a homenagem ao filho
do Deus cristão, mas a própria estátua do Cristo situada no alto do Corcovado. Assim,
a expressão ‘o Cristo Redentor’ parece estar a meio caminho entre uma descrição
definida e um nome próprio. Muito diferente é o caso de um nome próprio típico como
‘Machado de Assis’, referente ao grande escritor carioca. Mesmo que ‘machado’
conote uma ferramenta e ‘Assis’ uma cidade, esses elementos descritivos não tem
nenhuma função identificadora, pois o escritor nem era um machado, nem nasceu
na cidade de Assis.
Há uma hipótese vislumbrada
por filósofos como P. F. Strawson[7], que ajuda
a explicar a ausência de fronteiras nítidas entre indexicais, descrições definidas
e nomes próprios. Queria expô-la como contendo a sugestão de que deve haver uma
progressão genético-estrutural, que vai dos indexicais para as descrições definidas
e delas para os nomes próprios.[8] Os indexicais
parecem ter de algum modo prioridade como fontes originadoras da referência.
Afinal, a maneira pela qual crianças aprendem a identificar objetos nos
estágios iniciais do aprendizado da linguagem é por intermédio de atos de chamar
a atenção e apontar da parte dos adultos que se encontram à volta. Como veremos,
é bem razoável pensar que com base nesse uso indexical da linguagem por outros nós
assimilamos regras de identificação, as quais podem mais tarde ser expressas por
meio de descrições definidas que, diversamente dos indexicais, podem ser usadas
para a comunicação mesmo na ausência dos objetos por elas referidos. Essa é a
vantagem da constância presente nas
descrições definidas e ausente nos indexicais. Finalmente, como as maneiras de
se identificar um mesmo objeto, assim como as descrições correspondentes, podem
se diversificar cada vez mais, nós aprendemos a colocar uma palavra no lugar de
toda a variedade de descrições definidas que podem ser usadas para designar um
mesmo objeto, sendo essa palavra aquilo que chamamos de nome próprio. O nome
próprio seria, sob essa concepção, uma palavra usada indistintamente para
significar essa ou aquela descrição, ou conjunção de descrições identificadoras,
sem que seja necessário explicitá-las.[9] Com isso
podemos nos comunicar sobre objetos sem precisarmos nos preocupar com o compartilhamento
dos conteúdos de todas as múltiplas descrições específicas que podem ser a eles
associadas. Ganham assim os nomes próprios, além da vantagem da constância, típica
das descrições definidas, também a vantagem da flexibilidade. Essa progressão é sugestiva de nossa hipótese de trabalho
e indicadora de um itinerário a ser seguido.
[1] Tugendhat 1976, p. 425 ss.
[2] A palavra ‘indexical’ vem da noção de índice
de C. S. Peirce. Outros termos usados no mesmo sentido são particulares egocêntricos
(Russell), termos token-reflexivos (Hans Reichenbach), indicadores (Nelson Goodman, W. V. Quine),
demonstrativos (John Perry) e dêiticos (Ernst Tugendhat, John Lyons,
S. C. Levinson).
[3] 1989, pp. 490-491.
[4] Note-se que nem sempre esses termos funcionam como indexicais.
Considere: (i) “Todo adolescente pensa que ele é um adulto” (ocorrência como
variável ligada), (ii) “Maria teve um filho; ela está muito feliz”
(ocorrência anafórica). Contudo, esses pronomes podem ser excluídos sem prejuízo
do significado como em: (i’) “Todo adolescente pensa que é adulto” e (ii’) “Maria
está muito feliz por ter tido um filho”. Isso indica que eles têm aqui uma função
derivada, diversamente de suas funções indexicais primárias.
[5] Searle 1983, p. 221.
[6] Nomes próprios de pessoas costumam ser, em sua
expressão fonética e ortográfica, multiplamente ambíguos, de modo que a unicidade
de sua designação acaba por depender do contexto em que são usados. Contudo,
esse fato não nos leva à confusão, pois geralmente há um contexto claramente desambiguador
do nome próprio. Esse contexto não é só o do proferimento, mas o de uma pluralidade
de crenças interligadas conectadas às circunstâncias do proferimento, as quais,
como veremos, fazem, em geral, valer um domínio restrito de objetos que contém
aquele a ser selecionado por uma específica regra de identificação para o nome.
(Cf. Capítulo 6.)
[7] 1959, parte I.
[8] Mesmo admitindo que o indexical dependa do uso
de conceitos para ser capaz de identificar algo, parece claro que o indexical
deve ter um papel fundamental no aprendizado inicial de novos conceitos.
[9] Estou considerando esse processo
em termos tendenciais. Naturalmente, um nome próprio também pode gerar uma
descrição definida, como no caso da descrição laudatória ‘o mestre dos que sabem’
usada por Dante para se referir a Aristóteles.
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