SELEÇÃO DO LIVRO A SER PUBLICADO COM O NOME DE COGNITIVISMO SEMÂNTICO PELA EDITORA APPRIS EM 2022
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INTRODUÇÃO:
DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
Quero nesse capítulo introduzir a problemática da referência dos termos
gerais, entendendo-os de modo estendido como predicados que não suportam
análise subsequente, mesmo que em exemplos aqui reduzidos a palavras-conceitos
ou nomes gerais. Limitando-nos a essas palavras-conceitos, os termos gerais incluem
os assim chamados nomes contáveis como ‘tigre’ e ‘cadeira’, nomes de massa, como ‘água’ e ‘ouro’,
nomes de espécies naturais como ‘átomo’, ‘tigre’, ‘água’ e
‘ouro’, nomes de espécies sociais
como ‘ditador’, ‘professor’ e ‘filósofo’, nomes de artefatos, como ‘cadeira’ e ‘computador’, e ainda outros. Também
aqui há uma disputa entre concepções descritivista e referencialista ou causal-histórica.
Do mesmo modo que fiz no caso dos termos singulares, quero aqui argumentar a
favor de uma concepção dos termos gerais que, apesar de admitir um inevitável elemento
causal, deve ser mais propriamente entendida como neodescritivista.
Descritivismo
Teorias descritivistas dos termos gerais são em alguma medida análogas às
teorias descritivistas dos nomes próprios. Por ser assim elas estão em consonância
com a semântica fregeana, tendo sido tradicionalmente defendidas por filósofos
como John Locke, J. S. Mill, C. I. Lewis, Rudolph Carnap e Carl Hempel, sendo essa
concepção ainda hoje por vezes revisitada sob novas versões[1].
Podemos
sem grande esforço sugerir uma versão da teoria descritivista dos termos gerais
em alguma medida análoga à teoria do feixe sugerida por John Searle para os
nomes próprios, embora não tratemos aqui com descrições definidas. Segundo ela,
em ao menos muitos casos o termo geral se encontra no lugar de uma descrição ou
de um feixe de descrições individuadoras que exprimem a sua conotação, sentido,
conceito ou regra de atribuição. Esse feixe de descrições que acaba por definir
aquilo que podemos querer dizer em termos representativos ao aplicarmos o termo
geral. Basta que um número suficiente de descrições constitutivas do sentido do
termo geral seja satisfeito por no mínimo um objeto para que o termo encontre
aplicação. Assim, um termo geral como ‘tigre’ poderia ser caracterizado por
meio de uma lista de descrições indefinidas como:
1. Um grande
felino asiático.
2. Um
animal carnívoro e feroz.
3. Um quadrúpede
com pelo amarelo, listas escuras transversais e focinho branco.
Assim, qualquer animal encontrado que satisfaça em medida ao menos suficiente
as propriedades expressas pelas descrições acima será por nós identificado como
um tigre. Note-se também que, ao contrário das descrições geralmente associadas
a nomes próprios, essas devem ser descrições indefinidas (que começam com artigos indefinidos), uma vez que o
número de objetos por elas designado não precisa ser limitado a algum que seja
único e específico (o indivíduo).
Tal como acontece com a teoria
fregeana dos nomes próprios, a teoria descritivista dos termos gerais é capaz
de explicar como é possível que dois termos gerais com a mesma extensão sejam
capazes de possuir sentidos diferentes. Considere o par de frases empiricas da
zoologia:
1a Todo animal
que tem coração tem coração.
1b Todo animal
que tem coração tem rins.
Considere ainda o par de frases abstratas da geometria:
2a Todos os triângulos equiláteros são triângulos equiláteros.
2b Todos os triângulos equiláteros são triângulos
equiângulos.[2]
Suponhamos que o sentido do termo geral fosse determinado por sua
extensão. Como a extensão do termo geral ‘animais que têm coração’ é a mesma do
termo ‘animais que têm rins’, as sentenças empíricas (1a) e (1b) deveriam ter o
mesmo sentido, o mesmo se aplicando à dupla formal (2a) e (2b), caso no qual na
geometria euclidiana a identidade de extensão se torna necessária. Mas não é isso
o que acontece: enquanto (1a) e (2a) são frases tautológicas, (1b) (2b) são frases
informativas, capazes de nos dizer algo sobre a natureza daquilo a que se
referem. Além disso, cada frase de cada dupla exprime um sentido-pensamento
próprio ou, se quisermos, uma regra verificacional própria (no sentido wittgensteiniano),
capaz de torná-la verdadeira.[3] É bem verdade
que há maneiras mais sofisticadas e menos plausíveis de se tentar escapar da
dificuldade, como a de sugerir que o sentido do termo geral seja determinado
por sua extensão em todos os mundos possíveis, uma vez que, por exemplo, há mundos
possíveis nos quais animais com coração não possuem rins e vice-versa. Mas essa
última sugestão não parece fazer nada para explicar a diferença de sentido entre
frases formais como (2a) e (2b), além de ser ontologicamente perdulária in extremis.
Consideremos
a diferença entre os enunciados (1a) e (1b) ou (2a) e (2b). A teoria
descritivista dos termos gerais explica de modo contundente a razão das diferenças,
de modo análogo àquele pelo qual a teoria descritivista fregeana dos termos singulares
explicava o enigma da identidade: é que no caso (1) o termo ‘coração’ abrevia a
descrição ‘um órgão que bombeia o sangue’, enquanto o termo ‘rim’ abrevia a descrição
‘um órgão que depura o sangue’; já no caso (2) o termo ‘triângulo equilátero’ abrevia
a descrição ‘um triângulo com todos os lados iguais’, enquanto o termo ‘triângulo
equiângulo’ abrevia a descrição ‘um triângulo com todos os ângulos iguais’.
Essas descrições exprimem diferentes sentidos, modos de apresentação, definições
ou, como prefiro, regras de atribuição
constitutivas de conteúdos conceituais, as quais possuem diferentes critérios de aplicação, ainda que a
mesma classe extensional de objetos a satisfaça. Esses critérios podem ser expostos
por descrições indefinidas, em (1a) a de ser ‘um órgão que bombeia o sangue’ e em
(1b) a de ser ‘um órgão que depura o sangue’, em (2a) a de ser ‘uma igualdade
dos lados’ e em (2b) a de ser ‘uma igualdade dos ângulos’. Aqui ambos os pares (1a)-(1b)
e (2a)-(2b) encontram-se presentes nos elementos constitutivos de cada extensão
considerada. E cada critério de aplicação é identificado por uma regra criterial
de atribuição diversa, mesmo que diferentes regras possam e no caso devam ter a
mesma extensão em sua aplicação.
É importante enfatizar que essa
forma de descritivismo não pode se aplicar a todos os termos gerais. Para se
perceber isso, basta notar que as descrições que definem um termo geral também
contém outros termos gerais, que por sua vez demandarão novas definições. Essas
novas definições, por sua vez, não poderão recorrer por completo ao que já foi
definido, sob pena de circularidade. Por isso, se todos os termos gerais fossem
definidos através de descrições, nós cairíamos em um regresso ao infinito, daí
resultando que nada poderia ser completamente definido. A solução geralmente
aceita pelos descritivistas é a de que pelo menos alguns termos gerais devem ser
aceites como primitivos, não sendo analisáveis em termos de descrições.[4] Termos
como ‘vermelho’ e ‘redondo’ são candidatos a esse papel.
Objeções ao descritivismo
Tal como aconteceu com a teoria descritivista dos nomes próprios, a
teoria descritivista dos termos gerais foi atacada por Saul Kripke e Hilary Putnam,
embora com menor sucesso. As objeções costumam ser análogas às que já foram
feitas às teorias descritivistas dos nomes próprios. Quero considerar apenas duas
delas: a objeção epistêmica da necessidade indesejada e a objeção semântica da
ignorância e do erro, mostrando que há respostas descritivistas para ambas.
Comecemos com a objeção da necessidade
indesejada. Considerando o exemplo mais citado, parece que as pessoas entendem
geralmente por ‘tigre’ algo que satisfaz à seguinte descrição:
Dt = grande e feroz animal asiático carnívoro
e quadrúpede com pelo amarelo, listas escuras transversais e focinho branco.
Segundo a objeção da necessidade indesejada, se a teoria descritivista
é correta então a proposição “Tigre = Dt” deve ser necessária: se algo é um tigre
então deve satisfazer Dt. Mas não é isso o que acontece. Afinal, em um mundo possível
poderíamos encontrar animais que satisfazem todas as propriedades descritas em
Dt, mas que não se cruzem com os tigres já conhecidos, possuindo um layout genético que os torne mais próximos
dos répteis do que dos felinos. Além disso, nenhuma propriedade descrita por Dt
é necessária. Devido a falhas genéticas há tigres que nascem com cinco patas,
há tigres albinos, etc. Pode até mesmo ser que nenhuma das propriedades
descritas por Dt se aplique. Podemos imaginar um mundo possível no qual a
evolução acabe por produzir o vexame da espécie: pequenos tigres albinos e sem
listas, herbívoros, que andam sobre as patas traseiras e são mansos como coelhos.
Mesmo assim eles poderiam ser tigres, digamos, por descenderem dos tigres e por
ainda serem capazes de se entrecruzar com os nossos tigres produzindo
descendência fértil. Em princípio, ao menos, é possível encontramos animais que
não satisfazem a descrição, mas que são tigres, e animais que a satisfazem, mas
que não são tigres. Assim, segundo a objeção da necessidade indesejada, diversamente
do que o descritivismo prevê, o termo geral ‘tigre’ não é sinônimo de
Dt, e “Tigre = Dt” não é uma proposição analítica nem necessária.
Não obstante, podemos responder à objeção da
necessidade indesejável adotando uma forma menos ingênua de descritivismo, que exige
apenas a satisfação de um número suficiente, mas indefinido, de descrições
indefinidas e, mais além, que não limita sob prejulgamento o conceito de descrição
a características de superfície não-disposicionais. Por exemplo, no caso do
termo geral ‘tigre’, não há razão alguma para nos limitarmos às descrições de
superfície expressas
Dte = um animal entrecruzável com outros que também
pertencem ou ao menos descendem das populações de animais asiáticos que historicamente
foram chamados de tigres por satisfazerem suficientemente a descrição de
superfície Dt, sem desse entrecruzamento resultarem descendentes estéreis.[5]
Com isso podemos já explicar a possibilidade da existência de um
exemplar que apresente todas as propriedades descritas por Dt, mas que não é um
tigre, pois ele não se cruza com os demais. E também podemos explicar a existência
de exemplares da espécie tigre que não satisfazem nenhuma das propriedades de
Dt (assumindo que a satisfação suficiente de Dt possa ser reduzida a nada, caso
em que as descrições de superfície não-disposicionais se tornam meros sintomas), basta que esses
exemplares sejam entrecruzáveis com animais que ao menos descendam dos que
historicamente possuíam as propriedades descritas por Dt.
Passemos agora à objeção da
ignorância e do erro. Muitas vezes nada sabemos acerca das descrições relevantes,
ou então associamos ao termo descrições errôneas. A maioria de nós, por exemplo,
sabe que Olmos são ‘alguma espécie de árvore’, sem ter qualquer ideia de como
essas árvores são. Somos, a despeito disso, capazes de fazer uso correto do
termo. Exemplo usual de associação com uma descrição errônea pode se dar com o
termo geral ‘baleia’, ao qual alguns ainda associam à descrição ‘um grande
peixe do mar’, o que é, estritamente falando, incorreto, posto que se trata de
um mamífero marinho, não respirando através de brânquias. Não obstante, mesmo
tendo em mente uma descrição como ‘um grande peixe do mar’, essas pessoas
conseguem usar a palavra de modo a se referir a baleias.
Essas objeções de ignorância
ou erro também podem ser respondidas, tal como no caso dos nomes próprios, pela
sugestão de que as descrições associadas precisam ser ao menos convergentes. A maioria das pessoas só
pode usar corretamente a palavra ‘olmo’ em contextos comunicacionais pouco exigentes,
posto que tudo o que elas sabem a respeito é que se trata de alguma espécie de árvore.
Mas se a pessoa pensa que olmo é o nome de um duende que só aparece após a
meia-noite, suas tentativas de inserir a palavra no discurso poderão ficar
seriamente prejudicadas. Da mesma forma, por saber que a baleia é um animal muito
grande que vive no mar, uma pessoa já consegue usar o termo em contextos apropriados,
mesmo supondo erroneamente que ele seja um peixe. Podemos até admitir que essa pessoa
seja capaz de usar referencialmente a palavra ‘baleia’, entendendo por isso não
só que ela é capaz de apontar para ela com base em sintomas, mas que ela é capaz
de inserir esse nome geral corretamente no discurso e ser corretamente
entendida por aqueles que dispõem de conhecimento similar ou mais aperfeiçoado
do conteúdo descritivo da palavra. Contudo, tal não seria o caso de uma criança
que pensasse que a baleia é o nome de uma montanha que lhe foi apontada quando viajou
à Serra das Cajazeiras. Parece óbvio que ao confundir um termo geral com um
nome próprio ela já não consegue mais lhe dar um sentido adequado; ela não consegue
sequer obter um empréstimo de referência do termo geral.
A teoria causal dos termos gerais
A teoria causal dos termos gerais sugerida por Kripke, Putnam e outros,
é uma extensão da teoria causal-histórica dos nomes próprios.[6] Muitos
termos gerais, especialmente os de espécie natural, são para esses autores
designadores rígidos, referindo-se a uma mesma espécie de coisa em quaisquer mundos possíveis nos quais ela exista.[7] Por
isso as descrições associadas aos termos gerais podem variar e uma descrição
como Dt não precisa se aplicar a qualquer caso.
Mas então, como os termos gerais
se aplicam? A resposta é que ao menos no caso dos termos de espécies naturais,
eles se aplicariam por se referirem a uma propriedade
microestrutural subjacente – a uma
essência que a ciência empírica acabou
por descobrir. Assim, o termo ‘ouro’ ao elemento de número atômico 79, o termo ‘água’
ao composto químico H2O, enquanto o termo ‘tigre’ poderia se referir
a um certo layout genético. Com isso
as propriedades usualmente designadas pelas descrições de superfície associadas
aos termos gerais passam a uma categoria secundária constituída, segundo Putnam,
de estereótipos.
E como chegamos a usar corretamente os termos gerais? Aqui também a resposta
costuma apelar para atos de batismo. Por causa do contato com pepitas de ouro
as pessoas inventaram a palavra ‘ouro’. Essa palavra deve ter passado então de falante
a falante, em uma cadeia causal, acabando por chegar até nós.
Problemas com a teoria causal
Hoje é geralmente reconhecido que a teoria causal dos termos gerais encontra
dificuldades ao menos tão sérias quanto as do descritivismo.[8] Uma
primeira é que há um grande número de exceções. Considere o caso dos artefatos.
Não os explicamos por apelo a uma essência microestrutural subjacente, mas por apelo
a descrições de superfície.[9] Assim,
uma cadeira pode ser descrita como um banco não-veicular provido de encosto,
feito para uma só pessoa se sentar de cada vez.[10] (Uma
cadeira de pedra esculpida pelas intempéries não é uma cadeira de verdade, nem
uma cadeira de brinquedo...) E um lápis costuma ser descrito como um
instrumento manuseável usado para escrever através de uma ponta de material
sólido, não devendo se diferenciar em demasia de certos exemplares prototípicos
bem conhecidos (pequenos artefatos cilíndricos finos, feitos de madeira, envolvendo
uma vareta de grafite para escrever ou desenhar). (Um lápis ou giz de cera é uma
extensão do conceito, um lápis eletrônico não é um lápis de verdade, mas um símile
analógico...)
Mesmo no caso mais típico, que é o das espécies naturais, há exceções. Embora
seja aceitável que a água seja essencialmente constituída por moléculas de H2O,
o conceito de espécies animais como a dos tigres não inclui essencialmente o layout genético, como Kripke gostaria. Como
já vimos, uma espécie tem sido razoavelmente definida pela origem e capacidade
de entrecruzamento de seus exemplares segundo modelos exprimíveis por
descrições funcionais de superfície. O compartilhamento de um certo layout genético é um achado empírico
posterior à definição (o que não quer dizer que não possa vir a ser
eventualmente incorporado a ela). Assim, por estranho que possa parecer, se dois
grupos de animais tivessem o mesmo layout
genético, mas demonstrassem impossibilidade de entrecruzamento, os grupos deveriam
ser considerados pertencentes a espécies distintas, ficando por ser esclarecida
a razão microestrutural do fato. Assim, embora nos pareça à primeira vista essencial,
o layout genético é aqui um elemento
explicativo derivado. Torná-lo o elemento definitório primário é cometer uma
petição de princípio, a menos que nosso entendimento do termo seja alterado.
Outra complicação é que o
batismo precisa vir acompanhado de algum elemento descritivo que nos diga que tipo
de coisa se trata (o chamado qua-problema),
uma vez que cada coisa pertence simultaneamente a muitos tipos.[11] Assim,
se nomearmos um objeto como um exemplar de ‘tigre’ estamos apontando também
para um felino, para um mamífero, para um animal, para um ser vivo e para um
objeto físico. Mesmo admitindo que a aplicação do termo geral precise ter algum
tipo de ascendência causal, não parece possível que possamos explicar a
referência dos termos gerais prescindindo por completo de descrições de superfície.
Teorias causais-históricas que
introduzem um elemento descritivo inevitável são chamadas de teorias mistas. Se
as aceitarmos, porém, parece que estaremos expondo a nova maneira de ver aos
mesmos problemas aos quais ela foi chamada a resolver. Finalmente, é inevitável
a ideia de que algum elemento causal seja pressuposto no descritivismo sobre termos
gerais. Não obstante, também aqui ele deve ser um elemento derivado em termos
de poder explicativo, uma vez que será com base em regras conceituais exprimíveis
através de descrições que nos tornaremos capazes de identificá-lo.
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