Draft introdução de LIVRO A SER PUBLICADO PELA EDITORA APPRIS
COGNITIVISMO
SEMÂNTICO
filosofia da linguagem
sob nova chave
Claudio Costa
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FICHA CATALOGRÁFICA:
Autor: Ferreira Costa, Claudio
Título da obra: Cognitivismo semântico: filosofia da
linguagem sob nova chave, 2022.
Palavras chave: filosofia da linguagem, nomes próprios,
referência, significado
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To have, with decency, knocked
That a Blunt should open
To have gathered from the air a
live tradition
Or from a fine old eye the
unconquered flame
This is not vanity
Here error is all in the not
done
All in the diffidence that
faltered…
[Ter com decência se esforçado
Para que algo notável viesse à luz
Ter colhido no ar uma tradição viva
Ou de um óleo antigo a flama inconquistada
Isso não é vaidade
Aqui o erro está todo em não ter feito
Todo na difidência que fez hesitar...]
Ezra Pound
SUMÁRIO
PRÓLOGO
PARTE I: TERMOS SINGULARES
1. CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES
2. TERMOS INDEXICAIS
3. DESCRIÇÕES DEFINIDAS
4. TEORIA DESCRITIVISTA DOS
NOMES PRÓPRIOS
5. TEORIA CAUSAL-HISTÓRICA DOS
NOMES PRÓPRIOS
6. TEORIA METADESCRIPTIVISTA DOS
NOMES PRÓPRIOS
PARTE II: TERMOS GERAIS
7. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
8. PUTNAM: TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
9. IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
PRÓLOGO
Meu primeiro encontro com as teorias filosóficas dos nomes próprios aconteceu
há mais de trinta anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese sobre
a concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein. Como seria de
se esperar de um neófito recém-convertido, a melhor resposta parecia-me ser a teoria
do feixe de descrições definidas, tal como fora comentada pelo próprio Wittgenstein
na seção 79 de suas Investigações
Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção
causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Saul Kripke me
deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais externas soava-me
como uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade com
a teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma ordem ao
apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe e que isso só poderia
ser feito pelo recurso a alguma regra de ordem superior, capaz de estabelecer o
papel e o valor das descrições a ele pertencentes. Mas logo me esqueci do assunto.
Só voltei a me interessar pela questão dos nomes próprios em 2006, por
razões meramente acidentais. Lembrei-me então de meu antigo projeto. Escrevi um
breve esboço no qual enfatizava o fato de que as descrições definidas pertencentes
ao feixe deveriam ser interpretadas como expressões de regras de conexão do nome
próprio com o seu objeto de referência. Mais do que isso, me pareceu que em seu
aparato cognitivo qualquer falante competente deveria possuir de forma
implícita uma regra de ordem superior, uma regra meta-descritiva
para nomes próprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de regra-descrição
constitutivos de cada feixe de descrições associado a cada nome próprio. Tal
regra meta-descritiva teria de se aplicar sobretudo a regras-descrições espaciotemporalmente
localizadoras e caracterizadoras da razão pela qual o portador de um nome próprio
é referido.
Apresentei meu esboço em várias ocasiões, sempre
surpreso com a forte reação adversa da maioria dos ouvintes. Contudo, como ninguém
me apontava um erro palpável e como um pouco de reflexão me mostrava que as objeções
poderiam ser facilmente respondidas, prossegui. A teoria metadescritivista dos
nomes próprios daí resultante encontra-se exposta no Capítulo 6 do presente
livro, sendo o que ele tem de mais interessante a oferecer. Embora essa teoria não
deixe de incorporar intuições provenientes da concepção causal-histórica, ela as
condiciona a ideias de fundo claramente descritivista, o que faz com que se
deixe melhor classificar como uma elaboração muito mais satisfatória da velha
teoria do feixe de descrições.
A teoria
metadescritivista dos nomes próprios tem a sua maior complexidade justificada por
sua coerência interna, além da posse de um poder explicativo claramente superior
ao das teorias anteriores. Entre os bons atributos que a recomendam encontram-se:
(i) ser capaz de explicar adequadamente como e porque o conteúdo semântico-cognitivo
(sentido) do nome próprio pode contribuir para a identificação de seu portador
(objeto ou referência); (ii) ser capaz de gerar a ideia de que nomes próprios são
designadores rígidos do próprio interior do descritivismo; (iii) ser capaz de
explicar, sob uma perspectiva descritivista, como e por que se dá o contraste entre
a rigidez dos nomes próprios e a acidentalidade das descrições definidas e, finalmente,
(iv) ser capaz de responder de forma plenamente convincente aos mais importantes
exemplos já levantados contra a teoria do feixe.
A resposta à questão da natureza
do nome próprio é uma pedra angular da filosofia da linguagem. Se ela for alterada,
tudo se altera. A teoria causal-histórica dos nomes próprios, advogada por Saul
Kripke, Keith Donnellan e outros, produziu uma verdadeira revolução na maneira
como entendemos outras expressões referenciais fundamentais, que são as descrições
definidas, os indexicais, os termos gerais e mesmo os enunciados, inaugurando uma
nova ortodoxia causalista e externalista em filosofia da linguagem. Se proponho
uma teoria neodescritivista (metadescritivista) dos nomes próprios que se
revele verdadeiramente convincente, o que estou sugerindo traz em seu cerne uma
contra-revolução de fundo descritivista-cognitivista, que promete responder de
modo mais satisfatório os problemas que a nova ortodoxia tem gerado desde a
década de 1970. Essa é, creio eu, a explicação última da reação de rejeição de
parte de ouvintes diante da proposta de uma teoria metadescritivista dos nomes
próprios: ela demanda uma inversão da perspectiva hoje mais comum.
Isso também explica as direções que minha
pesquisa precisou tomar em seguida. Uma vez que me encontrava investigando a função
dos nomes próprios, meu interesse teve de se alargar para a história das
teorias descritivistas, bem como para a necessidade de alcançar um entendimento
crítico da concepção causal-histórica que fizesse justiça ao trabalho exponencial
de Kripke.
A investigação do funcionamento dos nomes próprios inevitavelmente me
levou a considerar outras expressões referenciais, como descrições definidas,
termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre a nova ortodoxia
do referencialismo causal-externalista e a velha ortodoxia do cognitivismo descritivista-internalista
é mantida. Minha pergunta foi irreprimível. Se havia obtido tão bons resultados
defendendo uma espécie de cognitivismo metadescritivista essencialmente internalista
para o caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira de ver não seria
capaz de produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada a outras
expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição era boa, de
modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era duplo. De um
lado, queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas-externalistas
aplicadas a outros termos referenciais; de outro, considerando as objeções, queria
desenvolver explicações basicamente cognitivistas-internalistas mais convincentes
para os modos como descrições definidas, indexicais e termos gerais referem,
mesmo que ainda incompletas.
Alguns resultados podem ser de
interesse. Entre eles estão a compatibilização do descritivismo de “Russell” com
o de “Frege”; uma defesa neofregeana da irrelevância das incongruências não-convencionais
em um resgate descritivista do conteúdo semântico “fregeano” dos indexicais,
por oposição à tese de John Perry da essencialidade do indexical; a tese da plasticidade
do pensamento; uma crítica linguística detalhada à teoria externalista do significado
de Putnam e, em complemento a isso, a proposta da existência de regras
meta-descritivas por vezes análogas às dos termos singulares na constituição de
regras de atribuição de termos gerais.
Trata-se, como creio, de algo
que nos aproxima um pouco mais de um conhecimento apto a obter consenso; mais aproximado,
portanto, daquilo que em um linguajar genérico chamamos de ciência. Ainda
assim, boa parte do que aqui se encontra escrito não vai muito além de esboços
rudimentares, que lanço na espectativa de que possam ser melhor desenvolvidos
por outros. Assim deve poder ser, dado que filosofia é work in progress por definição.
Ao trabalhar com essas questões
percebi, em retrospecto, que aquilo que estava tentando fazer poderia ser
entendido como a retomada de um programa especulativamente desenvolvido por Ernst
Tugendhat em seu clássico livro Vorlesungen
zur einführung in die sprachanalytische Philosophie (Lições introdutórias à filosofia
analítica da linguagem), publicado
em 1976 – um programa que pode ser considerado o canto de cisne da velha
ortodoxia em filosofia da linguagem. Essa velha ortodoxia teve seus inícios com
Frege, Russell e Wittgenstein, tendo prosseguido com P. F. Strawson e John Searle, foi fortemente influente até a década de
1980, pelo menos. Contudo, ela acabou perdendo sua força, à sombra do domínio
sempre crescente das concepções externalistas e não-descritivistas do acesso à referência
que foram revolucionariamente desenvolvidas na década de 1970 – a nova ortodoxia
comandada por filósofos como Saul Kripke, Hilary Putnam e David Kaplan.
Retomando de forma mais clara uma ideia já
defendida na interpretação que Michael Dummett fez de Frege, Tugendhat sugeriu em
seu livro que se entendesse o programa da velha ortodoxia como sendo, para o caso
fundamental da frase enunciativa predicativa singular, o de analisar o sentido cognitivo
(Sinn) do termo singular como sendo a
sua regra de identificação (Identifikationsregel), o sentido cognitivo
do termo geral como sendo a sua regra de aplicação
(Verwendungsregel) – que prefiro
chamar de regra de atribuição – e o sentido cognitivo ou epistêmico (epistemisches Gehalt) da frase enunciativa predicativa singular completa como sendo
a sua regra de verificação (Verifikationsregel). Essa última regra poderia
ser entendida como a resultante da aplicação combinada das duas primeiras (da
regra de identificação, que identificaria o objeto ao qual se aplicaria a regra
de atribuição), o que foi concebido por Tugendhat como uma maneira analiticamente
aprofundada de se falar da verificação em termos de significado e, ultimadamente,
da verdade no sentido tradicional de correspondência (nada a ver aqui com as objeções
feitas à espécie de verificacionismo dos positivistas lógicos!). Ora, meu
objetivo deixa-se também explicar como sendo o de justificar e analisar em algum
detalhe cada uma dessas regras em sua natureza, estrutura, subdivisões e relações,
além de tentar esclarecer seu status ontológico, assim como atributos a elas
relacionados, como os de existência e verdade.
Essas são as estações do
presente texto, que foi escrito na intenção de ser entendido por leitores que, apesar
de versados em filosofia, não precisassem possuir conhecimento especializado de
filosofia da linguagem.
Em
adição, devo observar que o trabalho com esse livro foi interrompido em 2011
para que me fosse possível escrever dois livros em inglês: Lines of Thought: Rethinking philosophical assumptions (2014) e Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy (2018). Os conteúdos dos três livros são
parcialmente inclusivos e complementares. Estou convencido de que juntos eles
oferecem uma chave sistemática mais plausível para a solução de alguns problemas
resilientes da filosofia linguístico-analítica contemporânea, uma chave em grande
parte baseada na escolha de uma variedade de pressupostos teóricos prima facie mais plausíveis. (Daí o grande
número de referências cruzadas no presente texto.)
Um único exemplo para ilustrar
a complementariedade em questão: foi só no livro Philosophical Semantics que tratei do enunciado completo, que não
deixa de ser um caso especial de expressão referencial. O significado cognitivo
do enunciado foi lá analisado em termos de regras verificacionais, o que foi
feito juntamente com uma crítica a entendimentos formalistas seriamente equivocados
que filósofos do Positivismo Lógico e sua descendência (que vem pelo menos de W.
V. Quine a Saul Kripke, passando por Donald Davidson) tiveram do verificacionismo
semântico originariamente proposto por Wittgenstein. Esses entendimentos
equivocados geraram críticas igualmente equivocadas e, no final das contas, uma
rejeição enganosa, posto que bloqueadora dos caminhos da investigação concernentes
ao modo mais natural e potencialmente frutífero, em meu juízo inevitável e único,
de se analisar significados cognitivos de sentenças assertivas sem ter de
reaplicar o próprio conceito de significado. Finalmente, também no livro Philosophical
Semantics foi esboçada uma versão genuinamente abrangente da teoria correspondencial
da verdade que se demonstrava compatível com o verificacionismo semântico.
Tugendhat, admitindo essa mesma compatibilidade, demonstrou-se mais uma vez presciente.
Natal 2022
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