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quarta-feira, 5 de março de 2025

IDEALISMO ALEMÃO (XIII)

  

 

XIII

O IDEALISMO ALEMÃO

 

A revolução cartesiana terminou com o iluminismo alemão representado por Kant. Do iluminismo, com a sua crença nos poderes ilimitados da razão, resultaram a revolução francesa, o reino do terror e as guerras napoleônicas, com seu preço devastador em vidas humanas. De seu esgotamento veio o reestabelecimento das monarquias europeias, ainda que concedendo mais direitos e mobilidade social aos cidadãos. O movimento intelectual chamado romantismo alemão, ilustrado por escritores como Goethe e Novalis, foi uma reação ao iluminismo que lhe sobreviveu no século vindouro. Esse movimento revalorizava a tradição, a confiança nos instintos, nas paixões, na vida interior e na imaginação.

   Da combinação do espírito do romantismo com o espólio filosófico de Kant surgiu um movimento filosófico mais importante chamado de idealismo alemão, que resultou em uma filosofia extraordinariamente especulativa de inspiração teológica. Através dele o paradigma cartesiano, centrado na epistemologia, cedeu lugar a uma forma de idealismo que permitia aos filósofos se concentrarem diretamente em questões de filosofia prática, opinando sobre tudo o que quisessem, graças às artimanhas da dialética. Os principais filósofos desse período foram Fichte, Schelling e Hegel. Quero me concentrar em uma exposição de Hegel, o mais importante filósofo do idealismo alemão. Mas para melhor compreendê-lo será necessário um breve excurso sobre o pensamento de Fichte e Schelling, sem os quais Hegel não teria existido.

 

1

 

Fichte. A ideia originadora do idealismo alemão foi apresentada por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Ele encontrou uma inconsistência fundamental no sistema kantiano, que dizia respeito à coisa em si, ao mundo noumênico. Kant a A coisa em si é, no mundo objetivo, o que deve permanecer inacessível ao nosso entendimento. Deve ser assim porque ela está além do alcance da intuição sensível e das categorias do entendimento, que nos permitem ganhar acesso cognitivo ao mundo externo. Contudo, a coisa em si é o que determina o mundo fenomênico, justificando assim a existência exterior e empiricamente independente do último. O problema encontrado por Fichte é que se a coisa em si determina o mundo fenomênico, ela só pode fazê-lo causalmente, e se nós sabemos dessa determinação é porque aplicamos a categoria de causalidade à coisa em si. Ora, ao fazermos isso estamos aplicando as categorias para além do domínio dos fenômenos, o que é proibido pelo sistema da crítica da razão pura. Trata-se de uma inconsistência fundamental.

   Fichte encontrou-se com Kant para discutir o assunto, mas não sabemos do conteúdo dessa conversação. Tudo o que sabemos é que a solução de Fichte foi livrar-se da coisa em si. Ele via a coisa em si como uma suposição gratuita, uma bagagem dispensável cuja assunção tornou o sistema kantiano dogmático. A solução seria mergulhar no que ficou sendo chamado de idealismo absoluto: a inteira realidade objetiva passou a ser entendida como sendo mental. Idealismo absoluto passou a ser o nome dado ao movimento filosófico que teve como principais atores Fichte, Schelling e Hegel.

   Embora Fichte rejeitasse a coisa em si, ele não rejeitou seu contraponto noumênico, o Eu transcendental. Para Kant existe um eu empírico semelhante ao considerado por Hume, constituído por fenômenos subjetivamente dados. Mas para ele existe também um “Eu” do “eu penso”, responsável pela unidade da consciência e inacessível à experiência, que é o Eu transcendental dotado de atividade. O que Fichte fez em sua obra A Doutrina da Ciência[1] foi propor que nossa intuição do Eu fosse em última análise elevada ao nível transindividual de uma intuição intelectual da atividade criativa do próprio Deus, por ele chamado de o Eu puro ou Eu absoluto.

   Se isso for aceito fica aberto o espaço para a construção do sistema de Fichte a partir de um princípio único, qual seja, o do Eu transcendental, do Eu puro ou absoluto, que é colocado no lugar de Deus. Esse Eu absoluto é reconhecido como pura atividade autoponente, ou seja, como uma atividade que se produz a si mesma em um processo que será chamado de dialético, constituído por uma tese, à qual se opõe uma antítese, que junto à tese se resolve em uma síntese. Daí que seu primeiro princípio, o princípio absolutamente incondicionado de toda a experiência é uma:

 

TESE: O Eu se põe simplesmente a si mesmo. (Das Ich setzt schlechthin sich selbst).[2]

 

Dizer que o Eu puro se põe a si mesmo significa aqui dizer que ele toma consciência de si mesmo através de contínua autocriação. Essa autoconsciência que o Eu tem de si é um puro agir. A ação pela qual o Eu se põe constitui-se ela mesma em seu produto: ela é uma ação-feito (Tathandlung). Com efeito, o Eu nada mais é, para Fichte, do que uma infinita atividade autoprodutora.

   Esse princípio de autoponência do Eu é resumido por Fichte nas fórmulas “Eu sou”, “Eu sou Eu” e “Eu = Eu”. Delas decorre, por abstração do conteúdo, o próprio princípio lógico da identidade: “A = A”. O pôr do eu instaura, pois, a própria lógica. Conscientizando-se da realidade formada, o pôr do Eu instaura também a primeira das categorias fichteanas: a categoria da realidade.

   Esse primeiro princípio exprime apenas um aspecto da autoponência, pois ele é uma tese a desdobrar-se necessária e simultaneamente em antítese e síntese. Considerando que a natureza do Eu é um agir, e que todo o agir é um agir sobre algo, a sua autoconsciência só se realizará se ela for ao mesmo tempo oposição a uma alteridade. Para que possa se pôr a si mesmo como Eu, o Eu deve produzir, através da imaginação produtiva irrefletida, o Não-Eu dentro de si mesmo, seu objeto indeterminado. Daí o segundo princípio fichteano, a antítese:

 

ANTÍTESE: O Eu opõe a si um Não-Eu (Das Ich setzt sich schlechthin entgegen ein Nicht-Ich).[3]

 

Nesse princípio, o Não-Eu infinito é inconscientemente posto pelo Eu infinito. Com isso se origina o princípio lógico da contradição: “A ≠ de não-A” e a categoria aqui instaurada é a da negação.

   Contudo, sendo o Eu e o Não-Eu infinitos, essa dupla infinitude deveria fazer com que eles se anulassem um ao outro! Daí que a instabilidade da antítese demanda sua resolução através de uma síntese, que é apresentada pelo terceiro princípio fichteano:

 

SÍNTESE: Eu oponho no Eu ao Eu divisível o Não-Eu divisível.  (Ich setze im Ich dem teilbaren Ich ein telbares Nicht-Ich entgegen).[4]

 

Para Fichte o Eu e o Não-Eu infinitos se aniquilariam um ao outro se não originassem entidades finitas em seu interior limitando-se mutuamente. Tratam-se do Eu divisível, ou seja, da subjetividade limitada, fenomenal (na verdade da multiplicidade de nossos eus pessoais) limitado pelo não-Eu divisível, como objetividade limitada, mundo externo, natureza, o qual é limitado pelo Eu divisível.  (O princípio lógico que essa ação-feito exemplifica e instaura é “A = em parte não-A; não-A = em parte A”, e a categoria correspondente é a de limitação.)

    A grande objeção à ideia de que o Eu produz o Não-Eu seria a concepção do realismo ingênuo, segundo a qual temos a mais sólida convicção de que os objetos possuem realidade fora de nós mesmos. A resposta – aceitável do ponto de vista especulativo – está na teoria fichteana da imaginação produtiva.[5] Segundo essa teoria, o Não-Eu é posto originariamente pela atividade independente da imaginação produtiva que, ao produzir o objeto, o faz de maneira irrefletida e inconsciente. Disso resulta que a nossa consciência natural e irrefletida apreende o mundo externo como independente do Eu e alheio a ele. Só a reflexão filosófica nos faz compreender que a autoconsciência deve ser o princípio único, e que ela só existe pela produção da alteridade a partir de si mesma, o que nos assegura a falsidade da concepção do realismo ingênuo.

   Ao se ler a Doutrina da Ciência pode-se ter a impressão de que o Eu puro seja de natureza individual, sendo um Eu diferente para cada um de nós. Mas isso não é possível, pois se assim fosse então o Eu de cada sujeito individual produziria um mundo sem comunicação com os outros, o que nos conduziria ao solipsismo. Na verdade, o Eu autoponente de Fichte é um único Eu, ao qual pertence o eu fenomenal de cada sujeito individual. Essa suposição é necessária para garantir a possibilidade de um mundo externo comum, acerca do qual possamos formar juízos sobre cuja verdade sejamos capazes de concordância intersubjetiva: se as pessoas A e B veem uma mesma árvore, ela é a mesma porque o sujeito último que a concebe e conhece, o Eu puro, é um só.

  Toda a ênfase de Fichte está na ação. Para ele, a atividade pela qual o Eu limita, determina o não-Eu, é o agir prático-moral, que é a atividade infinita do sujeito sobre o objeto. Já a atividade pela qual o Eu se deixa determinar pelo Não-Eu é o agir teorético-cognitivo, aquele pelo qual se adquire consciência do objeto produzido. Como para Fichte a essência do sujeito é atividade, sendo ele quem produz o não-Eu, torna-se claro porque para ele a razão prática detém o primado sobre a razão teórica.

   Cumpre finalmente assinalar que para Fichte a formação da alteridade desencadeia um movimento recuperador por parte do Eu limitado, no qual ele busca reapropriar-se da identidade originária com o Eu puro em uma tarefa infinita, sendo nisso que consiste também a destinação humana, e, na intensidade do empenho nessa direção, seu valor moral.

   A mais importante consequência histórica do idealismo absoluto proposto por Fichte é que, se tomado a sério, ele põe um ponto final na revolução cartesiana. Para a filosofia moderna de Descartes a Kant há um abismo a ser transposto entre o sujeito e o objeto do conhecimento, uma vez que ambos são heterogêneos. Com a aceitação do idealismo absoluto esse abismo desaparece, uma vez que ambos se tornam homogêneos, deixando para trás a prioridade do problema epistemológico.

   Que dizer da construção intelectual acima resumida? O argumento de Fichte é escassamente inteligível, a começar pelo fato de que termos fundamentais como ‘ponência’ (setzen) não são suficientemente explicados. Contudo, o que ele diz faz algum sentido, é indicativo, sugestivo. Qual é o truque? Trata-se simplesmente do convite a um esforço imaginativo: eu me coloco no lugar do Eu absoluto de Fichte e me concebo como se fosse um Deu, criando o mundo e a nós mesmos de forma imanente. Com isso o que faço é magnificar a minha consciência trivial de que sou um ser ativo e que só sou capaz de me conhecer através da interação com outras pessoas, pois só assim reconheço minhas peculiaridades, potencialidades e limites...

   O problema é que a sugestão metafisicamente selvagem de que Deus fez o mundo pela imaginação produtiva de modo inconsciente para depois redescobri-lo como parte de si mesmo é pelo menos tão gratuita quanto a hipótese de uma incognoscível coisa em si criticada por Fichte. Para um filósofo criado dentro da atmosfera do romantismo alemão era justo pensar o mundo do ponto de vista do sujeito ativo, atirando-se ao mundo pela força da paixão, como se ele originariamente lhe pertencesse. Mas essa forma extrema de evasão não demorou muito para deixar de ser sedutora e a afigurar-se a muitos como mais um conto de fadas metafísico.

 

2

 

O eu-comunitário mais uma vez. Segundo consta, uma vez Fichte teria dito aos seus alunos: “Pensem nessa parede; pensem agora em quem pensou essa parede; pensem agora em quem pensou em quem pensou essa parede...” Esse experimento estaria evidenciando que o Eu que objetiva encontra-se sempre acima e além de qualquer eu empírico por ele objetivado, não podendo jamais ser alcançado pela experiência. Algo semelhante fez Wittgenstein ao comparar o olho e seu campo visual com o Eu e a experiência que ele é capaz de ter: o Eu se encontra no limite da experiência empírica, assim como o olho se encontra no limite do campo visual.[6] O olho não é capaz de se experienciar, mas somos capazes de saber de sua existência só pela atividade de ver; do mesmo modo, o Eu Fichteano não é capaz de se experienciar, embora sejamos capazes de saber de sua existência por meio de sua atividade experienciadora do mundo. A conclusão de Fichte foi a de que existe alguma coisa como um Eu transcendental, puro, absoluto, que tudo experiencia, mas que é estruturalmente incapaz de ser experienciado: na metafísica fichteana, o polo subjetivo do mundo noumênico acaba tendo de ser transformado no próprio Deus!

   Repetindo em mais detalhes o que já escrevi no capítulo anterior (sec. 9), quero outra vez evidenciar que esse suposto Eu transcendental pairando acima e além da experiência pode ser demonstrado como uma ilusão metafísica. Como notei, Hume escreveu sobre o eu empírico como um feixe de perceptos (eventos mentais) que se sucedem uns aos outros com extraordinária rapidez e que é sempre diverso... Mas ele também falou do eu como sendo uma comunidade de perceptos, da qual alguns membros podem sair e outros entrar, mas que mesmo assim pode ser identificada como sendo a mesma. Minha tese era a de que nossa consciência de que possuímos esse eu empírico comunitário é, no final das contas, a mesma do que foi ilusoriamente tomado como sendo o Eu transcendental. E a razão foi que esse “eu-comunitário” se evade a uma objetivação imediata.

   Posso elaborar essa ideia do eu-comunitário do seguinte modo. Temos experiências de características de nós mesmos que parecem permanentes. Uma pessoa tem dificuldades para guardar nomes próprios, outra tem facilidade para guardar números e ainda outra para guardar melodias. Essas não são características importantes. Mas há disposições emocionais que são identificadoras de uma pessoa, assim como desejos, gostos, capacidades, habilidades, memórias. Uma pessoa pode gostar de matemática, ser passional, melancólica, ciumenta... Ela deve possuir conhecimentos e habilidades próprias, certamente possui memórias pessoais de sua infância e de experiências marcantes que carrega consigo, como as de seus triunfos e fracassos. Somos capazes de ter experiências introspectivas de tudo isso. A experiência que uma pessoa tems dessa e daquela característica recorrente de si mesma lhe permite formar aos poucos uma auto-imagem de si mesma como sujeito psicológico. Se tais características, geralmente disposicionais, forem simplificadamente designadas pelo conjunto {C1, C2, C3... Cn}, a auto-imagem ganha pela introspecção dessas características pode ser simplificadamente designada pelas representações correspondentes, digamos: {R1, R2, R3... Rn}.

   O ponto a ser notado é que embora sejamos capazes de ter a experiência de uma ou outra dessas características em diferentes momentos, assim como de suas repetições em contextos experienciais semelhantes, muitas vezes com a mediação de outras pessoas, não somos de modo algum capazes de ter a experiência instantânea do eu-comunitário como um todo, diversamente da experiência que tenho, digamos, de uma pontada de dor. Uma auto-imagem só é constituída aos poucos, com base na repetição de experiências em contextos que a identifiquem. Assim, uma pessoa pode ter a experiência de C2 de modo a confirmar a representação R2 de sua auto-imagem {R1, R2, R3... Rn}, mas não será nunca capaz de ter uma representação experiencial, nem instantânea nem sequencial, de seu eu-comunitário {C1, C2, C3... Cn} como um todo. A razão disso é que as diferentes características que constituem o eu-comunitário se atualizam em ocasiões e contextos diferentes. Em resumo: embora sejamos capazes de expor nossa auto-imagem como um esforço no sentido de descrever o eu-comunitário, esse eu só pode ser experienciado por nós de maneira fragmentária. Além disso, é certo que outras pessoas, observando nosso comportamento, são capazes de nos ajudar a descobrir, reforçar e, principalmente, corrigir nossa auto-imagem.

   Alguém poderia agora apresentar a seguinte objeção: Não podemos identificar o eu-comunitário com o Eu transcendental, pois enquanto o eu comunitário pode ser parcialmente experienciado em tempos e contextos diferentes, de modo a que se possa formar uma auto-imagem, o eu transcendental não é capaz de ser experienciado de maneira alguma. O melhor exemplo para demonstrar isso poderia ser o do cogito cartesiano. Considere o proferimento “eu penso, eu existo” feito no presente. Quando realizo esse proferimento eu não penso absolutamente nada, não havendo aqui nenhum rastro de auto-imagem. Tudo o que possuo é realmente a consciência de mim mesmo como a fonte unificadora da atividade de pensar. Do mesmo modo, quando realizo um proferimento qualquer no presente, digamos, “Eu estou vendo um muro”, é óbvio que não faço nenhuma introspecção de características que me são próprias, nem sequer de uma só delas. Logo, o Eu transcendental que um filósofo como Fichte poderia inferir do “eu penso” ou do “eu vejo um muro” não pode ter nada a ver com esse eu-comunitário.

   A resposta a essa objeção é que muitas vezes temos a consciência de algo que não atualizamos na consciência, e que esse pode bem ser o caso do “eu” presente no cogito ou em casos similares. Assim, uma pessoa pode saber que é capaz de resolver uma equação de segundo grau, o que não faz há anos, mas para isso não precisa atualizar o procedimento de resolução. Os exemplos de casos em que se sabe que se é capaz de atualizar uma experiência, mas que não precisa fazê-lo para saber disso, se multiplicam. A referência ao procedimento de resolução conhecido é meramente implícita. Essa constatação nos permite fazer a seguinte proposta: uma pessoa não precisa ser capaz de atualizar nada do seu eu-comunitário para saber que está se referindo a ele, pois é perfeitamente razoável pensar que a referência ao eu-comunitário no caso do “eu penso” e em casos similares seja apenas implícita.

   Uma consequência da proposta acima é que um ser irreflexivo que não possui nenhuma auto-imagem também não será capaz de dar sentido a proferimentos nos quais usa o pronome “eu”, uma vez que ela não será capaz de fazer referência implícita a qualquer coisa que se assemelhe a um eu-comunitário. Esse deve ser o caso de crianças muito pequenas. Ou seja: é exatamente porque já temos formada alguma ideia de nós mesmos que somos capazes de dar sentido a proferimentos do tipo “eu penso”. Uma criança capaz de utilizar o pronome pessoal “eu” já precisa possuir alguma forma de auto-imagem, caso contrário não seria capaz de dar sentido à palavra como algo mais do que “o emissor da palavra ‘eu’”. É possível que o uso do nome próprio em linguagens primitivas, como “Touro Sentado é corajoso” se deva a uma dificuldade em trazer a auto-imagem à linguagem intersubjetiva.[7]

   Se essa proposta for correta, e tem tudo para sê-lo, então o Eu transcendental, o Eu puro, o Eu absoluto, não passam de ilusões metafísicas produzidas pelo desejo de encontrar algo de permanente e imaterial na subjetividade humana, alguma indicação metafísica da existência da alma e mesmo de Deus.

 

3

 

Schelling. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi colega de Hegel e de Hölderlin no seminário teológico de Tübingen. Ele foi um escritor poético, criador de uma filosofia da natureza de fundo teológico. Seguindo os passos de Fichte ele adotou o idealismo. Mas ao invés de considerar como absoluto um Eu puro, ele decidiu colocar em seu lugar uma instância neutra, que ele chamou de absoluto como identidade ou indiferença.[8] O absoluto seria a fusão perfeita de todos os opostos, permanecendo homogeneamente subjacente a tudo o que existe. É dessa indiferença que brotam as dualidades. O absoluto só se diferencia a partir do surgimento da consciência. A natureza, por sua vez, é o conjunto das esferas finitas que se formam na esfera infinita do absoluto indiferenciado. A natureza era para ele espírito visível, enquanto o espírito era a natureza invisível.

  Schelling entendeu a natureza como um processo que se desenvolve dialeticamente em direção a uma complexidade cada vez maior e tentou mapeá-lo. A tese é uma infinita expansão, produtora do crescimento e da vida. Ela é seguida de um desequilíbrio que conduz à sua antítese, que é a contração infinita, produtora da decadência e da morte. Desse novo desequilíbrio é gerada a síntese, a maior delas sendo a autoconsciência. Através de movimentos dialéticos a natureza gera a consciência de si própria nos sujeitos humanos. O absoluto primeiro se objetiva na natureza e depois retorna a si mesmo pela razão reflexiva dos seres humanos. Nesse processo, as forças do amor e do ódio demandam especial consideração. A força do amor é a de Eros, da tese, da expansão, enquanto a força do ódio é a da antítese, da contração. O princípio da expansão é, porém, maior que o da contração, caso contrário o universo já teria desaparecido e não estaríamos em um contínuo desenvolvimento em direção à maior complexidade. Daí porque o amor é superior ao ódio. É dessa superioridade do amor sobre o ódio que advém a vida moral. A cultura, a arte, a religião e a mitologia, são expressões do movimento dialético pelo qual a civilização deve emergir como força expansiva. É aqui, aliás, que a cultura alemã emerge como força expansiva, em contraposição à força de contração da cultura inglesa, coarctada da natureza por seu empirismo, utilitarismo e materialismo (Schelling pertencia aos primórdios do nacionalismo germânico). A natureza deverá no final atingir completa reunificação quando, através de nós, tiver tomado consciência de si mesma como um todo na forma do Eu absoluto.

   Não pretendo me adentrar aqui nos labirínticos meandros da filosofia de Schelling, que construiu um variado e complexo sistema orgânico, no qual buscava considerar tudo em relação a tudo. Apesar de não conseguir ver em seu sistema muito mais do que uma embolada poético-argumentativa pré-darwiniana, reconheço a existência de pontos positivos. Um deles foi a ênfase no inconsciente, mais tarde detalhadamente explorado por Freud. Outro foi ter salientado a importância do amor como princípio construtivo necessário ao comportamento moral, embora possa ser melhor falar do Eros freudiano como pulsão de preservação da espécie. E ainda outro ponto positivo foi a ênfase ecológica. Para ele a natureza e a humanidade são um e o mesmo. A ideia de que somos partes da natureza e que uma separação violenta dela pode significar a morte é perfeitamente atual. Fichte pode ser lembrado como um filósofo que tentou mostrar a essencialidade da integração com a natureza como realização de nosso estar no mundo como seres humanos.

 

 



[1] J. G. Fichte: Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Hamburg: Felix Meiner Verlag 1988 (1794)). Trad. port. A doutrina da ciência de 1794 (São Paulo: Abril Cultural 1984).

 

[2] J. G. Fichte: Grundlagen der Gesamten Wissenschaftslehre, ibid., parte 1, sec. 6.

[3]  J. G. Fichte: Grundlagen der Gesamten Wissenschaftslehre, ibid., par. 2, sec 10.

[4]  J. G. Fichte; Grundlagen der Gesamten Wissenschaftslehre, par. 3 sec. D. Trad. Bras. A doutrina da ciência de 1794 (São Paulo: Abril Cultural 1984).

[5]  J. G. Fichte, Grundlagen der Gesamten Wissenschaftslehre., Síntese E, p. 66 e ss.

 

[6]  Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus 5.632-5.6331.

[7] Por que os diferentes eus concordam em suas observações uma vez que eles não são unidos por um Eu fichteano? A resposta tem a ver com a evolução natural, que harmonizou os indivíduos entre si selecionando aqueles que possuem a capacidade de distinguir identidades e diferenças similares.

[8] Exposição de meu sistema de filosofia (São Paulo: Editora Clandestina 2020 (1801)).

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