XIII
O IDEALISMO ALEMÃO
A revolução cartesiana terminou com o iluminismo alemão representado por
Kant. Do iluminismo, com a sua crença nos poderes ilimitados da razão, resultaram
a revolução francesa, o reino do terror e as guerras napoleônicas, com seu
preço devastador em vidas humanas. De seu esgotamento veio o reestabelecimento
das monarquias europeias, ainda que concedendo mais direitos e mobilidade
social aos cidadãos. O movimento intelectual chamado romantismo alemão, ilustrado
por escritores como Goethe e Novalis, foi uma reação ao iluminismo que lhe
sobreviveu no século vindouro. Esse movimento revalorizava a tradição, a
confiança nos instintos, nas paixões, na vida interior e na imaginação.
Da combinação do espírito do
romantismo com o espólio filosófico de Kant surgiu um movimento filosófico mais
importante chamado de idealismo alemão, que resultou em uma filosofia
extraordinariamente especulativa de inspiração teológica. Através dele o
paradigma cartesiano, centrado na epistemologia, cedeu lugar a uma forma de
idealismo que permitia aos filósofos se concentrarem diretamente em questões de
filosofia prática, opinando sobre tudo o que quisessem, graças às artimanhas da
dialética. Os principais filósofos desse período foram Fichte, Schelling e
Hegel. Quero me concentrar em uma exposição de Hegel, o mais importante
filósofo do idealismo alemão. Mas para melhor compreendê-lo será necessário um
breve excurso sobre o pensamento de Fichte e Schelling, sem os quais Hegel não
teria existido.
1
Fichte. A ideia originadora do idealismo alemão foi apresentada
por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Ele encontrou uma inconsistência fundamental
no sistema kantiano, que dizia respeito à coisa em si, ao mundo noumênico. Kant
a A coisa em si é, no mundo objetivo, o que deve permanecer inacessível ao nosso
entendimento. Deve ser assim porque ela está além do alcance da intuição
sensível e das categorias do entendimento, que nos permitem ganhar acesso
cognitivo ao mundo externo. Contudo, a coisa em si é o que determina o mundo
fenomênico, justificando assim a existência exterior e empiricamente independente
do último. O problema encontrado por Fichte é que se a coisa em si determina o
mundo fenomênico, ela só pode fazê-lo causalmente, e se nós sabemos dessa
determinação é porque aplicamos a categoria de causalidade à coisa em
si. Ora, ao fazermos isso estamos aplicando as categorias para além do domínio
dos fenômenos, o que é proibido pelo sistema da crítica da razão pura. Trata-se
de uma inconsistência fundamental.
Fichte encontrou-se com Kant
para discutir o assunto, mas não sabemos do conteúdo dessa conversação. Tudo o
que sabemos é que a solução de Fichte foi livrar-se da coisa em si. Ele via a coisa
em si como uma suposição gratuita, uma bagagem dispensável cuja assunção tornou
o sistema kantiano dogmático. A solução seria mergulhar no que ficou sendo
chamado de idealismo absoluto: a inteira realidade objetiva passou a ser
entendida como sendo mental. Idealismo absoluto passou a ser o nome dado ao
movimento filosófico que teve como principais atores Fichte, Schelling e Hegel.
Embora Fichte rejeitasse a coisa
em si, ele não rejeitou seu contraponto noumênico, o Eu transcendental. Para
Kant existe um eu empírico semelhante ao considerado por Hume, constituído por
fenômenos subjetivamente dados. Mas para ele existe também um “Eu” do “eu
penso”, responsável pela unidade da consciência e inacessível à experiência,
que é o Eu transcendental dotado de atividade. O que Fichte fez em sua obra A
Doutrina da Ciência[1] foi propor que nossa
intuição do Eu fosse em última análise elevada ao nível transindividual de uma
intuição intelectual da atividade criativa do próprio Deus, por ele chamado de
o Eu puro ou Eu absoluto.
Se isso for aceito fica aberto
o espaço para a construção do sistema de Fichte a partir de um princípio único,
qual seja, o do Eu transcendental, do Eu puro ou absoluto, que é colocado no
lugar de Deus. Esse Eu absoluto é reconhecido como pura atividade autoponente,
ou seja, como uma atividade que se produz a si mesma em um processo que será
chamado de dialético, constituído por uma tese, à qual se opõe uma antítese,
que junto à tese se resolve em uma síntese. Daí que seu primeiro princípio, o
princípio absolutamente incondicionado de toda a experiência é uma:
TESE: O Eu se põe simplesmente a si mesmo. (Das Ich setzt schlechthin sich selbst).[2]
Dizer que o
Eu puro se põe a si mesmo significa aqui dizer que ele toma
consciência de si mesmo através de contínua autocriação. Essa
autoconsciência que o Eu tem de si é um puro agir. A ação pela qual o Eu se põe
constitui-se ela mesma em seu produto: ela é uma ação-feito (Tathandlung).
Com efeito, o Eu nada mais é, para Fichte, do que uma infinita atividade autoprodutora.
Esse princípio de autoponência do Eu é
resumido por Fichte nas fórmulas “Eu sou”, “Eu sou Eu” e “Eu = Eu”. Delas
decorre, por abstração do conteúdo, o próprio princípio lógico da identidade: “A
= A”. O pôr do eu instaura, pois, a própria lógica. Conscientizando-se da
realidade formada, o pôr do Eu instaura também a primeira das categorias
fichteanas: a categoria da realidade.
Esse primeiro princípio exprime apenas um
aspecto da autoponência, pois ele é uma tese a desdobrar-se necessária e
simultaneamente em antítese e síntese. Considerando que a natureza do Eu é um agir,
e que todo o agir é um agir sobre algo, a sua autoconsciência só se realizará
se ela for ao mesmo tempo oposição a uma alteridade. Para que possa se pôr a si
mesmo como Eu, o Eu deve produzir, através da imaginação produtiva irrefletida,
o Não-Eu dentro de si mesmo, seu objeto indeterminado. Daí o segundo princípio
fichteano, a antítese:
ANTÍTESE: O Eu opõe a si um Não-Eu (Das Ich setzt sich schlechthin
entgegen ein Nicht-Ich).[3]
Nesse
princípio, o Não-Eu infinito é inconscientemente posto pelo Eu infinito. Com
isso se origina o princípio lógico da contradição: “A ≠ de não-A” e a categoria
aqui instaurada é a da negação.
Contudo, sendo o Eu e o Não-Eu infinitos,
essa dupla infinitude deveria fazer com que eles se anulassem um ao outro! Daí
que a instabilidade da antítese demanda sua resolução através de uma síntese,
que é apresentada pelo terceiro princípio fichteano:
SÍNTESE: Eu oponho no Eu ao Eu divisível o Não-Eu divisível. (Ich setze im Ich
dem teilbaren Ich ein telbares Nicht-Ich entgegen).[4]
Para Fichte
o Eu e o Não-Eu infinitos se aniquilariam um ao outro se não originassem
entidades finitas em seu interior limitando-se mutuamente. Tratam-se do Eu
divisível, ou seja, da subjetividade limitada, fenomenal (na verdade da
multiplicidade de nossos eus pessoais) limitado pelo não-Eu divisível, como
objetividade limitada, mundo externo, natureza, o qual é limitado pelo Eu
divisível. (O princípio lógico que essa
ação-feito exemplifica e instaura é “A = em parte não-A; não-A = em parte A”, e
a categoria correspondente é a de limitação.)
A grande objeção à ideia de que o Eu produz
o Não-Eu seria a concepção do realismo ingênuo, segundo a qual temos a mais
sólida convicção de que os objetos possuem realidade fora de nós mesmos. A
resposta – aceitável do ponto de vista especulativo – está na teoria fichteana
da imaginação produtiva.[5] Segundo essa teoria, o Não-Eu
é posto originariamente pela atividade independente da imaginação produtiva
que, ao produzir o objeto, o faz de maneira irrefletida e inconsciente. Disso
resulta que a nossa consciência natural e irrefletida apreende o mundo externo
como independente do Eu e alheio a ele. Só a reflexão filosófica nos faz
compreender que a autoconsciência deve ser o princípio único, e que ela só
existe pela produção da alteridade a partir de si mesma, o que nos assegura a
falsidade da concepção do realismo ingênuo.
Ao se ler a Doutrina da Ciência
pode-se ter a impressão de que o Eu puro seja de natureza individual, sendo um
Eu diferente para cada um de nós. Mas isso não é possível, pois se assim fosse
então o Eu de cada sujeito individual produziria um mundo sem comunicação com
os outros, o que nos conduziria ao solipsismo. Na verdade, o Eu autoponente de
Fichte é um único Eu, ao qual pertence o eu fenomenal de cada sujeito
individual. Essa suposição é necessária para garantir a possibilidade de um
mundo externo comum, acerca do qual possamos formar juízos sobre cuja verdade
sejamos capazes de concordância intersubjetiva: se as pessoas A e B veem uma
mesma árvore, ela é a mesma porque o sujeito último que a concebe e conhece, o
Eu puro, é um só.
Toda a ênfase de Fichte está na ação. Para
ele, a atividade pela qual o Eu limita, determina o não-Eu, é o agir
prático-moral, que é a atividade infinita do sujeito sobre o objeto. Já a
atividade pela qual o Eu se deixa determinar pelo Não-Eu é o agir teorético-cognitivo,
aquele pelo qual se adquire consciência do objeto produzido. Como para Fichte a
essência do sujeito é atividade, sendo ele quem produz o não-Eu, torna-se claro
porque para ele a razão prática detém o primado sobre a razão teórica.
Cumpre finalmente assinalar que para Fichte
a formação da alteridade desencadeia um movimento recuperador por parte do Eu
limitado, no qual ele busca reapropriar-se da identidade originária com o Eu
puro em uma tarefa infinita, sendo nisso que consiste também a destinação
humana, e, na intensidade do empenho nessa direção, seu valor moral.
A mais importante consequência histórica do
idealismo absoluto proposto por Fichte é que, se tomado a sério, ele põe um
ponto final na revolução cartesiana. Para a filosofia moderna de Descartes a
Kant há um abismo a ser transposto entre o sujeito e o objeto do conhecimento,
uma vez que ambos são heterogêneos. Com a aceitação do idealismo absoluto esse
abismo desaparece, uma vez que ambos se tornam homogêneos, deixando para trás a
prioridade do problema epistemológico.
Que dizer da construção
intelectual acima resumida? O argumento de Fichte é escassamente inteligível, a
começar pelo fato de que termos fundamentais como ‘ponência’ (setzen) não
são suficientemente explicados. Contudo, o que ele diz faz algum sentido, é
indicativo, sugestivo. Qual é o truque? Trata-se simplesmente do convite a um
esforço imaginativo: eu me coloco no lugar do Eu absoluto de Fichte e me concebo
como se fosse um Deu, criando o mundo e a nós mesmos de forma imanente. Com
isso o que faço é magnificar a minha consciência trivial de que sou um ser
ativo e que só sou capaz de me conhecer através da interação com outras pessoas,
pois só assim reconheço minhas peculiaridades, potencialidades e limites...
O problema é que a sugestão
metafisicamente selvagem de que Deus fez o mundo pela imaginação produtiva de
modo inconsciente para depois redescobri-lo como parte de si mesmo é pelo menos
tão gratuita quanto a hipótese de uma incognoscível coisa em si criticada por
Fichte. Para um filósofo criado dentro da atmosfera do romantismo alemão era
justo pensar o mundo do ponto de vista do sujeito ativo, atirando-se ao mundo
pela força da paixão, como se ele originariamente lhe pertencesse. Mas essa
forma extrema de evasão não demorou muito para deixar de ser sedutora e a afigurar-se
a muitos como mais um conto de fadas metafísico.
2
O eu-comunitário mais uma vez. Segundo consta,
uma vez Fichte teria dito aos seus alunos: “Pensem nessa parede; pensem agora
em quem pensou essa parede; pensem agora em quem pensou em quem pensou essa
parede...” Esse experimento estaria evidenciando que o Eu que objetiva
encontra-se sempre acima e além de qualquer eu empírico por ele objetivado, não
podendo jamais ser alcançado pela experiência. Algo semelhante fez Wittgenstein
ao comparar o olho e seu campo visual com o Eu e a experiência que ele é capaz
de ter: o Eu se encontra no limite da experiência empírica, assim como o olho
se encontra no limite do campo visual.[6] O olho não é capaz de se
experienciar, mas somos capazes de saber de sua existência só pela atividade de
ver; do mesmo modo, o Eu Fichteano não é capaz de se experienciar, embora
sejamos capazes de saber de sua existência por meio de sua atividade
experienciadora do mundo. A conclusão de Fichte foi a de que existe alguma
coisa como um Eu transcendental, puro, absoluto, que tudo experiencia, mas que
é estruturalmente incapaz de ser experienciado: na metafísica fichteana, o polo
subjetivo do mundo noumênico acaba tendo de ser transformado no próprio Deus!
Repetindo em mais detalhes o
que já escrevi no capítulo anterior (sec. 9), quero outra vez evidenciar que
esse suposto Eu transcendental pairando acima e além da experiência pode ser
demonstrado como uma ilusão metafísica. Como notei, Hume escreveu sobre o eu
empírico como um feixe de perceptos (eventos mentais) que se sucedem uns aos
outros com extraordinária rapidez e que é sempre diverso... Mas ele também falou
do eu como sendo uma comunidade de perceptos, da qual alguns membros podem sair
e outros entrar, mas que mesmo assim pode ser identificada como sendo a mesma. Minha
tese era a de que nossa consciência de que possuímos esse eu empírico comunitário
é, no final das contas, a mesma do que foi ilusoriamente tomado como sendo o Eu
transcendental. E a razão foi que esse “eu-comunitário” se evade a uma
objetivação imediata.
Posso elaborar essa ideia do
eu-comunitário do seguinte modo. Temos experiências de características de nós
mesmos que parecem permanentes. Uma pessoa tem dificuldades para guardar nomes
próprios, outra tem facilidade para guardar números e ainda outra para guardar
melodias. Essas não são características importantes. Mas há disposições
emocionais que são identificadoras de uma pessoa, assim como desejos, gostos, capacidades,
habilidades, memórias. Uma pessoa pode gostar de matemática, ser passional,
melancólica, ciumenta... Ela deve possuir conhecimentos e habilidades próprias,
certamente possui memórias pessoais de sua infância e de experiências marcantes
que carrega consigo, como as de seus triunfos e fracassos. Somos capazes de ter
experiências introspectivas de tudo isso. A experiência que uma pessoa tems
dessa e daquela característica recorrente de si mesma lhe permite formar aos
poucos uma auto-imagem de si mesma como sujeito psicológico. Se tais
características, geralmente disposicionais, forem simplificadamente designadas
pelo conjunto {C1, C2, C3... Cn}, a auto-imagem ganha pela introspecção dessas
características pode ser simplificadamente designada pelas representações
correspondentes, digamos: {R1, R2, R3... Rn}.
O ponto a ser notado é que embora sejamos
capazes de ter a experiência de uma ou outra dessas características em
diferentes momentos, assim como de suas repetições em contextos experienciais
semelhantes, muitas vezes com a mediação de outras pessoas, não somos de modo
algum capazes de ter a experiência instantânea do eu-comunitário como um todo,
diversamente da experiência que tenho, digamos, de uma pontada de dor. Uma
auto-imagem só é constituída aos poucos, com base na repetição de experiências
em contextos que a identifiquem. Assim, uma pessoa pode ter a experiência de C2
de modo a confirmar a representação R2 de sua auto-imagem {R1, R2, R3... Rn},
mas não será nunca capaz de ter uma representação experiencial, nem instantânea
nem sequencial, de seu eu-comunitário {C1, C2, C3... Cn} como um todo. A razão
disso é que as diferentes características que constituem o eu-comunitário se
atualizam em ocasiões e contextos diferentes. Em resumo: embora sejamos capazes
de expor nossa auto-imagem como um esforço no sentido de descrever o
eu-comunitário, esse eu só pode ser experienciado por nós de maneira
fragmentária. Além disso, é certo que outras pessoas, observando nosso
comportamento, são capazes de nos ajudar a descobrir, reforçar e,
principalmente, corrigir nossa auto-imagem.
Alguém poderia agora apresentar
a seguinte objeção: Não podemos identificar o eu-comunitário com o Eu
transcendental, pois enquanto o eu comunitário pode ser parcialmente
experienciado em tempos e contextos diferentes, de modo a que se possa formar
uma auto-imagem, o eu transcendental não é capaz de ser experienciado de
maneira alguma. O melhor exemplo para demonstrar isso poderia ser o do cogito
cartesiano. Considere o proferimento “eu penso, eu existo” feito no presente.
Quando realizo esse proferimento eu não penso absolutamente nada, não havendo
aqui nenhum rastro de auto-imagem. Tudo o que possuo é realmente a consciência
de mim mesmo como a fonte unificadora da atividade de pensar. Do mesmo modo,
quando realizo um proferimento qualquer no presente, digamos, “Eu estou vendo
um muro”, é óbvio que não faço nenhuma introspecção de características que me
são próprias, nem sequer de uma só delas. Logo, o Eu transcendental que um
filósofo como Fichte poderia inferir do “eu penso” ou do “eu vejo um muro” não pode
ter nada a ver com esse eu-comunitário.
A resposta a essa objeção é que
muitas vezes temos a consciência de algo que não atualizamos na consciência, e
que esse pode bem ser o caso do “eu” presente no cogito ou em casos
similares. Assim, uma pessoa pode saber que é capaz de resolver uma equação de
segundo grau, o que não faz há anos, mas para isso não precisa atualizar o
procedimento de resolução. Os exemplos de casos em que se sabe que se é capaz
de atualizar uma experiência, mas que não precisa fazê-lo para saber disso, se
multiplicam. A referência ao procedimento de resolução conhecido é meramente implícita.
Essa constatação nos permite fazer a seguinte proposta: uma pessoa não precisa
ser capaz de atualizar nada do seu eu-comunitário para saber que está se
referindo a ele, pois é perfeitamente razoável pensar que a referência ao
eu-comunitário no caso do “eu penso” e em casos similares seja apenas
implícita.
Uma consequência da proposta
acima é que um ser irreflexivo que não possui nenhuma auto-imagem também não
será capaz de dar sentido a proferimentos nos quais usa o pronome “eu”, uma vez
que ela não será capaz de fazer referência implícita a qualquer coisa que se
assemelhe a um eu-comunitário. Esse deve ser o caso de crianças muito pequenas.
Ou seja: é exatamente porque já temos formada alguma ideia de nós mesmos que
somos capazes de dar sentido a proferimentos do tipo “eu penso”. Uma criança
capaz de utilizar o pronome pessoal “eu” já precisa possuir alguma forma de
auto-imagem, caso contrário não seria capaz de dar sentido à palavra como algo
mais do que “o emissor da palavra ‘eu’”. É
possível que o uso do nome próprio em linguagens primitivas, como “Touro
Sentado é corajoso” se deva a uma dificuldade em trazer a auto-imagem à
linguagem intersubjetiva.[7]
Se essa proposta for correta, e
tem tudo para sê-lo, então o Eu transcendental, o Eu puro, o Eu absoluto, não
passam de ilusões metafísicas produzidas pelo desejo de encontrar algo de
permanente e imaterial na subjetividade humana, alguma indicação metafísica da
existência da alma e mesmo de Deus.
3
Schelling. Friedrich Wilhelm Joseph
Schelling (1775-1854) foi colega de Hegel e de Hölderlin no seminário teológico
de Tübingen. Ele foi um escritor poético, criador de uma filosofia da natureza
de fundo teológico. Seguindo os passos de Fichte ele adotou o idealismo. Mas ao
invés de considerar como absoluto um Eu puro, ele decidiu colocar em seu lugar
uma instância neutra, que ele chamou de absoluto como identidade ou indiferença.[8] O absoluto seria a fusão
perfeita de todos os opostos, permanecendo homogeneamente subjacente a tudo o
que existe. É dessa indiferença que brotam as dualidades. O absoluto só se
diferencia a partir do surgimento da consciência. A natureza, por sua vez, é o
conjunto das esferas finitas que se formam na esfera infinita do absoluto
indiferenciado. A natureza era para ele espírito visível, enquanto o espírito era
a natureza invisível.
Schelling entendeu a natureza como um processo
que se desenvolve dialeticamente em direção a uma complexidade cada vez maior e
tentou mapeá-lo. A tese é uma infinita expansão, produtora do crescimento e da vida.
Ela é seguida de um desequilíbrio que conduz à sua antítese, que é a contração
infinita, produtora da decadência e da morte. Desse novo desequilíbrio é gerada
a síntese, a maior delas sendo a autoconsciência. Através de movimentos
dialéticos a natureza gera a consciência de si própria nos sujeitos humanos. O
absoluto primeiro se objetiva na natureza e depois retorna a si mesmo pela
razão reflexiva dos seres humanos. Nesse processo, as forças do amor e do ódio demandam
especial consideração. A força do amor é a de Eros, da tese, da expansão,
enquanto a força do ódio é a da antítese, da contração. O princípio da expansão
é, porém, maior que o da contração, caso contrário o universo já teria
desaparecido e não estaríamos em um contínuo desenvolvimento em direção à maior
complexidade. Daí porque o amor é superior ao ódio. É dessa superioridade do
amor sobre o ódio que advém a vida moral. A cultura, a arte, a religião e a
mitologia, são expressões do movimento dialético pelo qual a civilização deve
emergir como força expansiva. É aqui, aliás, que a cultura alemã emerge como
força expansiva, em contraposição à força de contração da cultura inglesa,
coarctada da natureza por seu empirismo, utilitarismo e materialismo (Schelling
pertencia aos primórdios do nacionalismo germânico). A natureza deverá no final
atingir completa reunificação quando, através de nós, tiver tomado consciência
de si mesma como um todo na forma do Eu absoluto.
Não pretendo me adentrar aqui nos labirínticos meandros da filosofia de
Schelling, que construiu um variado e complexo sistema orgânico, no qual buscava
considerar tudo em relação a tudo. Apesar de não conseguir ver em seu sistema muito
mais do que uma embolada poético-argumentativa pré-darwiniana, reconheço a
existência de pontos positivos. Um deles foi a ênfase no inconsciente, mais
tarde detalhadamente explorado por Freud. Outro foi ter salientado a
importância do amor como princípio construtivo necessário ao comportamento moral,
embora possa ser melhor falar do Eros freudiano como pulsão de preservação da
espécie. E ainda outro ponto positivo foi a ênfase ecológica. Para ele a
natureza e a humanidade são um e o mesmo. A ideia de que somos partes da
natureza e que uma separação violenta dela pode significar a morte é perfeitamente
atual. Fichte pode ser lembrado como um filósofo que tentou mostrar a essencialidade
da integração com a natureza como realização de nosso estar no mundo como seres
humanos.
[1] J. G. Fichte: Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Hamburg:
Felix Meiner Verlag 1988 (1794)). Trad. port. A doutrina da ciência de 1794 (São
Paulo: Abril Cultural 1984).
[2] J. G. Fichte: Grundlagen der
Gesamten Wissenschaftslehre, ibid., parte 1, sec. 6.
[3] J. G. Fichte: Grundlagen der
Gesamten Wissenschaftslehre, ibid., par. 2, sec 10.
[4] J. G. Fichte; Grundlagen der
Gesamten Wissenschaftslehre, par. 3 sec. D. Trad. Bras. A doutrina da
ciência de 1794 (São Paulo: Abril Cultural 1984).
[5] J. G. Fichte, Grundlagen
der Gesamten Wissenschaftslehre., Síntese E, p. 66 e ss.
[6] Ludwig Wittgenstein: Tractatus
Logico-Philosophicus 5.632-5.6331.
[7] Por que os diferentes eus concordam em suas
observações uma vez que eles não são unidos por um Eu fichteano? A resposta tem
a ver com a evolução natural, que harmonizou os indivíduos entre si selecionando
aqueles que possuem a capacidade de distinguir identidades e diferenças
similares.
[8] Exposição
de meu sistema de filosofia (São Paulo: Editora Clandestina 2020
(1801)).
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